Stylus (Rio de Janeiro)
ISSN 1676-157X
TRABALHO CRÍTICO COM CONCEITOS
Existe a neurose e há pessoas que se curam. Qual é o truque?
Neurosis exists and people get cured. What's the trick?
Bárbara Guatimosim
RESUMO
Na pequena comunicação no Congresso sobre a transmissão de julho de 1978, Lacan vai da afirmação da existência da neurose, passa pelo jogo analítico que a faz ceder, e chega à possibilidade da emergência, e também transmissão, do que chamará de Sinthome: o que fica resta ímpar de cada um e, paradoxalmente, algo que vem como um novo laço social ao final de uma análise. Como o discurso do analista promove este desfecho? Qual é o truque? É a pergunta que o conduz. A partir dessas observações que faz Lacan em suas "conclusões" e sob sua orientação, pretende-se levantar e trabalhar algumas questões sobre interpretação e ato.
Palavras-chave: Interpretação, Ato, Final de análise, Sinthoma, Nó borromeu.
ABSTRACT
In the short communication at the Congress About the Transmission, in July 1978, Lacan moves from the affirmation of the existence of neurosis, passes through the analytical game that makes it give in, and reaches the possibility of emergence, and also transmission, of what he would call sinthome: what is left is unique to each patient and, paradoxically, it is something that comes as a new social bond at the end of an analysis. How does the analyst's discourse provoke this outcome? What is the trick? That is the question which leads him. From these observations made by Lacan in his "conclusions" and under his guidance, the objective here is to raise and discuss questions on interpretation and act.
Keywords: Interpretation, Act, End of analysis, Sinthome, Borromean knot.
De um certo ponto adiante não há mais retorno.
Esse é o ponto que deve ser alcançado. (F. Kafka)
Então como pode ocorrer que pela operação do significante, haja pessoas que se curem? Pois é exatamente disso que se trata. É um fato que há pessoas que se curam. Freud salientou bem que não era necessário que o analista fosse possuído pelo desejo de curar: mas é um fato que há pessoas que se curam (...) Como isso é possível? Apesar de tudo o que eu disse na ocasião, não sei nada sobre isso. É uma questão de trucagem. Como é que se sussurra ao sujeito que se tem em análise alguma coisa que tem como efeito curá-lo; essa é uma questão de experiência na qual desempenha um papel, o que eu chamei de sujeito suposto saber. Um sujeito suposto é um redobramento. O sujeito suposto saber é alguém que sabe. Ele sabe o truque, já que falei de trucagem, no caso: ele sabe o truque. A maneira pela qual se cura uma neurose.
Devo dizer que no passe, nada anuncia isso; devo dizer que, no passe, nada dá testemunho de que o sujeito saiba curar uma neurose. Fico sempre esperando que alguma coisa me esclareça sobre isso. Gostaria muito de saber por alguém que desse testemunho disso no passe, que um sujeito – já que é de um sujeito que se trata – é capaz de fazer mais do que aquilo que eu chamarei de tagarelice habitual; pois é disso que se trata. Se o analista não faz mais do que tagarelar, pode-se estar certo de que ele erra sua jogada, a jogada que é de efetivamente remover (lever) o resultado, isto é, o que se chama de sintoma. Tentei falar mais longamente sobre o sintoma (symptôme). Até mesmo o escrevi em sua ortografia antiga. Por que razão eu a escolhi? "S-i-n-t-h-o-m-e", seria evidente um pouco demorado explicar-lhes. Escolhi essa maneira de escrever para sustentar o nome sintoma (symptôme), que hoje em dia é pronunciado, não se sabe bem por que, "symptôme", isto é, algo que evoca a queda de alguma coisa, já que "ptoma" quer dizer "queda".
O que cai junto é alguma coisa que não tem nada a ver com o conjunto. Um sintoma (sinthome) não é uma queda, embora pareça. A tal ponto que considero que vocês todos aí, como estão, têm como sinthoma, cada um, sua cada uma. Há um sinthoma ele e um sinthoma ela. É tudo o que resta do que se chama de relação sexual. A relação sexual é uma relação intersinthomática. É por isso que o significante, que é também da ordem do sinthoma, opera. É bem por isso que suspeitamos a maneira pela qual ele pode operar: é por intermédio do sinthoma. Como então comunicar o vírus desse sinthoma sob a forma do significante? Foi o que tentei explicar ao longo de meus seminários. Creio que hoje não posso dizer mais nada sobre isso (LACAN, Conclusões – Congresso sobre transmissão, 1978, p. 66).
Do ceder do desejo à cessão de gozo na queda da neurose
Nessa pequena comunicação no Congresso sobre a transmissão, Lacan percorre do começo ao fim a travessia analítica. Parte da afirmação da existência da neurose, passa pelo jogo analítico que a faz ceder e chega à possibilidade da emergência e também transmissão, do que chamará de Sinthome. Lacan afirma aqui que a conclusão da análise leva à cura da neurose. Como o discurso do analista promove este desfecho? Qual é o truque?, é a pergunta que o conduz. A partir dessas observações que faz Lacan em suas "conclusões" e sob sua orientação, pretendo levantar e trabalhar algumas questões sobre a interpretação e o ato.
Quando o mal-estar de um sujeito se anuncia como demanda ao analista, fazendo sintoma analítico, desde o início de uma análise lidamos com a atitude, a qual Lacan em A ética da psicanálise (1988/1959-1960, p. 382) designa como "ceder do desejo"; cessão que produz angústia e, para o autor, a verdadeira culpa. A não sustentação do desejo é o correlato inevitável do evitamento da castração, esta que viriliza, dá vigor ao desejo. Se na nossa escuta verificamos e acompanhamos a cessão do desejo que se apresenta nas posições e escolhas do sujeito no desfiar do trabalho analítico, o que se pode produzir na análise como queda da paixão, do sofrimento? Uma queda onde se queda (cai e fica)? Qual a lógica da interpretação, o truque que reconfigura o fantasma e faz a queda do sintoma que aí se sustenta? Pretendemos investigar o que envolve o "truque" no que tange às intervenções, pontuações, interpretações, cortes que adquirem a função do ato do analista – sempre verificada no a posteriori – nessa contrapartida analítica que tomamos como "queda", cessão de gozo.
O ato analítico como função e discurso
Um parêntese que não me parece desnecessário: proponho pensar o ato analítico como ato da função e do discurso analíticos e não como o ato da pessoa do psicanalista. Realizar atos e ditar um saber leva o analista para longe de seu lugar. Pode ser tão somente impostura e pregnância narcísica o psicanalista se colocar como fazedor de atos (o que em si é um paradoxo, já que o analista no lugar de causa do desejo é atravessado pelo ato) e detentor do discurso analítico (o que imediatamente o reverte em seu avesso, o discurso do mestre). O trabalho analítico é, muitas vezes, comparado a um jogo. Freud foi o primeiro a sugerir a analogia com o jogo de xadrez. Entretanto, jogar verde para colher maduro nem sempre é um bom truque. A provocação artificiosa que ostenta saber para obter efeitos de real, pedaços de saber legítimos, pode ter seu lugar e valor, desde que não precipite a queda vertiginosa da transferência, pois nessa tática, que toca de perto o manejo, a estratégia, corre-se o risco de se obter a destituição selvagem do analista, que cai verde, de véspera, antes de ser pelo uso maturado, em vez de colher uma objeção iluminada e distintiva do sujeito, ou mesmo a aquiescência subserviente e alienada ao suposto saber – o que não deixa de indicar o ponto em que a análise se encontra.1 Analiticamente falando, interessa mais a surpresa que acomete o analista e/ou analisando, quando um suposto "erro", um lapso, ou ato falho, que pode ir do sutil ao grosseiro e tocar mesmo o absurdo, fisga o peixe da verdade.2 E quantas vezes, a partir da convocação ao inconsciente, agenciada pela presença do analista, intervenções decisivas e mesmo o mais preciso e incisivo ato analítico vêm de lugares e pessoas os mais inesperados e ficam na dependência, no só depois da leitura, dos efeitos de escrita que se constatam no analisando para efetivar-se como ato analítico. Esses efeitos da análise que se estendem para além do tempo-espaço do consultório, que se desprendem da figura do analista, condizem com o que se verifica como ato final, ato destacado do analista, ato separador, que conclui uma análise, e que não pode ser poupado ao analisante, mesmo que do analista venha o aguilhão que acossa na direção da saída. Mesmo porque é com esse ato que o sujeito faz a virada em sua posição analisante ao tornar-se analista. O ato não é somente acéfalo, não intencional, atravessando e "desrespeitando" dessa forma o sujeito – sujeito que ao ser assim atravessado, marca presença em sua função de suporte – e o eu do analista, que é do ato despossuído. A surpresa surpreende atestando sua origem made in real, emergindo sempre do mesmo lugar estrangeiro, ao mesmo tempo podendo provir do topos mais diverso e, para ser ato propriamente dito, tem sempre como destino e consequência, atingir em cheio o vazio da causa do desejo. O ato e a interpretação se sustentam na transferência e no sujeito suposto saber, mas a cada dizer analítico eficaz, faz emergir um sujeito dividido menos alienado no amor, que se distancia de um saber suposto não apenas ao analista, mas também a outros sabichões que povoam a vida cotidiana do analisante. Isso tem como efeito suspender certezas consolidadas, produzir saberes de migalhas do real, até o ato de separação dar o golpe final de destituição no sujeito suposto saber.
A interpretação e suas variantes
A interpretação em Direção do tratamento e os princípios de seu poder (LACAN, 1998/1958, p. 594) é o procedimento tático no qual o analista transita com mais liberdade. Coerentemente, Lacan não encoraja nenhuma neutralidade ou apatia na função analítica, justo porque ele, o analista, é "possuído por um desejo mais forte. Ele está autorizado a dizê-lo enquanto analista, enquanto produziu-se para ele uma mutação na economia de seu desejo" (LACAN, 1992/1960-1961, p. 186-187), e acrescentaríamos, de seu gozo. Quanto menos o analista tenha contas a acertar com seu desejo, quanto mais esteja ele plantado em sua função, mais tem condições táticas de se movimentar, de se deslocar nas intervenções e na interpretação. A interpretação não se reduz a uma decifração que acredita em uma correspondência entre significante e significado, objeto e representação, na proporção, na simetria sexual, o que jogaria a interpretação, na falta disso por estrutura, à infinitização da análise ou a outros impasses como interrupções, e ainda saídas suspeitas que se concluem pela identificação a ideais. A partir de O aturdito (LACAN, 2003/1972) ganha-se uma certa sistematização da interpretação que não se reduz a regras de aplicação. A interpretação, que surge como um dizer, uma enunciação, se distingue pela homofonia, gramática, e, para "não ser imbecil", pela lógica – todas se fazendo na via da equivocação, mantendo sua virtude alusiva, seu meio dizer que a situa "entre o enigma e a citação".3
É por meio do equívoco (do latim: mesmo vocativo, mesma voz, mesma chamada) que, fazendo corte na significação única (palavra vazia), promove a expansão dos sentidos (palavra plena), a polifonia das vozes e das chamadas, abrindo-se ao ab senso, ao fora do sentido e ao pas de sens, passo de sentido. Se a interpretação, em meio ao equívoco, nunca imperativa, sugerir identificatoriamente uma significação, pode, no entanto, levar à asserção apofântica quando iluminar positivamente (e inequivocamente) o vazio da causa do desejo, não restando a menor dúvida ao sujeito, por deixar a neurose desarmada, sem recursos, e impotente ao querer retomá-los. No início, temos um objeto encoberto pela transferência amorosa "(...) um objeto dito 'latente', no final um objeto revelado, portanto 'patente'" (SOLER, 1984, p. 46). O ato analítico opera no après coup uma mutação radical na posição do sujeito, ele opera a separação, que destaca um antes e um depois. É ele que está na base da iluminação apofântica que faz com que o sujeito depare com a determinação de seu gozo e com sua condição de sujeito marcado pelo significante. Desse encontro litorâneo com seu gozo e sua marca emerge a potência da letra, que ao se sustentar na causa nodal, pode avançar no sentido de um savoir y faire acordado com seu desejo, fazendo acontecer aquilo que lhe cai bem: sinthoma.
A interpretação e o ato na topologia
Depois da virada, nos anos 1970, no ensino de Lacan, nem o sujeito, nem o desejo podem ser concebidos sem o nó borromeano. Com o suporte da topologia pode ser mais interessante vermos como se dão os efeitos lógicos e subjetivos na materialidade das operações de interpretação e do ato analíticos.
O convite à associação livre faz a fala puxar um fio, de modo geral contínuo, e segue tomando a coloração imaginária, que é a dimensão da transferência especular amodiosa convocada pela tarefa analisante. Para que a análise não se feche nesse registro, o analista, apoiado na estrutura nodal, deve se encontrar no campo de obstaculização, produzindo os pontos de castração, pontos de corte, que são também pontos de amarração, ou seja, pontos de engajamento e enodamento, onde entram em jogo e em cena os registros simbólico e real. A associação livre convoca no analista a interpretação e o ato, pois toda vez que a fala analisante tenta passar incólume pelos pontos de castração, a intervenção do analista deve ser acionada, desde que sua atenção esteja topologicamente orientada para os pontos de corte e não para ele exibir a performance de sua atuação.
Em RSI, Lacan nos dá a frase enxuta que reduz o mito de Édipo à estrutura da castração: "O buraco é a interdição do incesto" (lição de 15/04/75). O nome do pai, não só como nome, mas como nomeador, atua em sua função não só na historieta de cada um, não apenas como personagem, mas enquanto operador estrutural: aquele que faz buraco. Os judeus, segundo Lacan, sabem dizer isso: "Eu sou o que sou, isto é, um buraco" (Ibid.). Nesse buraco o nome que operou pode ser engolido no turbilhonamento do nó, mas também pode ser cuspido de volta. Vemos isso na clínica quando, aparentemente para um sujeito, o pai e o enodamento borromeano parecem não estar operando – o que coloca em questão a estrutura como, por exemplo, em casos graves de inibição. Eis que alguma intervenção vinda diretamente do analista ou via uma contingência real produz a fagulha como resposta: o "Basta!" ou o "Alto lá!", o "Não" – e o sujeito cospe "Le Non" do pai, esfregando-o na cara de quem o pediu. "Não" que porta a objeção firme da significação fálica, bastão que impede a boca do crocodilo de se fechar, para usar a imagem de Lacan no Seminário O Avesso da Psicanálise, (1992/1969-1970, p. 105). Na psicose, diferentemente, o sujeito responde com a crise delirante e/ou com alucinações, que não deixam de ser seus recursos.
As interpretações e os cortes nos intervalos nodais da cadeia revelam, desnudam, refazem os buracos produzidos pela castração inerente à estrutura. Dessa forma, os pontos de enodamento ao longo da trajetória analítica vão repassando e desvelando ou refazendo o nó borromeano, escondido no emaranhado, ou nos escombros da neurose.
Sinthoma, estilo e transmissão
Quase toda criança pode saber fazer uma trança, e, uma vez feita, o gesto é automático (fig. 1); mas mesmo tendo a trança como base, saber fazer o nó é outra história. Nesse sentido, a amarração nodal é o próprio percurso analítico, caminho que revela a não proporção sexual e ao mesmo tempo perfaz um modo, para cada um próprio, de lidar com essa impossibilidade. O quarto elo na neurose não está no nó como suplência (que supre uma falta) ligando elos superpostos (fig. 2).
O quarto elemento, ou quarto termo, é o próprio gesto de trançar os elos, gesto que ao longo da travessia analítica acaba por definir e desenhar o nó borromeano de modo suplementar, que acrescenta um estilo, um modo próprio de fazer (fig. 3). O estilo é, portanto, o que se produz na análise como o modo de entrelaçar os três registros.
O estilo é um saber lidar que não mais pede, nem cede à interpretação, por ser não mais uma formação de compromisso conflituosa (sintoma), mas um acordamento pacífico (sinthoma) entre as três dimensões de R.S.I. Desse acordo topológico, a consequência central é o recorte e a queda do objeto a: "como causa do desejo em que o sujeito se eclipsa e como suporte do sujeito entre verdade e saber", diz-nos Lacan na abertura de seus Escritos (1998/1966, p. 11). O objeto a entra em cena para designar o que faz estilo na psicanálise: a singularidade do desejar de cada um. A emergência do objeto a é correlativa à falha irremediável do Outro S(A/) que, sem custear e preencher o sujeito com respostas abre-se-lhe o recurso da invenção.4
Assim, o estilo não é o "homem" ou o "próprio homem" como queria Buffon, mas o mais próprio do homem, o objeto a. Em seu artigo O Estilo, o Analista e a Escola (//www.oocities.org/), Quinet distingue sintoma do final da análise e estilo, precisando: "Em suma, o sintoma-verdade comporta dois destinos: o estilo, que é da ordem da enunciação por onde circula a verdade; e o sintoma, como real. A verdade se desvincula do sintoma para estar a serviço do estilo". Um estilo é, pois, o que se destaca do acordamento borromeano sinthomático e se transmite como um modo próprio de amarrar os elos, as letras, como um jeito único de escrever, de enunciar, uma maneira de viver, de tratar os significantes. "Como então comunicar o vírus desse sinthoma sob a forma do significante?" Prolongamos então esta pergunta de Lacan em outra: não seria o estilo, não o sinthoma, mas o vírus do sinthoma, o objeto a a se transmitir?
Transmissão da lei ética do desejo
Lacan, em RSI, elabora uma teorização in progress do quarto termo do nó ao longo do seminário. Inicialmente com Freud, Lacan concebe o quarto elemento como a realidade psíquica, o complexo de Édipo5 ou ainda como o Nome do Pai. Desde o Seminário 3, de As psicoses lemos:
[...] se tentamos situar num esquema o que faz manter-se de pé a concepção freudiana do complexo de Édipo, não é de um triângulo pai-mãe-criança de que se trata, é de um triângulo (pai)-falo-mãe-criança. Onde estará o pai ali dentro? Ele estará no anel que faz manter-se tudo junto (1988/1955-1956, p. 359).
No Seminário 4, A relação de objeto, Lacan deixa ainda mais clara a posição do pai como quarto termo:
[...] vocês viram esboçar-se uma linha de busca que se referia à tríade imaginária mãe-criança-falo, como prelúdio à posta em jogo da relação simbólica, que se faz com a quarta função, a do pai, introduzida pela dimensão do Édipo (1995/1956-1957, p. 81).
Voltando ao R.S.I., Lacan situará o Nome-do-Pai no nó borromeano em sua função de enodamento e nomeação simbólica dos registros.6 Como ele mesmo diz:
[...] nosso Imaginário, nosso Simbólico e nosso Real estão talvez para cada um de nós ainda num estado de suficiente dissociação para que só o Nome do Pai faça nó borromeano e mantenha tudo isso junto, faça nó a partir do Simbólico, do Imaginário e do Real (lição de 11/02/75).
Ao mesmo tempo, Lacan aí se questiona: afinal, não é o Simbólico que tem o privilégio desses Nomes do Pai? Se o simbólico faz furo, ao esburacar o real ele escreve e dá lugar ao imaginário. No nó borromeano, a interdição, a castração se propaga, se transmite, no entrecruzamento dos elos. Cada um puxa pelos outros. Todas as dimensões participam do Simbólico, Imaginário e Real. Todas têm buraco, consistência e ex-sistência, dimensões nomeadas por Freud como Inibição, Sintoma e Angústia.
Quando, na travessia analítica, o Nome do Pai, quarto elemento, torna-se lei implícita, propagada, no plural, Nomes do Pai, das dimensões enodadas, o nó de três se sustenta na lei ética do desejo dispensando, porque perde o sentido se manter, o imperativo moral do Supereu. É essa a queda, feita de cessões de gozo, que promove o discurso analítico e que reverbera em outros tombos identificatórios, efeitos de perda (efeitos terapêuticos) nos sintomas neuróticos.
Se "o desejo articula sem ser articulável", ele também realiza sem ser realizável, quando dele não se cede. Talvez isso explique porque o desejo do analista, apesar de não se realizar na análise como desejo de curar, realize em ato o efeito de cura, quando se cede do gozo. Se no início de uma análise o sujeito que sabe é aquele que é suposto saber o "truque", aquele que sussurra no ouvido a palavra da salvação, a experiência da análise avança revelando ser o efeito de cura, não uma prestidigitação, mas uma experiência de trabalho e repetição que conta ainda com o real dos bons encontros, sorte contingente, que pode acionar tanto a queda dos sintomas como o traçado do sinthoma.
Por que não encontraríamos, com o discurso analítico, algo que desse uma ideia de um truque preciso? E afinal, o que é a energética, senão também um truque matemático? Este não será matemático, é por isso mesmo que o discurso do analista se distingue do discurso científico. Enfim, essa chance, vamos colocá-la sob o signo da boa sorte, ainda (encore) (LACAN, 2010/1972, p. 237).
Ao se contar com o Nome do Pai como quarto elemento, pode-se dele prescindir, pois o pai – no plural, Nomes do Pai – torna-se nó borromeano a três, ou seja, os três registros R, S e I enodados. Isto corresponde à conquista do que foi herdado e então é possível, ao sujeito, operar uma mutação na posição subjetiva e abrir-se para o espaço de invenção. Reinventar o pai, a lei, não seria reinventar a roda? Não, talvez pior. Mais radicalmente, nesse lugar, reinventam-se as condições mesmas da invenção da roda. Reinventa-se no próprio movimento, o sinthome que aí ganha rodinhas!
"Não foi o mar Juan, mas seu movimento, que nos foi dado em herança."
(M. G. LLANSOL – A terra fora do sítio, 1998)
Referências
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Recebido: 16/02/2012
Aprovado: 31/03/2012
1 "Eis por que uma vacilação calculada da 'neutralidade' do analista pode valer, para uma histérica, mais do que todas as interpretações, com o risco de transtorno enlouquecido que disso pode resultar. Desde, é claro, que esse transtorno enlouquecido não acarrete o rompimento e que a sequência convença o sujeito de que o desejo do analista não teve nada a ver com isso." Ver mais sobre essa questão em Lacan, Subversão do sujeito e dialética do desejo, Escritos, p. 839.
2 Falando sobre o que se pode obter dos erros e construções falsas do analista, Freud cita as palavras de Polônio a Reinaldo, em Hamlet: "(...) frequentemente ficamos com a impressão de que, tomando de empréstimo as palavras de Polônio, nossa isca de falsidade fisgou uma carpa de verdade". Construções em análise, p. 296.
3 Lacan, Seminário XVII, O avesso da psicanálise, p. 34-35. A citação também é um meio dizer, e ainda uma enunciação que apela ao nome, chama pela autoria.
4 Em seu artigo "O Estilo, o Analista e a Escola", Quinet pergunta: "Se o estilo advém do sem recurso (do apelo ao Outro), como se dá em uma análise esse processo em que advém o estilo? E qual sua relação com o sintoma?".
5 "Foram necessários a Freud, não três, o mínimo, mas quatro consistências para que isso se sustentasse, a supô-lo iniciado na consistência do simbólico, imaginário e real. O que ele chama de realidade psíquica tem perfeitamente um nome, é o que se chama complexo de Édipo. Sem o complexo de Édipo, nada da maneira como ele se atém à corda do Simbólico, do Imaginário e do Real se sustenta. Donde eu ter insistido, com o tempo, em proceder, vem de eu acreditar que, do que Freud anunciou, não é o complexo de Édipo que se deve rejeitar." (LACAN, idem, lição de 14/01/75).
6 "Certo é que, quando comecei a fazer o seminário dos 'Nomes do Pai', (...) não é por nada que chamara isso de 'Os Nomes do Pai' e não o Nome do Pai, eu tinha algumas ideias da suplência que o campo toma, o discurso analítico que faz com que essa estreia, por Freud, dos Nomes do Pai, não é porque essa suplência não é indispensável que ela não tem vez" (LACAN, RSI, lição de 11/02/75).