Stylus (Rio de Janeiro)
ISSN 1676-157X
ENSAIOS
A arte da e(s)quivocação ou a arte de se esquivar pelo equívoco1
The art of "e(s)quivocation" or the art of slipping out through equivocality
Julia A. Minaudo*
Universidade de Buenos Aires
Membro do Foro Analítico de Rio da Prata
Escola da Internacional dos Foros do Campo Lacaniano
Hospital das Clínicas de Buenos Aires
Instituto de Neurociências de Buenos Aires
RESUMO
Propõe-se jogar com a palavra equivocação, agregando-lhe um "s" e transformando-a em e(s)quivocação, para trabalhar a relação entre o som e sua semelhança com o sentido e de como aquilo que é equivocado permite a abertura de uma cisão a que chamaremos de diplomática. São pontuados os alcances que esta divisão tem no sujeito e no laço social, tomando-se vários exemplos, um caso clínico, o caso Joyce, e o próprio Lacan no Seminário 23. São propostos alguns questionamentos: Como são os laços que sustentam o artista e o espectador, o louco e o Outro? O que os provoca? Como se articulam, simultaneamente, o próprio do nome e o laço?
Palavras-chave: Nome próprio, Laço, Diplomacia.
ABSTRACT
We propose to play with the word equivocation adding to it an "s" thus changing it to e(s)quivocation (a slip that can be sorted out or avoided), so that we can work on the relationship between the sound and its sameness with meaning, and how something that is taken as mistaken allows the opening of a division we would consider as diplomatic. The effects that this division causes in the subject and in the social bond are stressed out, taking several examples like a clinical case, the Joyce case, and Lacan himself in Seminar 23. A few questions then are posed: How are the bonds that sustain the artist and the spectator, the insane and the Other? What makes such bonds to happen? How are the proper of the name and the bond simultaneously articulated?
Keywords: Proper name, Bond, Diplomacy.
A arte da e(s)quivocação
Este trabalho está inspirado na experiência clínica, assim como em vários aspectos a que me vejo convocada.
Em um primeiro momento, este jogo que proponho com a palavra equivocação, agregando-lhe um "s" e transformando-a em e(s)quivocação, pode soar-lhes de muitas maneiras, não necessariamente igual para mim ou para outros. Sobre isso quero falar hoje, do som e sua semelhança com o sentido e de como aquilo que é equivocado permite a abertura de uma cisão a que chamarei diplomática.
Vou pontuar os alcances dessa divisão no sujeito e no laço social.
A esquivocação é uma arte que opera desde e sobre o sujeito, possibilitando um lugar apropriado para ele e para os demais; o sujeito é reconhecido. Como é o laço que sustenta o artista e o espectador, o louco e o Outro? É um laço provocado graças às diferenças.
Existem sons com sentidos cristalizados, que tomam sempre caminhos desgastados. São vias canônicas que podem ser úteis para distrair o outro e dar lugar a uma margem de liberdade aproveitável. A esquivocação, como a arte de desviar, graças ao jogo com a semelhança, abre uma oportunidade de o sujeito apostar mais além das estruturas, fazendo um uso diferente do sentido comum.
TOC, TOCC, não é a mesma coisa …
Carla estava governada por palavras impostas que a induziam ao ato: "você é horrível", "você é a pior", "não merece viver". Vozes ferozes que se combinavam com olhares acusadores e gozadores. Na intenção de explicar, diz: "é uma 'brocação'2 que não para". A escuta recorta esse significante "brocação", ao qual se atribuem essas vozes que então deixam de ser suas. Sessão após sessão, produzia-se uma nova invenção, que repetia a anterior; as "brocações" se iam multiplicando ou, por que não, analisando: "brocação" maior, menor, do noivo, transversal.
Carla expressa que sua família a pressiona todo o tempo. Em uma entrevista comigo, sua mãe relata: "Minha psicóloga me disse que Carla é como uma mesa à qual falta uma perna". E eu lhe respondo: "Não falta nada a Carla".
Ela passa da indignidade a estar indignada em uma posição de queixa, inédita: "Eles me põem doente". A mania silencia as vozes.
Restava-lhe solucionar uma preocupação que a inquietava: "Eu não posso ir dizendo que tinha uma 'brocação' na cabeça" (enquanto fala, dá pequenos golpes nas têmporas). Eu lhe pergunto: você escutou falar de TOC? "Sim, conheço uma obra de teatro com esse nome". Investigando-se, são identificadas, nos pensamentos invasivos, obsessões e compulsões.
Relata com humor ter encontrado o pai lendo sua folha com as características do TOC com cara de preocupação. Ela retruca: "Tenha cuidado, olhe que é capaz de você estar pior!"
A única coisa que a atormentava era ter lido que não era curável, e lhe digo que nem Freud nem eu e muitos colegas pensamos dessa forma.
Carla reconhece algo próprio na permanência do "T" nas palavras TransTorno e "Taladro" ("brocação"). A partir daí, para os outros, ela havia tido TOC, embora soubéssemos que, na realidade, seu nome a-propriado era TOCC, dois "Cs" ("Taladro" Obsessivo Compulsivo Curável). O último "C" remete a certa escritura de seu ser, é áfona, inaudível para os outros.
De que lado recai o equívoco, de que lado está a iniciativa, neste diagnóstico equivocado, sendo, por sua vez, um nome a-propriado? Chamo de esquivocação esse modo de dizer que consegue fazer coexistirem essas cenas, essas ressonâncias, mas não quaisquer tipos de ressonâncias, mas aquelas nas quais se joga o ser do sujeito.
O laço, o nome próprio diplomático
Como diz Colette Soler, em seu livro Lacan, o inconsciente reinventado:
O fazer-se um nome que parece deixar toda a carga do nome para o sujeito […] não deve esconder que não há autonominação, dignificando que um nome próprio […] é sempre solidário a um laço social. Em todos os casos faz falta […] para a nominação […] a aposta no sujeito (SOLER, 2013, p. 114).
Como um chiste, TOCC tem um valor de reconhecimento igual, necessita do outro para existir. Um reconhecimento que não aliena, que não se baseia na autorização: "o chiste não cria compromissos como o sonho […]" (FREUD, 1905/1992, p. 165), mas utiliza o jogo de palavras, fazendo com que dois sentidos possam "parecer ao mesmo tempo admissíveis" (Ibid.). A bilateralidade e a duplicidade são características exclusivas do chiste. Permitem convocar (chamar, citar, conviver) duas ou mais vozes.
Há chistes que trabalham com o jogo das palavras e da homofonia […] estão os que jogam com os nomes próprios (Ibid., p. 86).
Pode-se aproveitar a homofonia para jogar com os nomes próprios. Freud fala desse grande disfarce que é o lugar-comum, permitindo a expressão do extraordinário do sujeito.
A pista Joyce
Este é o nome da aula de 10 de fevereiro de 1976, em que Lacan encontra um caminho inédito com Joyce. Sua solução é dupla, torna admissíveis ao mesmo tempo seu desejo de ser artista e o efeito de entreter a comunidade literária mundial que continua tentando decifrar.
Isso compensou exatamente seu pai que se descuidou de quase tudo, "salvo se apoiar nos… padres jesuítas, a igreja diplomática" (LACAN, 1975-76/2007, p. 86). Lacan ressalta a importância da palavra diplomacia em Joyce, tomada dos textos "Stephen Hero" e "O retrato do artista". O que é ser diplomata? Do grego di, que significa "duplo ou dois" e ploss, "vezes". Um diplomata é o ser que tem a faculdade de saber lidar com dois governos diversos. Dentro desses atos diplomáticos, podemos situar:
• Holbein, em seu quadro "Os embaixadores", pintando belamente todos
os objetos e avanços da ciência da época, mas também fazendo
passar disfarçada, em primeiro plano, uma caveira que, à primeira
vista, não vemos, símbolo da mesmíssima existência da morte.
• O mago que convoca o olhar para uma mão, para fazer magia com
a outra, provocando esse efeito sedutor.
• Carla nomeando-se como TOCC e que o outro escute TOC.
• E Lacan quando, no final dessa aula, seguindo a pista Joyce, faz algo
similar com seu próprio nome "Jacques Lacan".
Lacan e Joyce, dois nhome[n]s comuns
Lacan resgata a insondável decisão do ser. Joyce não dá seu consentimento ao pai, mas quis que se prestasse homenagem a seu nome. Qual é esse nome? Pelo menos, temos dois:
É claro que foi uma invenção haver dois nomes que sejam próprios ao sujeito, difundida no curso da história. Que Joyce também se chamasse James apenas se sucede ao uso do cognome – James Joyce, designado pelo cognome Dedalus […]. O fato de que possamos colocar assim um monte de nomes implica apenas o seguinte – fazer entrar o nome próprio no âmbito do nome comum (LACAN, 1975-76/2007, p. 86).
Sthepen Dedalus é o alter ego em vários romances de Joyce. Evoca o arquiteto, maravilhoso artesão, capaz de fabricar suas próprias asas e as de seu filho Ícaro para escapar de Creta. Seu filho des-ouviu o pai: "Não subas demasiado alto, para que o sol não derreta a cera de tuas asas, nem voes demasiado baixo para que o mar não molhe tuas penas" (GRAVES, 2004, p. 104). Ícaro se dirige diretamente ao sol, enquanto Dédalo consegue sua liberdade graças à prudência.
Joyce foi um diplomata que soube manter seu voo justamente entre o sol e o mar. Joyce é, por sua vez, Dédalo. Lacan não se conforma com o louco e opera sobre seu próprio nome, continua:
[…] Pois bem, escutem […] vocês já nem mais funcionam como claque [en avoir sa claque], e mesmo seu jaclaque, uma vez que lhe acrescentarei um han como uma espécie de suspiro de alívio que experimento por ter percorrido hoje esse caminho (LACAN, 1975-76/2007, p. 87).
O jogo de palavras culmina com jaclaque han (que produz homofonia com Jacques Lacan). "Reduzo, assim, meu nome próprio ao nome mais comum" (Ibid.). Faz passar seu desejo, seu ensino, que deixou uma marca registrada, a de ser um homem renom[e]ado no som homofônico do mais comum. O renomear possibilita uma dupla volta, às vezes sem diploma paterno, mas com diplomacia, fazer-se um nome, "não digamos que o louco é alguém que vive sem o reconhecimento do outro […]" (LACAN, 1955-56/1985, p. 94).
Não logra gerar qualquer laço na cura, não é senão um detalhe fundamental: que esses laços estejam respaldados no respeito a seu juízo mais íntimo.
Não podemos chamar justamente análise, ou arte da esquivocação, a essa relação particular com a palavra, que tem Joyce, Lacan ou o caso TOCC? Destroçá-la, descompô-la, fazer uma reflexão sobre a escritura, jogar com seu próprio nome, que nada mais é que a dimensão ética de cada sujeito, a liberdade do ato de seu dizer-desejar. Atrevo-me a dizer que poderia fazer algo semelhante com meu próprio nome.
Referências
FREUD, S. (1905). El chiste y su relación con lo Inconsciente. Buenos Aires: Ed. Amorrortu, 1992. Tomo VII. [ Links ]
GRAVES, R. Los mitos griegos. Buenos Aires: Ed. Ariel, 2007. [ Links ]
LACAN, J. (1955-56). O seminário, livro 3: As psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. [ Links ]
__________. (1975-76). O seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. [ Links ]
SOLER, C. Lacan, lo inconsciente reinventado. Buenos Aires: Ed. Amorrortu, 2013. [ Links ]
Endereço para correspondência
E-mail: minaudoj@gmail.com
Recebido: 10/02/2016
Aprovado: 01/04/2016
Tradução: Solange Mendes da Fonsêca: Licenciada em Letras Neolatinas pela Universidade Federal da Bahia. Professora aposentada da Universidade Federal da Bahia (espanhol) e da Secretaria de Educação do Estado da Bahia (português, espanhol e francês). Revisora e tradutora de textos acadêmicos, artigos, ensaios, coletâneas, livros técnicos e literários. E-mail: solange_sossoh@yahoo.com.br
Revisão da tradução: Ida Freitas
* Formada em psicologia pela Universidade de Buenos Aires, trabalha atualmente como psicanalista, é professora e pesquisadora na UBA nas disciplinas de Psicologia e Clínica de Adultos. Membro do FARP (Foro Analítico de Rio da Prata) e da EPFCL (Escola da Internacional dos Foros do Campo Lacaniano). Trabalha na equipe de Interconsulta do Hospital das Clínicas de Buenos Aires. É integrante da equipe de Internação e coordena grupos terapêuticos no INEBA (Instituto de Neurociências de Buenos Aires). Publicou diversos artigos sobre psicanálise, apresentados em diferentes contextos.
1 Trabalho apresentado em La Otra Escena: la voz y la mirada en el arte y el psicoanálisis – Primeiro Simpósio Interamericano da Internacional dos Fóruns do Campo Lacaniano", realizado nos dias 28, 29 e 30 de agosto de 2015, em Buenos Aires