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Stylus (Rio de Janeiro)
versão impressa ISSN 1676-157X
Stylus (Rio J.) no.31 Rio de Janeiro out. 2015
RESENHAS
Mal-estar, sofrimento e sintoma
Malaise, suffering and symptom
José Luiz Aidar Prado*
Programa de Pós-graduação em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica-SP
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq
Revista Galáxia
Mal-estar, sofrimento e sintoma, de Christian Dunker, um estupendo livro, começa pela pergunta dirigida pelo zé-ninguém a um analista simbólico: "O que é que eu tenho? Qual é o nome dessa coisa que atrapalha a minha vida...?". Como funciona, baseado nessa pergunta, o grande dispositivo que diagnostica, intervém e avalia? Como isso funciona socialmente, faz girar a economia, a moral, a ciência, os laboratórios, os consultórios médicos?
Os diagnósticos clínicos se expandiram nas últimas décadas, bastando para constatá-lo um exame nas codificações do DSM e no faturamento da indústria de fármacos. Dunker amplia o universo de questões e temas para compreendermos esse dispositivo diagnóstico, entendendo-o como diagnóstica, que é reconstrução de uma forma de vida, de modo que não se trata mais apenas da nomeação técnica de um mal-estar e de sua consequente medicalização, mas de pensá-lo socialmente, a fim de "refazer os laços entre trabalho, linguagem e desejo, pensando a patologia – que se exprime no sintoma, no mal-estar e no sofrimento – como uma patologia do social" (p. 24). Isso implica uma grande travessia, por mais de 400 páginas, vertendo cruzamentos de estudos sobre a identidade, filosofia e psicanálise brasileiras, com seus respectivos impasses, até os meandros do pensamento ameríndio.
Por que tanto esforço de pensamento? Por que o sofrimento hoje tornou-se algo pragmaticamente parametrizável, reduzindo-se a uma geometria neoliberal de sintomas tabeláveis que se lê dentro de um regime de visibilidade social em que a figura do homem euforicamente construída é o eu de corpo bombado e inflado de sucesso a partir das insígnias lustrosas do selfy? Para desconstruir essa visão hegemônica, Dunker retira o piso desse terraço plácido e capitalizador, para reconstruir uma forma de encarar o sofrimento que precisa da psicanálise, da antropologia e da filosofia, entre outros campos, para se estabelecer e se fazer entender: "o sofrimento se partilha e é função direta dos atos de reconhecimento intersubjetivo" (p. 24). Nomear um sintoma implica narrativizar um evento dentro de uma história. Viver não é buscar as insígnias do capital do Eu peitoral, mas caminhar para o encontro contingente do acontecimento que rompe os confortos do já-sabido e inaugura processos de verdade.
Trata-se, portanto, de repensar os modos pelos quais as experiências brasileiras têm convertido mal-estar em sofrimento. Que papel tem a psicanálise nesse cenário de releitura mais ampla a fim de enfrentar o paradigma de consumo do Eu S/A inflado do sucesso e em busca do seu capital identitário? Como o capitalismo à brasileira adaptou a racionalidade diagnóstica para esses novos tempos do EU inflado dos condomínios? Condomínio é palavra-chave para Dunker, não se restringindo aos Alphavilles de muros altos, mas valendo para tematizar os funcionamentos dos dispositivos sistêmicos-totêmicos em que domina a gestão e não a política. Gestão é operação de sistemas peritos síndicos-cínicos, com tarefas lideradas por analistas simbólicos e suas redes técnicas em que os espaços são separados por barreiras de acesso e vigiados por olhos eletrônicos, e em que os desgarrados são medicalizados ou aprisionados.
Feitas as contas, o empreendimento de Dunker é repolitizar nossas formas síndicas condominiais de encarcerar os sintomas, para refazer as formas de vida. Essa leitura a contrapelo implica encarar o sintoma como um desejo de que a vida mude, mas que carece de expressão política. Dar voz ao sintoma, fazer o mal-estar dizer qual experiência perdida ele expressa, trocar os síndicos pelos sujeitos acontecimentais, tais são os horizontes que se depreendem da via traçada por nosso autor. Dunker varre, assim, a história da modernidade brasileira, que cruzou com os caminhos da psicanálise em nossas terras, para depois fazer proposta de desligar as chaves totêmicas psis que comandam essas teorias, abrindo a escuta para o perspectivismo ameríndio:
Se o psicanalista freudiano se aproxima do xamã sacrificial, na antiga acepção de Lévi-Strauss, o psicanalista lacaniano, no sentido do discurso do psicanalista, se aproxima do xamã transversal descrito por Viveiros de Castro. O xamã é uma espécie de comutador, um guerreiro diplomata que procura estabelecer conciliações e paridades entre universos não comensuráveis. Ele não é o tradutor que tenta fazer duas populações estrangeiras situarem um ponto comum de mútua relação, mas alguém que busca resolver problemas práticos entre populações incomunicáveis. [...] O xamã encarna, relaciona, relata e mimetiza os diferentes pontos de vista (p. 386).
Dunker desliga, em consequência, o funcionamento da psicanálise liberal, que aposta suas fichas nas experiências produtivas de determinação, esquecendo, em consequência, da produtiva experiência de não identidade, o que conecta seu pensamento ao de Safatle, que opera com Lacan e Adorno. Por isso, a psicanálise é aqui aposta e sintoma:
Este é um livro sobre a visibilidade dessa articulação em dois contextos muito específicos: os condomínios de nossa mais alta modernidade e o encontro na mata entre os remanescentes ameríndios do alto Xingu. Entre eles, a psicanálise é, ao mesmo tempo, cura e sintoma, realização bem acabada e implante postiço (p. 398).
Aposta difícil, contingente e necessária.
Endereço para correspondência
E-mail: aidarprado@gmail.com
* Professor no Programa de Pós-graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP, pesquisador do CNPq e editor da revista Galáxia. É organizador da hipermídia Regime de Visibilidade em Revistas e autor dos livros Habermas com Lacan (São Paulo: EDUC, 2014) e Convocações biopolíticas dos dispositivos midiáticos (São Paulo: EDUC/Fapesp, 2013).