Winnicott e-prints
ISSN 1679-432X
Artigos
A origem da moralidade em Freud e Winnicott
The origin of morality in Freud and Winnicott
João Paulo F. Barretta
Universidade Paulista
e-mail: pbarretta@hotmail.com
Resumo
O objetivo deste trabalho é explicitar as diferenças fundamentais entre as concepções psicanalíticas de Freud e Winnicott a respeito do tema da moralidade e sua origem psicológica. Contrapõe-se a concepção freudiana, desenvolvida com base na clínica de pacientes neuróticos adultos, apoiada em uma teoria do desenvolvimento psicossexual e que defende a tese central de que a moral (como lei interna que se contrapõe aos desejos eróticos infantis) surge em função do conflito edípico com o pai; à concepção winnicottiana, construídacom base na clínica de pacientes não-neuróticos (esquizoides, indivíduos com tendência antissocial, entre outros) adultos e infantis, apoiada em uma teoria do desenvolvimento emocional e que defende a tese central de que a moral (como preocupação) surge em função das relações instintuais (agressivas) iniciais do bebê com a mãe anteriores ao conflito edipiano.
Palavras–chave: moral, complexo de Édipo, superego, desenvolvimento emocional, preocupação.
Abstract
The objective of this workis to explainthe fundamental differences between the psychoanalytic conceptions of Freud and Winnicott on the subject of morality and its psychological origins. It opposes the Freudian conception, developed from the clinic with neurotic adult patients, based on a theory of psychosexual development and advocating the central thesis that moral (as an internal law that runs counter the infantile erotic desires) arises due to the oedipal conflict with the father; to the Winnicottian conception, developed from the clinic of non-neurotic patients (schizoids, individuals with antisocial tendency, among others) both with adults and children, based on a theory of emotional development and advocating the central thesis that moral (as concern) arises from the initial instinctual (aggressive) relations of the baby with his mother
Keywords: moral, oedipal complex, superego, emotional development, concern.
1. Introdução
Classicamente esse campo de investigação a respeito da noção de dever, da consciência moral e de seus fundamentos pertence à filosofia, mas recentemente, com o surgimento de inúmeras disciplinas científicas cada vez mais especializadas, esse campo, ainda que modificado com o objetivo de investigar a origem (e não o fundamento) passou a ser objeto da reflexão das ciências, entre elas da psicologia e da psicanálise. Nosso objetivo aqui será o de identificar como Freud e Winnicott concebem a origem da moralidade, ou melhor, quais as condições que permitem a um indivíduo humano se tornar um ser moral, isto é, submetido e julgado internamente por suas ações do ponto de vista de bom e mau. Faremos isso inicialmente com relação a Freud e, em seguida, com relação a Winnicott, para encerrarmos traçando algumas grandes linhas de diferenciação entre esses autores. Nosso objetivo final será o de tentar salientar a razão de ser dessas diferenças, que se deve a concepções distintas a respeito da natureza humana.
2. Origem e noção de moralidade em Freud
O primeiro ponto a salientar sobre a origem da moralidade segundo a teoria freudiana é que se trata de um tema pelo qual Freud se interessou desde cedo, conforme carta de Freud a Fliess de 1897, na qual ele informa que "um pressentimento me diz que muito em breve eu descobrirei a fonte da moralidade" (Masson, 1985, p. 252). E ao explicitar a noção de sagrado afirma:
Sagrado é algo baseado no fato de que os seres humanos, em prol da comunidade maior, sacrificaram uma porção de sua liberdade sexual e de sua liberdade de participar de perversões sexuais. O horror ao incesto [...] é baseado no fato de que, como um resultado da vida sexual comunal [...] os membros da família permanecem juntos permanentemente e se tornam incapazes de se aproximar de estranhos. Portanto, incesto é antissocial – a civilização consiste de uma renúncia progressiva a isso. (Masson, 1985, p. 252)
Essas ideias aparecerão posteriormente em seus textos publicados, como em seus Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), em que diz que há uma "relação inversa entre a cultura e o livre desenvolvimento da sexualidade" (Freud, 1905/1996, p. 229) e em Atos obsessivos e práticas religiosas (1907/1996), afirma que "a renúncia progressiva aos instintos constitucionais, [...] parece ser uma das bases do desenvolvimento da civilização humana. Uma parcela dessa repressão instintual é efetuada por suas religiões, ao exigirem do indivíduo que sacrifique à divindade seu prazer instintual" (Freud, 1907/1996, pp. 116-117).
O segundo ponto a ser destacado na concepção freudiana a respeito do tema aqui em questão é que a consciência moral e a culpa (a "má consciência") são fenômenos psicológicos, que estão no psiquismo de cada indivíduo e, portanto, possuem uma origem ontogenética, mas que surgiram, em última instância, ao longo do desenvolvimento da espécie humana e de sua organização social. Esse último ponto, a filogênese da consciência moral, foi objeto de uma construção freudiana que buscou retraçar os eventos históricos decisivos nesse processo de formação filogenética da consciência moral à luz de informações conhecidas quer pela investigação científica disponível (antropologia, biologia e arqueologia), quer pelas descobertas da própria psicanálise a respeito dos processos psíquicos inconscientes.
A genealogia freudiana da consciência moral consiste de três teses fundamentais. De Darwin Freud obteve "a hipótese de que os seres humanos originalmente viviam em pequenas hordas, cada uma das quais sob o governo despótico de um macho mais velho que se apropriava de todas as fêmeas e castigava ou se livrava dos machos mais novos, inclusive os filhos" (Freud, 1939/1996, p. 145). De Atkinson ele obteve "a ideia de que esse sistema patriarcal terminou por uma rebelião por parte dos filhos, que se reuniram em bando contra o pai, o derrotaram e o devoraram" (Freud, 1939/1996, p. 145). Por fim, baseado na teoria totêmica de R. Smith, Freud presumiu "que, subsequentemente, a horda paterna cedeu lugar ao clã fraterno totêmico. A fim de poder viver em paz uns com os outros, os irmãos vitoriosos renunciaram às mulheres por cuja causa, afinal de contas, haviam matado o pai, e instituíram a exogamia" (Freud, 1939/1996, p. 145).
A exogamia se baseia na proibição do incesto, que seria, segundo Freud, a mais antiga proibição e o fundamento da vida em sociedade (Freud, 1939/1996, p. 134). Ou seja, é a morte do pai primevo e uma espécie de contrato social (Freud, 1939/1996, p.96-97) entre os filhos que cria o tabu do incesto e o impedimento da rivalidade violenta entre os irmãos e, com isso, a ordem social e a moralidade.1
Esse evento hipotético teria ocorrido incontáveis vezes durante um longo período de tempo, de tal modo que se tornaram elementos invariáveis na história de cada indivíduo. A tese aqui é a de que a história individual, o desenvolvimento ontogenético, recapitula em certa medida a história da espécie, o desenvolvimento filogenético. O que teria se passado com a espécie humana como um todo também se passaria com cada indivíduo isoladamente (Freud, 1939/1996, p. 134).
O que conecta a história da espécie com a história do indivíduo, nesse caso, é o complexo de Édipo, evento universal no qual os filhos desejam um dos genitores e rivalizam com o outro, assim como os irmãos da horda primitiva rivalizaram com o pai pelas mães e irmãs. E, apesar de não haver na história individual propriamente o assassinato e o banquete do pai, há a fantasia de morte ou afastamento e a sua introjeção no ego. E como naquele caso, em que o resultado final foi a proibição do incesto e, portanto, uma renúncia instintual sob a pressão da autoridade, também nas histórias dos indivíduos o resultado final é a formação, por uma identificação de uma parte do ego com os pais, de um superego (uma autoridade interna) que pressiona e impele a uma renúncia instintual por meio da proibição do incesto primariamente (Freud, 1940/1996, p. 219). Conforme a conhecida tese de Freud de que o "Superego é um herdeiro do complexo de Édipo" (Freud, 1940/1996, p. 219).
Trata-se de uma concepção metapsicológica da consciência moral como uma instância psíquica moral, censora, interna, que possuiria uma origem psicológica dada a partir do surgimento das primeiras relações objetais afetivamente relevantes no complexo de Édipo, ou melhor, da introjeção do(s) pai(s) morto(s) em fantasia por rivalidade com ele(s) em relação ao objeto interditado.
Até esse ponto, pode-se pensar que para Freud as exigências do superego reproduziriam as exigências morais dos pais externos. Contudo, esse não é o caso, por duas razões. Em primeiro lugar, porque o rigor do superego corresponderia à força da defesa utilizada contra a tentação do complexo de Édipo, de tal modo que, quanto maior o desejo edípico, maior a necessidade de um superego rigoroso. Em segundo lugar, porque a descoberta do masoquismo primário na década de 1920 implica que uma parte da agressividade inerente a todo indivíduo é satisfeita, por intermédio do superego, contra o próprio ego, de tal modo que o superego não é apenas uma instância moral, que proíbe certos comportamentos e pensamentos perversos, mas que pode se comportar como um perverso sádico em relação ao ego. Em suma, os pais imaginários, introjetados, não correspondem aos pais reais, mas são deformados pela intensidade dos desejos eróticos e agressivos2 do próprio indivíduo.
Isto parece suficiente para algumas conclusões gerais a respeito do tema da origem da moral na teoria freudiana. Segundo essa teoria, concebe-se:
a consciência moral em termos metapsicológicos, como uma instância psíquica;
a moral em termos de lei interna, que diz o que devo ou não devo fazer;
a origem dessa lei (interna) nos indivíduos como o resultado do complexo de Édipo, isto é, como resultado da introjeção de uma lei externa, a proibição do incesto e a ameaça de castração;
o próprio complexo de Édipo como uma recapitulação ontogenética do desenvolvimento filogenético;
a lei moral, por um lado, como um impedimento à liberdade sexual perversa polimorfa infantil e ao impulso agressivo, mas, por outro, como uma via indireta de satisfação dela, a noção de masoquismo primário;
portanto, a concepção de moral em Freud pressupõe a sua tese de que o psiquismo humano tende primariamente à satisfação pulsional, sem qualquer consideração por outros indivíduos, satisfação essa que deve ser barrada em relação aos objetos externos pela moral, como lei que interdita os impulsos sexuais e agressivos, e reconduzida contra o ego em uma satisfação indireta e parcial, que se manifesta na forma de um sentimento crônico de culpa, o que satisfaz indiretamente parte do masoquismo primário de cada indivíduo.
Esse último ponto é fundamental, uma vez que é essa concepção de base a respeito do psiquismo humano a tese de que ele funciona segundo o modelo do arco-reflexo, da busca cega da satisfação pulsional, que será abandonada por Winnicott e que permitirá a ele, entre outras coisas, desenvolver uma concepção bastante distinta a respeito da origem da moralidade.
3. A origem da moralidade em Winnicott
Como se sabe, Winnicott introduz algumas mudanças fundamentais na teoria psicanalítica, das quais gostaria de destacar três: a tese de que um id sem um ego não tem sentido, isto é, a tese da primazia do desenvolvimento emocional sobre o desenvolvimento libidinal; a tese de que o desenvolvimento emocional depende, para ocorrer, de um ambiente suficientemente bom; a tese de que a relação com o ambiente varia conforme o estágio de desenvolvimento, indo de uma unidade indivíduo-ambiente para o estabelecimento de uma unidade pessoal e de relacionamentos amorosos e agressivos com objetos externos e seguindo adiante até o desenvolvimento da capacidade de cuidar de outros e mesmo de morrer. Essas mudanças são decisivas para se compreenderem todas as contribuições de Winnicott nos mais diversos temas da psicanálise e, portanto, também no tocante ao tema da moralidade.
O primeiro ponto a se destacar na abordagem winnicottiana da origem da moralidade diz respeito ao fato de que ele não apenas se interessa pela origem do superego como instância psíquica interna capaz de agir como a consciência moral de uma pessoa, mas também pela origem de um superego pessoal.
A tese, portanto, é a da existência de dois tipos de superego: um pessoal e verdadeiro e outro não pessoal e falso. A consequência em termos de moralidade dessa tese é a de que pode haver uma moralidade verdadeira e outra falsa. A diferença entre ambas consiste em que a primeira (verdadeira) é aquela que surge a partir da própria criança e de seu contato (instintivo) com o ambiente; a segunda (falsa) é aquela introjetada de fora para dentro da criança. Ou seja, "a educação moral se segue naturalmente à chegada da moralidade na criança pelos processos de desenvolvimento natural que é favorecido pelo cuidado adequado" (Winnicott, 1963d/1983, p. 94). Isso não significa, por sua vez, deixar a criança desenvolver sozinha seu código moral, uma vez que a moralidade pessoal do lactente tem
[...] uma característica ferrenha, crua e incapacitante. O código moral adulto se torna necessário porque humaniza o que na criança é desumano. A criança sofre com o receio da retaliação. A criança pode morder durante uma experiência excitante de relacionamento com um objeto bom, com o que o objeto passa a ser sentido como algo que morde. A criança tem prazer em uma orgia excretória em que o mundo se enche de água que afoga, e sujeira que pode soterrá-la. Estes crus receios se tornam humanizados principalmente pelas experiências da criança com seus pais, que desaprovam e ficam brabos, mas não mordem, afogam ou queimam a criança como retaliação ligada exatamente ao impulso ou à fantasia da criança. (Winnicott, 1963d/1983, p. 95)
Não se trata, portanto, de deixar a criança desenvolver, por si só, um código moral, que seria ferrenho e baseado na Lei de Talião, de modo que as contribuições da moral familiar, da religião familiar etc., são bem-vindas, mas desde que sejam apresentadas (pela via do exemplo, principalmente) no momento em que a criança começa a desenvolver uma moralidade por si mesma. É por essa tese da diferença entre uma moralidade pessoal e outra impessoal que Winnicott diz que a maior imoralidade para o lactente seria "se submeter, às custas de seu modo pessoal de viver" (Winnicott, 1963d/1983, p. 95).
Nesse processo de desenvolvimento de uma moralidade própria ocorrem algumas experiências centrais na relação com o ambiente que permitirão o surgimento do sentido de responsabilidade. Segundo Winnicott, em algum momento, entre o segundo semestre e o terceiro ano de vida, a criança, que recebeu todos os cuidados ambientais anteriores adequados e, desse modo, conseguiu se desenvolver normalmente em termos emocionais, está agora se havendo com o tema da sua própria destrutividade, que faz parte de sua natureza. A dificuldade e a conquista envolvidas nessa etapa de seu desenvolvimento consistem em integrar a ideia de destruir a mãe (objeto) que é, ao mesmo tempo, a mãe ambiente, que é amada e que cuida da criança, ou, como se diz, equivale-se em aceitar a ambivalência. A ansiedade dominante nos primeiros momentos dessas experiências é a da culpa. Contudo, a criança, em função dessa ambivalência, não apenas ataca a mãe, como também, se tiver tempo e se o ambiente sobreviver e aceitar, fará um gesto reparador. Isso implica uma "bondade" originária, uma ânsia de reparar os estragos que possa ter eventualmente cometido.
Dito de outro modo, segundo Winnicott, não é preciso dizer a uma criança que não é correto isso ou aquilo, uma vez que ela, de certo modo, porque se importa com a mãe que cuida dela, sabe disso. Não é preciso introduzir uma lei externa: "Você deve reparar os estragos que cometer!", "Não pode agredir a mãe", porque a criança de si mesma, não de fora, tem esse ímpeto e se dá conta de ter agido erradamente. Isto é, a culpa não vem da lei externa, mas da capacidade de se importar com a mãe. Acontece que esse ímpeto inicial de toda criança pode ser perdido se a mãe objeto não for capaz de sobreviver ao impulso destrutivo ou se a mãe ambiente não for capaz de aceitar o gesto reparador ou se alterar em seus cuidados. Nesse caso, sobrevém a culpa pela perda da mãe amada e da qual depende e eventualmente outras defesas, como a defesa maníaca, que tem como consequência uma incapacidade de estar concernido pelos outros. Note-se que a culpa não sobrevém, na teoria winnicottiana, pura e simplesmente da satisfação pulsional, ou de uma lei externa ou interna, mas da impossibilidade, por falha ambiental, de a criança poder reparar o dano causado ao objeto amado3.
A moralidade da criança se origina dela mesma, nos casos de uma maternagem bem-sucedida, e não vem pela interdição da agressividade ou do incesto, mas pela aceitação da agressividade em um horizonte pré-edípico. Em suma, para se poder impedir que a criança maior seja agressiva, é necessário, primeiro, aceitar que ela tenha agressividade, porque um impulso (erótico ou agressivo) sem um ego para ter a experiência dele não faz sentido.
Caso isso não ocorra, a simples obediência da criança ao código moral externo não pode ser identificada com o surgimento de um indivíduo moral saudável. Pode ser antes uma moralidade falsa, à qual o indivíduo tem de se adaptar, de maneira mais ou menos rígida e que implica um ideal patológico. Essa falsa moralidade não deve ser confundida com uma certa impostura ou um "si-mesmo falso normal", capaz de uma atitude social "Polida e baseada em boas maneiras", assegurando ao indivíduo um lugar na sociedade "que nunca pode ser atingido ou mantido pelo verdadeiro si-mesmo sozinho" (Winnicott, 1960/1983, p. 131). Com isso, na vida adulta, para Winnicott, "o acento não cai mais sobre o código moral" externo, herdado da tradição, mas sobre "algo mais positivo, o conjunto de aquisições culturais do homem".
Uma das consequências dessa concepção winnicottiana a respeito do surgimento da moralidade é que, em vez de insistir na "educação moral", isto é, na apresentação e introjeção de leis morais externas, devemos propiciar à criança mais crescida "a oportunidade de ser criativa, que a prática das artes e a prática do viver oferece a todos aqueles que não copiam e não se submetem, mas desenvolvem genuinamente uma forma de autoexpressão" (Winnicott, 1963d/1983, p. 98). Essa exposição a respeito das teses de Winnicott sobre a moralidade ainda está incompleta por dois lados: do lado da origem mais precoce da moralidade, a partir da ilusão de onipotência, e do lado da relação da moralidade com a solidão essencial. Antes mesmo da integração da instintualidade, que irá gerar o código moral pessoal da criança, há, segundo Winnicott, uma noção prévia de bom e mau dada no contato com os cuidados maternos no estágio de dependência absoluta. Nesse ponto, "bom" são os cuidados maternos adaptados às necessidades do bebê e "mau" é a falha nesses cuidados; mas, como o ambiente não é algo externo, temos aqui o surgimento da bondade originária do bebê a partir dos cuidados maternos.
Por outro lado, na medida em que existir implica a ilusão de ter criado o mundo que se dá com o contato originário com a mãe ambiente, ilusão essa que surge com o contato e, portanto, se dá sobre um fundo de não contato, de solidão essencial, então, existir implica uma primeira impostura, em um autoengano, em uma ilusão, na qual acreditamos e devemos acreditar, mas sem negar a vida (como minha vida) como uma ilusão. Não negar a vida como uma ilusão implica liberdade e espontaneidade de criar e contribuir, implica que podemos ir além das regras morais e contribuir com a sociedade em que vivemos. Só pode ser criativo e contribuir quem aceita a vida como uma ilusão, quem não nega a solidão essencial.
Em suma, parece possível extrair de Winnicott a tese de que só é necessário um código moral que limite meus impulsos se eu não tiver desenvolvido, por falha ambiental, uma moralidade pessoal que pressupõe uma noção originária de bom advinda dos cuidados ambientais que são o mesmo, no início, que o si-mesmo do bebê. Ao mesmo tempo, a moralidade pessoal não é rígida e dá espaço para uma vida criativa, espontânea, que só é possível de ser alcançada se se entende a vida como algo pessoal, ou, nos termos de Winnicott, como uma ilusão, isto é, que não nega o não-ser (solidão essencial). Note-se que a vida como ilusão não implica uma liberdade para se fazer o que se quiser, liberar os instintos eróticos ou agressivos (perversões), mas para construir e contribuir, ir além do que foi herdado, tornando o que me foi transmitido pelas gerações anteriores pessoal e, portanto, algo sobre o qual posso criar. A vida concebida como uma mera satisfação de instintos é uma vida isolada e retraída do contato humano; é, portanto, uma vida patológica que não pode conhecer a bondade originária que surge do cuidado materno.
4. Considerações finais
Na base, no fundamento das diferentes concepções a respeito da moralidade em Freud e Winnicott, estão as diferentes concepções a respeito da natureza humana. Em Freud, o ponto de partida de suas reflexões é a concepção do psiquismo como um aparelho que recebe, transforma e elimina excitações e estímulos, um aparelho que se vê compelido a satisfazer suas pulsões (eróticas e agressivas), uma concepção que parece poder ser derivada da concepção biológica de ser vivo como uma substância irritável (Barretta, 2006). Se o ego surge do id e o id é biológico, e, portanto, por definição amoral, a moralidade só pode vir de fora. Em Winnicott, o ponto de partida de suas reflexões é a concepção do psiquismo como bifurcado entre o contato e a solidão essencial, capaz de criar a ilusão de contato e integrar, com base nela, o espaço, o tempo, o corpo, os instintos etc., um psiquismo essencialmente criativo e integrador, em sua face voltada para o contato, e isolado e inacessível, em sua face voltada para a solidão essencial. Sua concepção fundamental de base parece ser a de que a vida4 é um sonho, e não uma luta pela satisfação pulsional; mas não é um delírio que cria uma realidade que não existe, é um sonho que cria algo que já existe, tornando-o pessoal e passível de ser superado.
Algumas consequências dessas diferentes concepções de moralidade são:
1) na medida em que para Freud a moral deve ser enxertada de fora na criança, a imposição de um código, de uma lei, de um ideal que barra o processo primário de satisfação pulsional é necessária. Em Winnicott, na medida em que a educação moral valoriza a "chegada da moralidade na criança pelo desenvolvimento natural que é favorecido pelo cuidado adequado" (Winnicott, 1963d/1983, p. 94), o mais importante seria a provisão de um exemplo de vida que, diz Winnicott aos pais, "não seja melhor do que vocês realmente são, que não seja desonesto, mas que seja toleravelmente decente" (Winnicott, 1963d/1983, p. 94);
2) na medida em que para Freud não há a diferença entre moral pessoal e impessoal, ele tem de defender que o comportamento virtuoso é aquele que obedece às leis morais, aos tabus do incesto e parricídio em última instância, ao passo que para Winnicott o decisivo não é a obediência à lei, mas ser capaz de uma certa impostura criativa, que permita à criança ter uma abordagem pessoal da tradição herdada e de ir além dela, sem um apego rígido ao passado;5
3) na medida em que para Freud a civilização humana surge por meio de uma proibição de desejos incestuosos e parricidas que, todavia, perduram no inconsciente e que se voltam contra o próprio indivíduo, a vida civilizada implica um sentimento crônico de culpa (Freud, 1930/1996, p. 74). Em Winnicott, por outro lado, a culpa não é o resultado necessário da impossibilidade de se satisfazerem os impulsos ou de se terem fantasias, mas resultado da impossibilidade, por falha ambiental, de se suportarem impulsos ou fantasias de modo que o indivíduo não tenha tempo de reparar criativamente os estragos por ele cometidos. Assim, para Winnicott, a vida civilizada não necessariamente implica culpa, mas sim oportunidade de ser criativo e de contribuir, de ser responsável, e não culpado.6
Referências
Barretta, J. P. (2006). A irritabilidade (Reizbarkeit) como característica distintiva do aparelho psíquico de Freud. In L. Fulgencio (Org.) (2006). Natureza humana, 8(2), 141-154. [ Links ]
Freud, S. (1996). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Obras completas da Standard Edition (Vol. 7, pp. 119-228). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1905) [ Links ]
Freud, S. (1996). Atos obsessivos e práticas religiosas. Obras completas da Standard Edition (Vol. 9, pp. 107-129). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1907) [ Links ]
Freud, S. (1996). O mal-estar na civilização. Obras completas da Standard Edition (Vol. 21, pp. 67-148). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1930) [ Links ]
Freud, S. (1996). Moisés e o monoteísmo: três ensaios. Obras completas da Standard Edition (Vol. 23, pp. 15-150). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1939) [ Links ]
Freud, S. (1996). Esboço de psicanálise. Obras completas da Standard Edition (Vol. 23, pp. 153-221). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1940) [ Links ]
Masson, J. M. (1985). The Complete Letters of Sigmund Freud to Wilhem Fliess 1887-1904. Harvard: The Belknap Press of Harvard University Press. [ Links ]
Winnicott, D. W. (1983). O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artmed. (Trabalho original publicado em 1965b) [ Links ]
Winnicott, D. W. (1983). A distorção do ego em termos de falso e verdadeiro self. In D. W. Winnicott (1983/1965b). O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artmed. (Trabalho original publicado em 1965m[1960] [ Links ])
Winnicott, D. W. (1983). Moral e educação. In D. W. Winnicott (1983/1965b). O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artmed. (Trabalho original publicado em 1963d) [ Links ]
1 O surgimento da ordem social e da moralidade coincide com o surgimento da forma mais primitiva de religião e organização social, o totemismo. Segundo Freud, a atitude emocional (ambivalente) dos irmãos em relação ao pai teria sido deslocada para um animal específico, o totem. A respeito disso, Freud diz: "A fim de poder viver em paz uns com os outros, os irmãos vitoriosos renunciaram às mulheres por cuja causa, afinal de contas, haviam matado o pai, e instituíram a exogamia. O poder dos pais foi rompido e as famílias se organizaram em matriarcado. A atitude emocional ambivalente dos filhos para com o pai permaneceu em vigor durante a totalidade do seu desenvolvimento posterior. Um animal específico foi colocado no lugar do pai, como totem. Era encarado como ancestral e espírito protetor, e não podia ser ferido ou morto. Uma vez por ano, toda a comunidade masculina se reunia numa refeição cerimonial, em que o animal totêmico (adorado em todas as outras ocasiões) era despedaçado e devorado em comum. Ninguém podia ausentar-se dessa refeição: ela era a repetição cerimonial da morte do pai, com a qual a ordem social, as leis morais e a religião haviam iniciado. [...] Até o dia de hoje, atenho-me firmemente a essa construção" (Freud, 1939/1996, p. 145)
2 Ademais, essa instância assim caracterizada não apenas repreende o ego pelas coisas que pensa ou faz, mas também por aquelas coisas que não se permitem pensar, as fantasias inconscientes eróticas (e masoquistas) infantis que não são integradas na personalidade de uma pessoa e que constituem o que Freud chamou de seu Id (Es), e isso na medida em que o superego tem ramificações inconscientes e "sabe" o que se passa no id, de tal modo que acusa o ego por coisas que ele desconhece e que se sacrifica para manter longe de si. O resultado dessa situação é o que Freud chamou de um sentimentoinconsciente de culpa, onipresente na vida civilizada e ainda mais entre neuróticos.
3 Como diz Winnicott: "Este é um estágio essencial no desenvolvimento da criança e que não tem nada que ver com educação moral, exceto pelo fato de que, se esse estágio for bem elaborado, a solução pessoal da própria criança para o problema da destruição do que é amado resulta na necessidade da criança de trabalhar ou adquirir habilidades. [...] Mas a necessidade é que é o fator essencial, e esta se origina do estabelecimento, dentro do self da criança, da capacidade de tolerar o sentimento de culpa suscitado por seus impulsos e ideias destrutivas, de tolerar se sentir responsável, por se ter tornado confiante em seus impulsos de reparação e oportunidades de contribuição" (Winnicott, 1963d/1983, p. 97).
4 Note-se que Winnicott distingue psique e mente. A primeira é responsável pela elaboração imaginativa, um processo fundamentalmente integrador e criativo; a segunda é analítica e instrumental. A primeira pode ser entendida como vida, mas não no sentido aristotélico daquilo (substância) que anima (em ato) os corpos (potencialmente) vivos. Winnicott parece concebê-la mais como uma função integrativa e criativa que torna o que é (objetivamente) real, pessoal.
5 A consequência, em termos profiláticos dessa concepção a respeito da gênese da moralidade, é que "temos de lhes [aos adolescentes] propiciar, na primeira infância, na meninice e na adolescência, no lar e na escola, o ambiente favorável em que cada indivíduo possa desenvolver sua capacidade moral própria, desenvolver um superego que evoluiu naturalmente dos elementos da crueza do superego do lactente, descobrir seu próprio modo de utilizar ou não o código moral e o acervo da cultura geral de sua época" (Winnicott, 1963d/1983, p. 98).
6 Winnicott diz isso da seguinte forma: "Devemos propiciar à criança mais crescida a oportunidade de ser criativa, que a prática das artes e a prática do viver oferecem a todos aqueles que não copiam e não se submetem, mas desenvolvem genuinamente uma forma de autoexpressão" (Winnicott, 1963d/1983, p. 98).