Stylus (Rio de Janeiro)
ISSN 1676-157X
DIREÇÃO DO TRATAMENTO
O manejo da transferência
Management of transfer
Carlos Eduardo Frazão Meirelles
RESUMO
Este artigo investiga o conceito de manejo da transferência no campo clínico da neurose. Acompanha as formulações inaugurais de Sigmund Freud sobre o fenômeno da transferência, no que implica de repetição e realidade sexual, utilizando como referência o caso Anna O., conduzido por Joseph Breuer, assim como as formulações de Freud sobre a utilização da transferência para o tratamento da neurose, no que diz respeito à produção de saber inconsciente e à sustentação do trabalho analítico. Com Jacques Lacan, o termo freudiano de manejo da transferência é retomado a partir da noção de sujeito suposto saber e de sua formalização matêmica. Por fim, é discutido o manejo da transferência no momento de entrada em análise com a apresentação de um fragmento de um caso clínico.
Palavras-chave: Transferência, Sujeito suposto saber, Clínica psicanalítica, Neurose, Interpretação.
ABSTRACT
The article investigates the concept of management transfer in the clinical field of neurosis. It follows Sigmund Freud's inaugural formulations on the phenomenon of transfer, what it implies of repetition and sexual reality, using as reference the Anna O. Case conducted by Joseph Breuer, and also how Freud's formulations about the use of the transfer in the treatment of neurosis, regarding the production of unconscious knowledge and the support of the analytical work. With Jacques Lacan, the Freudian term, management of the transfer, is resumed from the notion of the subject supposed knowledge and its mathemic formulation. Finally, the author discusses management of transfer at initial moment of the analysis with the presentation of a fragment of a clinical case.
Keywords: Transfer, Subject supposed to know, Psychoanalytic clinic, Neurosis, Interpretation.
A transferência como fenômeno
A transferência é um fenômeno que ocorre em todas as relações sociais, estando na decorrência da condição falante do ser humano. As primeiras referências ao termo transferência na obra de Freud, por exemplo em A Interpretação dos Sonhos (1900/1996), referem-se ao transporte realizado pelas representações, isto é, o fato da estrutura de linguagem dos processos psíquicos, normais ou patológicos, operar com deslocamentos de sentido e afeto. Esta condição de transporte está implicada na acepção da transferência como relação ao outro. As cadeias simbólicas formadas pelos deslocamentos não são as mesmas para dois sujeitos. A disparidade entre as cadeias que estruturam cada sujeito implica um hiato na relação entre os falantes. As identificações de reciprocidade e semelhança, tão necessárias às funções sociais, encobrem a disparidade existente no registro simbólico inconsciente, conferindo todos os riscos para que se implique o outro em conexões inconscientes prévias do sujeito.
No início do tratamento psicanalítico, em continuidade com a experiência humana em geral, há uma transferência já presente, espontânea, em relação à qual incidirá o manejo especificamente psicanalítico, distinto das demais formas culturais de se lidar com o fenômeno. Freud caracterizou esta transferência inicial como repetição de "clichês estereotípicos" (1912/1996, p. 112), a inclusão do analista nas séries das imagos constituídas nos primeiros anos de vida do sujeito. É um fenômeno que ocorre já nas entrevistas iniciais, ainda que muitas vezes só possa ser reconhecido como tal a posteriori. Freud comenta que a transferência inicial tende a se manifestar como repetição em ato na sessão, e não como recordação:
[...] O paciente não recorda coisa alguma do que esqueceu e reprimiu, mas expressa-o pela atuação ou atua-o (acts it out). Ele o reproduz não como lembrança, mas como ação; repete-o, sem, naturalmente, saber que o está repetindo. Por exemplo, o paciente não diz que recorda que costumava ser desafiador em relação à autoridade; em vez disso, comporta-se dessa maneira para com o médico. [...] Não se recorda de ter-se envergonhado intensamente de certas atividades sexuais e de ter tido medo de elas serem descobertas; mas demonstra achar-se envergonhado do tratamento que agora empreendeu e tenta escondê-lo de todos. E assim por diante. Antes de mais nada, o paciente começará seu tratamento por uma repetição deste tipo (1914a/1996, p. 165-6).
O laço particular que cada sujeito institui com o analista antecipa um Outro ao qual o sujeito se relaciona de modo inconsciente, e que, constata-se no decorrer das análises, está implicado na própria questão que o faz buscar tratamento. Se esta antecipação ocorre em qualquer relação social, no laço psicanalítico ela se distingue por ser a própria matéria de que se deve tratar, e o que fornece a condição de sua operação.
Sendo os clichês estereotípicos formados na primeira infância os protótipos dos outros fundamentais do complexo edípico, o móvel erótico desse complexo manifesta-se na transferência. Cada um, "[...] durante os primeiros anos, conseguiu um método específico próprio de conduzir-se na vida erótica — isto é, nas precondições para enamorar-se, nas pulsões que satisfaz e nos objetivos que determina a si mesmo" (FREUD, 1912/1996, p. 111).
Esta estratégia libidinal estaria sempre apta a se transferir a cada nova relação do sujeito. Freud considera, ainda, que é na medida em que o sujeito encontra-se castrado de sua satisfação que as ideias antecipadas estão mais suscetíveis de serem transferidas: "Se a necessidade que alguém tem de amar não é inteiramente satisfeita pela realidade, ele está fadado a aproximar-se de cada nova pessoa que encontra com ideias libidinais antecipadas [...]" (Ibid., p. 112). O mesmo fenômeno incluiria o psicanalista: "Assim, é perfeitamente normal e inteligível que a catexia libidinal de alguém que se acha parcialmente insatisfeito, uma catexia que se acha pronta por antecipação, dirija-se também para a figura do médico" (Ibid., p. 112).
O fundamento sexual da transferência é uma descoberta decisiva de Freud para o início da investigação propriamente psicanalítica do inconsciente, e pode ser datada no desfecho do caso Anna O., conduzido por Joseph Breuer. É um exemplo paradigmático da transferência como fenômeno, ainda sem o manejo propriamente psicanalítico e com as consequências que isso implicou. Serviu justamente para Freud decidir por uma determinada orientação de manejo em todos os casos posteriores. Os detalhes são contados por Ernest Jones.
Após cerca de dois anos de tratamento, tendo a esposa de Breuer se tornado "ciumenta" (1961/1970, p. 237) por "não ouvir do marido mais nada senão esse assunto" (Ibid., p. 237), Breuer decidiu encerrar o tratamento de Anna O., estando ela já em melhores condições.
Mas nessa mesma tarde foi chamado à casa da paciente e encontrou-a num estado de grande excitação, aparentemente mais grave do que nunca. A paciente, que, segundo ele, parecia ser um ser assexual e que nunca fizera qualquer alusão a esse tópico proibido ao longo de todo tratamento, mostrava-se agora no umbral de uma crise de parto histérica (pseudociese), culminação lógica de uma gravidez fantasística que se vinha desenvolvendo invisivelmente em reação às atenções médicas de Breuer (Ibid., p. 237).
Breuer, envolvido em "[...] forte contratransferência diante da sua interessante paciente" (Ibid., p. 237), ficou profundamente perturbado com a revelação do impulso erótico que, agora se notava, viria já de longa data nas sessões de hipnose e conversa. Freud retroagiu o impulso erótico ao histórico clínico da analisante e interpretou, acompanhando o campo sexual não analisado dos sintomas de então – "[...] O simbolismo nele existente – as cobras, o enrijecimento, a paralisia do braço – e, levando em conta a situação da jovem à cabeceira do pai enfermo, facilmente chegará à verdadeira interpretação dos sintomas [...]" (1914a/1996, p. 22). Apesar de Breuer ter reconhecido a motivação sexual da transferência desta analisante, a "natureza universal deste fenômeno inesperado lhe escapou" (Ibid., p. 22). O clichê estereotípico da transferência de Anna O. é sugerido por Ernest Jones: "A Senhorita Bertha (Anna O.) era não somente inteligente, mas também extremamente atraente quanto ao físico e à personalidade; quando foi removida para o sanatório, inflamou os sentimentos amorosos do psiquiatra que a atendia" (1961/1970, p. 238). Ainda que não se possa contestar "o caráter de um amor genuíno" (FREUD, 1915/1996, p. 185) nesta repetição, pois as escolhas amorosas de fato ocorrem com repetições deste tipo, a escuta do dizer inconsciente só se tornou possível na posição de abstinência em que estava Freud, constituindo uma regra que torna possível o manejo psicanalítico da transferência: "[...] A experiência de se deixar levar um pouco por sentimentos ternos em relação à paciente não é inteiramente sem perigo. [...] O tratamento deve ser levado a cabo na abstinência" (Ibid., p. 182). Localizando o episódio de Anna O. na História do Movimento Psicanalítico (1914b/1996, p. 23), Freud indica a importância do saber que dele extraiu.
O surgimento da transferência sob forma francamente sexual – seja de afeição ou de hostilidade –, no tratamento das neuroses, apesar de não ser desejado ou induzido pelo médico nem pelo paciente, sempre me pareceu a prova mais irrefutável de que a origem das forças impulsionadoras da neurose está na vida sexual. A este argumento nunca foi dado o grau de atenção que ele merece [...] mais decisivo do que quaisquer das descobertas mais específicas do trabalho analítico.
Lacan, em continuidade com a descoberta de Freud, formula que "[...] é na transferência que devemos ver inscrever-se o peso da realidade sexual" (1964/1998, p. 147), ou ainda, que "[...] a transferência é aquilo que manifesta na experiência a atualização [mise en acte] da realidade do inconsciente, no que ela é sexualidade" (Ibid., p. 165).
O manejo da transferência
O termo manejo da transferência é utilizado por Freud para indicar como agir com a transferência que se manifesta no início do tratamento.
Todavia, o instrumento principal para reprimir a compulsão do paciente à repetição e transformá-la num motivo para recordar reside no manejo da transferência. Tornamos a compulsão inócua, e na verdade útil, concedendo-lhe o direito de afirmar-se num campo definido. Admitimo-la à transferência como a um playground no qual se espera que nos apresente tudo no tocante a impulsos patogênicos, que se acha oculto na mente do paciente (1914a/1996, p. 169).
Freud propõe que o acting out inicial seja admitido à análise para que se transforme em motivo à rememoração. Os "fenômenos da transferência [...] prestam o inestimável serviço de tornar imediatos e manifestos os impulsos eróticos ocultos e esquecidos do paciente" (1912/1996, p. 119). O manejo consistiria em fazer com que os impulsos despertados sirvam para causar a associação livre e a interpretação dos sintomas. O termo playground é sugestivo na medida em que pode se referir ao parque infantil, metaforizando a análise como lugar de pôr em movimento, pela fala, o infantil que permanece atuante no adulto. Confere também algo de lúdico para a análise. Mas Freud não deixa de considerar, na metáfora do químico que "maneja substâncias explosivas" (1915/1996, p. 187), os impulsos sexuais recalcados como "forças altamente explosivas" (Ibid., p. 187), e "os mais perigosos impulsos mentais" (Ibid., p. 188). Também utiliza a metáfora de luta: "Esta luta [...] é travada, quase exclusivamente, nos fenômenos da transferência. É nesse campo que a vitória tem de ser conquistada – vitória cuja expressão é a cura permanente da neurose" (1912/1996, p. 119). Neste sentido, Freud chega a afirmar que "[...] as únicas dificuldades realmente sérias que [o psicanalista] tem de enfrentar residem no manejo da transferência" (Ibid., p. 177).
Com Lacan encontramos um avanço de formalização do manejo da transferência, com o conceito de sujeito suposto saber e seu algoritmo.
[...] Algo que não foi isolado antes que eu o fizesse, especificamente a propósito da transferência: a função que tem, nem mesmo na articulação, mas nos pressupostos de todo o questionamento sobre o saber, o que eu chamo ‘o sujeito suposto saber'. As questões são colocadas a partir de que existe esta função em algum lugar, chamem-na como quiserem, aqui ela aparece em todas as suas faces, evidente por ser mítica, que há em algum lugar algo que desempenha a função de sujeito suposto saber (1967-1968, p. 53).
Com o conceito de sujeito suposto saber, Lacan isola algo presente na experiência comum, a referência, de todo questionamento, a um lugar em que se supõe haver um saber. Ainda que não se saiba, a possibilidade de saber sendo antecipada, em algum lugar, ou encarnada em alguém, ou suposta em algum procedimento para se obtê-lo. Esta função permite, no campo do tratamento psíquico, localizar a transferência que torna atuante a análise. A investigação dessa função pode ser considerada a partir da questão da entrada em análise, da diferença entre a chegada ao consultório de um psicanalista e o início da abertura do inconsciente, a mudança que aí ocorre no lugar do sujeito suposto saber.
A apresentação inicial do sintoma é uma queixa, uma descrição do que ocorre, diante da qual o analista não tem condição de saber sobre os significantes recalcados e os objetos de gozo. É necessária a associação livre do analisante, regra fundamental. Mas, a rigor, não basta apenas falar, pois para que a fala livre se torne operativa como análise é preciso que se enganche como investigação, como pergunta que anseia uma resposta: "É preciso que essa queixa se transforme numa demanda de análise endereçada àquele analista e que o sintoma passe do estatuto de resposta ao estatuto de questão para o sujeito, para que este seja instigado a decifrá-lo" (QUINET , 1993/1998, p. 20-1). Quando se abre a via de questionamento do sintoma instaura-se a perspectiva de que há respostas a se obter, e a transferência passa a atuar na precipitação de interpretações ao enigma do sintoma.
A indicação de Quinet de que algo precisa ser endereçado especificamente àquele analista distingue o que ocorre de suposição de saber antes de se conhecer o analista, e o que ocorre em presença dele articulado ao questionamento do sintoma. Pois quando se procura um psicanalista, de algum modo já se supõe que ele possa curar o mal-estar, ou, mesmo que se tenha certa dúvida disso, a função de suposição de saber está dada. Ainda que o que se produza mesmo nessa suposição seja o próprio inconsciente, ele não é reconhecido enquanto tal e não trabalha com fins de análise, mas repete-se em ato, como nos exemplos freudianos. Em presença do analista o sintoma será conduzido ao questionamento por meio do reconhecimento do Outro que fala nas formações do inconsciente, nas divisões em que o sujeito pode notar falar mais do que costuma considerar. Quando a função do sujeito suposto saber passa de uma suposição genérica de que um psicanalista pode tratar, para a suposição de que o sintoma tem uma verdade a ser alcançada, ocorre simultaneamente a uma especificação da suposição de saber àquele analista. Não necessariamente que ele saiba, mas que de algum modo por sua presença alguma forma de acesso à verdade do sintoma se realiza. Esta passagem é correlata a uma mudança na relação transferencial, de uma "transferência selvagem" (LACAN , 1962-1963/2005, p. 140), uma "mostração" (Ibid., p. 138), a um "amor que se dirige ao saber" (1973/2003, p. 555).
Lacan (1967/2003, p. 253) elabora um matema para a transferência analítica, formalizando a função do sujeito suposto saber.
O significante sobre a barra (S) é um significante do analisante, o chamado significante da transferência. Sua conexão com um significante qualquer que particulariza o analista (Sq) produz como significado, sob a barra, um sujeito (s) articulado aos significantes do saber inconsciente (S1, S2,... Sn).1 O saber está do lado do sujeito, sob a barra do recalque, mas é experimentado como sendo um saber do analista – "a ilusão [...] pela qual o sujeito crê que sua verdade já está dada em nós, que a conhecemos [...], erro subjetivo [...] imanente ao fato de ele haver entrado em análise" (Lacan, 1953/1998, p. 309). É o passo em que a suposição relacionada ao analista se realiza como saber algo específico, sobre determinado assunto, segundo tal forma de entendimento; ou o passo em que um traço específico do analista se impõe ao analisante, e com ele os significantes relativos à própria matéria em análise. Formas variadas, a cada caso, em que o analista se fazendo de objeto concede campo ao engano que precipita um saber. "O que constitui o ato psicanalítico como tal é muito singularmente esta simulação [...], simular que a posição do sujeito suposto saber seja sustentável" (Idem, 1967-1968, p. 57). Isso sustenta a associação livre, o trabalho de interpretação dos sonhos, lembranças, pensamentos espontâneos; torna presente a hipótese de que da fala advirá a verdade do sintoma. "O ato psicanalítico é, evidentemente, o que dá suporte, autoriza a realização da tarefa psicanalisante. É na medida em que o psicanalista dá a esse ato sua autorização, que o ato psicanalítico se realiza" (Ibid., p. 233).
O sujeito suposto saber, tal como formalizado no matema é, em uma análise, deduzido, construído, e não exatamente encontrado diretamente na experiência como o acting out da transferência inicial. Anuncia-se em formações de linguagem, na fala, mas concerne antes ao lugar a partir do qual as falas se orientam. Quando podemos construir o matema é porque a suposição de saber inconsciente já se estabeleceu. Sua instauração pode ser deduzida a partir dos seus efeitos, a ocorrência de associação livre e interpretações, e construída, a partir dos significantes colhidos neste processo, privilegiadamente nas formações do inconsciente.
A realidade sexual inconsciente, que se manifesta na transferência, sofre a incidência do manejo que direciona o amor ao saber. "Porém, sua finalidade, como todo amor, não é o saber, e sim o objeto causa do desejo. Esse objeto (o objeto a) é o que confere à transferência seu aspecto real: de real do sexo" (QUINET, 1993/1998, p. 34). As forças sexuais não se resolvem inteiramente na relação de amor ao saber, restando algo quanto ao desejo: "É o objeto a que, ao vir obturar a falta constitutiva do desejo, se torna esse objeto maravilhoso do qual, para Alcebíades, Sócrates é o continente" (Ibid., p. 34). Essa dimensão sexual da transferência, do sujeito analisante encontrar seu objeto obturador da falta no analista, torna presente a estrutura fantasmática que confere lastro ao inconsciente, definida por Lacan na relação do sujeito barrado com o objeto a. Em relação ao manejo transferencial por essa via, Lacan considera que o analista deve "suportar, em um certo processo de saber, esse papel de objeto de demanda, de causa de desejo, que faz com que o saber obtido não possa ser tomado senão pelo que é, ou seja realização significante conjugada a uma revelação da fantasia" (Seminário do Ato analítico, op. cit., p. 245). A abstinência do analista, seu apagamento como sujeito, permite que venha a se prestar a objeto a do analisante. É deste lugar que "se apresenta como a substância da qual ele é jogo e manipulação no fazer analítico" (Ibid., p. 97).
Uma questão que pode ser formulada é sobre o que cabe ao analista nesta passagem da transferência inicial à transferência propriamente analítica, pois Lacan é bastante claro: a transferência "ali está graças àquele que chamaremos, no despontar desta formulação, o psicanalisante. Não temos que dar conta do que a condiciona. Pelo menos aqui. Ela está ali no começo" (LACAN , 1967/2003, p. 252). O encadeamento significante da transferência é uma formação que o inconsciente do analisante estabelece ou não, no tempo que lhe cabe. Mas algo como um "apelo do vazio no centro do saber" (Idem, 1960-1961/1992, p. 158), que Lacan comenta em relação à posição de Sócrates, é necessário para que o sintoma se torne uma questão e a transferência analítica possa se estabelecer.
Construção de uma entrada em análise
Uma mulher queixa-se de que o casamento vai mal. Brigas com o marido todos os dias, ausência de desejo sexual por ele, irritação, ao ponto de não conseguir olhar-lhe na cara.
Muitas das brigas surgem por ciúme dela – ciúme da sobrinha do marido, jovem magra e bela que o solicita a todo instante; do interesse do marido pelo computador, preterindo a ela; do marido encontrar a irmã dela sem que ela soubesse. Ciúmes que ela considera descabidos, por serem mulheres da família e objetos inanimados, mas com os quais não consegue deixar de se transtornar, irritada.
Nas entrevistas iniciais alternava algumas explicações para seu mal-estar: talvez o problema tenha sido ser muito mimada quando criança, tal que agora quer tudo feito do seu jeito, quando, por exemplo, insiste em algo mesmo sabendo que está errada, apenas para não deixar o marido cheio de si; ou talvez o seu problema seja não gostar mais do marido, e ter falta de coragem de se separar dele, já que ele seria um acomodado, sem pretensões na vida, e sem a pegada sexual que a satisfaça; ou talvez o problema fosse ela ser muito dependente dos outros, não conseguindo fazer nada sem o marido, e ser muito preocupada com o que os outros pensam dela; ou ainda talvez tudo não passe de efeito do ciclo menstrual, ou do remédio para emagrecer que começara a tomar.
De certa forma, todos os fios associativos que surgiram nas primeiras sessões se prestariam a um início de análise de seu sofrimento. Contudo, não se ordenavam como um enigma. Cada associação servia antes para desconsiderar a anterior, de uma sessão para outra, de um momento para outro na sessão, em uma mesma frase, uma fuga do sentido pelo deslocamento, sem que se enunciasse um sujeito com o sintoma. O desgaste diário com o que chama de suas dúvidas indica a energia despendida na solução metonímica. As entrevistas iniciais caberiam em uma frase como: "Não sei se o problema é eu ser ciumenta, ou ser mimada, ou ser dependente do que pensam, ou se é meu marido que é sem pegada, ou se sou eu que não tenho coragem, tanta coisa que já nem sei de mais nada".
Diante de uma formação como essa é necessária uma intervenção, sem o que permanece o deslizamento, e não há análise. Que algo se interprete fica por graça da transferência inconsciente da analisante, mas algo como um apelo do vazio no centro do saber é necessário para que a transferência de saber inconsciente encontre lugar. A intromissão analítica ocorreu, nesse momento, com a interpretação freudiana em relação aos meios de representação nos sonhos, de substituir a alternativa (ou... ou...) pela adição (e).
Quando, no entanto, ao reproduzir um sonho, seu narrador se sente inclinado a utilizar ‘ou... ou' – por exemplo, ‘era ou um jardim ou uma sala de estar' –, o que estava presente nos pensamentos do sonho não era uma alternativa, e sim um ‘e', uma simples adição. ‘Ou... ou' é predominantemente empregado para descrever um elemento onírico que tenha uma característica de imprecisão – que, contudo, é passível de ser desfeita. Em tais casos, a norma de interpretação é: trate as duas aparentes alternativas como se fossem de igual validade e ligue-as por um ‘e' (FREUD , 1900/1996, p. 342).
Como se dissesse à analisante: "Para ouvir o seu desejo talvez devamos substituir o ou por e, e considerar todas as alternativas como válidas: ciumenta, mimada, marido sem pegada, dependência, opinião dos outros, falta de coragem – talvez sejam todas verdadeiras. O que isso diz?".
Inicia a sessão seguinte considerando que suas dúvidas servem para evitar o que ela sabe ser a verdade, e o que ela sabe que deve fazer. Como que para falar do que considera a verdade, diz que tem estado irritada por não suportar beijar o marido, mas precisar fazê-lo por ser casada. Seguindo um fio associativo – "como se fosse a primeira vez", "primeiro namorado", "primeiro beijo" –, com pontuações tropeça em dois esquecimentos – "o que eu ia mesmo dizer?" –, para então lembrar de modo especialmente nítido uma cena: "Meu primeiro beijo foi com meu primo, quer dizer, primo do meu primo. O meu outro primo viu. Estávamos na praça. A família toda ficou sabendo, foi aquela confusão. Hoje eu não aguento olhar na cara desse meu primo, fui ficando irritada com ele". As palavras em itálico foram ditas com certa surpresa, como algo curioso, notando a relação certeira ao que vinha falando sobre o marido.
Enquanto narrava, dizia lembrar com muita nitidez, tal que podia ver a cena acontecendo na sua frente; e, de fato, seus olhos percorriam o espaço vazio da sala como se percorressem a imagem de um quadro, apontando com a mão isso e aquilo da cena. Apontavam no espaço virtual a ela, ao primo que beijou, e ao primo que testemunhou, de onde se deduz sua posição de olhar de fora da cena, e não olhando do lugar do banco da praça, ao lado do primo, o que seria a imagem da realidade de então. "No campo escópico, o olhar está do lado de fora, sou olhado, quer dizer, sou quadro" (LACAN , 1964/1998, p. 104); "o objeto a, no campo visível, é o olhar" (Ibid., p. 101).
Corte da sessão, e na seguinte inicia no divã.
O não olhar na cara e a irritação mudam de estatuto ao se articularem em uma cena sexual que interpreta o sintoma. Não que ela tenha se lembrado de uma cena havia muito esquecida, pelo contrário, nunca a esqueceu; o que lhe é novo é ler a cena, encontrá-la como uma representação simbólica, metafórica, do drama atual que sofre, o efeito de sentido de substituir a cena atual pela do passado. O que se queixa torna-se algo a ser decifrado, por uma relação curiosa entre os eventos de sua vida, significantes que se repetem, algo que parece conduzir a um saber sobre o sintoma. É uma questão de análise. Não é necessário formular uma frase com o ponto de interrogação no final para se ter uma questão de análise. Neste caso clínico, inclusive, as frases interrogativas tiveram antes a função de despiste, deslocamento. A lembrança encobridora é dita em frases afirmativas, mas institui uma investigação, orientada por termos que não são quaisquer, e que orientam o tempo subsequente de sua análise. A lembrança é composta também por metonímias, destacadamente a do primo. "Beijei meu primo, quer dizer, primo do meu primo. Meu outro primo viu." Há uma perturbação com o fato de ser um homem da família, se seria imoral ou não, se seria mais vergonhoso ou não ser vista em gozo, o que ecoa no seu ciúme, agora já não tão irracional, do marido com as mulheres da família. O que se ouve é a reiteração do significante, como um eco, primo, primo, primo..., e então a prima, que certa vez expôs à família assuntos íntimos contados em confiança, razão pela qual não lhe olha na cara.
O valor desta lembrança está no que se pode anunciar da relação do sujeito dividido ao seu objeto de desejo e gozo, uma primeira localização de sua posição na fantasia. O corte do olhar com o divã, nesse momento em que se ilumina o olhar como objeto a na fantasia, esvazia a pregnância imaginária da figura humana do analista, deixando a analisante com as imagens produzidas pelos significantes de sua associação livre, permitindo "isolar a transferência" (FREUD , 1913/1996, p. 149), "distingui-la no momento de sua pura emergência nos dizeres do analisante" (QUINET , 1993/1998, p. 45).
Após esta interpretação de entrada em análise, foi possível construir algo do lugar do significante do analista que estaria implicado com os significantes do saber inconsciente da analisante. Em uma das sessões anteriores havia se surpreendido, com certa vergonha, que apesar de passar toda a semana sem pensar em sexo, nas sessões de análise sempre lhe ocorriam assuntos sexuais. Alguns significantes que participavam de seus assuntos sexuais poderiam servir para descrever traços específicos do analista. É uma transferência inconsciente, de pensamentos que surgem independentemente da sua vontade, e que se revelaram concernentes ao mal-estar de que se queixava. Uma suposição inconsciente de que precisaria contar sobre tais assuntos. É um lugar a partir do qual os ditos da analisante se orientam, e não uma atuação obscena dos assuntos sexuais.
Na sessão seguinte, conta animada que pela primeira vez em muitos anos ela e o marido passaram uma semana inteira sem brigar, embora não soubesse muito bem localizar a razão de assim ter sido. Também procurou a prima para conversar sobre sua vida, descobrindo que todos a veem como fria e fechada, repercutindo como questão à sua satisfação sexual. Os efeitos terapêuticos, imprevisíveis, que interpretações comumente acarretam, devem ser avaliados com parcimônia em uma perspectiva mais ampla do tratamento, porque se por um lado há que se esperar que a análise reduza o sofrimento, por outro, um alívio significativo do sintoma-queixa muito prematuramente em uma análise pode pôr em risco sua continuidade.
A força motivadora primária na terapia é o sofrimento do paciente e o desejo de ser curado que deste se origina. [...] Cada melhora efetua uma sua diminuição. Sozinha, porém, esta força motivadora não é suficiente para livrar-se da doença. [...] O tratamento analítico [...] fornece as quantidades de energia necessárias [...] pela mobilização das energias que estão prontas para a transferência (FREUD , 1913/1996, p. 157).
A transferência permite conduzir o tratamento para além do alívio pontual advindo da interpretação de formações do inconsciente. Conduzir a uma transformação da condição do desejo pela travessia da fantasia tal que, pela "disjunção do sujeito em relação ao a, a experiência da fantasia fundamental se torna a pulsão" (LACAN , 1964/1998, p. 258). Encontram-se assim melhores condições para que o sofrimento neurótico deixe de acrescentar-se aos demais sofrimentos de uma existência. "O que se torna o sujeito suposto saber? [...] Seguramente ele cai. [...] O objeto pequeno a é a realização desse tipo de-ser que atinge o sujeito suposto saber" (LACAN , 1967-1968, p. 97).
Referências
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Recebido: 16/02/2012
Aprovado: 30/03/2012
1 "[...] O s representa o sujeito resultante, que implica dentro dos parênteses o saber, supostamente presente, dos significantes que estão no inconsciente [...]" (Lacan, 1967/2003, p. 254).