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Stylus (Rio de Janeiro)

 ISSN 1676-157X

     

 

ENSAIOS

 

As marcas da interpretação

 

The marks of interpretation

 

 

Luis Izcovich

 

 


RESUMO

O presente artigo faz uma importante articulação entre a interpretação e o final de análise. Nele, o autor interroga se aquele que não tenha levado sua própria análise até sua conclusão poderá assegurar a direção de uma análise, como também poderá fazer uma interpretação "à bon escient", ou seja, uma interpretação intencional, aquela que se faz com conhecimento de causa e em função de uma finalidade. Conclui defendendo a tese de Lacan, presente desde 1958 no texto A direção do tratamento, que ter atravessado a experiência de final de análise não só é necessário para saber como no que se refere à sua conclusão, mas também condiciona a pertinência da interpretação.

Palavras-chave: Interpretação, Final de análise, Direção do tratamento.


ABSTRACT

The article brings an important articulation between interpretation and the end of an analysis. It is questioned if the one who has not taken his/her own analysis until the end would be able to ascertain the direction of an analysis, or also to come up with an interpretation "á bonescient", that is, an intentional interpretation which is done with full knowledge of the case and based on an objective. The author concludes defending Lacan's thesis, present in The direction of the treatment since 1958, that having gone through the experience of end of analysis, not only is it necessary to get to know to what the conclusion refers to, but also it conditions the pertinence of the interpretation.

Keywords: Interpretation, End of analysis, Direction of treatment.


 

 

Lacan, desde praticamente o começo de seu ensino, põe em conexão a interpretação e o final de análise. Coloquei-me a pergunta: o que justifica, por exemplo, que Lacan proponha em A direção do tratamento e os princípios de seu poder (1958) dizer que quem não tenha levado sua própria análise até sua conclusão não saberá nem assegurar a direção de uma análise como também somente fazer uma interpretação "à bon escient"?

A interpretação "à bon escient" foi traduzida para o espanhol como uma interpretação com conhecimento de causa, quando na realidade seria mais justo qualificá-la como uma interpretação feita intencionalmente, quer dizer, sabendo o que se faz em função de uma finalidade, já que a interpretação requer o discernimento do analista e, às vezes, vai ao sentido contrário do que se conhece. É o caso da interpretação inexata, mas eficaz. Melhor dizendo, o analista não só desconhece a causa como também suspende o saber que o analisante crê possuir sobre a causa, e isto até o final de uma análise.

A causa na análise é só uma: a causa traumática. A análise cria as condições para captá-la, mas a verdadeira causa, a que determinou a posição do sujeito ao longo de sua existência, se capta ao final da experiência de análise. E se o analisante e o analista podem intuir a causa antes do fim, a prudência se impõe até o final no que se refere a saber (quais) os significantes mestres que orientaram uma vida, assim como no que diz respeito a saber em seu momento o modo em que alíngua penetrou no corpo do sujeito.

Situa-se aqui toda a distância verificável por ocasião do cartel do passe entre, por um lado, imaginarizar alíngua e por outro como um sujeito passou do "troumatisme", furo traumático, à identidade de seu sintoma. Concretamente isto quer dizer extrair as consequências vitais dessa passagem e sua tradução em ato quanto ao destino do sujeito depois de uma análise. Interpreta-se com desconhecimento de causa, mas apontando para ela. A pertinência da interpretação depende menos de acertar o alvo do que ajustar-se ao objetivo, ou seja, de revelar a causa traumática. A tese é que ter atravessado a experiência de final de análise não só é necessário para saber como no que se refere à sua conclusão, mas também condiciona a pertinência da interpretação.

Poderíamos, inclusive, dizer que Lacan prolonga a denúncia de Freud quando qualifica de selvagem toda a interpretação analítica fora da transferência. Lacan é mais sutil e, ao mesmo tempo, introduz uma exigência superior. Não é suficiente considerar que a transferência condiciona a interpretação, mas também é necessário haver atravessado a experiência do final de análise. Percebe-se que o que está em jogo, de um modo implícito, é o momento em que um analisante se autoriza como analista. É um fato da clínica analítica, ao menos nestas últimas décadas, que o momento da passagem, ou seja, da autorização, precede, salvo alguma exceção, o momento do final de análise.

Admitimos, portanto, que não é necessário o final de análise para produzir uma interpretação feita intencionalmente? E se assim for, contradiremos o Lacan de 1958 ou isto quer dizer que sua proposição não tem mais vigência? Se bem que, como eu dizia, na passagem a analista se trata de um ato do analisante, na maioria dos casos é um ato sob transferência.

Que o ato de autorizar-se seja sob transferência ou após concluída uma análise não é a mesma coisa, no entanto, ambas as situações possuem um denominador comum: é o analista quem dirige o tratamento até o ponto em que a autorização é possível. Que o ato de autorizar-se implique o analisante e também o analista significa que também faz parte da responsabilidade do analista o momento em que um analisante se autoriza no ato de passagem a analista.

As razões da proposição de Lacan articulando interpretação e final de análise estão também implícitas desde o texto de 1958 e se tornam explícitas quando colocam que a leitura do texto inconsciente, embora essencial, é somente uma concepção restrita da experiência. Na mesma direção, Lacan assinala o limite da perspectiva freudiana que consiste em dar sentido ao sintoma, ou quando evoca a elucubração freudiana. Trata-se de uma encruzilhada dada pelo fato de que a leitura dá sentido ao sintoma, mas traz em si um saber que não tem limite.

Lacan dá uma saída para essa encruzilhada propondo uma volta suplementar, que não é a de uma nova leitura, mas a da análise como escritura. Em relação ao sentido do sintoma, Lacan propõe um mais além, que não é o real como falta de sentido, mas o real como sentido a partir do sem sentido. Finalmente à elucubração freudiana, Lacan dará sua resposta: o real do sinthome.

Deduz-se que a proposta é a análise como escritura do sintoma, o que não é um mais além que continua a concepção freudiana. Trata-se, melhor dizendo, de uma descontinuidade que permite afirmar, em alguns casos de reanálise, que se trata de uma contraexperiência. E é o início o que determina que seja verdadeiramente uma contraexperiência, sem o qual, há o risco, como em muitas análises, de que se deem voltas sem que se apanhe o real.

Concebem-se duas políticas diferentes para a psicanálise se a limitarmos a uma prática de leitura ou se incluirmos como perspectiva a possibilidade de que o real do sintoma se inscreva como marca no corpo. E, ambas as políticas repercutem na concepção de interpretação e condicionam o modo e o momento da autorização como analista.

Percebe-se que ambas as perspectivas já estão presentes desde o texto A direção do tratamento (op. cit.). Assim, por um lado, Lacan coloca que a interpretação é decifração, ou seja, é parte da cadeia significante do sujeito e volta a ela; por outro lado, a interpretação aponta para o horizonte desabitado do ser. Não se trata de duas técnicas diferentes de interpretação, mas de uma concepção segundo a qual a análise inclui um mais além da decifração.

A decifração é um novo saber que faz cair o saber que funcionou como certeza para o sujeito e que se revela ser uma tela. Isto funda o objetivo da resposta analítica como um trazer à luz. É ao serviço dessa lógica que a análise aparece com a interpretação que elucida. Há em Lacan uma dimensão à qual ele recorre de um modo constante, que é a de fazer perceber o sujeito. Lacan, inclusive, articula essa dimensão com o final de análise, como fazer ver ao sujeito a que significante está sujeitado, do mesmo modo que sua definição de final como um "aperçu du réel" que indica uma percepção do real. Cabe notar que esta concepção não difere da concepção anglo-saxônica, na qual o centro da interpretação é a produção de um insight.

Resumindo, a interpretação que elucida não outra coisa que a decifração e a finalidade de uma análise não seria outra coisa que uma prática de tradução de texto. O problema que se coloca para a teoria, mas também para a entrada em análise, é que a decifração da opacidade subjetiva comporta uma passagem ao ciframento inconsciente e a constituição de um novo enigma, que, portanto, é enigma a decifrar. O analista encarna o enigma necessário ao fazer par ao sintoma do sujeito, e a interpretação equívoca é a única propícia a uma conclusão que não seja uma sugestão, que se planeja sempre quando se trata de transferência. No entanto, há que se admitir também, novamente a experiência se impõe como referência, que a interpretação quer seja como citação, enigma ou equívoca, não permite uma conclusão natural da experiência.

O que chamo de final natural de uma análise?

Para Freud, o fim corresponde ao momento em que o analisante e o analista deixam de se encontrar. É esse o fim, mas é natural? O fim natural é a conclusão por desgaste libidinal. A análise limitada à prática de uma leitura implica o fim por desgaste, sem dizer, no entanto a quem, analisante ou analista, o tempo vai erodir primeiro.

O que implica, então, a concepção da análise como escritura?

A análise como escritura é o que possibilita uma marca própria à experiência analítica que se propõe a isolar o significante traumático do sujeito, o que é algo mais além do que percebê-lo.

Este é o programa que Lacan traça desde a última lição do seminário Os quatro conceitos (1964), em que retoma a questão de fazer ver ao sujeito, e a recoloca em termos mais contundentes: que são os de levar o sujeito ao momento no qual, pela primeira vez, se coloca em posição de sujeitar-se ao significante primordial.

Dizer que é pela primeira vez reenvia a uma experiência inédita, mais além da terapêutica e que dá uma nova fixação ao ser do sujeito. Essa perspectiva dá vigência à proposição radical de Lacan segundo a qual o fim guia a interpretação. É certo que é possível decifrar o inconsciente de um sujeito, uma vez que se tenha decifrado o próprio inconsciente; e é certo que é possível assumir o lugar de analista sob a condição de não estar afetado pelos próprios afetos e que a contratransferência não interfira demasiadamente. No entanto, não é a mesma coisa autorizar-se a responder as demandas de uma análise desde este ponto, do que desde o ponto no qual uma análise deixa uma marca indelével no sujeito futuro analista. Nisso Lacan insistiu até o final acrescentando, inclusive, uma experiência para o sujeito que, mais além de tê-lo feito ver, é a de tê-lo feito sentir o que é o "des-ser" do analista.

Para concluir, por que utilizar a expressão "marcas da interpretação", no plural? A primeira marca é a marca traumática, índice de que não há trauma para a psicanálise sem a interpretação do sujeito. A segunda é a marca deixada pelo dizer da análise. Sem essas duas marcas da interpretação pode-se dizer que tenha havido análise, mas não se pode afirmar que se tenha produzido um analista.

 

Tradução Luis Guilherme Mola

Revisão: Silvana Pessoa e Luis Izcovich

 

Referências

LACAN, J. (1958). A direção do tratamento e os princípios de seu poder. In: _______. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 591-652.         [ Links ]

_________. (1964). O seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Tradução de M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1973, 271p.         [ Links ]

 

 

Recebido: 30/07/2012
Aprovado: 10/08/2012