7 2 
Home Page  


Winnicott e-prints

 ISSN 1679-432X

     

 

Artigos

 

O conceito de regressão em Freud e Winnicott: algumas diferenças e suas implicações na compreensão do adoecimento psíquico1

 

The regression concept in Freud and Winnicott: some differences and their implications in the comprehension of the psychic illness

 

 

Gabriela Galván2

Sociedade Brasileira de Psicanálise Winnicottiana

e-mail: gabrielagalvan@terra.com.br

 

 


Resumo

O objetivo deste trabalho é abordar o conceito psicanalítico de regressão e suas divergências nas obras de Freud e Winnicott. Dessa forma pretende-se discutir algumas diferenças existentes entre esses autores no que se refere à compreensão do adoecimento psíquico e do papel do ambiente no desenvolvimento individual. Para isso, parte-se da formulação freudiana de sexualidade infantil postulada no artigo "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade" (1905) e trabalha-se o conceito de regressão conforme desenvolvido na Conferência XXII (1916-17), o que leva a uma compreensão freudiana da etiologia das neuroses, de acordo com os desdobramentos teóricos até então desenvolvidos pelo autor. A seguir, discute-se o conceito de regressão segundo a teoria do amadurecimento pessoal proposta por Winnicott, bem como a compreensão de adoecimento que advém dessa proposição teórica.

Palavras–chave: psicanálise, regressão, Freud, Winnicott.


Abstract

This paper addresses the psychoanalytic concept of regression and their differences in the works of Freud and Winnicott. Thus it is intended to discuss some differences between these authors regarding the understanding of mental illness and the role of environment in individual development. For this, it starts from the Freud formulation of infantile sexuality postulated in the article "Three essays on the theory of sexuality" (1905) and works the concept of regression as developed at the Conference XXII (1916-17), which leads to a Freudian understanding of the etiology of neurosis, according to the theoretical expand so far developed by the author. Next, it discusses the concept of regression according to the theory of personal maturity proposed by Winnicott as well as the understanding of illness that results from this theoretical proposition

Keywords: Psychoanalysis, regression, Freud, Winnicott.


 

 

Em seu trabalho "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade", Freud (1905/1996) apresenta suas ideias a respeito da sexualidade infantil, mostrando suas peculiaridades e sua importância para a compreensão do desenvolvimento normal da sexualidade humana. Ele aponta como características iniciais, entre outros aspectos, o caráter autoerótico e a dominância de pulsões parciais – isso durante um período pré-genital no qual as zonas genitais ainda não assumiram a preponderância que lhes cabe. A concepção freudiana a respeito do desenvolvimento da sexualidade inclui a ideia de uma predisposição evolutiva pela qual passa a libido, seguindo uma sequência de fases – oral, anal, fálica – para, após um período de latência, chegar numa organização genital da sexualidade adulta. Ou seja, para Freud a sexualidade está presente desde o nascimento e evolui conforme a criança vai crescendo de modo que, ao final do processo, espera-se que ela se organize sob a primazia da zona erógena genital e esteja a serviço da reprodução.

Mais adiante, na Conferência XXII, Freud (1916-17/1996) retoma a questão do desenvolvimento da libido e aponta que, também nesse aspecto, não há como escapar às variações inerentes a todos os processos biológicos. No caso específico da evolução da libido, isso significa que nem todas as fases pelas quais passa o seu desenvolvimento são necessariamente superadas ou completamente ultrapassadas.

Com relação aos riscos próprios do caminho evolutivo da libido, Freud sinaliza duas possibilidades. Uma delas seria a de parte da libido ficar estancada nas fases iniciais, pré-genitais, fenômeno ao qual o autor chamou de fixação do instinto.

Assim Laplanche e Pontalis (1988) definem fixação:

A noção de fixação é geralmente compreendida no quadro de uma concepção genética que implica uma progressão ordenada da libido (fixação numa fase). Podemos considerá-la [...] como designando o modo de inscrição de certos conteúdos representativos (experiências, imagos, fantasmas) que persistem no inconsciente de forma inalterada e a que a pulsão permanece ligada. (p. 251)

O outro risco apontado se refere à possibilidade de parte da libido que havia evoluído para um estágio posterior retornar para uma fase anterior do desenvolvimento: fenômeno denominado "regressão". Assim, para Freud, regressão é um conceito "puramente descritivo" relativo ao desenvolvimento sexual.

O que até agora tratamos como regressão [...] significou exclusivamente um retorno da libido a anteriores pontos de interrupção de seu desenvolvimento – isto é algo inteiramente diferente, em sua natureza, da repressão, e inteiramente independente desta. E não podemos chamar de regressão da libido um processo puramente psíquico, nem podemos dizer onde deveríamos localizá-lo no aparelho mental. E, embora seja verdade que ele exerce a mais poderosa influência sobre a vida mental, o fator mais importante nele é o fator orgânico. (Freud, 1916-17/1996, p. 346)

Caberia o questionamento de por que a libido regride para fases evolutivas anteriores. Segundo Freud (1916-17/1996), isso ocorre se o objetivo final da função libidinal, a obtenção de prazer, encontra obstáculos para sua satisfação. Ou seja, a frustração proveniente do contato do indivíduo com a realidade pode ser apontada como um aspecto considerável no mecanismo de regressão da libido. Por outro lado, também há que se considerar que nem toda frustração leva necessariamente à regressão nem pode ser tida, por si só, como patogênica, ainda que consideremos a regressão como parte dos mecanismos de formação de sintomas presentes nas neuroses. Dessa forma é correto afirmar que todo adoecimento psíquico tem em sua etiologia um componente atribuído à frustração ou impossibilidade de satisfação da função libidinal, mas o inverso não é verdadeiro, ou seja, nem toda frustração acarreta adoecimento.

Há outro aspecto relevante para se compreender essa questão e diz respeito à inter-relação existente entre fixação e regressão. Se há muitas fixações, a função libidinal torna-se enfraquecida e tem maiores dificuldades para resistir aos obstáculos externos e prosseguir em direção ao seu destino final. Ao mesmo tempo, diante de fixações muito intensas, maior será a tendência da libido a regredir perante os obstáculos. Isso abre possibilidades para se entender por que, em alguns indivíduos, a frustração pode provocar a regressão da libido e em outros não: há que se levar em consideração não só o aspecto externo – no caso a frustração –, mas também um aspecto interno – a fixação, como um desenvolvimento imperfeito da libido que predispõe para a regressão.

O que Freud propõe é que cada um desses aspectos, isoladamente, não é suficiente para que se desenvolva uma psicopatologia. Ele descreve ambos os processos como presentes em todos os indivíduos – saudáveis ou neuróticos –, sendo que o que vai definir por um ou outro encaminhamento diz respeito a um fator quantitativo. O quantum de libido com o qual o indivíduo nasce; a intensidade e quantidade de fixações que ocorrem durante o desenvolvimento da libido, a intensidade das frustrações impostas ao impulso sexual e, principalmente, a articulação dessas variáveis entre si.

Portanto, tanto a fixação da libido quanto a frustração são fatores necessários para que se considere a possibilidade de psicopatologia.

Freud formula, então, o conceito de "séries complementares" ao debruçar-se sobre a questão da etiologia das neuroses e afirma que os casos de neurose enquadram-se numa série na qual estão presentes dois fatores:

1. Fator interno (constituição sexual / fixação da libido) = fator predisponente 2. Fator externo (experiência) = frustração

As séries complementares articulam as bases orgânicas e os aspectos relacionais relativos a experiências prejudiciais ou traumáticas de modo que ambas as condições estão presentes, de uma forma ou de outra, no surgimento do adoecimento.

Por sua vez, considerando a fixação da libido – o que corresponde ao "fator interno" ou predisponente da série complementar apontada acima –, poderíamos também questionar por que em algumas pessoas a libido se fixa em determinada fase do desenvolvimento. A resposta recai sobre o mesmo princípio da série complementar. Ou seja, também temos os aspectos internos e circunstanciais, de forma que a fixação pode se dar em decorrência da tendência inata da libido de um determinado indivíduo a se fixar nas fases iniciais – pré-genitais – ao mesmo tempo em que as primeiras relações parentais podem interferir no sentido de contribuir para a fixação da libido. Essas variações repercutem sobre a mobilidade da libido, o que faz com que as oportunidades de satisfação do indivíduo fiquem muito reduzidas.

As condições da fixação são, para Freud, de duas espécies: por um lado, ela é provocada por diversos fatores históricos (influência da constelação familiar, trauma etc.). Por outro, é favorecida por fatores constitucionais: determinado componente pulsional parcial pode ter uma força maior do que o outro; mas também pode existir em certos ndivíduos uma "viscosidade" geral da libido que os predispõe a defenderem "... cada posição libidinal logo que atingida, por angústia de perderem ao abandoná-la, e por temor de não encontrarem na posição seguinte um substituto plenamente satisfatório" (Laplanche & Pontalis, 1988, p. 253).

É necessário apontar que Freud (1916-17/1996) afirma ainda que os aspectos internos e externos, conforme postulados até aqui, não são elementos suficientes para se alcançar a compreensão da etiologia das neuroses. Ele acrescenta a ideia de conflito: "uma parte da personalidade defende a causa de determinados desejos, enquanto outra parte se opõe a eles e os rechaça. Sem tal conflito não existe neurose" (p. 352). O que ele propõe é que, a partir da frustração, a função libidinal passa a procurar outros caminhos e outros objetos. A condição para que o conflito se dê é que esses novos caminhos e objetos sejam reprovados por uma parte do psiquismo: "O significado do conflito psíquico pode ser adequadamente expresso de outro modo, dizendo-se que, para uma frustração externa tornar-se patogênica, é preciso acrescentar-lhe uma frustração interna" (Freud, 1916-17/1996, p. 353, os itálicos são do autor).

Freud prossegue então, em seu trabalho, desenvolvendo a ideia de conflito e das forças pulsionais que estão em jogo na formação dos sintomas. Deixaremos de lado os desdobramentos que advêm dessas proposições em termos de especificar os mecanismos que dão origem às neuroses, uma vez que não fazem parte do objetivo deste artigo.

O que parece importante destacar diz respeito a dois pontos da teoria freudiana, de acordo com o recorte aqui descrito: um deles é o caráter negativo, em termos de saúde, que Freud atribui à regressão. Sob esse ponto de vista, podemos considerar que a regressão tem um sentido de desvio no percurso normal do desenvolvimento da sexualidade. Se "a função libidinal sofre uma prolongada evolução, até que possa, segundo o que se descreve como forma normal, ser posta a serviço da reprodução" (Freud, 1916-17/1996, p. 343, os itálicos são meus), a regressão pode ser considerada como uma involução que pode afastar ou impedir que o indivíduo alcance a normalidade. Também a ideia de negativo da saúde está presente no fato de a regressão contribuir para que se dê o adoecimento psíquico, ainda que esteja longe de ser a sua causa principal. De qualquer maneira, a regressão está envolvida na etiologia das neuroses como um aspecto interno, orgânico, que diz respeito ao fluxo da libido em uma determinada direção.

O outro ponto que gostaria de enfatizar se refere à interferência dos aspectos externos – relativos à história de vida ou experiências dos indivíduos – no surgimento do adoecimento psíquico. Freud afirma que uma controvérsia que tente definir a causa das neuroses como "exógena" ou "endógena" se constitui como uma discussão estéril e sem sentido. O conceito de séries complementares mostra que, para ele, ambas as condições são necessárias para que ocorra o adoecimento. Portanto, não se trata de hierarquizar os fatores que devem ser considerados para se chegar à causa da doença psíquica, mas é importante qualificar esses fatores e especificar a sua participação, ou podemos dizer contribuição, para o surgimento de determinada condição. Os fatores que estão ligados à vida relacional do indivíduo, para Freud, contribuem para o surgimento de uma neurose quando se estabelecem de tal forma que trazem como consequência obstáculos para o fluxo libidinal. Dito de outra forma, o ambiente1 pode ser um elemento prejudicial à dinâmica psíquica na medida em que interfira como impedimento ou elemento dificultador da obtenção de prazer, ou mesmo como um incremento no afluxo de energia que não pode ser descarregado ou desviado adequadamente. Por outro lado, a evolução libidinal normal pode ocorrer sem a interferência do ambiente. O desenvolvimento da sexualidade pode acontecer de maneira normal, desde que o indivíduo não tenha uma predisposição para fixações, se o ambiente não interferir. Essa formulação é válida se pensarmos na proposição freudiana da etiologia das neuroses, conforme apresentada acima e difere da proposta winnicottiana sobre saúde e adoecimento psíquicos em relação à função do ambiente, conforme apresentado na teoria de Winnicott a respeito do desenvolvimento individual.

 

O conceito de regressão na teoria do amadurecimento pessoal

Winnicott desenvolveu uma teoria como guia para a compreensão do desenvolvimento humano – a teoria do amadurecimento pessoal. Sob a perspectiva desse referencial, o indivíduo se constitui a partir de uma tendência inata para: o amadurecimento, a integração e as relações interpessoais. Mas não só, é necessário um ambiente que facilite a realização dessa tendência. Assim, é a partir da relação mãe-bebê que Winnicott compreende a constituição do ser humano como um percurso que, na saúde, permite ao indivíduo alcançar uma identidade, um si-mesmo integrado.

Nesse contexto, não são as forças pulsionais que direcionam o desenvolvimento humano. O amadurecimento se dá porque existe uma tendência inata nesse sentido e porque há alguém que facilita a realização dessa tendência. Isso significa que o ser humano não é concebido como um ser em busca de satisfação/prazer, às voltas com os conflitos internos decorrentes de sua instintualidade, mas como um ser relacional, em busca da continuidade da existência. Para Winnicott (1965j[1963]/1983), no início do processo de amadurecimento emocional, há três aspectos que devem ser considerados: de um lado, a hereditariedade, do outro, o ambiente – que tanto pode ser facilitador como pode ser traumatizante, dependendo de suas falhas – e, no meio, o indivíduo "vivendo, se defendendo e crescendo" (p. 125).

Na saúde, o ser humano caminha em direção à integração e à constituição da personalidade: "O bebê relativamente saudável (maduro para a idade) prossegue rumo ao estádio em que ele se torna uma pessoa total, consciente de si mesma e consciente da existência dos outros" (Winnicott, 1988/1990, p. 56). Assim podemos pensar a saúde no sentido da realização de uma tarefa fundamental do ser humano – entendida como a possibilidade de se tornar um indivíduo, amadurecer e se relacionar, enfrentando todas as dificuldades intrínsecas a essa tarefa, sem perder o sentido pessoal da existência a partir da criatividade originária. Dessa forma, se saúde diz respeito à continuidade de ser e de amadurecer; o adoecimento está relacionado a uma interrupção no processo de amadurecimento. A doença psíquica, para Winnicott, se refere a um tipo de imaturidade, relacionada a uma parada no desenvolvimento como consequência de uma falha ambiental, diante da qual o indivíduo necessitou reagir em vez de continuar a ser. Isso significa que, para compreender o adoecimento psíquico nessa perspectiva, é importante diferenciar em que momento do amadurecimento houve possíveis falhas ambientais.

Em termos diagnósticos, Winnicott (1955d[1954]/2000) propõe uma divisão em três grupos que leva em conta o estágio do amadurecimento no qual o paciente se encontra. O primeiro grupo é composto por pessoas que alcançaram uma integração e, portanto, "funcionam em termos de pessoa inteira" (p. 375). As dificuldades dessas pessoas são da ordem da instintualidade e dos relacionamentos interpessoais. Aqui se encontram os indivíduos que a psicanálise clássica denominou psiconeuróticos. No segundo grupo estão os indivíduos cuja personalidade "recém-começou a integrar-se e tornar-se algo com o qual se pode contar" (Winnicott, 1955d[1954]/2000). O que está em jogo nesse período são as questões relativas à própria aquisição da integração instintual, à junção do amor e da agressividade e ao reconhecimento da dependência com relação ao ambiente – dependência esta não mais absoluta, nessa etapa. O terceiro grupo abarca os indivíduos que não alcançaram a integração da personalidade e que não encontraram as condições necessárias para o amadurecimento nos estágios iniciais do desenvolvimento infantil.

No estágio da dependência absoluta, o bebê nada sabe do mundo exterior, relaciona-se com um objeto subjetivamente concebido, experiência que lhe permite construir a base de confiança inicial para caminhar rumo à integração e à separação eu/ não-eu. Garantida essa base, o bebê pode realizar a tendência de ir em direção ao mundo externo e rumo às relações com objetos objetivamente percebidos. O papel do ambiente no momento de dependência absoluta é a adaptação sensível e total às necessidades do bebê. Ao fazer essa adaptação, a mãe suficientemente boa permite que o bebê viva a ilusão de onipotência e, assim, possibilita que o bebê crie o mundo que – do ponto de vista de um observador – lhe está sendo apresentado. Dessa forma o indivíduo se desenvolve a partir do centro e o contato com o ambiente é uma experiência própria.

Porém nem sempre o ambiente se adapta às necessidades do bebê. A mãe pode falhar não complementando o gesto do bebê, mas se impondo a ele. Nesse caso temos uma forma de encontro bebê-ambiente no qual não há adequação ao movimento do bebê – o que caracteriza a intrusão do ambiente – e, no lugar da vivência de experiências pessoais, temos reações à intrusão. Isso pode gerar uma forma de existência no qual um padrão externo marca a individualidade do ser e o que ocorre é uma constante reação e adaptação a esse padrão.

Nesse caso, diante da falha ambiental estrutura-se um falso si-mesmo – como uma tentativa de substituição da função materna que falhou – no intuito de proteger o verdadeiro si-mesmo que, apesar de não ser aniquilado, não pode se expressar e se enriquecer com experiências pessoais. Podemos, então, entender o falso si-mesmo como uma defesa que oculta e protege o verdadeiro si-mesmo. Na medida em que o verdadeiro si-mesmo é a fonte dos impulsos pessoais, a existência por meio de um falso si-mesmo torna a vida esvaziada de sentido e permeada por um senso de irrealidade, e de que a vida não vale à pena.

Winnicott postula diversos níveis de falso si-mesmo, considerando desde uma atitude social, não patológica, no sentido de renúncia à onipotência e garantia do convívio social – presente e necessária na saúde – até aquele que se implanta como real, em total submissão, de forma que o si-mesmo verdadeiro permanece oculto, o que implica na ausência do que poderíamos chamar de gesto espontâneo. No grau extremo existe um sentimento de vazio, de que a vida não vale a pena, que não há razão para viver. Nos graus menos extremos, há uma busca e a espera de condições propícias para que possa se dar o abandono da organização defensiva.

Nos graus mais brandos de cisão, existem objetos mantidos na relacionabilidade secreta interior do verdadeiro self, objetos estes derivados de algum grau de sucesso no estágio da primeira mamada teórica. Em outras palavras, nos graus menos extremos dessa doença, não é tanto o estado primário de cisão que iremos encontrar, e sim uma organização secundária cindida (Winnicott, 1988/1990, p. 128).

Nesse sentido, podemos considerar que se houve algum grau de sucesso na estruturação inicial primitiva, o verdadeiro si-mesmo pode emergir, desde que encontre as condições necessárias para tal. Ou, dito de outra maneira, a defesa tipo falso si-mesmo poderá ser abandonada caso o indivíduo encontre as condições ambientais que possibilitem a retomada da confiança nas relações e na possibilidade de ser si-mesmo. É aqui que encontramos o sentido do conceito de regressão em Winnicott.

O conceito de regressão na teoria do amadurecimento pessoal está relacionado às falhas ambientais nos primeiros estágios do desenvolvimento e à reação do indivíduo a essas falhas. Ao considerarmos o falso si-mesmo, é importante levar em conta que – ao mesmo tempo em que implica um prejuízo à continuidade do amadurecimento – a organização defensiva protege o si-mesmo verdadeiro e permite que o indivíduo espere uma nova oportunidade de encontrar, no ambiente, as condições de sustentação de que necessita para amadurecer.

É preciso incluir na teoria do desenvolvimento de um ser humano a ideia de que é normal e saudável que o indivíduo seja capaz de defender o eu contra falhas ambientais específicas através do congelamento da situação da falha. Ao mesmo tempo há a concepção inconsciente (que pode transformar-se numa esperança consciente) de que, em algum momento futuro, haverá oportunidade para uma nova experiência, na qual a situação da falha poderá ser descongelada e revivida, com o indivíduo num estado de regressão dentro de um ambiente capaz de prover a adaptação adequada. A teoria aqui proposta é a da regressão como parte de um processo de cura (Winnicott, 1955d[1954]/2000, p. 378).

A regressão nesse contexto não se refere ao desenvolvimento instintual, mas indica um retorno a uma condição anterior ao congelamento da situação da falha, na qual é essencial a adaptação do ambiente às necessidades do indivíduo como uma nova oportunidade deste encontrar a provisão ambiental adequada e, assim, descongelar a situação da falha. Trata-se, aqui, de regressão à dependência.

Para que ocorra a regressão à dependência, é necessário que o indivíduo tenha alcançado uma organização egoica suficiente que tenha lhe permitido desenvolver o falso si-mesmo ao mesmo tempo em que manteve preservada a crença na possibilidade de encontrar uma nova oportunidade de corrigir a falha original. Junto com essa condição pessoal, é preciso que o indivíduo encontre no novo ambiente a adaptação e a confiabilidade essenciais para que se dê a regressão. "O que quero dizer é que é uma coisa se um paciente simplesmente tem um colapso e outra se ele o tem em alguma nova provisão ambiental que oferece um cuidado confiável" (Winnicott, 1968c[1967]/1994, p. 154).

A regressão à dependência – diante de um ambiente que ofereça as condições propícias – pode ser considerada como a manifestação dos elementos saudáveis da personalidade, em busca de se desfazer de uma existência baseada no falso si-mesmo e retomar o amadurecimento a partir do si-mesmo verdadeiro. Isso é diferente de manifestações de adoecimento psíquico que podem ser até semelhantes a uma regressão, porém, se não estiverem apoiadas na confiabilidade de um ambiente que ofereça sustentação ao indivíduo, estaremos diante de um colapso das defesas e não de uma regressão à dependência. Isso porque, se não há um ambiente que possa sustentar o verdadeiro si-mesmo, não é possível abandonar a defesa que o protege.

Winnicott (1955e[1954]/2000) alerta para a possibilidade de surgir, ao longo do tratamento psicanalítico, uma manifestação psíquica que difere essencialmente da regressão. É o que ele denomina retraimento e consiste em certo tipo de isolamento, algo como encolher-se em si mesmo e retrair-se em relação ao meio. Há, em alguns momentos, uma inibição do contato que pode parecer uma expressão de autonomia, mas o que ocorre, de fato, é um comportamento autoprotetor. É como se o paciente buscasse uma independência, porém artificialmente. Nesse caso o indivíduo não espera encontrar no ambiente aquilo que necessita, de maneira que o estado de retraimento não lhe traz nenhum alívio ou benefício. O retraimento não tem, como a regressão, um caráter positivo de esperança e de possibilidade de retomada do amadurecimento. Winnicott (1955e[1954]/2000) aponta para a necessidade de considerar como parte da tarefa terapêutica a transformação do retraimento em regressão:

Eu diria que, no estado de retraimento, o paciente está dando uma sustentação para o eu, e que se no momento em que o retraimento aparece o analista consegue fornecer uma sustentação para o paciente, então aquilo que teria sido um retraimento transforma-se em regressão. A vantagem da regressão é a de que ela traz consigo a possibilidade de corrigir uma adaptação inadequada à necessidade do paciente em sua infância precoce. Ao contrário, o estado de retraimento não apresenta utilidade alguma, e quando o paciente recupera-se dele, nada mudou. (Winnicott, 1955e[1954]/2000, p. 354)

É importante destacar que, para Winnicott, a regressão à dependência faz parte de um possível caminho em direção à saúde e que a podemos considerar como a retomada do amadurecimento para seguir em direção à integração da personalidade, e engloba não somente o indivíduo, mas também a sua interação com o ambiente. Em termos de tratamento e considerando que regressão à dependência torna-se possível apenas se houver um ambiente caracterizado por ser suficientemente confiável e passível de se adaptar às necessidades do paciente, o contexto terapêutico adequado para o atendimento aos pacientes que necessitam regredir à dependência é aquele cujo parâmetro é a maternagem nos estágios iniciais da primeira infância. Na prática, Winnicott descreve uma série de eventos necessários para que a regressão possa se dar, com ganhos significativos em termos de saúde e amadurecimento:

O fornecimento de um contexto que proporciona confiança. A regressão do paciente à dependência, com a devida percepção do risco envolvido. O paciente sente o eu de um modo novo, e o eu até aqui oculto é entregue ao ego total. Novo progresso do indivíduo a partir de onde o processo havia parado. Descongelamento da situação da falha original. A partir da nova posição de força do ego, raiva relativa à situação da antiga falha, sentida no presente e explicitada. Retorno da regressão à dependência, num progresso organizado em direção à independência. Necessidades e desejos instintivos tornados realizáveis com vigor e vitalidade genuínos. E tudo isso repetindo-se inúmeras vezes. (Winnicott, 1955d[1954]/2000, p. 384)

Dessa forma fica claro que, em termos terapêuticos, fornecer as condições necessárias para que ocorra a regressão à dependência é diferente de interpretar o desejo inconsciente do paciente. Ao tratarmos de pacientes que ainda não puderam sequer se constituir como uma unidade, o termo desejo se torna inadequado. Para Winnicott, trata-se de atentar para as necessidades do paciente: "Quando a necessidade não é satisfeita, a consequência não é raiva, mas uma reprodução da situação original de falha que interrompeu o processo de crescimento do eu" (Winnicott, 1955d[1954]/2000, p. 385).

Assim o conceito de regressão e, mais especificamente, o seu uso na teoria e na clínica psicanalítica difere significativamente se estivermos trabalhando a partir de uma perspectiva freudiana ou de uma winnicottiana.

Tanto em Freud quanto em Winnicott, está presente a ideia de um processo de desenvolvimento, porém de maneiras inteiramente diferentes. Para Freud, há uma predeterminação inata em termos de fases de desenvolvimento da libido ao longo das quais o indivíduo passa no transcurso da vida. Nesse sentido, a evolução se remete à libido e a regressão caracteriza um movimento contrário e prejudicial ao desenvolvimento normal da sexualidade. Fatores externos podem interferir negativamente na evolução natural da libido e a tarefa terapêutica – considerada grosso modo – consiste em liberar caminhos e abrir possibilidades para que o fluxo da libido siga o seu rumo e encontre satisfação nas fases mais avançadas do desenvolvimento libidinal. O trabalho se dá pela via da interpretação. Para Winnicott, por sua vez, as etapas do amadurecimento não se sucedem uma após a outra como um percurso determinado; elas se realizam devido a uma tendência inata que só se atualiza na interação com o ambiente. A maturidade é pessoal, do indivíduo e não da libido. A ideia dos estádios do desenvolvimento relaciona-se ao percurso do bebê da dependência absoluta em direção à independência relativa. Assim o indivíduo é sempre considerado em sua interação com o ambiente. Portanto, o ambiente é constitutivo e, sem a sua "facilitação", a tendência inata ao amadurecimento não pode se realizar. A regressão aqui pressupõe uma falha ambiental que ocasionou uma parada no amadurecimento emocional, de maneira que o retorno a uma situação de dependência caracteriza a busca pelas condições necessárias para que a saúde possa ser alcançada. A regressão em Winnicott pode ser considerada um movimento saudável de um indivíduo com algum grau de doença psíquica.

Aqui a tarefa terapêutica – que nesse momento específico pode ser traduzida como holding – consiste em fornecer a sustentação necessária para que o amadurecimento ocorra. Segundo Winnicott: "[...] a regressão alcança e fornece um ponto de partida, o que eu chamaria de um lugar de onde é possível operar. O eu é encontrado" (1955d[1954]/2000, p. 388, os itálicos são do autor). A partir daí, uma vez que o indivíduo pode operar a partir do si-mesmo verdadeiro, aquilo que é vivido passa a ser experienciado como pessoal e sentido como real. Fica claro o caráter positivo e terapêutico da regressão à dependência no contexto analítico, sob a perspectiva da psicanálise winnicottiana.

 

Referências

Freud, S. (1996). Conferência XXII: Algumas ideias sobre desenvolvimento e regressão – etiologia. In S. Freud, Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 16). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1916-17)

Freud, S. (1996). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In S. Freud, Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 12). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1905)        [ Links ]

Laplanche, J. & Pontalis, J. B. (1988). Vocabulário de psicanálise. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Winnicott, D. W. (1983). Classificação: existe uma contribuição psicanalítica à classificação psiquiátrica? In D. W. Winnicott (1983/1965b), O ambiente e os processos de maturação (pp. 114-127). Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1965; respeitando-se a classificação de Hjulmand, temos 1965j[1963]         [ Links ])

Winnicott, D. W. (1990). Natureza humana. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1988. Título original: Human Nature)         [ Links ]

Winnicott, D. W. (1994). O conceito de regressão clínica comparado com o de organização defensiva. In D. W. Winnicott (1994/1989a), Explorações psicanalíticas (pp. 151-156). Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1968; respeitando-se a classificação de Hjulmand, temos 1968c[1967]         [ Links ])

Winnicott, D. W. (2000). Aspectos clínicos e metapsicológicos da regressão dentro do setting analítico. In D. W. Winnicott (2000/1958a), Textos selecionados: da Pediatria à Psicanálise (pp. 374-392). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1955; respeitando-se a classificação de Hjulmand, temos 1955d[1954]         [ Links ])

Winnicott, D. W. (2000). Retraimento e regressão. In D. W. Winnicott (2000/1958a), Textos selecionados: da Pediatria à Psicanálise (pp. 347-354). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1955; respeitando-se a classificação de Hjulmand, temos 1955e[1954]         [ Links ])

 

1 A palavra ambiente é utilizada aqui para designar tudo o que é externo à pessoa; aquilo que compõe o entorno do indivíduo e inclui constituição familiar, acontecimentos da história e experiências vividas.