Stylus (Rio de Janeiro)
ISSN 1676-157X
RESENHAS
Vers l'identité
Vers l'identité, from Colette Soler
Pedro Ambra*
École Doctorale d'Études Psychanalytiques da Université Paris Diderot
Departamento de Psicologia Social do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
Editor da Lacuna: uma revista de psicanálise
Se em 1984 assistimos se desenrolar na França discussões, congressos e publicações em psicanálise referentes à noção de identificação,1 trinta anos mais tarde é a identidade que parece estar na ordem do dia.2 Nesse sentido, Vers l'identité3 é a primeira publicação psicanalítica de maior fôlego a abordar o tema em tal contexto, já ciente de que se trata de uma noção cara aos debates contemporâneos em ciências humanas. Assim, à dissimetria do tratamento dado pelos psicanalistas ao tema da identidade em relação àquele da identificação, Soler oferece uma resposta original: não só coloca a identidade como centro da preocupação de Lacan durante todo o seu ensino como igualmente redescreve todas as séries de identificações simbólicas como respostas a uma falta de identidade do sujeito.4
Não sucumbindo ao caminho fácil de uma crítica em bloco dos efeitos subjetivos do capitalismo, Soler insiste que um dos paradoxos da contemporaneidade se refere justamente ao acirramento das identidades e à lógica segregatória que viria a suprir as falhas do laço social (p. 22). Em face de tal quadro, a autora critica posições saudosistas, que exaltam o passado como um tempo em que os sujeitos não eram "dessubjetivados" e parece sublinhar que a postura ética do analista passa por uma aposta de que os sujeitos estejam não todos aparelhados pelo capitalismo (p. 25).
Assim, a clínica mostra que é o inconsciente que colocará a identidade em questão por meio de suas diversas formações e, portanto, a função da análise passa a ser a denúncia das séries de fracassos das identificações. Por meio de uma releitura da construção do grafo do desejo, demonstra-se uma primazia do desejo e da fantasia diante das identificações. Mais ainda: ao retomar o texto Subversão do sujeito e dialética do desejo, Soler sublinha o fato de que o desejo antecede a lei e não o contrário. Tal discussão, aliada à constatação de que as notações referentes ao falo não figuram no grafo do desejo, leva a autora a uma tese original: toda a construção e sustentação teórica do falo em Lacan não passam pelo pai. O falo é assim apresentado como aquele significante que exerce uma "função copulatória" entre o sujeito e Outro, e a identificação ao falo seria, portanto, uma identificação ao que falta ao Outro.
A autora apresenta ainda o que chamará de "equívoco do falo": como pode esse significante ao mesmo tempo significar o poder e a falta da castração? Ao desdobrar tal questão, Soler sublinha a rápida aproximação feita entre pai e homem no contexto da assunção do sexo e lembra que para a psicanálise o que é de fato mais estruturante é o lugar dado ao pai não como genitor, mas como pai morto, significante puro. Abre-se assim a questão: como se dá a sexuação?5
A solução desse impasse viria apenas com a formulação "não há relação sexual". Neste quadro, o que está em jogo são, antes, posições perante a castração – os conhecidos lados todo e não todo das fórmulas – e não identificações ou semblantes. Soler retoma a expressão "ares do sexo", utilizada por Lacan justamente para designar o que há de ideal nas identificações sexuais, que apesar de terem uma função no amor, falhariam na "hora da verdade", momento do real do sexo no qual as identificações atestariam a inexistência da relação sexual. A autora dá ainda um passo à frente ao sublinhar o caráter contingente das fórmulas que indicam "simplesmente como o casal heterossexual se estrutura quando ele ocorre" (p. 119) sem que, no entanto, sejam uma norma, mas "somente uma possibilidade" (Ibid.).
É nessa esteira que a autora comenta a máxima da identificação ao sintoma,6 lembrando que no mesmo período Lacan apresenta o parceiro como sintoma, laço que estaria além do semblante incluindo também aí a dimensão do real. Logo, o que Freud teria demonstrado para a histeria – que o sintoma vem no lugar do sexo – a partir de Lacan teria um caráter estrutural: o sintoma é o efeito da inexistência da relação sexual. E nesse sentido a definição de sintoma dada por Soler é extremamente clínica "é assim que o sujeito percebe o que chamamos de seus sintomas, como algo que é nele, que o incomoda, mas que não é ele. A noção de identificação ao sintoma vem daí. Lacan não faz prescrição de fim de análise" (p. 129). Para a autora, o efeito terapêutico da análise vem, portanto, não de uma mudança no sintoma, mas no sujeito.
Referências
SOLER, C. Vers l'identité. Paris: Éditions du Champ Lacanien, 2015, 134p. [ Links ]
Endereço para correspondência
E-mail: pedro.ambra@gmail.com
* Psicanalista. Autor de O que é um homem? Psicanálise e história da masculinidade no Ocidente (Annablume, 2015) e organizador de Histeria e Gênero: o sexo como desencontro (nVersos, 2014), realiza atualmente doutorado na École Doctorale d'Études Psychanalytiques da Université Paris Diderot e no Departamento de Psicologia Social do Instituto de Psicologia da USP. É um dos editores da Lacuna: uma revista de psicanálise.
1 Para citar alguns, Les identifications: confrontation de la clinique et de la théorie de Freud à Lacan de Monique David-Ménard, Jean Florence, Julia Kristeva, Jean Oury, Jacques Schotte, Conrad Stein. Paris: Denoël (1984). No mesmo ano, temos a publicação de um volume sobre a identificação da Revue Française de Psychanalyse, n. 48.
2 Além da presente publicação, a jornada dos Colégios Clínicos do Campo Lacaniano de 2014 teve como tema, justamente, "Identité et identifications". O mesmo tema é trabalhado por Marie-Hélène Brousse em seu seminário em 2015 "Identity Politics avec Lacan". Para além do lacanismo, o número 30, de dezembro de 2013, das Lettres de la Société de Psychanalyse Freudienne foi dedicado ao tema da identidade.
3 Resultado do seminário de 2014-2015 do Collège Clinique de Paris, ainda sem tradução para o português. Seu título pode ser vertido como "Rumo à identidade".
4 Bem entendido, a autora diferencia uma consciência identitária – imaginária e alienante – da identidade de separação, mais ligada à singularidade e ao que, ao final do livro, definirá como o "Um borromeano".
5 Para a autora, Lacan teria, assim como Freud, se perdido nessa explicação que dá ao pai a função de conformidade e normatividade sexual, o que levaria a resultados nos quais, por exemplo, a homossexualidade seria necessariamente um desvio.
6 Cumpre notar que Soler não cita textualmente o sinthome por mais que a ele faça referência. Seu apelo clínico parece relativizar a necessidade de opô-lo radicalmente ao sintoma.