Stylus (Rio de Janeiro)
ISSN 1676-157X
TRABALHO CRÍTICO COM CONCEITOS
Estado paradoxal do desejo1
Paradoxical state of the desire
Carolina Zaffore
RESUMO
O trabalho propõe uma reflexão acerca do estado paradoxal em que habita o desejo do analista. Demarcam-se três estados do desejo que exploram diversos rumos daquele desejo que advém de uma análise levada até seu final: o "estado ético do desejo", o "estado irrealizável do desejo" e o "estado vivo do desejo". Cada um desses estados implica necessariamente um paradoxo que o presente trabalho desdobra. Circunscrevem-se, assim, alguns paradoxos que, como analistas, não devemos eliminar nem evitar, mas sustentá-los com nosso desejo em ato.
Palavras-chave: Paradoxo, Desejo do analista, Ato.
ABSTRACT
This paper proposes a reflection on the paradoxical state in which the desire of the analyst lives. The texts raises three states of desire which explore different aspects of that desire coming from a finished analysis: the "ethical state of desire, the "unrealizable state of desire" and the "living state of desire". Each of these states necessarily implies a paradox that this work develops. Therefore, we arrive at some paradoxes that, as analysts, we are not supposed to eliminate or avoid, but sustain them with our desire in act.
Keywords: Paradox, Analyst's desire, Act
"Na ética que se inaugura com o ato psicanalítico – menos
ethiqueta – perdoem-nos, do que jamais se vislumbrou
ao se haver partido do ato – a lógica manda, isso é certo,
por nela encontrarmos seus paradoxos" (Lacan, 1959, p. 376)
Os paradoxos do desejo na neurose, na psicose e na perversão são, a esta altura, certamente palpáveis. Freud e Lacan dão inúmeras provas para que nós, analistas, estejamos advertidos a esse respeito. Mas o que podemos dizer do desejo produzido em uma análise levada até seu final? Poderíamos tentar qualificar um estado em que o desejo fica, depois da passagem por uma análise, mais além da estrutura subjetiva transitada?
Eludindo a perigosa vertente que estabeleceria a análise como a resolução dos paradoxos, ressalto outro aspecto: diria que uma análise leva a certa metamorfose do desejo e, portanto, a um estado inédito para cada um, o que tentarei abarcar como um estado paradoxal. Entendo que uma análise deixa o desejo em um estado outro, diferente dos estados que vão ocorrendo sob transferência e, por certo, assinala a dimensão do irreversível.
Proponho pensar essa conversão do desejo produzida no final da análise a partir de uma dupla vertente: o desejo do analista não se confunde com os desejos dos analistas, mas, por sua vez, o desejo do analista não é impermeável à singularidade e ao indômito de cada um. Que participação tem essa vertente na operação analítica em que a função "desejo do analista" põe-se em jogo? Como se diferenciam – mas, ao mesmo tempo, se conjugam – essas duas vertentes fora do consultório, mais além do analista em seu ato?
Passo então a apresentar três estados que pude isolar até o momento e que me parecem determinantes para refletir sobre o "desejo do analista" como produto de uma análise levada a seu fim, mas também – e ao mesmo tempo – sobre os desejos dos analistas, aqueles desejos que convivem, diferem, encontram-se e desencontram-se, marcando o passo na vida institucional.
Uma análise conduz a indicar os paradoxos, evitá-los, resolvê-los, mas – e isso é o que gostaria de enfatizar – de modo algum suprimi-los.
Entendo que uma análise leva, sim, a coabitar com o que chamo o "estado paradoxal do desejo", deixando, do mesmo modo, proposto que de um paradoxo, não à força, há que padecer. Talvez seja possível deixá-lo avançar sem pressa, evitá-lo algumas vezes, talvez seja possível desfrutá-lo naquilo que tem de surpresivo ou criativo. Inclusive, poder localizar o paradoxo um pouco melhor permite assumi-lo – mesmo quando comporta afetos nucleares como a angústia e a dor.
Em contraposição, existem resoluções dos paradoxos que não condizem de modo algum com o discurso analítico, às quais haveria que estar especialmente atentos em uma Escola. Não para julgá-las, destruí-las ou tentar excluí-las, mas para situar essas resoluções forçadas e avançar um pouco mais advertidos na práxis analítica que nos concerne.
Do mesmo modo, penso que é preferível não só conhecer esses paradoxos por intermédio dos outros, mas também tê-los transitado e chegado ao limite de sua resolução – irresolução. Isso, ao menos, se seguirmos as propostas que Lacan elabora conforme avança em seu Seminário 15, cujos destaques são categoricamente o ato e a experiência.
O desejo é indomesticável e, portanto, nem o desejo mais analisado elude ao estado essencialmente paradoxal com o qual convive um analista, dentro e fora do consultório.
A diferença é, certamente, a passagem de um paradoxo sofrido, padecido, negado, a um paradoxo encarnado realmente, experimentado, que, longe de ser resolvido, o analista deve sustentar, suportar e, inclusive, apostar nele em cada uma das análises que conduz.
A partir disso, recortarei três estados paradoxais do desejo que o analista que quer conduzir curas deve custodiar, e não cair em falsas respostas resolutivas alheias ao discurso que nos atravessa. Creio que é o ponto central do assunto. Não tanto como advirto esse aspecto primordialmente paradoxal do desejo, mas como alguém que atravessou uma análise se vira para sustentar sem rodeios.
Como um analisante que deveio analista abstém-se de sair dos paradoxos do desejo em sua práxis (e em sua vida!) com escapadas que habitualmente podem dividir-se entre a negligência, a submissão ou o cinismo.
Passo então a analisar, à luz de três estados paradoxais do desejo e que entendo, deve amparar o discurso analítico, isso que nos confia Lacan, essa "conversão ética radical" (1965, p. 44), reduzindo nesta oportunidade a distância entre o "desejo do analista" como função da metamorfose do desejo, própria à experiência de cada análise:
1) estado ético do desejo
Com este primeiro estado, indico a metamorfose que arroja uma análise, comprovando as relações paradoxais entre ética e moral.
Isso não implica que o desejo analisado fica fora da moral, mas, pelo contrário, situa a moral em sua justa dimensão, em suas relações complexas e frágeis com a ética. A ética, sob a perspectiva analítica, inclui admitir o essencialmente paradoxal do desejo que não se conduz de maneira bondosa ou maligna. Uma análise nos leva, na verdade, a admitir em ato as armadilhas do eu e dos bons costumes que subjugam sempre o traço mais indócil e pulsional, nunca alheio no ser desejante.
Nossas escolhas implicam uma responsabilidade marginal quanto mais nítida deixa-se ver a limitação dos famosos "códigos". Limitação que de nenhuma maneira confunde-se com degradação, mas que simplesmente acentua o infrutífero de ditos códigos diante do desgarramento e da divisão mais crua que a experiência analítica ensina.
Que se possam delimitar melhor os campos da moral e da ética não significa que os campos não se enlacem. Por um lado, o campo da moral o faz publicamente, às referências codificadas, às convenções alcançadas e absolutamente necessárias ao laço social. Por outro lado, o campo da ética talvez o faça à máxima intimidade, ao debate intrínseco ao ser falante que finalmente – depois de uma e outra vez passar pelos mesmos lugares – não encontra já codificação alguma. Essa borda mostra o lado não codificado com o qual o desejo analisado realiza-se. Não há manual de referência algum no momento de confrontar-se com as encruzilhadas contingentes, decisões e escolhas que correspondem a nosso desejo em ato, uma vez que o manual fantasmático caduca.
O estado paradoxal a ser sustentado, penso eu, nesta tensão necessária entre o que cada um escolhe conforme seu desejo – inclusive, às vezes, contrário ao moralmente aceitável – é o estado que o discurso analítico, como laço social que inclui per se a dimensão do Outro, deve acolher.
Como viver com os demais, como ser justo com nossos pares e, ao mesmo tempo, viver, decidir e marcar nossas ações ajustadas a nossos desejos – com suas luzes e sombras incluídas?
O mais analítico, creio, é aceitar drasticamente as relações vacilantes e difíceis entre o ser falante e a moral.
Como lidar com esse aspecto ineducável do desejo? Como lidar com esse fator desejante impossível de doutrinar? A ética do desejo corresponde à divisão e ao juízo íntimo desgarrado, muito mais do que ao aceito, reconhecido, inclusive valorizado pelo Outro.
Entendo que em uma experimentada divisão elementar o desejo torna-se realizável e distingue-se francamente de qualquer pretensão em que se ancore o eu.
Por um lado, em termos de nossa formação como analistas, é precisamente esse núcleo desejante – resistente a qualquer corpo teórico – que se erige como motor em uma Escola, que se faz presente cada vez que palpita um trabalho tanto coletivo quanto singular.
Por outro lado, em termos de qualquer análise levada até seu fim, encontramos uma vez mais o estado paradoxal em que habita o desejo. É justamente atuar no compasso do desejo, e não mais no dos ideais, dos enganos do eu e da consciência moral – cujo contrassenso ético revela sua faceta mais feroz e de insaciável exigência (FREUD, 1929) – que entrega esse fio paradoxal indefectível ao qual devemos consentir enquanto analistas: o desejo, não poucas vezes, fica em xeque com a moral.
2) O estado realizável do desejo
Com este segundo estado, indico a metamorfose do factível que se produz conforme avança a experiência analítica. O factível abarca um amplo espectro de ações, de alguns atos mais ou menos decisivos para si e para outros, mas, definitivamente, nomeio como factível aquilo que a via analítica habilita: que o desejo torne-se realizável.
A ação impedida, inibida, extraviada, impossibilitada ou exacerbada imprime no percurso de uma análise as mordaças sucessivas que recaem sobre o desejo.
O desejo somente realizável de maneira alucinatória – seja em fantasias, em sonhos ou em delírios – abre-se, depois de uma análise, à possibilidade de que se torne, em grande medida, realizável.
A análise faz condescender do desejo alucinado ao desejo praticável. Que o desejo torne-se realizável implica as liberdades e os limites de uma ação que tem consequências, que tem um custo que não mais pagará o Outro, ficando por conta própria.
O estado realizável do desejo necessariamente implica uma dimensão de lance, de um não saber que implica um risco em termos de resultados. Esse risco não significa ignorar – se posso dizer assim – os efeitos colaterais que a realização do desejo comporta.
O sujeito que consente em analisar-se até o fim, esse sujeito "advertido" (LACAN, 1968), não ignora as consequências, mas – e aqui o estado paradoxal a ser mantido – incluiria uma dimensão drasticamente incalculável daquilo que pode produzir, em si mesmo e nos outros, a passagem do desejo fantasiado ao desejo real. Incalculável e, ademais, diria, imprime uma zona de solidão máxima, talvez de "desassossego absoluto" (LACAN, 1958).
O fio que atravessa a variável alucinatória do desejo – que cedo Freud evidenciou – e os eixos inconscientes a decifrar, experimentar e, por que não, padecer, dão passagem à variável realizável do desejo. Àquilo factível que não implica uma ação sem limite, mas sim um marco de liberdade em que se faça dessa incógnita tão temida como cardinal algo efetivamente praticável.
Entendo que dita metamorfose provoca consequências certamente incalculáveis e, por sua vez, é algo que, como tal, resiste à conceitualização e às definições. Ao menos, então, levantemos alguns questionamentos: desde que coordenadas conduzem-se nossas ações uma vez que as amarras de sempre tornam-se ineficazes para deter o desejo? Quanta incidência tem o eu uma vez que algo do desejo aparece, impondo-se inclusive como real? Não é algo que promove ou decide a consciência, embora tampouco seja algo que "sucede", e já, como obra do destino. Como nos conduzimos em função do desejo quando os objetos que comandaram nossa conduta revelam-se irreversivelmente como algo que se deixa em garantia, como "refém do desejo" (LACAN, 1958)?
Há aí um ponto paradoxal a ser mantido onde o desejo mais "próprio" – se preferir, mais singular – torna-se realizável justamente quando se distingue, se discrimina, se recorta e adverte uma dimensão absolutamente heterogênea e inapreensível ao eu.
É conveniente então manter esse estado paradoxal do desejo do analista em ação, do qual, se podemos estabelecer algumas coordenadas, advém até certo ponto de uma zona insondável e, portanto, impossível de enunciar. Aparece aí o imensurável valor de um dispositivo como o do passe. Solidariedade então na dimensão realizável dos desejos e do desejo do analista no ponto em que uma vez analisadas as múltiplas, complexas e diversas relações entre aquilo que toca ao mais pessoal e o mais pré-determinado do desejo precipita, por fim, essa zona radicalmente insondável que comprova o paradoxo inextinguível da relação entre o Sujeito e o Outro.
3) O estado vivo do desejo
Este estado do desejo nomeia a metamorfose do corpo que advém durante uma análise na passagem pela castração, entendida como a impossibilidade que comanda os campos da sexualidade e a morte nos seres falantes.
A respeito do primeiro nome da castração, podemos dizer que não há desejo que – mediante uma análise – não marque um corpo vivo e sexuado. O corpo ausente, anestesiado, fragmentado e doído pode conviver com um desejo morto ou, ao menos, postergado. Desde as paralisias histéricas que cativaram Freud, já se adverte sobre esse custo corporal que o neurótico está disposto a pagar por não se confrontar com o mais impetuoso que habita e se faz ouvir por caminhos labirínticos.
Caminhos que a transferência acolhe sem pressa, mas sem pausa. A via analítica devolve, desde sua face mais terapêutica, a conexão do desejo com o vivo do gozo. E assim se aguarda a intromissão do inconsciente que vai nos enviando ao determinante traço sexual.
O campo do gozo e o campo do desejo se não se confundem, unem-se. Um desejo vivo é um desejo que não se priva de sua relação com o gozo. Se bem, tal como nos ensinou Lacan, o desejo é "excêntrico à satisfação" (LACAN, 1957), o analisante recupera a trama entre o gozo sempre presente no corpo e a experimenta desde a posição de seres sexuados e desejantes. Daí a enorme tarefa do analista que não cede à problemática da escolha. É certo que o gozo e a face mais inconsciente do desejo pouco têm a ver com algum grau de decisão. Na verdade, mostram bem o quanto sujeitados e determinados estamos pelo radicalmente intrusivo da língua. No entanto, diante dessa absoluta determinação, a análise abre um caminho em que as preferências, os gostos, as diferenças e o mais resistente à tipificação tornam-se audíveis (ou ao menos deduzíveis).
Sobre o segundo nome da castração, a morte, o que podemos dizer a partir de nossa experiência enquanto analisantes e analistas? O encontro com a dimensão temporal como castração essencial atesta de modo transparente a finitude da vida, a impossibilidade radical do imortal.
Esse destino ineludível apresenta, contudo, um estado paradoxal a ser sustentado: se a morte é indefectível, seria possível negá-la. No dizer de Freud, poder-se-ia recusá-la à custa de muitas "renúncias e exclusões" (FREUD, 1915). O estado vivo do desejo supõe então a possibilidade real de "computar a morte no cálculo da vida" (Ibid).
Estado paradoxal do desejo que, sobre o caminho do ineludível da morte, onde pareceria não haver margem alguma de manobra, erige-se em sua face eletiva (ALOMO, 2012).
Desejo que, instalado na escassez do tempo, não nos leva a uma apática resignação, mas, pelo contrário, a um possível ato conclusivo.
Que a análise precipite seu final anunciado (ou ao menos preparado em sua estrutura) é um modo de consentir com a castração. O desejo do analista, como produto final da análise, implica calibrar os limites impostos pela vida do ser falante a partir de uma genuína conveniência que permita atuar, decidir ou, ainda mais, simplesmente fazer o que se gosta, e já.
Estado paradoxal então que nomeia o vivo do desejo e que sustentamos quando nossos atos nos permitem, finalmente, determinar-nos e, até mesmo, afirmar-nos. Mas não mais na segurança do fantasma e suas diversas imagens, e sim no realmente fortuito e finito.
Tradução: Maria Cláudia Formigoni
Revisão: Conrado Ramos e Ida Freitas
Referências
ALOMO, M. (2012). Tres condiciones éticas, tres tipos electivos. Trabalho publicado em versão eletrônica na página do Foro Analítico del Río de la Plata. Disponível em: <www.forofarp.org>. Acesso em: 25 mai. 2013. [ Links ]
FREUD, S. (1915). La Transitoriedad. In: Obras Completas de Sigmund Freud. Traducción de Etcheverry. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1982, v. 15, pp. 292-293. [ Links ]
FREUD, S (1929). El malestar en la Cultura.In: Obras Completas de Sigmund Freud. Traducción de Eycheverry. Buenos Aires: Amorrortur Editores, 1990, v. 21, p. 76-77) [ Links ]
LACAN, J. (1958-1959). El Seminario, libro 6: El deseo y su interpretación, clase del 12 de noviembre de 1958, inédito. [ Links ]
LACAN, J. (1959-1960). El Seminario, libro 7: La Ética. Buenos Aires: Editorial Paidos, 1984. [ Links ]
LACAN, J. (1959-1960). Reseña con interpolaciones del seminario de la ética en Reseñas de Enseñanza. Buenos Aires: Editorial Manantial, 1988, pp. 3-4. [ Links ]
LACAN, J. (1965). El Seminario, libro 12: Problemas Cruciales para el psicoanálisis, clase del 5 de mayo de 1965, inédito. [ Links ]
LACAN, J. (1967-1968). El Seminario, libro 15: El acto analítico, clases del 17 y 24 de enero de 1968, inédito. [ Links ]
LACAN, J. (1967-1968). Reseña del Seminario 15 en Reseñas de Enseñanza. Buenos Aires: Editorial Manantial, 1988, pp. 47-55. [ Links ]
Recebido: 01/02/2013
Aprovado: 25/02/2013
1 Trabalho apresentado na III Jornada de Cartéis dos Fóruns da América Latina Sul, 26 e 27 de outubro de 2012, na sede do Foro Analítico del Río de la Plata, em Buenos Aires, Argentina.