Pensando familias
ISSN 1679-494X
ARTIGOS
A transmissão transgeracional dos modelos conjugais
Transgerational transmission of conjugal models
Cassiana Schulz1, I ; Patrícia Manozzo Colossi2, II
I Unidade de Saúde Bom Pastor, Igrejinha/RS
II Faculdades Integradas de Taquara/FACCAT
RESUMO
A transgeracionalidade caracteriza-se pela transmissão de modelos familiares, perpassando gerações. Este estudo teve o objetivo de analisar padrões transgeracionais expressos na conjugalidade de um casal em primeira relação conjugal, com até cinco anos de convivência, residente do RS. Os parceiros responderam a uma entrevista conjunta, e outra, individual, com foco nas percepções das heranças familiares. A análise dos dados revelou aspectos transgeracionais identificados para além da cultura e valores familiares de origem. Os resultados referiram a individuação dos sujeitos, os aprendizados familiares e adaptação conforme suas demandas individuais e conjugais, revelando-se um aspecto funcional. Os padrões da relação mostraram-se positivos, já que o casal investigado se mostrou disponível à transformação dos padrões familiares qualificando a relação atual. O presente estudo pode auxiliar profissionais de diferentes áreas do conhecimento que atendem casais e famílias nos diferentes níveis de prevenção para a compreensão dos casos e possível intervenção.
Palavras-chave: Conjugalidade, Cônjuges, Família de origem, Transgeracionalidade.
ABSTRACT
The transgenerationality is characterized by the transmission of familiar models, throught generations. This study aimed analyzing transgenerational patterns expressed in the conjugality of a couple in the first marital relationship, with up to five years of living, in RS. The partners responded to a interview together, and another, individual. Each interview focused their perceptions of experiences in families of origin. Data analysis showed transgenerational aspects identified beyond culture and family values of origin. The results highlighted to individuation of the subjects, the family learning and adaptation according to their individual and conjugal demands, revealing a functional aspect. The patterns of the relationship were positive, since the couple investigated became available to the transformation of the familiar patterns qualifying the current relation. The present study can help professionals from different areas of knowledgement who work with couples and families at different levels of prevention to understanding the cases and possible intervention.
Keywords: Conjugality, Partners, Family of origin, Transgenerationality.
Introdução
O termo transgeracionalidade refere-se a padrões transmitidos de pais para filhos, perpassando gerações e apresentando-se como modelos que podem ser percebidos na maioria das relações estabelecidas durante a vida (Falcke & Wagner, 2005). Este fenômeno se constitui na transmissão de legados, mitos, aprendizados e outros aspectos advindos da família de origem para a família atual, e são responsáveis por formar a identidade do indivíduo e da família, bem como caracterizar o seu funcionamento com suas idiossincrasias e transações ao longo da sua história (Falcke & Wagner, 2005; Rehbein & Chatelard, 2013).
Ainda que o fenômeno possa ser identificado nas diversas fases do ciclo vital, na etapa em que a conjugalidade se estabelece, pode se expressar de modo relevante já que é no começo da vida a dois, que os parceiros precisam ajustar-se para constituir uma identidade conjugal, constituindo um jeito próprio de ser um casal (Ayelmer , 2001; Azevedo, Féres-Carneiro, & Lins, 2015). Com isso, surgem aspectos trazidos de suas famílias de origem como legados, mitos, crenças e outros padrões familiares que podem fazer emergir conflitos e sofrimento aos parceiros do novo casal, ampliando as dificuldades de adaptação do começo da vida conjugal . Diferentes autores apontam que na clínica conjugal, têm sido observados casos que expressam padrões transgeracionais como conflitos e perpetuação de padrões relacionais disfuncionais (Colossi, Marasca & Falcke, 2015, Gomes, 2014, Marasca, Colossi & Falcke, 2013, Mendlowicz & Figueira, 2007). Gomes (2014) refere ainda, que embora os casais possam demonstrar vontade de estabelecer um tipo novo de relação conjugal, diferente daquela vivenciada por seus pais, podem ter dificuldades para lidar com a mudança frente ao que foi herdado das famílias de origem; considerando os modelos pré-estabelecidos de conjugalidade. Assim, embora o início da vida conjugal possa ser definido como o tempo de maior satisfação conjugal, é também o período em que ocorrem um grande número de divórcios (Heckler & Mosmann, 2014), o que justifica o empenho em compreender os aspectos relacionados à constituição da conjugalidade.
Cabe considerar que a vida conjugal implica no estabelecimento de uma nova relação, em que há a junção das heranças de cada um dos parceiros em prol do estabelecimento de um padrão relacional novo tanto para os parceiros quanto para a família que está se constituindo (Anton, 2012). Ainda que padrões transgeracionais sejam constituintes da identidade do sujeito, são escassas as publicações com foco no casal e a partir da compreensão relacional sistêmica (Silva et al., 2015). As publicações existentes analisam, predominantemente, consequências observadas na repetição de comportamentos violentos e de transtornos alimentares, e em uma perspectiva psicanalítica, faltando publicações acerca dos aspectos gerais da transgeracionalidade nas relações estabelecidas pelo sujeito ao logo da vida e, menos ainda, com foco na construção da conjugalidade.
Neste sentido, destaca-se a necessidade de ampliação de investigações acerca do tema a fim de subsidiar possíveis intervenções no campo da psicologia e áreas correlatas nos âmbitos individual e, de modo especial, conjugal e familiar. Com isso, os profissionais podem compreender mais e melhor a dinâmica conjugal apresentada, trabalhando não somente os conflitos do casal, a partir do modo como os parceiros se relacionam, mas também em relação os aspectos transgeracionais que se expressam na conjugalidade. A partir disso, a presente pesquisa propôs-se a investigar qualitativamente o estudo de caso de um casal jovem, com o objetivo de identificar e discutir os aspectos transgeracionais trazidos de suas famílias de origem que se expressam positiva e/ou negativamente na relação conjugal que se estabelece na atualidade.
Transgeracionalidade: definindo o conceito
O termo transgeracionalidade diz respeito aos diferentes padrões que tendem a ser transmitidos de pais para filhos, e podem ser percebidos na maioria das relações estabelecidas durante o ciclo vital (Wagner, 2005). Este fenômeno se inicia muito cedo e se propaga ao longo da vida do sujeito, e contempla a transmissão de legados, mitos, crenças, modelos de relacionamento e outros padrões trazidos da família de origem para a família atual. Os aspectos transgeracionais contribuem com a formação da identidade do indivíduo e da família, bem como caracteriza o seu funcionamento com suas idiossincrasias e transações (Falcke & Wagner, 2005; Paiva, 2009; Rehbein & Chatelard, 2013; Wagner, 2005). Paiva (2009) refere o fenômeno da transgeracionalidade como um sintoma familiar, oriundo de um conteúdo não elaborado pelas gerações passadas. Assim, o passado se faz presente, ainda que o sujeito não tenha consciência disso, já que “ apesar da evidência do quanto as experiências na família de origem se fazem presentes na vida do indivíduo, são relativamente poucas as pessoas conscientes de como tais eventos, continuamente, influenciam e controlam seus comportamentos” (Falcke & Wagner, 2005, p. 27-28).
Fooken (2015) refere que os padrões transgeracionais são perpassados pela família de origem, por meio de conflitos geracionais irresolutos, podendo ser expressos como tabus familiares, mantendo os sujeitos presos ao sofrimento geracional, deixando rastros na vida dos descendentes. Querendo ou não, o sujeito carrega consigo vivências de sua família de origem, e herda padrões deste núcleo familiar, que constitui, em alguma medida, a sua história (Groisman, 2000). O mesmo autor explica que nesta história, se encontram marcadas as crenças que serão refletidas nas relações ao longo da vida.
O termo transgeracionalidade pode ser definindo como a transmissão de modelos transmitidos de geração em geração por meio dos vínculos, e continuam em vigor ao longo da história familiar (Falcke & Wagner, 2005). As mesmas autoras referem ainda que o fenômeno se dá mediante a repetição de processos familiares, porém em contextos e modulações diferentes. Anton (2012) destaca que a psique do sujeito é composta por influências socioculturais e memórias inconscientes, e essa é a influência principal para os vínculos primordiais estabelecidos na vida; o vínculo familiar, transmissor dos legados. Bertin e Passos (2003) apontam que “no processo do inter-relacionamento, os membros de um sistema familiar vão se afetando e, consequentemente, influenciando-se na maneira de perceber, pensar e comunicar” (p. 69). Diante da importância das relações estabelecidas com a família desde o nascimento, pode-se dizer que a partir delas se dão os futuros comportamentos do indivíduo crescido (Groisman, 2000). O mesmo autor compara a interação familiar com uma peça teatral, na qual cada indivíduo é um fantoche, preso por fios transparentes, e movidos pelos antepassados, referindo a intensidade de expressão dos padrões geracionais por meio dos relacionamentos do sujeito. Já Falcke e Wagner (2005) referem que essas repetições podem, tanto causar estagnação e perpetuação dos modelos quanto impulsionar as grandes mudanças.
É por meio das vivências estabelecidas na família de origem, relevantes para a constituição do sujeito, que se dá o processo de transmissão geracional, ou transgeracionalidade (Falcke & Wagner, 2005). A isso, somam-se fatores como cultura, moral e valores, que entram em cena a partir das crenças da família de origem e mesmo sem serem percebidos, se mantêm gravados no indivíduo (Anton, 2012; Falcke & Wagner, 2005; Wagner, 2005). Paiva (2009) aponta que as heranças geracionais podem ser tão marcantes na vida do indivíduo que apropriar-se dos seus legados torna-se um grande desafio na vida.
A transmissão de modelos relacionais de geração em geração parte do pressuposto de que todos os indivíduos possuem uma história prévia, tornando-se, portanto, “herdeiro e prisioneiro dela” (Falcke & Wagner, 2005, p. 26). Por vezes, na tentativa de rejeitar determinados resultados obtidos a partir do modelo vivenciado na família de origem, o sujeito pode buscar, eventualmente, um padrão contrário ao familiar. Entretanto, é inevitável que tenha, em alguma medida, consequências similares às observadas em seu contexto de origem (Falcke & Wagner, 2005). Por vezes, se busca escapar dos padrões transgeracionais, acreditando na liberdade, entretanto, quanto mais se tenta fugir deles, mais intensamente eles se manifestam (Groisman, 2000).
A individuação do sujeito e o processo transgeracional
Desde a década de 1990, Ayelmer (1995) referia e, anos mais tarde, Anton (2012) também apontou que um dos fatores desencadeantes do processo de individuação se dá por meio da vivência da experiência de novas realidades fora do contexto familiar, colocando o sujeito a cumprir novos desafios, principalmente, no contexto social, que trariam aprendizados diferentes dos advindos do núcleo familiar . Com isso, os mesmos autores acreditam que, ao experimentar novos cenários, diferentes do vivido no sistema familiar de origem, o indivíduo dá início a uma jornada em busca de uma nova identidade que é constituída conforme suas vivências passadas e atuais, juntamente com seus aspectos individuais e idiossincráticos, refletindo em seus meios sociais, de trabalho e afetivos.
Neste sentido, na fase em que o jovem adulto se prepara para assumir o controle da própria vida, assumindo-se como independente e autônomo, mudanças acontecem, e o sujeito precisa estar psiquicamente preparado para que possa obter sucesso e reconhecer-se como adulto. Com isso, espera-se que a adolescência, fase do ciclo vital que antecede esta etapa, tenha tido suas demandas experienciadas com qualidade, para que assim, o processo de singularidade, essencial para a vida humana, possa ser concluído com sucesso (Carter & McGoldrick, 1995). Entretanto, quando a fase antecedente contempla dificuldades e tarefas que não se cumprem, é possível que as mudanças, por vezes repentinas, sejam vivenciadas com intolerância e sofrimento por alguns indivíduos, podendo não ser possível se desvencilhar emocionalmente do seio familiar e dos seus padrões de costume. Com isso, podem acabar retornando ao ninho de origem (Ayelmer, 1995).
É importante ressaltar que a família de origem assume um papel importante na evolução do indivíduo no sentido de contribuir, positiva e/ou negativamente, para que o processo de individuação se estabeleça. Ayelmer (1995) acreditava, desde décadas passadas, que os pais têm um papel relevante neste momento, sendo responsáveis por evitar o controle sobre a vida dos filhos. Ainda, podem orientá-los sobre o sustento financeiro e respeitar seus limites residenciais, aspectos essenciais para um desenvolvimento promissor e saudável da individualidade, auxiliando na promoção da independência e autonomia dos filhos. O ser humano mesmo que em constate busca pela singularidade, é submisso à família, considerando a necessidade da mesma para o seu desenvolvimento saudável (Groisman, 2000).
Não somente a saída física da casa dos pais garante o sucesso no processo de aquisição da autonomia e independência dos filhos. Antes disso, o indivíduo passa por um ensaio sobre a vida adulta e por meio da observação e convivência na família de origem, acaba por ser influenciado em suas decisões e comportamentos. A partir dos vínculos familiares, há identificação do indivíduo com estes padrões, que vão se instaurando na psique, assumindo um valor central e fazendo com que o sujeito se sinta pertencente àquele contexto (Gomes & Zanette, 2009). Durante este processo de individuação, o sujeito carrega consigo as marcas geracionais relacionadas aos diferentes padrões da família de origem. Ainda, a maneira com que as necessidades de desenvolvimento foram supridas, ou não, pela família de origem, tende a se repetir, podendo comprometer as relações que ele estabelece, mesmo após a sua individuação (Anton, 2012; Ayelmer, 1995; Falcke & Wagner, 2005; Rehbein & Chatelard, 2013).
Mesmo que os indivíduos questionem o valor de determinados registros familiares, em algumas situações, não conseguem praticar comportamentos mais adequados (Anton, 2012; Paiva, 2009). Féres-Carneiro e Magalhães (2005, p. 115) destacam que “o reconhecimento do sujeito como semelhante aos demais e o sentimento de pertencimento ao grupo familiar propiciam a identificação e a diferenciação”, ressaltando assim, que é essencial que o sujeito se aproprie de sua história e cumpra com o seu papel de forma ativa. Tais autoras pontuam ainda que o desenvolvimento saudável do sujeito se mostra por meio do reconhecimento de suas heranças, e demonstra sua singularidade frente aos padrões recebidos. Sendo a transgeracionalidade um fator de constituição da individualidade, cabe ressaltar que a partir destes padrões recebidos, o indivíduo passa a assumir de forma mais clara e concreta o seu papel na família (Falcke & Wagner, 2005). A individualidade do sujeito será constituída por meio da descoberta dos valores familiares recebidos, e após isso, sua individuação pode ser alcançada, tendo suas idiossincrasias, mas mantendo os padrões familiares observados e vivenciados anteriormente, porém de maneira mais ou menos intensa (Falcke & Wagner, 2005; Groisman, 2000). Deixa-se de ser submisso aos valores pré-estabelecidos, sendo possível agora, moldar suas características e viver de acordo com seus próprios desejos (Falcke & Wagner, 2005).
Desta forma, pode-se se dizer que a individuação do sujeito se dá por meio da junção do conteúdo novo, aprendido pelos desafios encarados, com o padrão que desde muito cedo foi observado e vivido, e na vida adulta constitui a identidade do indivíduo (Falcke & Wagner, 2005). Assim, o sujeito é responsável por moldar estes materiais de acordo com as suas idiossincrasias, e assim será autor/proprietário da sua herança geracional (Gomes & Zanetti, 2009; Falcke & Wagner, 2005), já que é tarefa do sujeito construir, elaborar e transformar suas heranças geracionais para a formação de sua individualidade (Féres-Carneiro & Magalhães, 2005). Groisman (2000) aponta que se busca constantemente pela singularidade, pelo tornar-se individual, e ressalta que o processo pode levar a vida toda, mas que o sujeito acima de tudo, deve tomar o cuidado, zelando sempre por manter suas raízes.
Considera-se, então, que há um fator essencial na vida que não se pode controlar e nem tampouco, escolher, definido como uma espécie de bagagem recebida dos antecessores. Esta bagagem é carregada ao longo da vida do indivíduo, sendo composta pelas relações estabelecidas com suas figuras de referência, por registros bons e/ou ruins, e pelos recursos pessoais desenvolvidos ao longo do tempo (Anton, 2012). Porém, essa herança nem sempre se constitui unicamente em algo agradável, visto que as vivências familiares e os seus aprendizados não são, exclusivamente, positivos. Assim, cabe ao indivíduo decidir o tipo de influência esses aprendizados terão em sua vida; se um determinado padrão será repetido, visto que passou a ser um valor, ou se será extinto por não tê-lo como conveniente. Contudo, os pensamentos sobre passado, presente e futuro encontram-se diretamente ligados (Anton, 2012; Gomes & Zanetti, 2009) e não são necessariamente, conscientes.
A escolha do cônjuge
Antes mesmo do encontro entre os parceiros, já existe no psiquismo do sujeito um lugar especial, reservado para a conjugalidade (Féres-Carneiro & Magalhães, 2005). Neste lugar, que não é um lugar físico, mas um espaço emocional no qual encontram-se histórias, vivências, modelos de afeto e de relações conjugais, seus ideais e fantasia acerca da conjugalidade, que de modo geral foram transmitidos pelas heranças geracionais, tendo como consequência a identificação do sujeito com estes fenômenos. Além disso, apesar de o senso comum referir que “os opostos se atraem”, a escolha do cônjuge, na maior parte das vezes, se dá pela procura de similares, buscando encontrar aspectos comuns aos futuros parceiros (Falcke & Wagner; Mosmann, 2005; Silva, Menezes & Lopes, 2010; Silva et al., 2015). Silva, Menezes e Lopes (2010) apontam ainda que, além disso, os aspectos transgeracionais e a busca por complementaridade tem suma importância para escolha dos pares.
Anton (2012) propõe que as relações amorosas se iniciam a partir de microssinais, supostamente emitidos por uma pessoa, e captados por outra, provocando uma espécie de química inicial, que promove uma atração e envolvimento entre os parceiros, dando início ao estabelecimento dos contratos conjugais. Ressalta, ainda, que há um desejo por reciprocidade que alimenta o vínculo que está sendo estabelecido. Acredita-se, então, na necessidade de haver atração e combinação entre os pares, para assim, estabelecer-se uma relação amorosa (Zordan, Falcke & Wagner, 2005).
Neste sentido, um fator desencadeante deste processo é a necessidade e o desejo de companhia vinda do sujeito que já não se sente mais pertencente do ninho de origem (Anton, 2012; Paiva, 2009). Partindo disso, inicia-se um movimento de se fazer pertencer novamente a outro lugar e a alguém, salientando que, em geral, é de grande valia poder se sentir pertencente a um meio, pois ali poderão ser divididas as felicidades e angústias (Anton, 2012; Féres-Carneiro & Magalhães, 2005). Anton (2012) dá ênfase ao processo de compartilhar as emoções, demonstrando o quão valoroso pode ser, para alguns, o ato de se sentir importante e quão necessário pode se tornar o fato de interessar a alguém e ser recíproco.
Nos tempos atuais, o amor é um dos fatores preditores da escolha do cônjuge, mesmo que este ideal seja difícil de ser alcançado (Féres-Carneiro & Magalhães, 2005). Silva et al. (2015, p. 25) referem que “decresce a falta de amor entre os cônjuges, visto que se preza pelo companheirismo e cumplicidade e não há mais a obrigatoriedade da procriação”. Conforme o indivíduo sente-se novamente como pertencente de um contexto, e que a ele pertence, faz com que se perceba conectado novamente ao mundo, mesmo que seja singular, encontrando na relação conjugal uma maneira de assegurar e confirmar a sua individualidade (Féres-Carneiro & Magalhães, 2005). As mesmas autoras (2005) referem ainda, que antes da relação amorosa acontecer, os indivíduos passam por uma fase do ciclo vital em que há uma sensação de vazio , que se preenche pelo amor expresso na construção da relação conjugal, fazendo com que o indivíduo se sinta inteiro novamente.
Com isso, o processo de escolha do cônjuge se dá a partir do destino dado pelo sujeito às suas vontades internas (Anton, 2012). Mesmo que o sujeito seja resultado de um acúmulo de vivências familiares de origem e isso contribua, de forma relevante para suas decisões ; o aprendizado familiar não pode ser considerado um fator determinista de suas experiências e escolhas. Considera-se como parte deste processo a forma como o indivíduo decide viver a sua história, que envolve a família de origem, mas não se restringe a ela. Portanto o destino dado às suas vontades, possibilita entender seus canais emocionais e como ocorrem determinados sentimentos, estabelecendo-se assim a forma como se dá e se sustentam as suas relações mais íntimas, que futuramente serão chamadas de família (Anton, 2012).
A partir disso, a família de origem tem influências diretas e indiretas diante das decisões do sujeito frente à escolha amorosa (Falcke Wagner & Mosmann, 2005; Silva et al, 2015), visto que ocorre a identificação do sujeito com os padrões ali vivenciados (Silva et al., 2015). Com isso, as relações conjugais atuais podem ser compreendidas como uma reedição das narrativas apresentadas pela família de origem, sendo que esses modelos refletem o desdobramento afetivo-sexual dos filhos, expressando-se claramente na nova família que está sendo constituída (Féres-Carneiro & Magalhães, 2005). Gomes (2014) aponta que, nos casos de relações familiares disfuncionais, os padrões transgeracionais se expressam com maior ênfase, e ressalta que tanto na nova família, como na própria escolha do cônjuge, os modelos são fortemente repetidos, já que o sujeito busca dar um desfecho diferente e mais feliz do que aquele fora vivenciado.
No início de um relacionamento amoroso com parceria entre os sujeitos envolvidos, sempre haverá intenções individuais. Ainda que o casal estabeleça um interesse comum, mesmo sem perceber, mantém as crenças das raízes familiares, que interferem diretamente no vínculo a ser estabelecido (Anton, 2012). A autora ressalta ainda, que o estabelecimento de uma relação marital que seja gratificante para os cônjuges se dá por meio das posturas e decisões tidas ao longo da vida dos indivíduos, que acabam por refletir, mesmo que inconscientemente, na relação que está se criando. Portanto, os padrões familiares aprendidos ao longo do desenvolvimento e individuação do sujeito estão diretamente ligados a esta escolha conjugal.
Neste sentido, o sistema familiar inicial torna-se uma influência direta na escolha conjugal (Paiva, 2009), já que cada um, na busca do estabelecimento de vínculo conjugal, traz consigo suas próprias heranças, que se expressam na relação (Silva et al., 2015). Mesmo que supostamente entenda-se a escolha do cônjuge como autônoma e espontânea, ela pode ser compreendida como promíscua, visto que é “contaminada” pela transmissão de padrões familiares, explícitos ou implícitos. Frente a isso, a escolha do parceiro amoroso é mais do que uma escolha individual, não sendo reservada, unicamente aos cônjuges, mas constitui-se também, a partir dos contextos familiares e sociais dos parceiros (Falcke, Wagner & Mosmann, 2005). Desse modo, antes mesmo de se casarem, os indivíduos já levam no psiquismo, as ideias e expectativa frente à vida conjugal (Falcke & Wagner, 2005). Gomes (2014) em um estudo que investigou os padrões transgeracionais de 10 casais atendidos em processo psicoterápico, identificou conflito relacionado à transmissão psíquica intergeracional e à determinação da escolha do cônjuge, tendo sido as relações dos pais, a base para os relacionamentos amorosos dos filhos. Falcke, Wagner e Mosmann (2005) referem que independente da escolha feita pelo indivíduo, em repetir ou não os padrões conjugais transgeracionais recebidos da família de origem, suas vivências prévias serão sempre uma referência importante para o estabelecimento dos relacionamentos amorosos do sujeito. Com isso, destaca-se a importância dos primeiros anos da vida conjugal, já que é o momento em que se espera a diferenciação das famílias de origem com foco na construção da conjugalidade. Não raro, é também um período caracterizado pela presença de tensão e necessidade de adaptação, já que os padrões familiares costumam ser um modelo de referência para o jovem casal (Heckler & Mosmann, 2014).
Método
A presente pesquisa teve caráter qualitativo, com delineamento exploratório e buscou analisar e compreender a expressão do fenômeno da transgeracionalidade na relação conjugal, a partir de um estudo de caso (Oliveira, 2011). Neste sentido, pôde-se identificar a percepção do casal, bem como comparar as experiências subjetivas entre os cônjuges na relação, descrevendo-as e discutindo-as frente ao fenômeno (Creswell, 2014). O referido método foi selecionado em razão de que pode assegurar que o fenômeno, a transgeracionalidade, pudesse ser compreendido e analisado a partir das vivências do casal participante, proporcionando ainda uma discussão comparativa entre as experiências singulares dos cônjuges e os achados da literatura (Silva, Gobbi & Simão, 2005).
Participantes
Participou deste estudo um casal heteroafetivo, aqui nomeados de João e Maria, residentes de uma cidade do interior do RS. Os parceiros tinham ambos, na ocasião da coleta dos dados, 27 anos de idade e conviviam em uma primeira relação conjugal de união estável há dois anos e quatro meses. João é o terceiro, de uma prole de quatro irmãos, recém-formado em arquitetura e Maria, filha única, é administradora de empresas. Ambos provêm de famílias de nível so cio econômico baixo e são de religião luterana. Tanto os pais de Maria quanto os pais de João, são trabalhadores em diferentes atividades do setor calçadista, o que constitui destaque na região onde vivem.
O casal foi selecionado por conveniência, a partir de indicação de pessoas conhecidas da pesquisadora principal, mas sem qualquer vínculo pessoal, profissional e/ou social com as autoras deste estudo; tendo sido convidados a participarem da pesquisa por meio de uma ligação telefônica inicial. Definiu-se como critério de inclusão o casal estar em uma primeira relação conjugal de até cinco anos de convivência, visto que o objetivo do presente estudo foi investigar a herança dos padrões transgeracionais no estabelecimento da conjugalidade. Ainda, o fato de ser primeira união conjugal justificou-se pela intenção de ter a constituição da conjugalidade a partir das famílias de origem dos cônjuges objetivando que houvesse menor influência advinda de uma vivência conjugal anterior.
Instrumentos
Os instrumentos utilizados para o presente estudo a fim de alcançar os objetivos propostos foram:
Questionário de dados sociodemográficos: elaborado a fim de coletar informações básicas dos participantes, alcançando questões de ordem social, educacional e financeira, buscando mapear a realidade sócio-econômico-cultural dos participantes e a realidade a que pertenciam.
Entrevista semiestruturada com o casal: elaborada especificamente para este estudo, contendo questões abertas referentes à expressão dos padrões transgeracionais na relação conjugal. Por ser um modelo flexível de entrevista, permite ao pesquisador acrescentar ou retirar questionamentos, conforme a necessidade (Marconi & Lakatos, 2008), garantindo que os objetivos estabelecidos para o estudo possam ser contemplados. A aplicação foi realizada com o casal, e gravada em áudio para posterior transcrição. As perguntas foram realizadas conforme uma ordem pré-estabelecida, iniciando com questões mais amplas e finalizando com questões mais direcionadas ao fenômeno estudado.
A entrevista teve como foco a investigação dos seguintes tópicos: legados das famílias de origem dos cônjuges; disponibilidade de aceitação e compreensão dos legados apresentados pelos parceiros; padrões conjugais transgeracionais presentes na relação conjugal atual e modelos conjugais transgeracionais que interferem positiva e/ou negativamente na relação conjugal atual. A entrevista teve como tempo de duração 1h 30min conforme as necessidades do estudo e dos participantes. O local de administração da entrevista foi a própria residência do casal, o que foi previamente combinado com os participantes, respeitando o seu conforto e a garantia das condições de confidencialidade.
Entrevista semiestruturada individual com os cônjuges: foram realizadas entrevistas individuais, com cada cônjuge, com o propósito de proporcionar um espaço de escuta livre para cada um. Foi considerada a possibilidade de terem alguma informação que, eventualmente, junto com o parceiro, pudessem sentir-se intimidados, receosos ou constrangidos, subtraindo, desta forma, algum dado relevante. A entrevista individual teve duração aproximada de 1h, e foi realizada no mesmo local, mantendo os preceitos éticos.
Procedimentos éticos e de coleta de dados
A fim de adequar-se às orientações éticas preconizadas para pesquisas com seres humanos (Resolução 510/2016-CNS), este projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa de uma IES do RS, via Plataforma Brasil (CAAE: 71593617.6.0000.8135) e, a partir disso, deu-se início a investigação. A pesquisa foi divulgada entre pessoas conhecidas das pesquisadoras a fim de obter indicações de possíveis participantes. Teve-se o cuidado de que as indicações não tivessem vínculo pessoal, acadêmico ou profissional com as pesquisadoras a fim de garantir a fidedignidade dos resultados e o cumprimento dos cuidados éticos.
A partir da indicação dos potenciais participantes, realizou-se um contato telefônico a fim de explicar o estudo e seus objetivos, convidando os sujeitos à participação. Diante do aceite, foram agendados dia, horário e local para dar início à coleta dos dados, de acordo com as possibilidades de cada um.
No primeiro o encontro, os participantes foram esclarecidos acerca do estudo, seus objetivos e procedimentos, sigilo e privacidade, a possibilidade da divulgação dos resultados possibilidade de desistência e demais informações pertinentes ao estudo. Além disso, foram fornecidas informações sobre o responsável pela investigação e seus contatos. Não restando dúvidas, os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), em duas vias, ficando uma com o participante e a outra devolvida à pesquisadora, e assim foi dado início à entrevista semiestruturada com o casal. No primeiro momento da entrevista, o casal respondeu aos questionamentos sociodemográficos e em seguida às perguntas elaboradas para esta investigação. Ao final deste momento, os parceiros foram convidados a agendar um segundo encontro com a pesquisadora, em dia, horário e local de sua preferência para a realização da entrevista individual com os cônjuges. As entrevistas foram então realizadas na residência do casal e tiveram duração de 1h 30 min.
Procedimentos de análise de dados
Os dados coletados nas entrevistas foram analisados qualitativamente, à luz da compreensão sistêmica da família, com base na escola trigeracional de terapia familiar (Andolfi, 1998), buscando explicitar e compreender o fenômeno transgeracional no início da vida conjugal. Inicialmente, foi realizada a transcrição precisa do conteúdo gravado, e posteriormente, foi realizada a leitura e análise dos dados, buscando os achados do fenômeno nas respostas dos sujeitos, investigando sua expressão na relação atual. Por fim, buscou-se comparar qualitativamente os dados de cada cônjuge, possibilitando a compreensão a partir da literatura.
Resultados e discussão
Maria é filha única de um casal que vive junto há 30 anos; e João é o terceiro filho de uma prole de 4 irmãos, cujos pais separam-se quando João tinha dois anos. Desde então, João não teve qualquer contato com o pai biológico, que abandonou a esposa e os filhos. Aos seus três anos e meio, a mãe recasou com aquele que João reconhece como pai. Da relação com o padrasto, a mãe de João teve o quarto filho. Contudo, essa nova relação da mãe fora bastante conflituosa, fazendo com que João e os irmãos tenham sido criados ora pelos pais, ora avó materna, ora por uma tia materna. Anos mais tarde, já na adolescência, ele retornou ao convívio com a mãe e o padrasto. Sua história de convívio familiar de idas e vindas, parece ter ajudado João a virar-se por si mesmo, precisando adquirir autonomia e independência desde cedo.
Os dados coletados permitiram identificar aspectos relacionados aos legados herdados pelos cônjuges de suas famílias de origem, a disponibilidade de aceitação e compreensão das heranças familiares dos parceiros, os padrões conjugais transgeracionais presentes na relação conjugal atual e os modelos conjugais transgeracionais que interferem positiva e/ou negativamente na relação conjugal atual. Os dados levantados revelaram que fenômeno é expresso no casal de modo relevante, bem como a percepção dos cônjuges acerca das heranças pessoais e também do parceiro. A transgeracionalidade pode ser percebida durante todo o ciclo vital, em diferentes situações e etapas da vida. No estabelecimento da conjugalidade destaca-se, de modo relevante, já que há a necessidade de junção dos padrões trazidos por cada cônjuge, de sua família de origem, para a construção da vida a dois, desenvolvendo um jeito exclusivo de conjugalidade (Carter & McGoldrick, 1995).
João e Maria se conheceram à época do ensino médio e com o passar dos anos se apaixonaram e começaram a namorar. Entretanto, a relação era proibida pela família de Maria, por conta do preconceito com João, por ele ser negro. Segundo Maria, desde a sua infância, a família criava expectativas para o seu futuro e, dentre elas, estava o casamento com “um homem branco e fazendeiro” [ sic-Maria], mantendo a tradição familiar. Tendo ela ouvido, muitas vezes, sobre os desejos dos familiares sobre a constituição do casamento ideal, o casal resolveu omitir o namoro, o que perdurou por três anos. Falcke e Wagner (2005) apontam que mesmo antes do casamento os sujeitos carregam, no psiquismo, ideais e expectativas advindas das famílias de origem frente a vida conjugal, sendo expressos muitas vezes por meio de tabus (Fooken, 2015). “...Passou três anos de namoro escondido... Começamos a namorar quando já estávamos fazendo faculdade, os meus pais não aceitavam ele por ser preto, e por que tinha uma tia que falava mal...” [ sic-Maria] . Segundo o casal, a mãe de João também não aprovava a relação, visto que não queria perder o filho. “A gente tava com a casa quase toda em pé quando a gente trouxe ela aqui pra ver. Não que ela não gostasse de mim, ela me achava legal, querida, mas ela queria o J. pra ela, por que ele servia ela, fazia as coisas pra ela sabe?” [ sic-Maria]. Embora a família de João não tenha apresentado restrições ao namoro, os avós de João foram protagonistas de uma relação que não foi bem-vinda por suas famílias de origem, parecendo que, em alguma medida, a história se perpetua.
Logo que houve a aceitação dos pais frente ao relacionamento do casal, os cônjuges iniciaram o namoro, o que perdurou por dois anos até o noivado. A partir disso, iniciaram a construção da casa própria, para onde João mudou-se logo que a obra foi concluída. De acordo com o relato dos participantes, os pais de Maria, mesmo aceitando a relação e sabendo do noivado, não concordavam que ela o visitasse antes do casamento religioso. “A casa ficou pronta no fim do ano ou início de janeiro. Daí eu ia vir morar só em abril, aí o João já tava morando aqui, mas meu pai não gostava que eu vinha ficar aqui em fins de semana sabe? Meu senhor, né?! Ele achava o fim isso, mesmo sabendo que a gente ia casar, ele achava que nossa...Não podia né?! Mas eu vinha, não tinha o que ele fazer, a gente ia casar igual. Grande coisa, como se não tivéssemos feito nada antes! Mas assim, no mais era um sonho meu mesmo, eu queria, tinha que casar e tinha guardado dinheiro pra isso!” [ sic-Maria] . A fala de Maria suscita o questionamento acerca do desejo do casamento religioso como um sonho pessoal ou tendo sido construído a partir do desejo parental, expresso mito familiar de que “tinha que casar” (Andolfi & Angelo, 1989). Os mesmos autores referem o mito como uma crença que é compartilhada pelos membros da família e acabam por enraizar-se na história familiar e nos sujeitos de modo que, por vezes, sequer é questionado (Andolfi & Angelo, 1989) . Bertin e Passos (2003) apontam que “no processo do inter-relacionamento, os membros de um sistema familiar vão se afetando e, consequentemente, influenciando-se na maneira de perceber, pensar e comunicar” (p. 69), o que pode ser notado em Maria quando refere que o casamento foi um sonho pessoal, não identificando que este foi almejado inicialmente por sua família, tendo ela o recebido como legado transgeracional.
Os participantes foram questionados sobre a interferência das famílias de origem na escolha do parceiro amoroso, e apesar de não ter ocorrido a repetição dos modelos esperados pelos familiares para essas escolhas, influências foram observadas frente à decisão pelo casamento. Após quatro anos de noivado, os cônjuges oficializaram o casamento e apesar de relatarem ser um sonho de Maria, mencionaram ter sentido pressão, especialmente pelos pais dela, por conta da crença familiar “de achar que era pra não ficar mal falada, tipo de as pessoas falarem que ‘ah, ela se juntou’... pra não ficar esses falatórios...” [ sic-Maria] . Neste sentido, o mito familiar de que ao não oficializar o casamento ficaria “mal falada” acaba por tornar-se um valor preservado pelos membros das gerações seguintes (Andolfi & Angelo, 1989). Ao mesmo tempo, referem a interrelação entre os aspectos individual, familiar e social, presentes na compreensão multigeracional da família (Andolfi, 1998). Além disso, referiram que os pais dela participaram da maioria das definições sobre o casamento, expressando a possibilidade de alguma indiferenciação em relação à família de origem. Maria aponta que sempre se importou com a opinião das outras pessoas e que com o casamento não foi diferente. Relata ter consciência de trazer esse padrão de funcionamento de sua família de origem, tendo o recebido principalmente da sua mãe. “Me importo demais com o que os outros pensam, eu levo isso muito... eu trago isso da minha mãe, minha mãe é assim, pra minha mãe ‘meu Deus do céu se alguém pensar alguma coisa’, e eu sou bem igual assim, eu me importo mais às vezes com o que os outros vão pensar do que comigo mesma, entende?! Então às vezes eu mesma, vinha dormir aqui e já achava que o meu pai ia ficar brabo e já ficava com remorso...” [ sic- Maria] , revelando, mais uma vez, aspectos da indiferenciação familiar (Bowen, 1991). Dessa forma ficam evidentes as crenças familiares recebidas por Maria, tendo ela consciência da sua repetição. Nota-se, com isso, a influência dos fatores culturais, morais, as crenças e os valores recebidos por parte da família de origem que se mantinham presentes em sua vida (Andolfi & Angelo, 19989; Anton, 2012; Falcke & Wagner, 2005; Wagner, 2005).
O casal relata que após o casamento, perceberam a existência de padrões familiares advindos de ambas as famílias. Entretanto, os dados coletados revelam que as heranças familiares de Maria são mais evidentes, já que ela se mostra menos diferenciada de sua família de origem. Contudo, ambos os cônjuges demonstraram reconhecer a repetição dos legados familiares na relação conjugal que estabeleceram. Neste sentido, pode-se apontar que ainda que existam aspectos indiferenciados em relação às famílias de origem, João e Maria tem sido capazes de reconhecer suas heranças familiares, bem como tem conseguido expressar no casamento, sua singularidade frente a esses padrões o que se mostra como positivo ao longo do tempo (Féres-Carneiro & Magalhães, 2005). Além disso, a percepção da ocorrência da transgeracionalidade em sua vida favorece que o sujeito assuma de maneira mais evidente e clara o seu papel na família (Falcke & Wagner, 2005).
Foi evidenciado pelo casal o padrão de religiosidade advindo da família de Maria, na qual, desde a infância, houve ensinamentos sobre as crenças religiosas, tendo incentivo ao seguimento de preceitos bíblicos, com frequentes idas à igreja. Já na família de João, apesar de serem cristãos, a religiosidade não era um aspecto valorizado. Na relação atual do casal, João e Maria reconheceram a manutenção do padrão familiar de Maria, que faz com o casal frequente ativamente a mesma igreja da família de origem de Maria, expressando na relação atual um valor familiar de origem (Andolfi & Angelo, 1989). Assim, frente a identificação dos sujeitos com os padrões familiares herdados e instaurados na psique, esses padrões assumem um valor, independentemente de serem questionados ou não (Gomes & Zanette, 2009). Neste sentido, a religiosidade foi tomada como valor relevante na vida individual de Maria, e visto sua identificação, o padrão passou a ser praticado por João, fazendo parte de sua história atual do casal.
Padrões condizentes com a organização financeira do casal foram evidenciados, e observou-se que os cônjuges receberam modelos familiares diferentes, mas que atualmente organizam-se a partir de um padrão estabelecido que consideram mais positivo para a relação atual. A organização financeira do casal é administrada de forma que o dinheiro recebido pelos cônjuges, mesmo que de esforços individuais, é mantido em conjunto, não havendo divisão entre eles ; herança igualmente recebida e reproduzida a partir do modelo da família de origem de Maria e aceita por João. Aliando a esse aprendizado familiar, destaca-se a forte herança transgeracional de Maria, que desde muito jovem, aprendeu que o dinheiro deveria ser guardado e utilizado com cautela, sendo necessário que algum valor seja guardado para o caso de contratempos. Ainda a esse respeito, o relato dos participantes revela que para a família de Maria, guardar o dinheiro significa, por vezes, privar-se de momentos de lazer para ter o dinheiro emergencial. “Eles deixam de comer, deixam de passear, deixam de curtir às vezes a vida, de sair juntos, pra guardar dinheiro...” [ sic Maria] . Apesar do padrão rígido, os cônjuges referem que conseguem manejar o dinheiro, sendo mais flexíveis do que os familiares de Maria. “...tá, é a família, mas a gente absorve o que a gente acha que é certo, se não deixa assim...” [ sic-João] . Desta forma, notou-se que com a aquisição da individualidade, os cônjuges têm sido menos submissos às suas experiências nas famílias de origem, tendo a possibilidade de moldar seus padrões conforme as próprias características, vivendo de acordo com seus próprios desejos (Falcke & Wagner, 2005).
Contudo, ao serem questionados sobre um possível desconforto em relação ao legado financeiro, João refere não se sentir afetado diretamente. Já sua esposa, destaca que apesar de acreditar que são mais capazes aproveitar a vida e ainda, reservar alguma quantia para eventuais necessidades, sente-se angustiada por não conseguir guardar mais dinheiro, referindo alguma pressão transgeracional, o que revela a dificuldade de reconhecer o padrão familiar herdado e presente na conjugalidade. Neste sentido, Gomes (2014) aponta que muitos casais demonstram o desejo de criar um novo modelo de relação conjugal, entretanto são notáveis os obstáculos causados pelas heranças transgeracionais.
Observou-se, portanto, a ambivalência em relação ao sentimento de poder sentir-se ligeiramente mais livre para poder viver melhor, aproveitando um pouco mais os prazeres da vida, ao mesmo tempo que se sente culpada por não estar seguindo o padrão familiar aprendido. Groisman (2000) refere que muitas vezes, os sujeitos pretendem escapar de suas heranças, fazendo movimentos de fuga, julgando-se livres de seus legados. No entanto, esse gesto, na maioria das vezes, acaba por se manifestar de forma ainda mais intensa na vida do sujeito, tornando-o ainda mais evidente, uma vez que a tentativa foi de fugir e não de elaborar.
Outro padrão observado pelos cônjuges foi a necessidade de realização das refeições em conjunto. O casal refere que este modelo também foi recebido da família de Maria sendo um organizador para o casal, e da mesma forma que o padrão financeiro, apontam que tem buscado adaptar conforme sua realidade. No modelo herdado por Maria, todos os integrantes da família realizavam as refeições juntos, à mesa, e sem qualquer estímulo visual ou audiovisual, pois “fazia mal à convivência familiar” [ sic Mar ia ] . Já na relação com João , as refeições permanecem sendo realizadas em conjunto e à mesa. Entretanto, a televisão pode ser ligada, visto que João é admirador de esportes e é o momento que tem para assisti-los. Visto isso, identificam-se os legados dos parceiros de suas famílias de origem, ao mesmo tempo em que o casal se mostra capaz de adaptá-los às suas necessidades. É importante ressaltar, que o referido padrão foi vivido de maneira distinta pelos cônjuges, tendo João aceito a repetição, mas propondo adaptações à realidade do casal, acreditando ser positivo para a relação estabelecida. “A gente se adaptou a parte de almoçar... tipo lá na casa da Maria eles não ligam a TV e tal, e aqui a gente liga...” [ sic João] . “A questão de almoçar e tomar café juntos ele gosta assim, pra a gente ter um convívio mais nosso, para parar e falar coisas nossas...” [ sic-Maria] . Neste sentido,Anton (2012) enfatiza que nos relacionamentos, muitas vezes é expressivo o processo de compartilhamento das emoções e a validação do ato por reciprocidade. De modo geral, para muitos é de grande valia notar-se como pertencente a um contexto, sabendo que ali poderão ser compartilhadas suas alegrias e angústias (Anton, 2012; Féres-Carneiro & Magalhães, 2005).
Destaca-se o registro do legado familiar manifesto no decorrer das entrevistas, que se refere às questões da individualidade dos cônjuges. João relatou que em diversos momentos, acaba pensando de maneira mais independente, por vezes até tomando decisões referentes ao casal, sem consultar a esposa, o que se mostra como um padrão familiar que se perpetua na conjugalidade do casal. Ambos referem que João aprendeu na família de origem este modo de ser, já que lá, cada um agia e decidia as coisas por conta própria, sem grandes interferências dos demais integrantes da família. Ainda que, na maioria das vezes, as situações envolvessem questões individuais e não de casal ou família, João parece ter aprendido a resolver tudo sozinho, o que faz com que, mesmo nas questões que dizem respeito ao casal, ele tenha dificuldade de consultar a esposa ou considerar sua opinião ou vontade. Visto isso, o casal aponta este aprendizado familiar como um obstáculo à qualidade da relação, já que algumas decisões que se referem ao casal e que poderiam ser pensadas e decididas a dois, são muitas vezes, decididas unicamente por João, às vezes por impulsividade; podendo favorecer a presença de conflitos. Por vezes, os casais aspiram por uma nova forma de se relacionar, visando as idiossincrasias da dupla, mas as adversidades transgeracionais muitas vezes são intensas, sendo geradoras de discórdia (Gomes, 2014), o que se destaca, na clínica conjugal, como promotores de conflitos conjugais.
Ainda no que tange à individualidade dos parceiros, o casal refere ter consciência sobre a necessidade de momentos individuais, preservando os aspectos pessoais como também seus vínculos sociais, que pode ser identificado a partir do relato de João, que costuma jogar futebol com os amigos no tempo em que Maria aproveita para desfrutar da companhia da irmã e tomar chimarrão, entre outras situações semelhantes. Com isso, os parceiros preservam a individualidade, ao mesmo tempo que consideram ter uma relação de companheirismo, herança familiar que, mais uma vez, Maria refere como aprendizado familiar.
O casal foi questionado sobre o que observaram na relação conjugal dos pais que julgam ser importante repetir no relacionamento que estabeleceram. De prontidão, Maria respondeu que a relação de companheirismo e o amor que observa entre os pais, que mesmo depois de 40 anos de casados, mantém um forte vínculo afetivo. Féres-Carneiro e Magalhães (2005) destacam que mesmo antes do encontro entre o casal, o sujeito tem um lugar reservado em seu psiquismo para as questões referentes à conjugalidade. Este espaço emocional é constituído pelas vivências do sujeito, carregando parâmetros de afeto de relacionamento conjugal, recebidos de heranças transgeracionais, promovendo a identificação do sujeito com seus exemplos parentais. Maria refere que mesmo após tanto tempo de relação, os pais apresentam atitudes inovadoras, apontando ainda que representam uma relação firme, na qual sempre pretende se espelhar. “Esse é o amor, essa cumplicidade deles... Eu vejo e eu quero para mim ao longo dos anos, sabe?! Essa coisa que não se perdeu com o tempo, tipo assim, aquela atração pelo outro, é como se eles sempre estivessem se inovando...” [ sic-Maria] . O amor é um fator idealizado na escolha dos pares, ainda que esse sublime desejo, seja de difícil alcanço (Féres-Carneiro & Magalhães, 2005).
Referente às relações observadas por João em sua família de origem, ele destacou que não as julga adequadas, e acredita ser importante não repetir, a não ser no que diz respeito à cumplicidade apresentada por seus pais frente à quebra da rotina, já que “... do nada eles ligam dizendo que estão indo para algum lugar sem rumo...” [ sic-João] . Gomes (2014) menciona que em seu estudo a expressão dos padrões transgeracionais esteve presente em todos os casos analisados, tendo sido um fator presente na escolha dos cônjuges, bem como evidenciou que a relação dos pais é tida como base para os relacionamentos amorosos dos filhos.
Na mesma perspectiva, Anton (2012) aponta que carregamos uma bagagem histórica, repleta de nossas relações de cuidado (boas e ruins) e de recursos pessoais, adquiridos com o tempo. Visto isso, além dos posicionamentos frente ao que gostariam de repetir da relação dos pais no próprio casamento, foram indagados também sobre possíveis padrões relacionais que acreditassem não ser saudável reproduzir na relação conjugal. João mencionou que os seus pais costumam gritar um com o outro e falar mal do cônjuge em meio às outras pessoas, brigando e discutindo. A percepção do casal sobre isso é que não devem repetir, “...às vezes ficam xingando o outro, conversam brigando na frente dos outros, eu acho que isso não é legal...” [ sic-João] . Ao serem questionados sobre a possível repetição desse comportamento, tanto João quanto Maria referem que nestas situações costumam usar comunicação não verbal, demonstrando a insatisfação de alguma circunstância com o olhar . Entretanto, enfatizam não demonstrar às outras pessoas, conversando sobre o assunto em casa, ou em ocasião posterior, sem presença de outrem. “Quando a gente tá com os outros, a gente pode até estar emburrado um com o outro, mas não fica brigando, não fica transparecendo para os outros, fica cada um na sua, em casa a gente conversa...” [ sic-Maria], parecendo ter encontrado um modelo mais funcional de resolução de conflitos.É possível, contudo, que a resposta dada a este tema tenha um aspecto da desejabilidade social, visto que talvez o próprio julgamento acerca do fato lhes fizesse acreditar não ser positivo o reconhecimento da repetição deste modelo de comportamento relacional; ainda mais, considerando o peso que o julgamento externo assume para Maria.
Ela, ao fazer referência ao que não gostaria de reproduzir, destaca o manejo do dinheiro, já que não gosta de dar tamanha importância a isso, sentindo-se mal. “Sou que nem a minha mãe, se eu não tenho dinheiro guardado, eu não posso sair. Se não tenho R$100,00 em casa guardado, eu não saio, porque se acontece alguma coisa, não tem” [ sic-Maria]. Ainda que os parceiros questionem o valor de determinadas heranças familiares, em certas situações, não são capazes de reproduzir uma conduta mais adequada do que a observada em seu contexto parental (Anton, 2012; Paiva, 2009). É possível que considerando o tempo de convivência marital, João e Maria ainda estivessem estabelecendo ajustes no que tange à conjugalidade e contrato amoroso.
Além de reconhecer que repete o padrão da mãe mesmo sem julgar adequado, destaca outro legado da família de origem que de “forma alguma” quer repetir. Maria referiu que há uma submissão da mãe ao pai frente às demandas financeiras da casa, referindo “... isso que eu não quero deles sabe? Minha mãe, ela é muito submissa... Minha mãe ‘abaixa’ muito a crista para o meu pai...” [ sic-Maria] , apontando que, por vezes, a mãe deixa de adquirir algo que gosta para não gastar o dinheiro, mas cede às vontades do pai, deixando-o realizar novas aquisições, mesmo que julgue desnecessárias. Maria parece incomodar-se com a relação que identifica como hierárquica entre os pais, em que o pai é reconhecido como “superior”. Na tentativa de não repetir o papel de submissão desempenhado pela mãe, parece impor de algum modo os padrões familiares vivenciados em sua família de origem. Assim, mesmo buscando evitar a repetição do papel de submissão da mãe, acaba contribuindo para a repetição da relação minimamente hierárquica com o marido, em que ela assume o lugar de quem tem “mais força”. Além disso, João complementa que há outro padrão existente, que não considera conveniente repetir, “de botar o trabalho na frente de tudo” [ sic-João]. Algumas vezes, busca-se rejeitar determinados resultados observados na família de origem reproduzindo um padrão contrário ao familiar, na intenção de colher frutos melhores. Entretanto, muitas vezes a ação é contrária, mas o efeito é invariável (Falcke & Wagner, 2005).
Foram questionados, ainda, sobre qual a percepção do casal acerca das heranças transgeracionais recebidas das famílias de origem, tendo tido a resposta de que acreditam manejar bem essas questões e referindo conversarem bastante sobre o que usar ou não usar em seu casamento. “Acho que a gente conversa bastante sobre o que a gente pode usar, a gente conversava sobre isso sem saber que era isso, dos padrões... a gente sempre conversa sobre isso. Acho que é normal de acontecer com todo casal, tem que pegar pontos que tu acha bom de cada lugar e tenta trazer para si, acho que é isso o certo” [ sic-João] . A vida conjugal acarreta a formação de uma nova relação, na qual há necessidade da junção dos legados de cada cônjuge, em prol da organização de um padrão relacional conjugal e da família que está se constituindo (Anton, 2012). É na fundação da nova vida a dois que os pares precisam alinhar seus ideais, construindo sua singularidade conjugal tendo, assim, um jeito idiossincrático de ser casal (Carter & McGoldrick, 1995).
Nas entrevistas individuais, notou-se congruência nas respostas dadas na entrevista em conjunto, ao falarem sobre as repetições dos padrões. Tanto João quanto Maria apresentaram respostas semelhantes, sendo possível observar a coesão do casal. Ao serem questionados sobre a possível interferência das famílias de origem em sua relação atual, ambos referiram que os pais de João não se faziam muito presente, já os de Maria, ao contrário, tinham grande influência. É possível que o fato de Maria ser filha única e João ser o terceiro, de quatro filhos, possa contribuir para a maior presença e participação dos pais de Maria em sua relação com o marido. Outro ponto de destacada relevância no que tange à cumplicidade do casal são os padrões citados por ambos e a importância dada por eles, que também se mostrou similar. Os cônjuges acreditam que a maioria dos padrões repetidos na sua relação, até então, são positivos para a convivência conjugal e enfatizam que sempre puderam pensar juntos sobre o que repetir ou não, adequando suas heranças à singularidade do casal. É tarefa do sujeito definir de que forma suas heranças geracionais influenciarão a sua vida social, sabendo identificar quando determinados padrões deverão ser reproduzidos, visto que se tornaram valores pessoais, ou se serão dispensados por conveniência (Anton, 2012; Gomes & Zanetti, 2009). Portanto, o indivíduo é o encarregado de moldar seus legados conforme a própria singularidade tornando-se proprietário e responsável por suas heranças transgeracionais (Falcke & Wagner, 2005; Gomes & Zanetti, 2009).
Quando indagados sobre semelhanças e diferenças entre a experiência relacional vivenciada no casal e as memórias da relação dos pais, tanto João quanto Maria identificaram repetições, mas não acreditam que pudessem ter interferência em sua escolha. Visto que são poucas as igualdades, consideraram apenas mera coincidência. “Me dou super bem com eles assim e com esses ‘pitacos’ que eles dão ‘ah faz isso, faz aquilo’... Lógico que acabamos tendo que pensar, por que algumas coisas dá para usar, outras não.... Mas eu acho que é isso... Tipo, porque a gente é novo ainda e a gente quer fazer muita coisa, e às vezes acaba errando né?! Eu acho que por eles já terem experiência, serem mais velhos, lógico que eles vão sempre querer o bem para nós... e eu acho que às vezes o fato de a minha mãe não se meter muito ou dar um palpite é ruim, porque às vezes é bom ter alguém para te orientar com um conselho...” [ sic-João] . Neste sentido, Maria acredita que o fato do marido ter tido experiências disfuncionais na família de origem, tendo precisado mudar-se de casa e de cuidador por diversas vezes, pode ter contribuído para que os padrões transgeracionais não fossem herdados de forma tão evidente quanto os dela, a despeito do que diferentes autores referem acerca da tendência à repetição dos padrões aprendidos (Colossi, Marasca & Falcke, 2015, Falcke, 2006; Marasca, Colossi & Falcke, 2013, Mendlowicz & Figueira, 2007). Independente do modelo familiar ter sido funcional ou não, os referidos autores destacam a “força” com que as experiências se apresentam na vida adulta.
João e Maria acreditam que as vivências da família de origem de Maria foram “exemplares” e que grande parte dos legados trazidos por ela podem contribuir com a vida do casal e são passíveis de aceitação. Ainda que o casal refira conversar a respeito do que julgam relevante “copiar” dos pais de Maria ou não, adaptando conforme sua necessidade, destaca-se o quanto a crença a respeito de Maria ter tido uma experiência familiar de origem exclusivamente positiva pode ser, em alguma medida, pouco funcional. Cabe referir que não se sabe os efeitos, a longo prazo, da perpetuação dos padrões, mitos, valores e crenças herdados da família de Maria.
Neste sentido, Groisman (2000) refere que por meio das relações estabelecidas na família desde o nascimento, se dão os futuros comportamentos do indivíduo crescido , já que as experiências na família de origem contribuem, de modo significativo, para a qualidade dos relacionamentos que se estabelecem na vida adulta. Entretanto, as vivências do núcleo familiar aliadas às experiências vividas pelo indivíduo em novas situações, fora do contexto parental, permitem ao sujeito, aprendizados diferentes dos familiares, sendo pertinentes à construção da singularidade e contribuindo para o processo de individuação do sujeito (Anton, 2012; Ayelmer, 1995). Os mesmos autores referem que o sujeito inicia a busca por sua identidade, constituindo-a com suas vivências atuais e passadas, refletindo posteriormente em suas relações de modo geral (Anton, 2012; Ayelmer, 1995).
A partir disso, acredita-se que a escassez de experiências familiares funcionais e constantes vivida por João pode ter alterado seu nível de recepção de determinados padrões parentais. É possível que assuma como seus, os padrões vivenciados pela esposa e repetidos no casal, já que lhe faltam modelos de referência e constância na vida familiar, dada a estrutura e modelo de família vivenciado. Destaca-se portanto, que ainda que o sujeito seja resultado, entre outros aspectos, de um acúmulo de vivências parentais que colaboram, de maneira significativa, para suas decisões e escolhas ao longo da vida, o aprendizado familiar não deve ser classificado como um fator determinista de suas experiências e escolhas. Ainda que pesem as experiências prévias do sujeito, ele é responsável pela manutenção, ou não, dos padrões aprendidos. Ao sujeito, é permitido que escolha como viverá sua história, envolvendo sua família nuclear, mas não se restringindo a ela (Anton, 2012). “Esses padrões que ela traz... de todo mundo comer na mesa por exemplo... acho legal... tipo porque eu não tinha isso, essas coisas não era o nosso hábito e eu acho isso legal... claro algumas vezes é bom outras não, mas é bom quando tu sai da família tem alguém para te ajudar, ter um conselho, na maioria das vezes são bons...”[sic-João].
Ao final das entrevistas Maria apontou que ainda se encontra vinculada ou seio familiar, referindo dificuldades em separar as moradias, bem como deixando as opiniões familiares perpassarem sua relação com João, o que pode denotar pouca diferenciação da família de origem e o processo de estabelecimento da conjugalidade ainda em construção. Mencionou que vai à casa dos pais todos os dias, pelo menos uma vez, e caso não vá, os pais ligam questionando sua ausência. Refere ainda que no início da vida conjugal , chorava todos os dias, tendo tido grandes dificuldades práticas e emocionais, referindo a necessidade de auxílio da mãe para a execução de tarefas domésticas. Ayelmer (1995) aponta a importância dos pais no processo de individuação do sujeito, referindo que sua contribuição se dá de forma que podem orientar seus filhos sobre o sustento financeiro e também evitar o controle sobre suas vidas. Além disso, o respeito por seus limites residenciais é essencial para um desenvolvimento saudável da individualidade, auxiliando na promoção da independência e autonomia dos filhos. Entretanto, o mesmo autor ressalta que se o processo de individuação na transição da fase da adolescência para a fase do adulto jovem contempla dificuldades e tarefas que se não se cumprem, pode acarretar intolerância e sofrimento, fazendo com que o sujeito tenha dificuldades em se desvencilhar emocionalmente da família de origem e de seus padrões (Ayelmer, 1995).
Assim, acredita-se que Maria, apesar dos seus 27 anos de idade, possa estar em processo de individuação, diferenciando-se da família de origem, podendo passar, por vezes, por momentos de sofrimento e angústia. Neste sentido, questiona-se se os padrões familiares vivenciados por Maria se expressam de forma predominante na relação com João, devido à qualidade de suas experiências na família e a consequente fragilidade das vivências de João em sua família de origem, ou se a predominância dos padrões trazidos por Maria destaca a necessidade de manter sua família de origem presente na relação estabelecida com o marido. É possível que as duas condições não sejam excludentes, e se expressem de modo associado na relação atual de João e Maria, em uma compreensão sistêmica multifatorial.
Considerações finais
O presente estudo buscou identificar a expressão dos padrões transgeracionais na relação conjugal. Em análise dos achados na literatura e os dados coletados, refere-se que o casal participante tem seus padrões predominantemente claros na relação marital, tendo se mostrado capazes de analisar os padrões recebidos e, de maneira seletiva, definindo majoritariamente em conjunto as heranças que devem ser reproduzidas na relação que estabeleceram. Assim, o casal investigado se mostra flexível no que se refere à aceitação dos padrões trazidos pelo parceiro, demonstrando capacidade de refletir a respeito do que pode e deve, ou não, ser perpetuado na relação atual. Com isso, pode-se referir que, visto a clareza dos padrões familiares herdados e presentes no casal, possivelmente conseguem identificar, de modo mais claro e consciente, o seu papel na família (Falcke & Wagner, 2005). Nota-se ainda, com isso, que os cônjuges se encontram em constante crescimento pessoal e conjugal , podendo construir suas próprias individualidades bem como sua subjetividade, visto que o recebimento dos padrões é formador de sua identidade e da família, bem como caracteriza o funcionamento do sujeito ao longo da vida (Falcke & Wagner, 2005; Rehbein & Chatelard, 2013).
Ainda que os cônjuges percebam os padrões herdados, identifica-se que alguns deles, mesmo que involuntariamente, são reproduzidos sem que os sujeitos queiram realmente segui-los, acarretando, por vezes, conflitos conjugais. Todavia, os padrões vivenciados fazem parte da história de cada sujeito, e alguns, por vezes, serão repetidos ainda que sejam questionados sobre seu valor na vida, não sendo passíveis de mudança (Anton, 2012; Paiva, 2009). Foi possível identificar que as repetições das vivências familiares que se expressam no casal, de modo geral, se apresentam funcionais, contribuindo para a qualidade relacional. Além disso, os padrões repetidos pelo casal, mostraram-se explícitos para os parceiros, identificando padrões que envolvem a cultura, a moral e os valores das famílias de origem (Anton, 2012; Falcke & Wagner, 2005; Wagner, 2005). A capacidade do casal de identificar e negociar sobre a perpetuação de padrões herdados de seus pais se mostra tão positivo quanto indicador de qualidade da relação conjugal.
O casal investigado revela que as heranças transgeracionais, independente da qualidade que se apresentam, quando se constituem de vivências mais constantes e persistentes, parecem assumir mais força na expressão do casal. Na mesma direção, considerando que os modelos observados e vividos por João eram modificados conforme a alternância das figuras de autoridade, ele parece não ter estabelecido experiências de referência e constância relacional. Neste sentido, é possível que a escassez de modelos vivida por João e a rigidez de padrões vivenciados por Maria, posam fazer com que o casal se complemente, sem grandes conflitos, até o momento desta investigação, em relação a isso. É possível que essa realidade de modifique com o passar do tempo e a vivência de novas etapas do ciclo vital. Contudo, no que diz respeito à fase de escolha conjugal e ao estabelecimento da identidade do casal, a complementariedade se mostrou como aspecto positivo e funcional.
Quanto aos fatores positivos e negativos da repetição transgeracional, notou-se que os participantes expressam predominantemente de maneira positiva, visto que referem como organizador na maior parte das vezes. Entretanto, considerando a qualidade dinâmica da relação conjugal, em alguns momentos apresenta-se de forma negativa, já que não se excluem conflitos frente aos padrões que não têm sido transformados, mesmo quando considerados pelos parceiros como desnecessários.
É importante ressaltar as limitações do presente estudo, dado o número reduzido de participantes. Embora os resultados se refiram a um caso único, pode trazer o tema estudado à reflexão, sugerindo a ampliação de investigações, a partir de uma compreensão sistêmica, com diferentes amostras, métodos e delineamentos de estudo. Os dados revelados por este estudo podem contribuir com profissionais de diferentes áreas do conhecimento que atuam com intervenções com casais e famílias, a fim de colaborar com o entendimento de casos relacionados à transgeracionalidade e sua expressão no estabelecimento das relações conjugais do sujeito, especialmente, no começo da vida conjugal. Com isso, é possível que as referidas intervenções contribuam para a diferenciação dos parceiros em relação às suas famílias de origem, libertando-os para uma relação de pertencimento e diferenciação mais equilibrada e saudável.
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Endereço para correspondência
Patrícia Manozzo Colossi
E-mail: patriciacolossi@faccat.br
Enviado em: 11/02/2019
1ª revisão em: 20/01/2020
Aceito em: 27/02/2020
1 Psicóloga, Unidade de Saúde Bom Pastor, Igrejinha/RS.
2 Psicóloga, Doutora e Mestre e Psicologia, Terapeuta de Casais e Famílias, Faculdades Integradas de Taquara/FACCAT.