Stylus (Rio de Janeiro)
ISSN 1676-157X
ENTREVISTA
Entrevista com Maria Anita Carneiro Ribeiro
Maria Anita Carneiro Ribeiro interviewed by Luis Achilles Rodrigues Furtado
Luis Achilles Rodrigues Furtado
Psicanálise, autismo e saúde pública
Às vésperas do aniversário de setenta anos do artigo de Leo Kanner, no qual foi apresentada a categoria nosográfica do autismo e iniciada uma polêmica que reedita questões antigas para a humanidade, vários psicanalistas foram tomados, de súbito, com propostas políticas e institucionais que excluem a contribuição de seu trabalho, especialmente com sujeitos autistas.
Além de o autismo ter sido escolhido, na França, como a causa nacional de 2012, houve uma grande confusão envolvendo a produção de um documentário no qual testemunhos de psicanalistas foram recortados de forma tendenciosa pela produção do filme para desacreditar a psicanálise em relação ao seu tratamento.
No mesmo sentido, aqui no Brasil, no estado de São Paulo, para a surpresa de alguns, no dia quatro de setembro de 2012, o Diário Oficial do Estado de São Paulo publica a Convocação Pública 001/2012. Tal documento trata de um "Edital de Convocação para Credenciamento de Instituições Especializadas em Atendimento a Pacientes com Transtorno do Espectro Autista (TEA), para Eventual Celebração de Contrato Ou Convênio". Todavia, os critérios deste Edital determinam que sejam apenas instituições que trabalhem com abordagem cognitivo-comportamental, bem como os dois profissionais de psicologia que trabalharão neste convênio devem se comprometer a utilizar este método determinado pelo documento.
Estes fatos, por sua vez, propiciaram o início de um intenso debate entre os especialistas que trabalham com psicanálise, autismo e psicoses infantis, e na EPFCL surgiu a ideia de uma entrevista com alguém que fosse reconhecido pelo seu trabalho e experiência. Não tardou para que a sugestão do nome de Maria Anita Carneiro Ribeiro surgisse.
Numa tarde quente de sábado, logo após o carnaval, no Jardim Botânico, tive o privilégio de realizar esta entrevista. As dificuldades de traduzir para a linguagem escrita as ênfases do estilo de Maria Anita foram minimizadas pelos recursos gráficos das fontes em negrito e itálico. Assim, quando o leitor se deparar com essas palavras escritas dessa forma, tente "ouvir" a entrevistada colocando ênfase na sua voz ou pronúncia.
A dificuldade com a voz, devido a um recente resfriado, não foi suficiente para impedir a força das palavras, seu vigor, estilo e rigor. Numa entrevista que toca também em assuntos como internação compulsória e eutanásia, a psicanalista permite a todos nós um olhar mais humilde sobre os limites de nosso trabalho, sua importância e sua ética. A ética do sujeito. A ética do um a um, do caso a caso.
Ao chamar a atenção para que os psicanalistas não se amedrontem com as acusações que lhes são atribuídas, Maria Anita Carneiro Ribeiro me fez lembrar a advertência de Freud a Jung em seu texto Psicologia das Massas e Análise do Eu: "Primeiro cede-se nas palavras para, logo, ceder com as coisas".
Em nome da Equipe de Publicação da Stylus Revista de Psicanálise, agradeço a Maria Anita pela entrevista.
Luis Achilles: Diante de tantas opiniões, como você pensa o autismo ou os autismos?
Maria Anita: Eu ainda não entendi por que colocar no plural, quer dizer, a ideia de falar "do autismo" no plural. Eu acho que, pelo que eu entendo, né?, deriva desse entendimento que faz com que alguns psiquiatras defendam o fato de que existem vários graus de autismo. Em última instância, eu acho que um dos autistas mais graves que eu conheço seria eu, porque, pelo jeito que eu andei lendo numas revistas dessas aí de como avaliar seu grau de autismo, eu sou autista direto. Tá entendendo? De internar ontem. Ou seja, nesse sentido aí que eles falam de autismos... Quer dizer, na verdade não tem por que falar de "autismos". Existe uma síndrome que foi detectada por Kanner, foi classificada por Kanner, como uma eclosão muito primitiva da esquizofrenia. Isso, na época que ele descobriu o autismo era assim considerada, e depois, com o andar do tempo, ele foi mudando de opinião de acordo com, digamos assim, as correntes dominantes do pensamento psiquiátrico norte-americano. Ele foi se adaptando até terminar no autismo como uma síndrome completamente contrária ao que ele dizia da primeira vez, certo? Então, existia esse autismo e existe o quadro descoberto por Asperger, que é o mesmo autismo, porém, com uma variação muito interessante e que convém demais ao discurso capitalista, que são pessoas de alta performance. Alta performance quer dizer o quê? Quer dizer que são pessoas que podem executar determinadas tarefas ou determinados cálculos, mas com o mesmo grau de sofrimento, com o mesmo grau de alienação, no sentido político da palavra e não no sentido lacaniano, né? Ou seja, o mesmo grau de distanciamento da realidade.
Luis Achilles: Há doze anos você foi responsável pela importante publicação da revista Marraio, que tinha como título "Autismo, o último véu". Que mudanças ocorreram no que tange à psicanálise, de lá para cá? O que você sublinharia nesta década?
Maria Anita: Olha, eu acho que as grandes mudanças não foram, não ocorre ram na psicanálise; eu acho que ocorreram no mundo, não é? E, principalmente, com a banalização do uso do computador. Porque nós sabemos, desde o estudo clássico, do caso Joey, de Bettelheim, que os autistas, que frequentemente não falam com outros seres humanos, falam com máquinas. Então, se pode ver, a popularização do computador fez com que autistas que não se ligavam a ninguém, através das máquinas falassem sozinhos ou escrevessem textos etc. Eu acho uma ironia louca chamar "rede social de autista", autista não faz rede social. Eles falam sozinhos, mas eles falam sozinhos e acessam outros, outras pessoas que também falam sozinhas. Eles falam com a máquina, então isso trouxe outro entendimento bem mais interessante sobre a realidade dessas pessoas que se recusam a se comunicar através da palavra, se recusam a se ligar com os outros. Então, acho que a grande diferença foi isso, porque na verdade, a psicanálise não se modificou em relação a isso. O que eu sinto, inclusive eu senti... Então, eu acho que o que há, na verdade, não é uma mudança da teoria psicanalítica em relação aos autistas; e sim, talvez um excesso de cautela que os analistas estão tomando diante da pressão dos movimentos sociais encabeçados por psiquiatras organicistas e por mães e pais de autistas que acusam a psicanálise de culpar as famílias pelos casos de autismo. Isso eu acho uma coisa completamente, louca porque a primeira pessoa a atribuir a responsabilidade dos casos de autismo às mães foi Kanner. Kanner por quê? Porque deu um erro de amostragem na pesquisa dele, ele lançou uma conclamação numa revista médica pedindo às pessoas que tivessem casos de crianças com aquele tipo de comportamento que o procurassem para auxiliar na pesquisa; e, evidentemente, ele foi procurar somente por mães e pais médicos, e daí ele deduziu que todos os autistas eram filhos de pessoas que eram muito intelectuais, distanciadas, as mães eram muito ocupadas com a carreira, numa época em que a mulher raramente trabalhava fora de casa. É claro! Só as pobres coitadas médicas é que liam aquela revista. E isso causou uma primeira onda de culpabilização, mas não foi da psicanálise, foi de Kanner, psiquiatra! E em seguida teve o famoso livro do Bettelheim, "A fortaleza vazia", foi o caso Joe que eu já citei; o menino que falava com a máquina, ou que criou o mecanismo de poder se comunicar com o mundo através da máquina, como os autistas de hoje estão usando o computador, né? E o Bettelheim realmente carregava uma culpabilização às mães. Mas é porque o Bettelheim, nós sabemos hoje, era uma pessoa profundamente comprometida; ele era egresso dos campos de concentração embora um homem genial que prestava serviços fantásticos à psicanálise e à psiquiatria. Ele terminou por se matar, por ser um homem muito conflituado. Então, não vamos chamar Kanner de psicanálise nem Bettelheim de psicanálise, pelo amor de Deus! O que os analistas fazem – e eu acho que deveriam continuar a fazer, apesar da pressão da opinião pública– é admitir que autistas têm pai e mãe, tanto quanto neuróticos e outros psicóticos. Ou seja, todas as pessoas do mundo têm pai e mãe. E o pai e a mãe têm alguma coisa a ver com a condição daquela pessoa, tá? E é assim que as coisas ocorrem. Não foi Freud quem descobriu isso não. Desde sempre, desde que existe a família nuclear, pai e mãe têm a ver com o que acontece com os filhos. É cego de nascença? Claro! Os pais têm alguma coisa a ver com isso. Como é que vai educar? Vai instruir? Vai trancar dentro de casa? Vai superproteger? Os pais têm a ver com isso. Não é porque a cegueira é deliberadamente causada pelos pais. Claro que não! Agora, eles vão ter que responder o que eles vão fazer com isso. Então não se trata de dizer: "O autismo foi causado pelos pais", até porque a gente sabe que a partir de Freud, com a causalidade psíquica, causa e efeito não é de behaviorismo. Então, essas pessoas que entram nessa cruzada "Antipsicanálise" estão pensando o quê? Que causalidade psíquica é dar choque em bunda de rato, como Pavlov fazia? Não! Causalidade psíquica é da ordem de uma transmissão inconsciente que necessita de pelo menos três gerações. Isso é Lacan no Discurso de Encerramento da Jornada sobre as Psicoses na Infância. Então, eu acho que o que ocorre, basicamente, não é uma mudança séria na psicanálise; eu acho que o que ocorre é uma pressão muito forte que faz parte de uma vertente muito desagradável do discurso capitalista, que é o seguinte: que é as pessoas se recusarem a assumir a responsabilidade sobre sua vida, não é? Então, o modo do discurso contemporâneo é: "Tome um remédio", "Está triste? É depressão. Tome um remédio.", "Sua mãe morreu? É depressão. Tome o remédio!". Está entendendo? Tem um programa de televisão, uma série americana, eu acho que as séries americanas são muito o espírito da época, é uma série cômica com um ator conhecido e chama-se "Go on". Traduzindo livremente, porque é uma expressão idiomática, é "vai em frente". E é sobre o grupo de autoajuda de pessoas enlutadas, pessoas que perderam entes queridos e estão frequentando um grupo de autoajuda. Isso é um problema cômico!? Porque "se você ficar triste quando perde alguma coisa, você é um panaca, e, portanto as pessoas vão rir de você, porque as pessoas tristes, veja bem, enlutadas, são idiotas, são ridículas, tá?". Então, o que se espera é que elas façam muitas palhaçadas. Quem dirige o grupo não &eacut e; nem um psicólogo, porque psicólogo é gente séria, que estuda. E sim, uma moça muito bonitinha que trabalha num guichê de uma revendedora de automóveis. Porque para atender enlutados basta qualquer idiota, ou seja, a ideia é a seguinte: "pessoas tristes são loucas, são imbecis ou são doidas". Não importa a causa da tristeza, a tristeza é intolerável. Então, como tolerar pessoas que não se ligam, não fazem laço social? Inventando que elas fazem laço social pelo computador, inventando uma série de loucuras e, principalmente, inventando porta-vozes dessas pessoas. Porque o problema não são os autistas, o problema são os porta-vozes. Esses é que são a barra pesada.
Luis Achilles: De que maneira a psicanálise estaria sendo questionada atualmente pelos problemas do autismo? Por que, entre os lacanianos, também não há consenso?
Maria Anita: Bom, eu acho que não há consenso entre os lacanianos por uma questão histórica. O fato de que Rosine Lefort, uma grande psicanalista que a vida inteira foi assessorada pelo marido dela, Robert Lefort – a tal ponto que eles sempre assinaram juntos os textos. Rosine Lefort publica o texto sobre o caso da Marie Françoise, muito cedo, e as referências dela eram o que ela entendia da psicanálise de uma criança autista. Lacan veio a falar do autismo algum tempo depois. E Lacan se baseava estritamente no talento dele como psicanalista, no conhecimento dele da psicanálise. Porque Freud não teve conhecimento do autismo. O autismo infantil precoce é de 1943, Freud já estava morto. Tinha morrido em 1939. Então, a grande contribuição freudiana para o autismo é o nome autismo, e que não é do Kanner, é do Bleuler e que tirou de Freud, do autoerotismo; tirou o Eros do autoerotismo e deixou só a pulsão de morte na palavra autismo. Porém, Freud nada mais fez do que ser usado, não é? Lacan não. Lacan já tem alguns trechos, algumas passagens em que ele fala do autismo. Na Conferência de Genebra e notadamente nas Conferências Norte-Americanas, em que ele coloca a questão do autista diretamente ligada à relação do sujeito com a linguagem. São pessoas que levam as palavras muito a sério. Tão a sério, que não se atrevem a falar. Mas não são pessoas que não têm relação com a linguagem. Têm uma relação com a linguagem da ordem do Real. E Rosine Lefort apresenta o caso de Robert, o menino lobo, igual com o primeiro seminário de Lacan. Ela apresenta como um possível caso de autismo, porque é logo em seguida à apresentação e discussão do caso Dick, de Melaine Klein, que é um caso de autismo; logo em seguida vem a apresentação de Rosine Lefort com o caso Robert. Mas Robert, os próprios autores se dão conta de que uma vez que Robert sai da crise mais selvagem dele, o que aparece é o paranoico, igual ao presidente Schreber. Eles têm um livro muito bonito, você conhece? (pergunta ao entrevistador),
Luis Achilles: O Nascimento do Outro?
Maria Anita: Um livro em francês todo sobre o caso Robert... Eu teria que ver o título exato, mas é comparando o Robert, o menino lobo, com o caso do presidente Schreber, interessantíssimo.
Luis Achilles: Conheço La Distinction de l'autisme, que é posterior ao O Nascimento do Outro, onde eles vão reafirmar a estrutura do autismo...
Maria Anita: Exatamente. O autismo como uma a–estrutura, ou seja, como um cara ainda fora da estrutura, é assim a posição de Rosine e Robert Lefort. É: autismo a–estrutura. Que é uma posição desenvolvimentista, não é uma posição lacaniana. Mas eu sei que tem muitos lacanianos que seguem isso. Agora a posição de Lacan é muito clara. Ele tem um momento na Conferência de Genebra em que ele diz – é na parte das perguntas –, as pessoas fazem uma porção de perguntas para ele, principalmente sobre o autismo e os fenômenos psicossomáticos, e ele vai respondendo, não é? E tem um momento em que a pessoa pergunta alguma coisa sobre o autismo e ele diz assim: "É preciso notar que os autistas, ou os ditos esquizofrênicos...". Ou seja, ele coloca o autista como esquizofrênico, como Melanie Klein colocava. Como Leo Kanner colocava no início, antes de se tornar completamente "gagá" etc., etc... Como Pierre Bruno coloca. Ou seja, como todas as pessoas que têm uma experiência direta com o autismo colocam. Tá?
Eu tive uma experiência direta com autismo, recebi durante muitos anos crianças autistas. Ultimamente é que eu não recebo, porque nenhum pai ou mãe de crianças autistas procura a psicanálise, porque a o orientação é: "Vai para o psiquiatra", ou "vai para TCC", ou "vai pra não sei onde". Agora, tive muitos autistas em tratamento com relativo sucesso, diria. Bastante sucesso até, e curiosamente os maiores aliados do tratamento sempre foram as mães. Até hoje eu recebo presentes de Natal, cartõezinhos, coisas bonitinhas das mães dos meus ex-pacientes autistas. Só que eles já se perderam aí pelo mundo; em dez anos se tornaram mulheres, homens, grandes, mas eu recebo cartãozinho, presente e tudo mais. Por quê? Elas se sentiam culpadas? Claro que se sentiam culpadas! Agora, a gente se sente culpado, vamos ser honestos? A gente se sente culpado se o filho tropeça e cai e rala o joelho. Qualquer mãe se sente culpada, tá? Se ele não vai bem na prova, se ele não é a criança mais bonita do mundo, que pra gente é, né? E como é que não vai se sentir culpado? Quem é que diz que alguém não se sente culpado quando você diz: "é uma doença genética"?. Claro que você se sente culpado! Você se sente culpado de tudo! Porque pai e mãe se sentem culpados com qualquer negócio que aconteça com os filhos. Então, essa ideia, ideologia da "des-cul-pa-bi-li-za-ção", que é uma ideologia bem de negação do sujeito, porque o sujeito freudiano é o sujeito culpado. Culpado, porque ele é edipiano, e culpado porque tem Inconsciente. E o Inconsciente é infantil, incestuoso, perverso-polimorfo. Então, ele é culpado. Agora, essa ideologia de "desculpabilizar" as pessoas é a ideologia de negar a subjetividade. "Você é uma máquina, movida pelos seus hormônios, pelos seus neuro-hormônios, sei lá por que diabo..., te entope de remédios, segue em frente e não pensa muito na vida." É isso. Ter um filho autista implica você pensar na vida.
É isso.
Luis Achilles: Há dois anos, o autismo foi objeto de um programa numa grande emissora de televisão brasileira, no qual um famoso neurologista especialista no assunto utilizou a expressão "A mentira psicanalítica", referindo-se à culpabilização dos pais. Sabemos, no entanto, que os psicanalistas são grandes responsáveis por dar as palavras aos pais e aos autistas que lhes procuram. O que você acha desse movimento que existe há quase trinta anos em que várias pessoas diagnosticadas com autismo começaram a publicar suas histórias?
Maria Anita: Em primeiro lugar, grandes neurologistas ou grandes psiquiatras ou grandes alguma coisa não têm tempo de ir para a televisão "descer o sarrafo" em outra profissão. Grandes neurologistas, na verdade, estão cuidando de suas pesquisas neurológicas, fazendo seu trabalho bonito, bacana, e por isso eles são grandes. Um panaca que aparece num programa de televisão e gasta o tempo "descendo o sarrafo" na psicanálise, é porque a psicanálise é importante demais pra ele. Então, ele não é grande em nada, a não ser um grande tolo que não está sacando que quando a gente "desce o sarrafo" em alguma coisa é porque é muito importante para a gente, não é? E como eu disse logo no início, na primeira pergunta, o panorama em relação ao autismo mudou muito com o computador, porque os autistas falam de fato com as máquinas. Agora, o problema não é porque os autistas falam com as máquinas. O problema é o que as pessoas que organizam o material dos autistas, de fato, fazem com esse material. Porque a gente não tem acesso direto ao que os autistas, de fato, escreveram. Você tem acesso a um material organizado pela mãe, pelo pai, pelo avô, pela avó, pelo editor, pela... Você tem filmes sobre o autismo. Sobre "Minha irmã autista", não é? Você não tem o acesso direto a eles, até porque eles são autistas. Eles não têm acesso direto a você nem a ninguém. Então, eu acho que tem que se ir com muita cautela...
Luis Achilles: Quando se tem acesso, tem-se que perguntar se eles realmente são autistas...
Maria Anita: Claro! Claro! Porque tem muito texto ali que é óbvio que a pessoa não é autista. Mas é um óbvio que por algum motivo está muito zangado, não quer falar com o mundo. Mas, desde que o mundo é mundo, têm pessoas que se recusam a falar com as outras e não são autistas. Meu Deus! As pessoas se esquecem que existe uma ordem religiosa muito importante das carmelitas descalças, que são mulheres que fazem votos de silêncio. Por que uma moça entra para um convento para fazer voto de silêncio, para não falar nada, durante dias e dias, e só se comunicar com Deus? Sem falar! Existem pessoas no mundo que não querem falar e não são autistas. E não existe Rede Globo ou computador ou coisa nenhuma que as obrigue a falar (risos). Nem existe porque a gente imaginar. "Só porque elas não falam são autistas." Porque todas as carmelitas descalças são autistas... Não! Pelo contrário, podem ser pessoas maravilhosas como a que fundou a ordem, que é Santa Teresa D'Ávila, não é? Um gênio absoluto, uma mulher magnífica, que era tudo menos psicótica. E, no entanto, ela funda a ordem das descalças, daquelas que vão optar pelo silêncio e por andar de pés no chão, não é?
Luis Achilles: O que você acha desse movimento de foraclusão da psicanálise no que tange às suas contribuições ao tratamento do autismo que foi deflagrado na França e em São Paulo? Qual teria sido a contribuição dos psicanalistas quanto a essa realidade?
Maria Anita: Olha, eu não sei qual foi a contribuição dos psicanalistas quanto a essa realidade, o que a gente tem que entender é o seguinte: existe muito psicanalista imbecil. Que existe, existe. A gente vê isso, por exemplo, o número de psicanalistas que foi contra os direitos dos homossexuais. O número enorme de psicanalistas, e você sabe perfeitamente do que eu estou falando, de que, durante muito tempo, tratava-se a homossexualidade como perversão e, de repente, agora dá entrevistas "eu sou totalmente a favor do casamento homossexual!". Por quê? Porque está na moda, não é? Mas eu sei perfeitamente que houve movimentos, e movimentos, e movimentos, de tratar a homossexualidade como uma doença, como homossexualismo. Isso dentro da psicanálise. Da mesma maneira, existem muitos psicanalistas que culpam os pais, que fazem e acontecem... Porque é óbvio que, principalmente quando os psicanalistas começam a dar declarações com certezas absolutas tipo "O autismo é isso", "Ou não sei que é... ahhh...", estão dizendo besteira. Porque quem tem certeza absoluta é paranoico, entende? Ou é burro ou é paranoico. A psicanálise nunca pode dizer: "A culpada é a mãe". Isso não é psicanálise. Ou, "O culpado é o pai", isso não é psicanálise... Porque a gente pode, sim, é conversar com os pais e saber o que eles estão pensando disso e o que é que eles pensam daquilo e sentem, e que não sabem que pensam e sentem; pode estar piorando a situação ou melhorando a situação, não é? Isso sim. Agora eu acho que deve ter havido alguma contribuição de uma meia dúzia de tontos que tenha feito alguma coisa; mas o que eu acho é que um grande perigo, isso eu disse em São Paulo e repito: é os psicanalistas ficarem aterrorizados, pararem de falar como psicanalistas, começarem a falar como criaturas acovardadas, com medo de ser acusados de culpar pai e mãe... Ah, vai tomar banho! Começar, isso é fato, eu já disse para você e repito: começar a encontrar textos escritos sobre casos de autismo em que não se fala na palavra "pai" e não se fala na palavra "mãe". Porque a partir do momento em que os psicanalistas começaram a ser acusados de culpar pai e mãe e, eles falam mais de pai e mãe (risos). Então, o complexo de Édipo acabou, meus amores, porque não se pode mais falar de papai e mamãe, senão vamos ser acusados de culpar o pai e a mãe, é uma coisa muito louca, sem sentido, não é?
Luis Achilles: No campo da saúde coletiva testemunhamos também uma série de autores que denunciam a psicanálise como uma prática elitista e burguesa. Ao mesmo tempo em que proclamam a bandeira de uma prática social que considere o sujeito na sua integralidade, rejeitam a clínica como um dispositivo ultrapassado e caro. De que maneira esse movimento está articulado no que se refere à controvérsia em torno do autismo atualmente?
Maria Anita: O negócio é o seguinte: é uma contradição em termos você de fender alguma coisa em nome do sujeito tomado na sua totalidade e rejeitar a psicanálise; é uma contradição de termos, porque o único sistema pensante que admite sujeito na sua totalidade é a psicanálise. Com a descoberta do Inconsciente, o resto é fantasia, o resto é uma visão parcial; não estou dizendo que não seja necessário a gente estudar visões parciais ou entrar em contato com outros profissionais que abordem outros campos. Agora, há uma contradição. A psicanálise em si é um tratamento caro, mas caro quer dizer, caro para o sujeito. Se um real é caro para ele, é isso que ele vai pagar; agora se duzentos reais são caros para ele, é isso que ele vai pagar, está entendendo? Então, a psicanálise aqui no Rio de Janeiro tem um lugar no serviço público, e tem um lugar legal no serviço público. E está mais do que claro que não é nem caro, nem elitista.
Eu não sei se você se recorda, mas...
Luis Achilles: Talvez mais caro seja a cronificação...
Maria Anita: É... Eu não sei se você se recorda, eu não lembro exatamente em que ano foi, se foi em 94, 95, ou por aí... Eu fui interpelada por duas colegas que moravam e trabalhavam na Baixada Fluminense: "Por que não existia nenhum movimento psicanalítico, muito menos psicanalítico lacaniano na Baixada Fluminense?". Tá? Aí, eu levei essa queixa ao colegiado da instituição a que eu pertencia na época. A maioria das pessoas riu e disse: "Você não vai pra Baixada", então eu disse "Ah, é?! Então eu vou!". Durante uns quatro anos ou cinco, acho que foram cinco, eu ia de quinze em quinze dias sustentar um seminário de psicanálise na Baixada Fluminense. Hoje em dia eu tenho orgulho de dizer que Nova Iguaçu é um Centro de Psicanálise Lacaniana, com psicanalistas de primeira! Eu tenho orgulho de dizer que foi isso que eu fundei lá em Nova Iguaçu. As pessoas têm uma demanda de análise enorme! É elitista? É, para a elite que demanda. Que elite é essa? É a elite que quer se analisar, é a elite que acredita no inconsciente. Agora, se essa elite é composta de pedreiro, carpinteiro, empregada doméstica, faxineira, manicure, é..., é uma elite, sim, porque há diferença de outros que acreditam no inconsciente. Que se beneficiam da análise. Eles contam sonho, eles entram em análise igual a todo mundo. Essa é a elite...
Luis Achilles: Elite por se responsabilizarem por seu sintoma...
Maria Anita: Exatamente! Por se responsabilizarem como sujeitos de sua vida, entende? E não passar a vida culpabilizando os outros.
Luis Achilles: Como os psicanalistas poderiam contribuir no plano das políticas públicas de saúde, com sua prática e teoria?
Maria Anita: Ah... (risos), isso eu não sei. Isso eu não sei realmente. Eu acho que isso é uma resposta que teria que ser uma coisa tão ambiciosa... Responder de uma forma genérica... Eu acho que cada um tem que tentar fazer a sua parte na história. Eu acho que existem pessoas mais comprometidas com o serviço público, como é o seu caso que tem, de alguns colegas presentes naquela reunião em São Paulo – que se questionou a Política Pública em relação ao autismo – e eu acho que tem coisas a se fazer pontualmente. O que eu disse em São Paulo foi muito radical, mas eu acho muito verdade. Está se excluindo? Tem algum documento escrito que não é para tratar com a psicanálise? Entra com um processo! Que é contra a lei brasileira. Isso é segregação, entende? Não pode! Não pode! Eu não posso passar um documento para uma rede pública dizendo que não podem usar... ah... Aspirina, porque não gosto da palavra "Aspirina". Não! Eu não posso fazer isso. Isso é ilegal. Isso é uma coisa. Agora, outra coisa é o que cada um que está comprometido com o serviço público pode fazer. Aqui, no Rio de Janeiro, nós temos um trabalho muito interessante com um psicanalista, colega nosso, que não é do Campo Lacaniano, mas que tem um trabalho muito interessante em um CAPSi, que se chama CAPSi Pequeno Hans. Que é um trabalho com crianças autistas, num CAPSi do serviço público. É o do Luciano Elia; o trabalho dele é fantástico! Ele é um professor doutor da UERJ, e tem um trabalho brilhante; ele está mais apto a falar do que eu, eu só conheço e admiro o trabalho dele e sei que é uma pessoa fantástica. A orientação dele é lacaniana, ele não pertence nem a EBP nem ao Campo Lacaniano, mas ele tem a sua própria instituição.
Luis Achilles: Neste ano de 2013, o autismo faz 70 anos, se tomarmos o artigo de Kanner como marco inaugurador dessa categoria nosográfica. O Ministério da Saúde Brasileira está realizando, até março deste ano, uma consulta pública para a revisão da "Linha de Cuidado para Atenção Integral com as pessoas com Transtorno do Espectro do Autismo e suas famílias no Sistema Único de Saúde". De que maneira a psicanálise pode contribuir nesse cenário e, por outro lado, poderia correr o risco de se tornar uma prática higienista na interface da Saúde Coletiva?
Maria Anita: Novamente é muito difícil... Mas isso que você aponta é muito curioso mesmo. Não é à toa que se desce tanto o sarrafo contra a psicanálise... Porque a psicanálise tem aquela história que Freud disse que era a peste que ele estava levando para os Estados Unidos. Se é verdade ou não, não importa. Porque é verdade, sim, na medida em que sempre tem alguém para descer o sarrafo na psicanálise. Porque ela provoca muita confusão. Ela não pode ser uma prática preventiva, não tem como você fazer uma psicologia preventiva com a psicanálise. Porque não tem como você determinar o que é transmissão inconsciente. O que a psicanálise pode colaborar é ter psicanalistas presentes na rede pública que se disponham a escutar as pessoas. Não como única salvação de assistência aos autistas, mas mais uma opção, uma escolha. E não vai ser a escolha que vai dar conta de tudo não! Porque a psicanálise dá conta do inconsciente, seja ele a céu aberto ou não. Mas só dá conta do inconsciente e mais nada! E já é muito! Chega! Eu acho que são necessários psicanalistas que se disponham a estar na rede pública, que se disponham a atender autistas com humildade, no sentido de saber que não são eles que vão dar as cartas, porque vão ser mais um da equipe, porque os autistas precisam da assistência de muitos profissionais.
Luis Achilles: Atualmente, a grande luta em torno do autismo não é mais para destituir as hipóteses psicogênicas (que seriam aquelas atribuídas aos psicanalistas), mas acontece entre os grupos que consideram autismo como distúrbio que deve ser tratado, (grupos pró-cura) e os defensores da causa da neurodiversidade (grupos anticura). Este último grupo, composto por autistas de autofuncionamento, defende o autismo como um "jeito de ser". A discussão tornou-se uma questão política relativa aos movimentos multiculturais e do respeito às diferenças. A seu ver, como os psicanalistas poderiam contribuir com a discussão sobre tema da inclusão social e educacional de pessoas com autismo?
Maria Anita: Eu acho que os autistas, portadores de Asperger, que são esses que defendem o direito de você ser autista, de você ser diferente, têm todo direito de defender o que eles quiserem. Ninguém deve ser obrigado a nenhum tipo de tratamento. Nós estamos tendo, aqui no Rio de Janeiro, um debate dificílimo com a ideia de se internar compulsoriamente os usuários de crack, porque é um desrespeito à subjetividade, a internação compulsória. Por outro lado, a Copa vem aí, vêm as Olimpíadas e tem que limpar a casa... Os "crakudos" ficam na rua... dando péssima impressão... "O que se faz e o que não se faz?". Mas, a psicanálise respeita a subjetividade, defende o respeito à subjetividade. Os autistas devem ser obrigados a se tratar? Nunca! Agora, o que me parece complicado é que uma pessoa por ser Asperger não pode falar em nome dos autistas que não falam. Aí é outra coisa! Cada um fale por si, cada um defenda para si o direito de não se tratar. Claro... Assim como o..., me parece, que o direito de morrer deveria ser defendido com unhas e dentes... Se você não quiser continuar vivendo? Por que não eutanásia? Entende? As pessoas têm o direito de optar por sua vida e por sua morte, por seu destino. Melhorar não pode ser uma compulsão. Freud, que advertia todo psicanalista sobre o furor sanandi, o furor de curar todo mundo. (Risos) Ele dizia que era um dos maiores perigos dos psicanalistas era sair por aí querendo curar todo mundo. Não! Você só vai tratar de quem quer se tratar. Agora, também, por outro lado, se arvorara ser porta-voz de quem se recusa a falar?! Isso é outra coisa.
Acho que, por ter tido contato com muitos pais de pessoas autistas, há uma questão que sempre me ronda e que parece ser cercada de silêncio na literatura especializada. Quando lemos os textos sobre autismo, psicanalíticos ou não, sempre se fala da criança autista. E os adultos e adolescentes autistas? Onde estão? O que é possível fazer com estes casos?
Maria Anita: É um problemão, não é? Não existe em nível de serviço público ou particular, um sistema de atenção ou de cuidado que possa dar conta desses adultos autistas. As crianças autistas se tornam adultos; alguns de alguma maneira, por alguma circunstância, conseguem, com ajuda da família, e às vezes com tratamento; eu tenho ex-pacientes que de vez em quando eu tenho notícias deles... E eles conseguem levar uma vida... uma vida! Deles. Mas eles deram sorte de ter uma família suficientemente sensível para buscar tratamento num momento crucial da vida deles etc. Agora o autista adulto hoje em dia não tem muito para onde recorrer, não.
Luis Achilles: Diante das diversas posições de vários autores em torno do autismo, você consegue fazer alguma relação entre essas diferenças de opinião e diferenças de escola entre os lacanianos?
Maria Anita: Sim... Eu acho que, basicamente, são dois grupos. O grupo que segue orientação de Robert e Rosine Lefort, que trabalha com uma ideia bastante bizarra de "a–estrutura", ou seja, de algo fora da estrutura. E o grupo que permanece mais próximo do pensamento de Lacan, que trabalha com a hipótese, não que não é só de Lacan. É Lacan, é Melanie Klein, é o próprio Leo Kanner, no início da clínica dele... de que o autismo é uma forma de um desencadeamento muuitíssimo precoce de uma esquizofrenia. Então, eu acho que é basicamente isso. E diante de um desencadeamento muito precoce da esquizofrenia ou de qualquer caso de psicose, o que a psicanálise tem a fazer é muito. Porque, de uma maneira geral os psicóticos são aqueles excluídos, a quem ninguém quer dar a palavra. E quando eles não querem tomar a palavra, que é o caso dos autistas, aí, realmente, é um circuito de abandono imenso. Então, eu acho que a psicanálise tem muito a fazer com os autistas e com as famílias dos autistas, e com todo mundo que gira em torno dessa forma de viver que é tão, tão, tão sofrida.
Luis Achilles: Obrigado, Maria Anita.