Psicologia Hospitalar
ISSN 2175-3547
ARTIGOS ORIGINAIS
Esterilização tubária e representação do feminino: aspectos anteriores à realização da cirurgia
Tubal sterilization and representation of feminine: aspects prior to surgery
Renata Carolo NepomucenoI,1; Gláucia Rosana Guerra BenuteI,2; Seizo MiyadahiraII,3; Mara Cristina Souza de LuciaI,4; Rossana Pulcinelli Vieira de FranciscoIII,5
IDivisão de Psicologia do Instituto Central do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
IIClínica Obstétrica do Instituto Central do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
IIIDepartamento de Obstetrícia e Ginecologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
RESUMO
As alterações no discurso sobre a sexualidade possibilitaram às mulheres escolher a maternidade ao invés de tê-la como papel obrigatório. Objetivo: identificar a representação do feminino, verificando as expectativas conscientes e inconscientes de alteração de vida após a cirurgia de laqueadura. Sujeitos: 20 gestantes e 16 homens. Instrumentos: entrevista semidirigida e teste Desenho-Estória com Tema. Observou-se que 20% das mulheres e 19% dos homens acreditavam existir uma mudança corporal; 30% das mulheres e 38% dos homens afirmaram que as mulheres que não podem ter filhos são marginalizadas pela sociedade. O teste projetivo revelou que a representação inconsciente do feminino está diretamente associada à reprodução.
Palavras-chave: Esterilização Tubária, Feminino, Gestação.
ABSTRACT
The changes in the speech about sexuality allowed women to choose maternity instead of having it as an obligation. Objective: identify the representation of the feminine, verifying the conscious and unconscious expectations of alterations of life after surgical tubal sterilization. Sample: 20 pregnant women and 16 men. One semi-conducted interview and a test of thematic story-drawings were carried out. The interviews showed that 20% of the women and 19% of the men believed that there would be a body change; 30% of the women and 38% of the men reported believing that women who cannot have kids are marginalized by society. The projective test revealed that, in most individuals, the unconscious representation of the feminine is directly associated with reproduction.
Keywords: Tubal Sterilization, Feminine, Gestation.
INTRODUÇÃO
Historicamente, o papel social das mulheres encontra-se associado à maternidade. Apesar das inúmeras mudanças ocorridas ao longo dos séculos e da participação cada vez maior das mulheres nas esferas econômica, política e social, é no papel de mãe que a mulher é social e culturalmente legitimada (Cavalcanti, 1994).
A sexualidade da mulher tem sido, tradicionalmente, reprimida em detrimento da virilidade masculina, socialmente estimulada e valorizada. A identidade feminina, durante muito tempo, esteve ligada à reprodução, enquanto o sexo somente era admitido se atrelado ao papel reprodutivo. Assim, a imagem da mulher foi constituída como a figura submissa, que tem a família como seu espaço central e que é responsável pela reprodução social, incorporando essas características descritas na definição de sua identidade (Cavalcanti, 1994).
As transformações sociais ocorridas no século passado, principalmente nos períodos das grandes guerras, levaram as mulheres a experimentarem-se em papéis antes não admitidos. Por necessidade, as barreiras ao trabalho feminino foram eliminadas. Os homens, lutando pela pátria, abriram espaço para que as mulheres experimentassem novas oportunidades, responsabilidades e liberdade, cumprindo outros papéis que não exclusivamente o de mãe e responsáveis sociais por procriar e educar (Osis, 2001). As mulheres continuaram com este papel, mas uma vez tendo vivenciado outras funções, lutaram para que as conquistas realizadas no período das guerras permanecessem, aumentando sua participação na sociedade (Osis, 2001; Kato, 2002).
Essas mudanças pelas quais as mulheres foram passando implicaram adaptações contínuas entre seus anseios pessoais e o modelo adequado, desejado e aceito socialmente. No entanto, a evolução e o crescimento de cada indivíduo não se faz apenas em termos da necessidade do ambiente, mas também, e talvez principalmente, a partir da necessidade interna de expressão do seu potencial. Isto significa que se o papel socialmente estimulado e aceito numa determinada época e cultura estiver em ressonância com a necessidade interna de expressão da mulher, ela recebe aprovação e apoio de sua comunidade. Porém, uma mudança neste ideal pode gerar desadaptação e um conflito interno, com sentimentos de rejeição e exclusão social, caso sua dinâmica interna não encontre aprovação para se expressar externamente. Segundo Bolen (1998), a mulher sofre influência de duas fontes: interiormente, dos arquétipos e, exteriormente, dos estereótipos culturais, que são os papéis que a sociedade estabelece para as mulheres.
Alguns autores apresentam uma classificação tipológica do feminino baseada em traços instintivos fundamentais e nas respostas destes sobre os traços modelados pelo meio ambiente e pala cultura. Mas essas formas apenas descrevem a orientação geral e habitual, não o todo da personalidade; pois, apesar de serem a fonte e a força principais da identidade das mulheres, não significa que elas não tenham outras capacidades (Bolen, 1998).
Uma das formas de expressão do feminino é o tipo mãe. Este tipo é somente um dos muitos arquétipos que podem tornar-se ativados na mulher, pois em cada mulher particular alguns desses padrões são ativados e desenvolvidos, outros não. "O papel da mãe é uma manifestação da feminilidade numa forma perfeitamente válida, essencial e vital; é uma forma coletiva que tem seu lugar, mas que não é absolutamente o único canal de expressão e realização do feminino" (Whitmont, 2000).
Acontece que o tipo mãe tem sido a definição de feminilidade na cultura Ocidental. Disto advém logicamente a interferência de que, para a mulher, a identidade feminina genuína está baseada na identificação de sua totalidade com os instintos maternais. O que se vê, a partir da segunda metade do século XX, é uma alteração do discurso sobre a sexualidade em virtude das mudanças na situação de vida da mulher, principalmente pelo crescimento de sua participação no mercado de trabalho, pela redistribuição de responsabilidades do casal, pelo desenvolvimento da contracepção e dos programas de planejamento familiar. Abre-se espaço para a mulher optar pela maternidade, não mais como um papel obrigatório a ser desempenhado, mas como uma escolha (entre muitas outras maneiras de estar no mundo), embora a sociedade ainda exija dela esse papel. Iniciam-se também a partir dessa época o aperfeiçoamento e comercialização de meios contraceptivos para o controle da natalidade. Ser mãe tornou-se uma opção, e o uso desses métodos passou a prevenir as mulheres de uma gravidez indesejada (Osis, 2001; Kato, 2002).
Em meados dos anos 70 observou-se um declínio dos índices de natalidade e fecundidade nos países do Ocidente, mas segundo Martine (apud Osis, 2001), as condições usualmente relacionadas à queda da fecundidade não estavam presentes na sociedade brasileira no decurso desse processo de diminuição. O Brasil nunca teve programa oficial e geral, público ou privado, de planejamento familiar; nem adotou esforços de controle populacional; não houve mudanças bruscas no país e tampouco essa queda se deve a um crescimento econômico.
Apesar de não ter havido ações como estas, isso não significou a inexistência de discussões e atuações concretas visando à redução da taxa de fecundidade. Ao contrário, desde o final dos anos 60, apesar da inoperância oficial do estado brasileiro nesta área, desenvolveu-se no país um intenso debate acerca da necessidade ou não de uma política demográfica e de medidas para controle da natalidade (Fonseca Sobrinho, 1993; Rocha, 1992; Alvarenga & Schor, 1998).
A partir de um projeto que procurava dar conta das lacunas existentes, entrou em vigor a Lei sobre Planejamento Familiar (lei nº 9.263/96), que estabelece com clareza o dever do Estado de oferecer e o direito dos cidadãos a terem acesso aos meios de regularização da fecundidade (Osis, 2001). Porém, sabe-se que esta não é a realidade vivenciada pelas mulheres brasileiras (Costa, 2003; Petta et al., 2000; Osis, 2001). Uma avaliação realizada em diversas áreas do território nacional em 1994 pela World Health Organization (apud Osis, 2001) ressaltou que a disponibilidade e o acesso das mulheres aos diferentes métodos anticoncepcionais eram bastante reduzidos, apesar de existir uma grande demanda. Possivelmente daí decorre a preocupação e polêmica provocada pela alta prevalência da esterilização tubária no Brasil.
Em estudos sobre a laqueadura no Brasil, depara-se com um contínuo aumento desse método contraceptivo. Pesquisas (Vilela & Barbosa, 1996; Fernandes et al., 2002) informam que a laqueadura é o método contraceptivo mais utilizado em todo o Brasil. Dados da Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde (PNDS) mostram que 40% das mulheres com união estável em idade reprodutiva (entre 15 e 49 anos) estão laqueadas (BEMFAM/MACRO, 1997). Costa (2003) aponta que a prática da esterilização tem assumido aspectos de maior precocidade, acontecendo em níveis bastante elevados nas faixas etárias jovens. A decisão em idades inferiores a 25 anos, a pouca informação sobre o procedimento e o menor número de anticoncepcionais conhecidos são os fatores mais preocupantes, pois se relacionam ao arrependimento (Eichenberg et al., 2002). Além desses, a perda de um filho e a troca de parceiro são outros fatores que levam as mulheres ao arrependimento, mas que não são fatores detectáveis no momento da escolha pela esterilização tubária (Ades, 1997; Fernandes, et al., 2002).
Neste trabalho, parte-se da hipótese de que existem dois aspectos envolvidos na escolha pela esterilização tubária: consciente e inconsciente. Entende-se como consciente tudo aquilo que é conhecido, aquilo a que se tem acesso. Os aspectos conscientes neste trabalho estão relacionados às respostas imediatas dadas às questões formuladas a partir da opção pela laqueadura. Para Fernandes et al. (2002), a escolha pela esterilização tubária se dá a partir do desejo consciente de não ter mais filhos e está relacionado a alguns fatores tais como a dificuldade no uso da pílula; rejeição ao DIU; inadequação com outros métodos; satisfação com a prole por ter atingido o número desejado de filhos e situação econômica. Os aspectos inconscientes referem-se àquilo que é exterior ao âmbito da consciência, desconhecido, inacessível, mas que podem manifestar-se em imagens tais como desenhos. E apesar de não serem conteúdos explícitos, revelam aspectos do sujeito. Neste trabalho procura-se acessar, através da técnica projetiva do Desenho-Estória com Tema, os conteúdos inconscientes.
Nesta perspectiva, o aumento do índice de esterilização tubária suscita questões sobre que representações as mulheres estão tendo acerca de seu papel reprodutivo e de sua sexualidade, que lhes permitem legitimar ou não a opção pela esterilização. Torna-se, desse modo, relevante conhecer e compreender os determinantes da escolha pela esterilização tubária como método contraceptivo e a percepção consciente e inconsciente das mulheres e seus parceiros relacionadas a esse procedimento, tendo em mente que a laqueadura representa o encerramento da capacidade reprodutiva feminina e que esta capacidade é apontada, com frequência, como definidora do papel social da mulher. Com isso busca-se subsidiar a atuação do profissional de saúde junto à gestante e seu grupo familiar.
OBJETIVOS
Objetivo Geral: Identificar aspectos conscientes e inconscientes envolvidos na realização da esterilização tubária. 2. Objetivo Específico: Verificar, por meio da técnica projetiva, a representação simbólica do feminino; investigar expectativas conscientes de alteração na vida depois da cirurgia de esterilização tubária; comparar os aspectos inconscientes - identificados por meio da técnica projetiva, com os conscientes – colhidos por meio das entrevistas.
MÉTODO
Trata-se de estudo prospectivo, transversal realizado com amostra por conveniência.
Participantes
Este trabalho foi desenvolvido na Divisão de Clínica Obstétrica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP. Foram convidados a participar desse estudo 20 casais ou mulheres solteiras, que compareceram ao Ambulatório da Divisão de Clínica Obstétrica, para participar do Grupo de Orientação de Planejamento Familiar, interessados em realizar a esterilização tubária. Os critérios de exclusão para a amostra foram óbito fetal e malformação fetal nesta gestação.
Instrumentos e Procedimentos
Foi realizada uma entrevista semidirigida com protocolo previamente elaborado com o intuito de identificar o conhecimento do casal ou mulher acerca da esterilização tubária. A entrevista semidirigida permite certa liberdade para que o sujeito exponha suas questões (Ocampo, 1994). O pesquisador pode interromper para fazer perguntas que esclareçam lacunas e que orientem o assunto para uma ou outra direção. Foi também utilizada a Técnica Projetiva do Desenho–Estória com Tema para identificar os aspectos simbólicos relacionados à esterilização tubária. Esta técnica consiste em solicitar ao sujeito que realize um desenho sobre uma temática previamente determinada pelo aplicador. Após o seu término, o sujeito conta uma estória sobre o que desenhou, podendo ser feito um "inquérito" sobre sua produção, ou seja, questionamentos dirigidos pelo examinador. Ao aceitarem fazer parte do estudo os sujeitos assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido. Foi então realizada uma entrevista semidirigida que visou introduzir o assunto da esterilização tubária e identificar o conhecimento do casal acerca da cirurgia. Em seguida, foram oferecidos folha sulfite e lápis preto, e solicitado que a mulher ou o casal realizasse dois desenhos, o primeiro, de uma mulher, e o segundo, de uma mulher que fez a laqueadura. O tempo despendido para a realização do protocolo foi, em média, de vinte minutos.
Análise de dados
A entrevista semidirigida foi analisada por meio da técnica de Análise de Conteúdo. Trata-se de uma avaliação qualitativa que também permite a análise quantitativa dos resultados, possibilitando interpretar a comunicação de forma objetiva, sistemática e quantitativa do conteúdo manifesto nas entrevistas. É um instrumento que visa descrever, interpretar e compreender os dados. Quanto ao Procedimento de Desenho-Estória com Tema, foi utilizado o método proposto por Trinca & Tardivo (2000) e Tardivo (1997) denominado "livre inspeção do material". A leitura foi conduzida pela atenção flutuante (Aiello-Vaisberg, 1997), considerando-se todos os dados que chamaram a atenção, tanto em termos formais como de conteúdo.
RESULTADOS
Inicialmente serão descritos os resultados relativos à caracterização dos sujeitos entrevistados. Em seguida serão apresentados os dados obtidos a partir da entrevista semidirigida e posteriormente do teste projetivo realizado.
A amostra foi composta por 16 homens e 20 gestantes, sendo que, destas, uma era solteira, uma era divorciada e duas compareceram ao ambulatório desacompanhadas do marido. Nesta população a faixa etária das mulheres variou entre 24 e 41 anos, sendo a média de 32,7 anos. Entre os homens a faixa etária variou entre 21 e 53 anos, com média de 30,3 anos de idade. Com relação ao estado civil, a média de tempo de relacionamento foi de seis anos. A renda média dos casais foi de R$ 899,00; a média de gestações e de semanas gestacionais entre as entrevistadas foi de 4,2 e 26,6 semanas respectivamente.
Dados da entrevista semidirigida
Os resultados serão apresentados em porcentagem por H para os homens e M para as mulheres, seguidos de exemplos acerca das categorias realizadas.
Quando questionados em relação à compreensão sobre o que é a laqueadura, observou-se as seguintes categorias: anticoncepcional (85%M; 25%H), com discursos do tipo: "é um método quando a pessoa não quer mais ter filho'; gestação arriscada (10%M; 13%H), com respostas relativas à crença sobre o risco que a mulher corre ao engravidar: "não posso ter mais, tive um tumor no intestino e estou com HIV"; concorda com o parceiro (13%H), assim denominada quando a resposta do homem concordava com a resposta da mulher, verbalizada como "é, o mesmo que ela". Referiram não saber o que é laqueadura 5% das mulheres e 13% dos homens, e 19% dos homens não respondeu à questão.
Quando indagados sobre quem escolheu fazer a cirurgia de laqueadura, encontrou-se que 50% das mulheres e 53% dos homens afirmaram que a escolha foi feita pelo casal. Segundo 45% das mulheres e 47% dos homens, a decisão foi tomada pela mulher; em 5% dos casos a mulher referiu que a decisão foi tomada pelo médico juntamente com o casal. Em nenhum dos casos a decisão foi tomada exclusivamente pelo marido.
Quando indagados sobre o motivo de se escolher a laqueadura ao invés de outros métodos contraceptivos, as respostas foram relativas à segurança (30%M; 13%H), representadas por: "porque é o método mais seguro"; inadaptação (50%M; 13%H), com respostas do tipo: "não posso tomar pílula e rejeitei o DIU três vezes"; gravidez de risco (10%M; 13%H), ressaltando os problemas de saúde apresentados nesta ou em futuras gestações, como no exemplo: "já tem pressão alta e com a gestação piorou; tem diabetes também"; questão financeira (5%M; 6%H), onde se afirma a dificuldade econômica em relação a outros métodos, tal como: "não temos dinheiro para outro método"; evasiva (5%M; 13%H), quando a resposta não correspondia exatamente à pergunta realizada, como no discurso: "já temos quatro filhos"; e concorda com o parceiro (25%H), representada pela resposta: "o mesmo que ela/e". Não responderam à pergunta 19% dos homens.
Quando questionados a respeito da existência ou não de diferença entre realizar a cirurgia de esterilização tubária e utilizar outros métodos contraceptivos, 100% dos sujeitos afirmaram acreditar que existe diferença. Ao serem indagados sobre qual era essa diferença, as categorias apresentadas foram: eficácia (70%M; 63%), com respostas do tipo: "a chance de engravidar com outros métodos é maior"; facilidade (20%M; 6%H), com respostas onde os sujeitos afirmaram que a laqueadura é o método mais simples, como: "o remédio esquece, a laqueadura é melhor"; inadaptação (19%H) contemplou respostas referentes a não adaptação com outros métodos, como em: "a laqueadura não tem efeito que os outros remédios têm, como dor de cabeça".
Quando questionados em relação à possibilidade de mudanças no corpo da mulher após a realização da laqueadura, 75%M e 75%H disseram não acreditar que poderiam ocorrer mudanças, e 5% das mulheres e 6% dos homens afirmaram não saber. Dos que responderam sim (20%M; 19%H), todos referiram aumento de peso, como neste exemplo: "falaram que engorda. Minhas irmãs engordaram."
Ao serem indagados sobre a possibilidade de ocorrerem mudanças no relacionamento sexual após a realização da cirurgia de laqueadura, 10% das mulheres e 19% dos homens afirmaram acreditar que poderia ocorrer alguma mudança, enquanto 80% das mulheres e 75% dos homens responderam de forma negativa; 5% das mulheres e 6% dos homens não souberam responder, e 5% das mulheres ficaram na dúvida.
Quando questionados em relação às crenças acerca das mudanças que poderiam ocorrer no relacionamento sexual após a realização da cirurgia de esterilização tubária, 5% das mulheres e 13% dos homens afirmaram acreditar que a mudança seria positiva, referindo despreocupação e aumento de desejo nas relações sexuais após a cirurgia de esterilização tubária, como em: "pode ter mais desejo porque não tem que se preocupar"; em 5% das mulheres e 6% dos homens houve a crença de que a mudança seria negativa, como na afirmação: "comentam que a mulher fica fria". A categoria não se aplica (90%M, 81%H) incluiu as respostas onde os sujeitos responderam "não" à questão anterior, tiveram dúvidas ou não souberam responder.
Quando questionados sobre as crenças em relação às mudanças que poderiam ocorrer no relacionamento conjugal após a realização da laqueadura, pôde-se verificar que a maioria dos sujeitos (80%M, 88%H) afirmaram não acreditar na possibilidade de mudança, enquanto 10% das mulheres e 12% dos homens acreditaram que poderia haver mudanças positivas, tais como: "vai ficar mais confiante e tranquila"; "pode esquentar... um pouco mais de pimenta na comida", e 10% das mulheres responderam o mesmo que o marido.
Ao serem indagados em relação a como acreditam que uma mulher que não pode ter filhos é vista pela sociedade, as categorias apresentadas foram: marginalização (38%M; 30%H), que diz respeito às respostas onde os sujeitos acreditaram haver humilhação e preconceito em relação à mulher que não pode ter filhos, como neste exemplo: "é humilhada. Falam que a mulher é seca, fazem piada, falam coisas que a mulher não gosta"; problema de saúde (20%M) incluiu respostas onde os sujeitos referiram que a mulher que não pode ter filhos é vista como doente; como neste exemplo: "pensam que tem algum problema de saúde"; aspecto positivo do filho (15%M) correspondeu a respostas onde os sujeitos apontaram a importância de um filho na constituição familiar, como em: "pelas pessoas não, por si própria, a mulher se sente triste e chateada. Toda pessoa que casa quer ter filhos."; indiferente (20%M; 31%H), assim denominada quando os sujeitos posicionaram-se indiferentes em relação à mulher que pode ou não ter filhos, por exemplo: "para mim é normal isso, tem gente que pode e gente que não pode"; "pessoa hoje tem mais opção, pode se dedicar ao trabalho. É comum, normal"; infelicidade (5%) contempla resposta onde os sujeitos afirmaram aspecto negativo de não poder ter filhos, por exemplo: "a mulher é infeliz"; 10%M e 22%H deram resposta evasiva.
Quando indagados sobre a existência de diferença entre não querer e não poder ter filhos, 100% dos homens e 95% das mulheres disseram acreditar existir diferença, enquanto que 5% das mulheres afirmaram semelhança. Em relação às justificativas relativas à compreensão sobre o não querer ter filhos foram criadas as seguintes categorias: opção (30%M, 25%H), que correspondeu às respostas onde os sujeitos afirmaram ser uma escolha da mulher ou do casal não querer ter filhos, como se pode ver em: "não querer é escolha, você evita"; julgamento (15%M) incluiu respostas onde os sujeitos desqualificam a mulher que não quer ter filhos, tal como: "a mulher que não quer ter filhos é aquela que não quer ter responsabilidade"; 20%M e 19%H responderam o mesmo que o parceiro e 35%M e 47% deram resposta evasiva.
Em relação às justificativas apresentadas sobre a crença de não poder ter filhos, as categorias apresentadas foram: aspecto negativo (15%M, 13%H) referiu-se à dificuldade e tristeza de não poder ter um filho, como em: "não poder é triste"; ausência de escolha (20%M, 38%H), representada pelo exemplo: "não poder a mulher quer e não pode, não tem opção"; problema de saúde e/ou econômico (15%M), com respostas tais como: "não pode porque a situação financeira não é boa". A categoria divino (5%M) pode ser exemplificada por: "não poder tem esperança, nada de Deus é impossível". A pergunta não foi respondida ou a resposta foi evasiva em 25% das mulheres e 32% dos homens. Concordaram com o parceiro 20%M e 19%H.
Quando indagados sobre a opinião em relação à mulher que realizou a cirurgia de laqueadura, uma vez que esta passa da condição de não querer para a de não poder ter filhos, as respostas foram relativas à: opção (40%M e 31%H), quando os sujeitos afirmaram que se a mulher está certa da decisão de realizar a cirurgia de esterilização tubária não vai enfrentar dificuldades posteriormente: "vou encarar na boa porque eu quero. Eu já tive filhos; é importante fazer a cirurgia agora"; explicação pessoal (35%M e 38%H), na qual os sujeitos apresentaram o número de filhos, a questão financeira e de saúde, a idade da mulher e o sofrimento que esta passou na gestação como explicação da segurança com que esta decisão de realizar a cirurgia foi tomada, como aparece, por exemplo, neste fragmento: "se não tivesse filho eu acharia ruim não poder, mas já temos três filhos"; indiferente (10%M), na qual os sujeitos apontaram indiferença quanto à alteração da condição de não querer para não poder ter filhos: "no meu caso não tenho nada contra"; concordaram com o parceiro 10%M e 19%H; e não responderam 5%M e13%H.
Teste projetivo
A análise do teste projetivo do Desenho-Estória com Tema foi dividida em categorias criadas a partir da similaridade das alterações produzidas quando comparado o primeiro desenho (de uma mulher) com o segundo desenho (uma mulher laqueada) de todos os sujeitos. Foram oito as categorias obtidas, a saber: sem alteração; mudanças esperadas; peso; filhos; feminilidade; comunicação; impactante e incomum.
A categoria sem alteração (5M; 3H) compreendeu os desenhos que não apresentaram alterações significativas na sua elaboração. Estão representados aqui pela figura 1.
Figura 1 - Teste projetivo do Desenho-Estória com Tema. Desenho de uma mulher e de uma mulher laqueada, respectivamente, representando a categoria sem alteração.
Na categoria mudanças esperadas (3M; 3H), não se observaram alterações significativas, apenas ressalta-se as modificações decorrentes da laqueadura, representadas por uma marca no corpo ou traços representativos da gestação, conforme figura 2.
Figura 2 - Teste projetivo do Desenho-Estória com Tema. Desenho de uma mulher laqueada e de uma mulher, respectivamente, representando a categoria mudanças esperadas.
Na categoria denominada peso (3M; 1H) foram incluídos os desenhos cuja marca da alteração estava no traçado da circunferência abdominal, conforme figura 3.
Figura 3 - Teste projetivo do Desenho-Estória com Tema. Desenho de uma mulher e uma mulher laqueada, respectivamente, representando a categoria peso.
A figura 4 representa a categoria filhos (4M) em que os desenhos apontaram diferença entre as mulheres pela quantidade de filhos ao seu redor.
Figura 4 - Teste projetivo do Desenho-Estória com Tema. Desenho de uma mulher e de uma mulher laqueada, respectivamente, representando a categoria filhos.
A categoria feminilidade (1M; 4H) diz respeito aos desenhos onde a mulher foi representada de forma mais feminina, com traços mais delicados na região do tronco, principalmente a cintura, conforme apresentado na figura 5. Notou-se que em apenas um desenho os aspectos aqui apontados de feminilidade foram delineados antes da cirurgia de laqueadura; enquanto todos os demais o ressaltaram após a laqueadura.
Figura 5 - Teste projetivo do Desenho-Estória com Tema. Desenho de uma mulher e de uma mulher laqueada, respectivamente, representando a categoria feminilidade.
A categoria comunicação (3M) compreendeu os desenhos onde a diferença mais marcante foi apresentada na representação da boca. Como se pode observar na figura 6:
Figura 6 - Teste projetivo do Desenho-Estória com Tema. Desenho de uma mulher e de uma mulher laqueada, respectivamente, representando a categoria comunicação.
A categoria impactante (1M; 3H) foi assim denominada devido à grande diferenciação entre a representação das mulheres, podendo-se observar que no segundo desenho o traçado foi mais marcante, pontuadas expressões fortes no rosto, com alguns aspectos grosseiros (Figura 7).
Figura 7 - Teste projetivo do Desenho-Estória com Tema. Desenho de uma mulher e de uma mulher laqueada, respectivamente, representando a categoria impactante.
A categoria incomum (1M; 1H) incluiu dois desenhos: em um deles, o sujeito desenhou, na primeira representação, um coelho, e outro, em que foi feito um jogador de futebol ao invés de uma mulher.
Figura 8 - Teste projetivo do Desenho-Estória com Tema. Desenho de uma mulher representando a categoria incomum.
DISCUSSÃO
O que se observa da população entrevistada é um alto número de gestações e a primeira gestação em idades precoces. Houve três pacientes entrevistadas com idade de 24, 25 e 26 anos, todas na 3ª gestação. De acordo com Fernandes et al. (2002), um dos motivos para que as mulheres jovens submetam-se à laqueadura é a dificuldade de terem acesso a métodos reversíveis, muitas vezes por falta de serviços de saúde regionais providos dessa atenção, o que leva essas mulheres a optarem por controlar sua fertilidade de forma definitiva.
As mulheres já estão começando e, paradoxalmente, terminando sua vida reprodutiva ainda muito jovens, já que estão abdicando da sua condição de fertilidade, através da esterilização cirúrgica, descartam a possibilidade de desejar outra vez ter filhos.
Com o aperfeiçoamento e maior comercialização de meios contraceptivos, prevenir uma gravidez passa a ser possível e desejável em muitos momentos. Porém, mesmo com a camisinha sendo cada vez mais utilizada, quando o assunto é contracepção, ainda é sobre a mulher que recai a responsabilidade do casal. Além disso, é no seu corpo que atuam a maioria dos métodos, cabendo-lhe, portanto, a tarefa de encontrar e utilizar medidas contraceptivas eficazes.
Segundo Osis (2001), a discussão acerca dos papéis de mulheres e homens nas decisões reprodutoras poderia produzir a falsa ideia de que as mulheres coordenam o processo reprodutivo e os homens tendem a acomodar-se a isto, uma vez que os métodos reversíveis disponíveis são quase todos para uso e controle feminino. Assim, as mulheres tenderiam a se responsabilizar pela gestação, se percebendo como autônomas e como detentoras do poder para decidir livremente acerca do método a ser utilizado e sua trajetória reprodutiva. Porém, a autora entende que assumir a responsabilidade por essas decisões não equivale a ser e perceber-se como autônoma, capaz de tomar decisões livres e informadas para controlar a fecundidade, isso decorreria, simplesmente, de uma falta de opção masculina para tal e da "cristalização" da perspectiva de que as decisões quanto ao uso de contraceptivos cabem, na prática, à mulher.
Nas falas dos entrevistados percebe-se que as decisões reprodutivas haviam sido, muitas vezes, impostas aos casais pelas circunstâncias, na maior parte de suas trajetórias de vida. As questões que se apresentam são doenças graves com risco de morte para a gestante ou para o bebê, questão financeira e número de filhos vivos. A partir disso é importante refletir sobre as condições em que as mulheres se submetem a este processo aparentemente voluntário. Entretanto, na prática, tais condições parecem determinantes, como um caminho obrigatório.
A tentativa de realizar a cirurgia para "solucionar um problema" acaba levando a uma escolha racional que não livra os sujeitos de seus conflitos e contradições. Como resultado dessa decisão podem advir repercussões física, psíquica e social na vida destas mulheres. Segundo Cavalcanti (1994), o uso de contracepção não deveria resultar em consequências drásticas e definitivas na vida da mulher, e sim permitir ao casal planejar quando deseja ter ou não filhos. Dessa maneira, contemplar-se-ia a perspectiva de mudança das condições de vida do casal, que pode estar convicto do desejo atual de não ter filhos, mas admite a possibilidade de mudar de ideia. Porém, a maioria das mulheres entrevistadas refere não se sentir bem com o uso de métodos contraceptivos reversíveis, como a pílula, pois estes provocam vários efeitos colaterais, exigem disciplina na sua utilização e implicam um gasto mensal. Este método de esterilização é procurado, principalmente, pela crença na sua maior eficácia em relação aos outros. Isso demonstra a falta de informação da população entrevistada a respeito de opções contraceptivas reversíveis de igual ou maior eficácia que a laqueadura, bem como o descompromisso do Estado em veicular políticas públicas que propiciem o acesso a esses métodos.
Apesar de muitas vezes não saber como é feita a cirurgia e suas consequências, as mulheres consideram a laqueadura o melhor e mais seguro método entre todos os recursos contraceptivos. Enquanto as demais opções contraceptivas, de uma maneira ou de outra, exigem alguma participação da mulher, a laqueadura é o método que prescinde de qualquer prática ou cuidado subsequente ao ato cirúrgico. Curiosamente, para os casais, este fato sobressai como uma vantagem, pois uma vez não participando efetivamente da contracepção, não se sentem culpados nem responsáveis em caso de falha.
A esterilização, na visão de alguns casais, afeta o corpo feminino de formas variadas e até paradoxais. Enquanto algumas engordam, outras permanecem da mesma forma, enquanto algumas 'esfriam’, outras 'esquentam’. Esta situação imprevisível contribui para cercar a laqueadura de mistérios, estimulando as fantasias a respeito desta questão. Vale reforçar aqui que o desconhecimento acerca do método e, ao mesmo tempo, a certeza de que ele é a melhor opção possível, revela que há um desejo explícito e outro oculto acerca desta decisão.
Alguns entrevistados apontam a crença em sintomas como a frigidez após a realização da cirurgia de laqueadura, o que pode estar relacionado ao fato de que a mulher esterilizada passa a se considerar menos mulher ou de alguma forma impedida dos prazeres sexuais em função da impossibilidade de engravidar. Este pensamento está relacionado à ideia de que historicamente a sexualidade feminina é vinculada à reprodução: isto é, para a mulher, o sexo se justificaria apenas como meio para a reprodução e não pelo prazer.
O processo que leva uma mulher a ligar as trompas deveria ser de fato uma opção e não uma escolha por falta de opção, como relatam os entrevistados sobre os problemas de saúde enfrentados nesta ou em uma futura gestação, e o custo de se ter um filho hoje.
Como já mencionado, nota-se um "pedido subliminar" de que os profissionais resolvam um problema, solucionem a vida do casal. Entregar a decisão sobre o seu corpo e saúde a esse profissional revela uma submissão das mulheres, mas ao remeter ao médico a responsabilidade da decisão pela cirurgia, atribui também a eles as suas decorrências e consequências conscientes e inconscientes.Parece, neste momento, que foram canalizados na questão contraceptiva todos os problemas relacionados à reprodução e que a solução está muito próxima, dependendo unicamente do profissional de saúde.
A insatisfação e o arrependimento com a cirurgia de esterilização tubária podem, muitas vezes, decorrer dos desejos inconscientes e da não resolução de todos os problemas, tal como esperado, muito mais do que da realização da cirurgia em si e suas consequências práticas.
A opção das mulheres aparece também na valorização e transformação da principal desvantagem da esterilização, seu caráter definitivo, em seu principal atributo. A alusão de liberdade e "magia" referida pelo casal faz da laqueadura uma ilusória solucionadora de todos os problemas da vida.
Para algumas mulheres, assumir a responsabilidade decisória é tão difícil que terminam por remeter ao outro ou às condições externas à responsabilidade pela sua decisão racional.
Cabe questionar se as mulheres que optam por fazer a laqueadura querem se submeter a esse processo porque não conseguiram uma forma eficaz de anticoncepção, ou se não conseguiram porque, na verdade, no seu íntimo, isto não era uma prioridade, parte relevante do seu projeto de vida. Isto porque não percebiam a necessidade de regular a fecundidade, uma vez que, para elas, o que era socialmente esperado e seu destino natural seria a maternidade.
O que foi observado através das falas dos entrevistados é que, para algumas delas, ser mãe não é suficiente para que a mulher se realize, mas é uma condição necessária para tal, primordial na vida das mulheres, essencial na construção da identidade feminina de cada uma. Essas observações confirmam os estudos que situam a mulher como indivíduo reconhecido socialmente principalmente através da maternidade.
Vaitsman (1997) afirma que o que se percebe é uma pluralidade de identidades de gênero assumidas pelas mulheres em nossa sociedade. Pelas próprias características do processo de transformação que as mulheres foram enfrentando na história, não se pode pensar que as mulheres possuam uma única identidade; não se pode falar que exista um único padrão vigente, mas uma multiplicidade de tipos de relações, que levam diferentes mulheres a assumirem diferentes identidades ou, mais ainda, fazem as mesmas mulheres redefinirem constantemente essa identidade, de acordo com as suas circunstâncias de vida.
Assim, para algumas outras entrevistadas, a maternidade pode se vista como uma possibilidade fortemente desejada como parte de seu potencial de realização, mas não como característica que defina a sua condição de mulher.
Os entrevistados citam o fato de hoje a mulher ter a opção de ter ou não um filho e que se isso, para algumas, pode ser sinônimo de desprezo ou juízo por parte da sociedade, para outros é uma escolha como qualquer outra que o casal ou a mulher pode fazer. A expectativa inconsciente em relação à cirurgia de laqueadura possibilitou a compreensão de que alguns casais vêem a laqueadura como solução mágica para todos os problemas de sua vida e outros optam pela cirurgia sem o desejo da resolução de todos os problemas, cientes do que a cirurgia se propõe.
A questão e as vivências de papéis femininos podem ser verificadas no teste projetivo solicitado. Foram identificados quatro grupos separados pelas interpretações feitas a partir dos desenhos dos sujeitos.
O primeiro engloba os desenhos feitos nas categorias sem alteração e mudanças esperadas. Esses desenhos foram representados de forma similar ou muito similar, ou acrescentaram, simplesmente, marcas decorrentes da cirurgia. Pode-se aferir que são mulheres que estariam conscientes de sua escolha e, num nível inconsciente, sua personalidade não ligada única e exclusivamente à maternidade. E homens para os quais a identidade da mulher não está diretamente relacionada à reprodução.
Em um segundo grupo, representado pelas categorias peso, filhos e feminilidade, há uma expectativa inconsciente de que existiria uma alteração significativa na autoimagem ou na personalidade imediatamente após a cirurgia de laqueadura. Tais transformações seriam decorrentes de uma mudança na essência feminina, reconhecida e reforçada culturalmente pela capacidade reprodutiva. Esta expectativa inconsciente poderia acarretar alterações significativas no relacionamento do casal, dificuldades do reconhecimento do eu, podendo gerar conflitos internos relacionados à autoimagem e à autoestima.
No terceiro grupo formado pelas categorias comunicação e impactante também se nota uma expectativa inconsciente de mudança da autoimagem ou da personalidade. O significado simbólico do papel feminino com importância da reprodução, nestas categorias, parece estar representado pela masculinização da mulher ou a "perda da voz" após a realização da cirurgia. Estas situações parecem indicar que os aspectos diretamente relacionados ao feminino estariam sendo alterados, "cortados" junto com a trompa. Deste modo, traços da personalidade podem ser alterados significativamente sem que haja uma compreensão consciente destas transformações. O relacionamento sexual também pode sofrer alterações na medida em que o olhar poderá ficar contaminado, ou seja, a mulher não se sentindo mais atraente e sensual e/ou o homem não a vendo mais como alguém tão feminina.
Em um quarto grupo estão os desenhos realizados na categoria incomum, na qual parece não haver possibilidade de representação do feminino.
Apesar desta variedade de representações e vivências, uma das dificuldades enfrentada pelas mulheres parece residir no fato de que, em geral, elas são tratadas como entidades únicas, não desfrutando do direito às diferenças obviamente existentes. Desta maneira, ter a maternidade como principal forma de expressão externa de um padrão interno pode ser extremamente significativo e realizador para algumas mulheres, mas com certeza não o será para todas, pois a maternidade é uma importante forma de expressão da feminilidade, mas não a única. Pode-se supor pelos desenhos que a condição de não ser mais reprodutora, ou seja, a impossibilidade de expressão do feminino através da maternidade causará dificuldades em algumas das mulheres, como uma apreciação de si prejudicada por sentimentos de inferioridade, quando comparadas a mulheres férteis, o que pode dificultar também seus relacionamentos com mulheres e homens em seu meio social.
A contradição encontrada entre os desenhos e as falas dos entrevistados mostra que a mulher busca aprovação social, ou seja, a mulher tenta corresponder àquilo que é socialmente esperado dela. Conforme mencionado na literatura, um dos papéis mais desejados, aprovados e estimulados na mulher é a maternidade. Sendo assim, embora a decisão consciente esteja sendo feita com segurança, outro material (desenhos) mostra que essa decisão não perpassa somente o nível consciente e que, juntamente com a decisão de usar um método definitivo seguro e eficaz, há outro pedido para o qual o profissional de saúde deve estar atento.
Esta pesquisa revelou a existência de um desejo ambíguo e complexo em relação à escolha pela laqueadura. Ressalta a importância do trabalho em equipe multiprofissional para lidar com estes casais que desejam realizar a cirurgia de esterilização tubária. A atuação psicológica deveria estar voltada para identificar junto ao paciente as identidades e papéis femininos atuantes no nível consciente e inconsciente. Podendo, deste modo, auxiliar, quando necessário, na ressignificação destes papéis.
Seriam indicados estudos decorridos após alguns meses da cirurgia de laqueadura para que se pudesse verificar a existência ou não de uma alteração nos aspectos relacionados ao feminino, às associações com as características da personalidade e relacionamentos.
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Endereço para correspondência
E-mail: renatacarolo@hotmail.com
1Psicóloga Aprimoranda da Divisão de Psicologia (2006) do Instituto Central do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo – FMUSP – Brasil.
2Psicóloga da Divisão de Psicologia do Instituto Central do Hospital das Clínicas – FMUSP – Brasil.
3Médico Responsável pelo Setor de Vitalidade e Membro da Comissão de Laqueadura da Clínica Obstétrica do Instituto Central do Hospital das Clínicas – FMUSP – Brasil.
4Diretora da Divisão de Psicologia do Instituto Central do Hospital das Clínicas – FMUSP – Brasil.
5Professora Livre-docente do Departamento de Obstetrícia e Ginecologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - FMUSP – Brasil.