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Stylus (Rio de Janeiro)
versão impressa ISSN 1676-157X
Stylus (Rio J.) no.31 Rio de Janeiro out. 2015
RESENHAS
A morte pode esperar? Clínica psicanalítica do suicídio
Death can wait
Geísa Freitas*
Internacional dos Fóruns do Campo Lacaniano - IF-EPFCL
Fórum Rio de Janeiro
Formações Clínicas do Campo Lacaniano do Rio de Janeiro
Por que a morte se apresenta como única saída para alguns sujeitos? Quem é esse sujeito que decide morrer? Enquanto psicanalista, que ética seguir diante do anúncio de um paciente de que vai se matar? A morte pode esperar por uma análise?
É assim que Soraya Carvalho, psicanalista, nos coloca diante dessas e de muitas outras de suas inquietações, oriundas de sua experiência clínica de mais de vinte anos no atendimento de sujeitos que haviam tentado o suicídio.
A autora aborda o suicídio como uma manifestação humana, uma carta na manga que pode ser usada quando a vida se torna insuportável. Um modo de lidar com a dor de existir.
O ser falante, ou falasser, é o único ser vivo que atenta contra a própria vida, que faz da morte uma escolha.
Para a autora, o homem só suporta a vida porque tem na morte uma escolha, o que a torna suportável:
O homem suporta a vida pela possibilidade que dispõe de matar-se. A morte é o que torna a vida possível. A vida é real e a morte simbólica, e se o real é o impossível, viver é o exercício da impossibilidade. E o suicídio é uma escolha capaz de dar um significado à vida quando ela chega ao limite da impossibilidade (CARVALHO, 2014, p. 145).
É no encontro com o real, com a impossibilidade, e a angústia advinda daí, que alguns sujeitos escolhem a morte. Mas, de que encontro se trata? Aquilo que parece obra do acaso ou destino, quando na verdade é a repetição do traumático, da constatação da não existência da relação sexual.
O falasser, inscrito na linguagem, paga o preço do determinismo inconsciente à cadeia significante, que determinará seu modo de gozo, como também o automatismo de repetição. É, assim, aprisionado a este determinismo, que faz suas escolhas diante da vida e da morte. E, escolhe o pior, escolhe repetir o traumático.
Carvalho traz um exemplo que mostra, ao mesmo tempo, que a pulsão de morte está contida na cadeia significante, que o gozo não para de não se escrever e que o sujeito, ao escolher repetir o que lhe foi traumático, vivendo situações novas, está, na verdade, demonstrando o seu aprisionamento à cadeia significante.
Dá como exemplo uma pessoa que sofreu abuso sexual na infância e que, ao se colocar em situações que possibilitam a reedição do abuso, acaba repetindo a violência sofrida durante várias vezes na vida, como se fosse carma ou destino.
Para a autora, o suicida pode ser considerado o sujeito da tiquê, que é uma forma de repetição, na qual o sujeito repete sempre a mesma falha, mas trazendo um algo novo. Diante desse gozo da repetição, vivido como excesso ou perda, o sujeito pode ser levado a um ato, em uma tentativa de pôr um limite, "mas também de nada querer saber sobre isso" (Ibid., p. 147).
O sujeito que escolhe morrer, via de regra, está submerso em uma angústia avassaladora. Dito de outra forma, é um sujeito atravessado pela irrupção do real no corpo. A angústia é sempre angústia de castração, portanto angústia de quem está vivo, angústia do homem, no corpo, na vida. A morte não é a causa da angústia, mas uma forma de exterminá-la.
A autora aponta o abandono do Outro ou a série de encontros faltosos com o real, como causas para nos depararmos com sujeitos empobrecidos e aniquilados, que assim escolhem morrer, fazendo do suicídio algo que dê significado a uma vida sem sentido, marcada pela impossibilidade.
Carvalho, interessada em entender em que medida a relação entre fantasia e ato participa da decisão pela morte, parte do pressuposto de que tanto o sintoma, a fantasia, como o ato são respostas do sujeito ao real e analisa o suicídio do neurótico, do psicótico e do melancólico a partir do S(), significante da falta no Outro e do a, objeto a, causa de desejo, objeto de gozo e objeto de amor.
O suicídio neurótico é, muitas vezes, "um acting out, isto é, um ato no qual o sujeito cria a cena e participa dela, como se fosse autor, ator e diretor da obra, cuja finalidade é alcançar o Outro, daí seu aspecto de mostração" (Ibid., p. 157). Mas, por que clamar ao amor do Outro com um ato suicida? Por que correr o risco de sair da cena da vida sem chance de retornar?
O neurótico, diante da falta do Outro, do enigma do desejo do Outro, responde com a fantasia, que é formulada como (), onde o sujeito se relaciona com o objeto causa de seu desejo, que é também o objeto para sempre perdido e objeto mais-de-gozar.
A fantasia é, então, ao mesmo tempo, suporte do desejo para o sujeito e ferramenta para lidar com a falta do Outro, para tamponar a falta no Outro. É uma forma de fazer suplência à impossibilidade da relação sexual. Então, perder o objeto pode causar um abalo tal na fantasia, que leve o neurótico a um ato suicida.
Para a autora, a psicanálise postula a impossibilidade da relação sexual, desde Freud, com a pulsão, que nunca se satisfaz e mais tarde, com Lacan e sua tese de que a relação sexual não existe, exceto no sintoma.
Lacan, quanto à partilha dos sexos, divide os seres falantes em dois lados: o masculino e o feminino, partindo não da anatomia, mas da modalidade de gozo. Assim, do lado masculino temos o gozo fálico e sujeitos totalmente submetidos à norma fálica, enquanto do lado feminino encontramos o Outro gozo e sujeitos não totalmente submetidos à norma fálica.
Desse modo, o sujeito que está na posição masculina goza falicamente do seu objeto na fantasia, objeto causa de seu desejo, que pode ser o corpo de uma mulher. Já o sujeito do lado feminino pode gozar de três modos: como objeto na fantasia de um homem, pela via fálica (Φ) ou no que falta no Outro S() e por meio do Outro gozo, gozo suplementar, fora do significante.
O sujeito feminino presta-se a ser o objeto da fantasia do homem, evidenciando que o homem goza do objeto e a mulher goza como objeto. Para a mulher sustentar-se nesse lugar de objeto ela precisa do amor de um homem. Perder esse amor é desvelar a sua condição de objeto de gozo na dimensão de resto, o que pode levar a atos suicidas, tanto actings ou mesmo passagens ao ato.
A fantasia, resposta do neurótico ao enigma do desejo e falta no Outro, é formalizada pela autora assim:
Neurose:
O que o neurótico faz é recobrir a falta do significante falo com um objeto, objeto causa de seu desejo. Ao usar um objeto para preencher a falta do falo, não há garantia de sucesso, uma vez que não existe equivalência lógica entre objeto e significante. Assim, a fantasia pode ser abalada e, como é o suporte do desejo, o desejo também será abalado. A autora enfatiza a importância clínica da fantasia na clínica do suicídio, na identificação dos tipos de neurose, obsessiva ou histérica, em função da posição que ocupam na fantasia.
Na neurose obsessiva, o sujeito normalmente está do lado do na fórmula da fantasia, no lado masculino, gozando de seu objeto. Para Carvalho, o obsessivo, ao perder o objeto que sustentava seu desejo e seu gozo, perde uma posição de gozo, causando um abalo na sua fantasia revelando cruamente a falta no Outro.
Sem a fantasia, o obsessivo é tomado por puro gozo, depara-se com a falta no Outro, a sua própria falta e sua condição de objeto dejeto. Assim, pode escolher morrer, passando ao ato ou por meio de um acting.
Na análise da histeria, a autora faz distinções importantes entre a posição histérica e a posição feminina, tomando como referência o texto de Colette Soler O que Lacan dizia das mulheres. No entanto, no tocante ao suicídio são as questões amorosas as causas mais frequentes para ambas as posições. Na histeria é a perda do amor e a consequente perda de lugar de objeto causa de desejo de um homem que leva a histérica ao suicídio. "É uma recusa dramática do sujeito em perder o lugar de objeto que causava o desejo para um homem" (Ibid., p. 164). A histérica busca o suicídio normalmente por meio de um acting out, em uma tentativa desesperada de apelar ao Outro para que lhe "restitua o amor e o lugar de complemento de seu desejo, opondo-se a reduzir-se a puro resto" (Ibid., p. 165).
Também para a posição feminina é a perda do amor que pode levar o sujeito ao suicídio. O sujeito nessa posição se oferece como objeto de gozo do Outro, colocando o gozo do parceiro como causa de seu desejo. Ao perder o amor que dava a proteção para esta condição de gozo, o sujeito depara-se com uma angústia infinita, podendo escolher o suicídio.
A autora conclui que no suicídio neurótico, seja em quaisquer dos tipos clínicos, diante de uma perda de objeto, de perda de gozo, o sujeito terá que se haver com o desejo do Outro, com a falta no Outro e com a sua própria falta. Nesses momentos, a fantasia fica abalada e sem o seu suporte, a falta do Outro se apresenta no real.
Já na psicose, a foraclusão do nome-do-pai faz do grande Outro, um Outro sem a barra, consistente, sem furo. O que foi rechaçado no simbólico volta no real, sob a forma dos fenômenos elementares, como alucinações auditivas, visuais e principalmente os fenômenos de linguagem. O psicótico se vê totalmente submetido ao gozo do Outro. Então, quando se suicida é, ou para sair dessa condição insuportável de objeto de gozo do Outro, ou para obedecer a uma ordem que vem do Outro, de que se mate. O psicótico se suicida sempre em função desse gozo invasivo e imperioso do Outro, ao qual está submetido, por estrutura.
Carvalho aborda a questão da perversão rapidamente explicando que é raro perversos buscarem uma análise. Identifica, no entanto, que a causa do suicídio para esta estrutura é também a perda de gozo, ocasionada por algo da realidade que mexa em seu status, denegrindo sua imagem.
O suicídio melancólico é tomado pela autora como o paradigma do suicídio. Normalmente, são passagens ao ato radicais, consequência de uma sentença de morte, dada pelo próprio sujeito, ao tomar a decisão de morrer.
Freud caracteriza o melancólico como o sujeito que, de tão identificado ao objeto, ao perdê-lo, culpa-se e pune-se por isso. Obtém uma satisfação sádica de seu sofrimento e vinga-se do objeto por meio da autopunição. Seria essa a explicação de Freud para a tendência do melancólico ao autoextermínio, ao suicídio, que não deixa de ser também um homicídio, pois ao matar-se ele mata o objeto.
"O Outro não colocou sua falta, no momento de sua relação inaugural com ele" (Ibid., p. 169). Por esse motivo o melancólico não dispõe do recurso da fantasia, além de ter um comprometimento na constituição de seu desejo. O recurso do melancólico é a identificação a um outro, em uma relação puramente imaginária, pela via do amor. Doa seu ser, em uma tentativa de preencher o Outro com o objeto a, na vertente objeto de amor, sendo que o que falta ao Outro é um significante. Então, não ser aceito pelo Outro desvela sua condição de "resto, nada, mero objeto sem valor, sem ao menos uma imagem que lhe sirva de suporte" (Ibid., p. 170).
A perda do objeto faz o melancólico deparar-se com um buraco no eu, pois perde seu objeto de amor, que servia para suturar sua falha imaginária. Revive sua catástrofe original, a falta de lugar no desejo do Outro, restando-lhe a condição de objeto de gozo, gozo mortífero, o que pode causar a passagem ao ato suicida.
Soraya Carvalho nos apresenta a opinião sobre a melancolia de Marie-Claude Lambotte, psicanalista que vem pesquisando o tema. Para esta autora, a melancolia não é uma psicose, mas também não é uma neurose. Adota a expressão cunhada por Freud para a melancolia, "neurose narcísica", porque indica de maneira mais direta a "relação particular que um sujeito estabelece com um objeto por meio de uma identificação narcísica ao objeto, proveniente de uma falha originária no eu" (Ibid., p. 107).
Para Lambotte, na constituição do sujeito melancólico houve uma deserção abrupta do desejo do Outro, o que implica a falta de investimento em sua imagem, impedindo que realize uma identificação narcísica, configurando uma falha na constituição de seu eu, e acarretando uma fragilidade da função imaginária. É por esse motivo que a eleição de um objeto de amor serve para o melancólico suprir essa falha no eu, pois identificando-se ao objeto narcisicamente tem a ilusão de ter constituído o seu eu.
Ao perder esse objeto, a ferida é reaberta e a dor é enorme. Dor que se localiza no corpo, portanto, angústia. Então, se toda angústia é angústia de castração, o melancólico passou pela castração, mas o que o diferencia do neurótico e do psicótico é o mecanismo com o qual se defende desta. O neurótico usa o recalque, o psicótico a foraclusão e o melancólico faz uso de uma evitação da castração.
Carvalho explica que o fato de a melancolia se dar a partir da deserção abrupta do Outro não implica que o desejo do Outro seja igual a zero, ou que esse Outro não porte a falta, a castração, mas que em um momento crucial para o sujeito o Outro não pôs sua falta em jogo. O melancólico, então, afirma a castração, o que o difere do psicótico, utilizando-se do mecanismo de evitação da castração. Parece que o melancólico coloca a realidade a distância para evitar "se confrontar com a falta, com o real, mantendo a salvo a potência do ideal em relação ao qual ele se identifica" (Ibid., p. 112).
Há no melancólico uma identificação ao nada, causada pelo desaparecimento abrupto do Outro, justamente no momento em que seria iniciado no campo do desejo. Essa identificação ao nada faz Lacan dizer em seu Seminário 8 que o melancólico está no simbólico. Para Lambotte, "o nada indica a entrada do sujeito na cadeia significante, especificando a sua relação com o Outro" (Ibid., p. 113).
O melancólico, por estar identificado ao nada, nega o valor das coisas, que é um juízo de atribuição, mas não nega a realidade, que é um juízo de existência.
A autora nos apresenta a clínica com os sujeitos melancólicos a partir de suas especificidades. O primeiro ponto abordado é conhecer o discurso do melancólico, uma vez que a psicanálise opera sobre o discurso, é importante conhecer o discurso sobre o qual o discurso do analista irá operar.
Para Lambotte, o discurso do melancólico é um discurso desprovido de afeto, sem representações, com palavras desvitalizadas, nas quais tanto o sentido como a verdade remetem à aniquilação, em uma sucessão de ideias sem pontuação, sem especificação, afeto ou sentido. É um discurso formal que busca a perfeição, que tenta driblar a falta e reduzir a enunciação ao enunciado.
O analista deve conduzir o tratamento de tal forma, que o sujeito possa identificar a falta no Outro e a impossibilidade de dizer tudo.
Carvalho apresenta um recorte de caso de um sujeito melancólico, atendido durante nove anos, com várias tentativas de suicídio. Um caso típico, no qual a perda do objeto de amor faz com que se autoflagele com ferro quente e que se recrimine como incapaz e sem valor.
Envia cartas à analista, em uma escrita rigorosa, bem ao estilo do discurso melancólico.
A autora indica a necessidade de um cuidado nesta clínica, pois a queda dos ideais que seria o caminho da cura para os neuróticos, pode "expor brutalmente a falha narcísica do sujeito, podendo provocar uma passagem ao ato suicida" (Ibid., p. 206).
No caso apresentado, Carvalho relata a condução do tratamento baseado em dois pilares: levar o sujeito a identificar a falta no Outro e buscar uma identificação, algo do próprio sujeito, que pudesse substituir a identificação ao nada.
A analista faz uma interpretação de suas cartas: "Você escreve bem!".
Essa interpretação teve valor de revelação, causando perplexidade e dúvida no sujeito, que a tomou como um equívoco do analista. A analista conferiu um juízo de atribuição a um traço do próprio sujeito, permitindo que uma nova identificação se desse no lugar da identificação ao nada. Desse modo, um significante novo passou a ser a sua marca narcísica, com a qual pôde "tamponar sua falha imaginária e assim não necessitar mais de um objeto para fazê-lo" (Ibid., p. 209).
A autora sustenta a hipótese de que o analista precisa suportar o tempo que for necessário para o sujeito melancólico reconhecer a falta no Outro, podendo assim suportar a sua incompletude, fazendo alguma invenção, sua própria versão, conseguindo sair do lugar de objeto e, finalmente, assumir-se como sujeito.
A questão da ética do psicanalista na clínica do suicídio é abordada pela autora na forma de um diálogo com o leitor, interrogando-nos, enquanto interroga-se a si própria.
Sabendo que a ética da psicanálise é a ética do desejo e do bem-dizer o sintoma, de não ceder do desejo, Carvalho nos interroga: Qual a ética na clínica da depressão? E na clínica onde o gozo da morte é o gozo maior do sujeito? Que ética seguir diante do anúncio de um paciente que decidiu se suicidar?
A ética humana, praticada pela medicina, postula que a vida está acima de tudo e tudo deve ser feito para preservá-la. Já, a ética da psicanálise, sendo a ética do desejo, de não ceder do desejo, convoca o sujeito a não desistir de buscar o objeto que causa seu desejo e seu gozo, a bem-dizê-los, podendo, em uma análise, apropriar-se de sua verdade e responsabilizar-se pelo seu sofrimento.
Quando o paciente diz "quero morrer", está expressando seu desejo? Freud relaciona morte à pulsão, pulsão de morte. "O sujeito que não tem mais tempo para viver escolhe a morte, não porque a deseje, visto que o inconsciente não a reconhece, mas porque dela pretende tirar alguma satisfação" (Ibid., p. 213).
A autora apresenta um caso, no qual um sujeito melancólico chega muito triste e inibido, relatando sua história cheia de fracassos e de tentativas de suicídio, também fracassadas.
Nunca havia procurado ajuda, e, mesmo descrente, procura o psiquiatra para ser medicado. Desiste diante da fala do médico, de que terá que esperar o efeito dos medicamentos. Ele estava cansado de esperar. Havia esperado a vida inteira por algo que sabia que não viria. O Outro, que o deserdara abruptamente, nunca veio e nem virá. Sem lugar no Outro e, tomado pela angústia dessa constatação, decide morrer e anuncia que dessa vez fará diferente: "Vou comprar uma arma". Ainda acrescenta que não autoriza a analista a fazer contato com a família, ameaçando processá-la por quebra de sigilo.
A analista decide não atender à demanda na tentativa de barrar o gozo mortífero, acreditando que com a ajuda dos fármacos poderia tirá-lo do lugar insuportável de objeto de gozo do Outro.
Fala com os parentes, sugere a internação e mesmo o resgate, como última alternativa, diante da gravidade do caso. Mas eles dizem que não poderiam fazer isso, que ele jamais os perdoaria. O sujeito se retira da cena, em uma passagem ao ato, com um tiro na cabeça. Põe fim à "angústia de estar, toda uma vida, identificado à condição de objeto, de resto para o Outro" (Ibid., p. 184).
Carvalho questiona suas intervenções sob a óptica da ética e da técnica da psicanálise. Quebrou a regra do sigilo ao contatar os parentes e expor a decisão de seu paciente de se matar. Também sugeriu uma internação involuntária. A analista visou assim ao bem de seu paciente?
Já foi dito que a ética da psicanálise não é a ética do bem, mas do bem-dizer. Não cabe ao psicanalista querer o bem do paciente. O único desejo que cabe a um analista é que uma análise se dê. Portanto, "ao infringir algumas regras, a analista colocou em ato seu desejo, desejo que esse sujeito pudesse ter acesso a uma análise e, por conseguinte ao bem-dizer" (Ibid., p. 185).
Carvalho, com base em sua experiência, ressalta a importância de, na clínica do suicídio, deixar o sujeito falar sobre sua dor, sem qualquer julgamento ou interpretação. A pergunta deve ser: "O que há com você?" Somente assim poderá advir uma demanda de análise. Ao falar, o analisante estará desfiando seus significantes, que revelarão o que é da ordem do real, do impossível de ser dito. Também revelarão os equívocos, os mal-entendidos na relação com o Outro. Falar implica perda de gozo, ir além do gozo mortífero, passar por outros sítios de gozo e desejo no terreno de sua história. Cabe ao analista identificar a posição de gozo do sujeito, a partir dos significantes que se repetem na fala. Para a autora, nesse momento o paciente pode ser questionado sobre sua participação no seu sofrimento, e se ele dirige uma pergunta ao analista, configura-se a sua entrada em análise e o estabelecimento da transferência, por meio do SsS (sujeito suposto saber). É o momento para colocar a pergunta sobre o desejo. "O que permitirá que o sujeito, já engajado no desejo de saber, possa implicar-se e responsabilizar-se pela posição de gozo que escolheu ocupar na relação com o Outro" (Ibid., p. 220).
A transferência é o motor e o pivô do tratamento para Freud. Lacan acrescenta que na relação paciente-analista há transferência se o sujeito supõe um saber ao analista (SsS). Somente assim há uma demanda verdadeira. Transferência é o amor dirigido ao saber.
A autora interroga o que pode levar o sujeito suicida a substituir o gozo da morte pelo desejo de saber. E responde que sua hipótese é a transferência. "Somente a transferência poderá levar o sujeito a abrir mão dessa condição de objeto e interrogar sobre seu ato, sua existência, seu desejo e seu gozo" (Ibid., p. 221).
Essa é a aposta de Carvalho, de que o sujeito possa substituir o gozo da morte pelo desejo de saber, um saber sobre o real, sobre a falta no Outro. Aposta no ato analítico como opositor ao ato suicida.
Para concluir, a autora afirma que a morte pode esperar por uma análise, desde que haja, além da transferência, o desejo do analista de que uma análise se dê, suportando o tempo que for necessário para que o analisante abra mão da satisfação com a morte e possa substituí-la pelo desejo de saber.
Referências
CARVALHO, S. A morte pode esperar? Clínica psicanalítica do suicídio. Salvador: Associação Campo Psicanalítico, 2014. [ Links ]
Endereço para correspondência
E-mail: geisafreitas.gf@gmail.com
* Psicóloga. Psicanalista, membro da IF-EPFCL, Fórum Rio de Janeiro, atual coordenadora da clínica de psicanálise de Formações Clínicas do Campo Lacaniano do Rio de Janeiro.