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Vínculo

 ISSN 1806-2490

     

 

ARTIGOS

 

Ressonâncias das origens de algumas histórias e histórias de algumas possíveis origens: uma contribuição para cuidar dos vínculos grupais

 

Resonance from the origin of some histories and the histories of some possible origins: a contribution to take care of of the group bonds

 

Resonancias de las orígenes de algunas historias y historias de algunas posibles orígenes: una contribución para cuidar de los vinculos “grupais”

 

 

Vera Lúcia Galli1

Núcleo de Estudos em Saúde Mental e Psicanálise das Configurações Vinculares
Sociedade de Psicoterapias Analíticas Grupais do Estado de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho se propõe a investigar as histórias de algumas possíveis origens de uma instituição de ensino de grupos. Utilizando-se de cartas para um interlocutor imaginário, a autora vai revelando suas ressonâncias a partir do processo de investigação. Nesta trajetória, levanta possíveis fantasmas no entrelaçamento de histórias do passado e presente, refletindo a seu respeito com as contribuições de autores da psicanálise dos vínculos. A partir da apresentação do trabalho na instituição e de suas ressonâncias em grupo, compartilha histórias como possibilidades para cuidar dos vínculos grupais.

Palavras-chave: Vínculos, Grupos, Instituição, Cuidar, Conviver.


ABSTRACT

This work investigates histories of some possible origins of an institution of group training. Using letters for an imaginary interlocutor, the author finds out some results from the research process. In this trajectory, she suggests there are some possible ghosts in the intersection between past and present; after that, she presents another reading using the contributions of some authors of the group psychoanalysis. From the presentation of the work in the institution and its resonances in group, it shares histories as possibilities to take care of of the group bonds.

Keywords: Bonds, Groups, Institution, To take care of, To coexist.


RESUMEN

Este trabajo se propone a investigar las historias de algunos posibles orígenes de una institución de enseñanza de grupos. Utilizándose de cartas para un interlocutor imaginario, la autora va revelando sus resonancias a partir del proceso de investigación. En esta trayectoria, levanta posibles fantasmas en la ligazón de historias del pasado y presente, reflejando la su respeto con las contribuciones de autores del psicoanálisis de los vínculos. A partir de la presentación del trabajo en la institución y de sus resonancias en grupo, comparte historias como posibilidades para cuidar de los vínculos “grupais”.

Palabras clave: Vínculos, Grupos, Institución, Cuidar, Convivir.


 

 

Nos tempos atuais, há necessidade de uma independência vigorosa entre os indivíduos, o que é bom. No entanto, com freqüência, ela é mais propiciada e apoiada em grande parte pela interdependência deliberada com uma comunidade de outras almas. Há quem diga que a comunhão se baseia em laços de sangue, às vezes ditados pela opção, às vezes pela necessidade. E embora isso realmente seja verdade, o campo gravitacional imensamente mais forte que mantém um grupo coeso está nas suas histórias... As histórias comuns e simples compartilhadas pelos seus membros.

Clarissa Pinkola Estés

 

Junho, outono. Tempo do ocaso, da transformação e do semear. As estações seguem uma após a outra e o tempo conquista o tempo; não se preocupa com vida ou morte, declínio, ascensão, amor, ódio ou ciúmes e faz com que nos esqueçamos dele2. As pessoas, porém, vivenciam as vicissitudes dos encontros com seus semelhantes e vão acolhendo e convivendo com suas histórias e de tantos outros.

Especial predileção por ouvir e contar histórias, eu sempre nutri. Campbell (1992), ao se referir aos mitos, numa perspectiva psicológica, considera-os como pistas que ajudam a procurar dentro de nós a experiência de vida. Penso que as histórias estão incluídas nesta perspectiva, pois possibilitam viajarmos no tempo e espaço desvelando pistas.

Aliado a estes aspectos, como integrante de uma instituição3 de ensino de grupos, parecia-me que sua história, embora regularmente escrita e registrada em atas, revelava-se um tanto fragmentada e sem brilho. Estávamos em junho de 2003, elegíamos nova diretoria, eu assumia nova função e precisava escrever um trabalho para ingressar como membro efetivo. Era um rito de passagem, em que considerava fundamental refletir como o estudo de grupos havia contribuído para meu desenvolvimento pessoal e profissional. Desta maneira, ocorreu-me investigar a história institucional.

Contudo, como bem salienta Adamson (1977), a proposta de integração a um grupo produz profunda regressão e nos situa num cenário apto para reproduzir o lugar de origem, ativando fantasias de perda de identidade, de aglutinação e indiscriminação. Pensando em termos da Psicanálise dos Vínculos, a partir da definição de nossos colegas Fernandes e Svartman (2003) de espaço psíquico4, podia sentir desconfortante dança interna.

Nesse processo, percebi que cada um de nós, dependendo do lugar que ocupa, ocupou e pode ocupar, vive sua própria história e recorda este ou aquele aspecto conforme suas possibilidades, suas próprias origens e vínculos. Refleti, assim, que minha contribuição não poderia ser recordar a história institucional e sim as histórias, embora soubesse que, ao fazê-lo, também estaria selecionando determinados recortes, palavras, privilegiando este ou aquele aspecto. Poderia, talvez, recordar e recriar histórias e suas possíveis origens, bem como ser “contadora” das origens de algumas histórias, a partir de suas ressonâncias em mim.

O objetivo deste trabalho é, portanto, revelar as ressonâncias das origens de algumas histórias e histórias de algumas possíveis origens, como contribuição para cuidar dos vínculos grupais e conviver em grupo numa instituição de ensino de grupos.

 

I – Por que recordar histórias?

Estés (1998), em seu livro “O dom da História”, relata uma fábula sobre o que é suficiente. Resgatando origens de tradições que a educaram, vai revelando pequenas histórias que, como bonecas “matrióchka”, se encaixam umas nas outras. Concebe-as como um grande grupo de medicamentos de cura, tradicionalmente usadas para ensinar, corrigir erros, iluminar, aliviar a escuridão, auxiliar a transformação, curar ferimentos e recriar a memória. Ressalta que o dom essencial das histórias é, por meio de seus relatos, invocar as forças maiores do amor, generosidade e perseverança a se fazerem presentes no mundo.

Contar, redigir e divulgar histórias está estreitamente ligado a recordá-las. Hornstein (1988), ao escrever sobre configurações vinculares e inconsciente, cuida do aspecto de que toda teorização se inscreve num momento histórico-cultural. Para ele, podemos pensar a história de duas maneiras – como determinação linear do passado ao presente e como retroativa ao considerar a ação do presente sobre o passado. Destaca que em toda relação as sombras dos objetos do passado caem sobre os do presente; dependerá da pulsão de morte que o atual seja só sombra ou que tenha brilho próprio. Se o passado ensombrece o presente é porque há excesso de fixação, conflitos não elaborados, predomínio da compulsão à repetição. Ainda de acordo com o autor, nossa tarefa como psicanalistas é converter a repetição em recordação.

Assim, recordar está além do descrever, pois pretende estabelecer laços e vínculos, explicitando algumas reflexões para serem compartilhadas e ampliadas. Optei por recordar as histórias em forma de pequenas cartas5 (recurso que utilizo pensando em interlocutores) e espero que possam me acompanhar para recriarmos outras histórias.

 

II – As origens de algumas histórias

1. Eu e tu, “nósoutros”, convivendo em grupos.

Sabes, amigo, estou escrevendo um trabalho a respeito de grupos, que trata das ressonâncias das origens de algumas histórias e das histórias de algumas possíveis origens, e isto me fez pensar também nas origens desta trajetória. Resolvi te escrever e compartilhar alguns deles. Na verdade, pensei em ir tornando claro como esses aspectos do espaço psíquico podem estar articulados e, desta forma, como sua contextura pode se configurar ao estudarmos grupos.

Creio que meu interesse por grupos remonta àquelas ressonâncias em relação àquele familiar que todos nós vamos aprendendo a elaborar na análise pessoal (conteúdos intrapsíquicos) sendo, portanto, muito peculiares. Não obstante, provavelmente tu compartilhas comigo que, ao nos vincularmos, podemos viver tanto confortantes quanto desconfortantes emoções. Penso que as emoções geradas nos vínculos com os outros (interpsíquicas) causam tantos amores e dissabores que há momentos, quisera eu, e talvez tu, pudessem ser postas à margem. Porém, sendo seres “sentintes” e, como tal, humano, seguimos e vamos dando um jeito de lidar com nossa humanidade e vínculos.

O fato é que, com o estudo e convivência em grupo, fui percebendo que nos vários contextos em que estivera como psicóloga, supervisora, professora e/ou aluna, ou que tivera conhecimento, as histórias se repetiam – dificilmente os trabalhos em grupos se mantinham, independentemente das pessoas que os integrassem.

Essas repetições causaram-me curiosidade e cheguei a pensar, como uma das possibilidades, que poderíamos estar à volta com um fenômeno transubjetivo – ou seja – se vivemos numa sociedade que cultiva o individualismo, atividades grupais podem ser encaradas como antítese a este culto. Ainda nesta linha, se o que se privilegia é a competição, a cooperação possível em grupos pode ser vista como o avesso da antiética vigente.

O fato é que esses aspectos foram se configurando ao longo de minha trajetória profissional, até que cheguei às histórias e a este trabalho, tal como passo a compartilhar contigo.

2 – Convivendo em grupo, nós, a instituição.

Bom, amigo, vou te contar o percurso. Para realizar essa investigação, pensei em entrar em contato com os membros efetivos da instituição (23 ao todo), numa entrevista semidirigida. Tinha interesse em saber como a instituição havia sido fundada, se tinham conhecimento da história, se percebiam qual a contribuição de cada um para com ela e dela para com eles, se acreditavam que havia reconhecimento de seus pares e se viam perspectiva, futuro, para a instituição.

Do total, oito encontros aconteceram, sendo todas as entrevistas gravadas e transcritas. Depois disto, li e reli as transcrições várias vezes, deixei-me impregnar pelo conteúdo; recordei o momento, histórias e palavras pronunciadas. Restava, porém, selecionar alguns aspectos que pudessem contribuir com o objetivo da investigação.

Nesse ínterim, vivíamos uma crise institucional e lutávamos bravamente diante das adversidades, embora me parecesse que nossos vínculos interpessoais estavam cristalizados e aglutinados em pequenos subgrupos. Um sopro suave e silencioso insinuava-se nas brechas, assinalando provável morte institucional, levando-me a imaginar possíveis fantasmas minando o trabalho grupal, espantando os vivos na expectativa de liberação e solicitando cuidados.

Assim, pensei que uma contribuição, tendo em vista o objetivo do trabalho, seria desvelar possíveis fantasmas6 que tinham e/ou poderiam ter ressonância em mim e suas prováveis influências no contexto institucional. Depois disso, pensei em articular com algumas reflexões e hipóteses que, espero, possam contribuir para o estudo, o ensino e a convivência em grupo, baseando-me em alguns autores da psicanálise de grupos e configurações vinculares.

Sabes, amigo, o que espero dessa trajetória? Que, ao sistematizá-la e escrevê-la, possa favorecer que todos nós, integrantes da instituição, recriemos histórias compartilhadas, pois as ressonâncias poderiam então acontecer em grupo e no grupo.

 

III – Histórias de algumas possíveis origens

1. A instituição – resgatando prováveis fantasmas

Olá, amigo, cá estamos novamente. Sabes, pensando em prováveis fantasmas, parecia-me circular na instituição a idéia de que esta se estruturara a partir de um grupo dissidente do instituto de ensino de grupos, no qual a maior parte dos membros efetivos se formara. As ressonâncias das respostas que obtive pareceram-me tanto confirmar quanto discordar disso, pois ora foram apresentadas idéias de cisão, quebra, dissidência das pessoas em relação ao instituto de origem e ora idéias do desejo de construção de espaço próprio e natural ruptura em função da insatisfação com o que vinha sendo feito.

A partir das entrevistas, pareceu-me se manifestar outro provável fantasma, qual seja, a possível existência de rigidez e autoritarismo, quer na formação quer no exercício de papéis e funções, depositados em alguns mestres do passado. Para mim, ressoaram as idéias de "pais” muito autoritários, donos de si e seu saber, grandes mestres, que não deixavam espaço para mais ninguém; em suma, um grupo com pouca flexibilidade para mudanças e para idéias diferentes das tradicionais.

Veja os paradoxos que contém a alma humana. Essa mesma possível rigidez e autoritarismo desvelaram sua antítese – seriedade, consistência e solidez na formação – que, creio, manifesta-se na instituição no presente e foram reconhecidas no passado.

Esses prováveis fantasmas levaram-me, então, às possíveis origens. Perguntastes se ficou claro para mim quais poderiam ser os fundadores institucionais e a serviço de que estaria este questionamento. Afinal, indagaste, instituição precisa ter pai e mãe?

Não tenho respostas prontas, porém tu proporcionaste a seguinte reflexão: quando ingressei na instituição, parecia-me que tanto membros integrantes há algum tempo quanto nós, recém chegados, estávamos em igualdade de condições. Parecia-me que isto se manifestava em convites para assumirmos algumas funções (os novos membros), sem que ficassem evidentes os requisitos ou trajetória para tal.

Neste sentido, parecia-me, sim, uma acolhedora e grande família, abarcando seus novos filhos tão rapidamente, que causava inquietude, ressoando fantasmagoricamente: “somos uma fraternidade em que todos são iguais”.

Isto me levou a desejar separar e discriminar quem era quem no grupo e, conseqüentemente, a buscar na história seus possíveis fundadores. Para mim, embora parecesse que a instituição se iniciara com um grupo, não ficava claro quem, como e qual a possível origem dessas vinculações. O curioso é que embora tivesse tais questões, perguntei aos colegas nas entrevistas como a instituição havia sido fundada e não quem a fundara.

Do que ressoou e pude apreender, alguns nomes foram citados por todos que entrevistei: Waldemar Fernandes, Beatriz Fernandes e Sueli Mozeika. Essas pessoas aparecem como prováveis fundadores institucionais, enquanto idéia que nasceu para ser posta em prática em São Caetano (cidade vizinha a São Paulo) com jornadas, grupos e cursinhos. São citadas também outras pessoas, integrantes de um grupo em São Paulo (Waldemar e Beatriz, inclusive): Marina Durand, Ricardo M. Pelosi, Ceneide Cerveny, Neusa M. Oliveira, Rosa Macedo.

Assim, pelo que me pareceu, dois grupos se juntaram, estruturando a instituição em São Paulo, em 1991, e reformulando o estatuto. Tu imaginas, amigo, o quanto é delicado fornecer nomes neste caso! Esclareço que não pretendo apresentá-los como verdades incontestáveis. Mas talvez a circulação de alguns nomes possa favorecer que prováveis fantasmas se desvaneçam.

Querido amigo, vou partir para uma leitura mais distanciada e envio-a para tuas observações.

Até mais.

 

IV - Uma leitura a partir do referencial de alguns autores da psicanálise de grupos e das configurações vinculares.

Anzieu (1993) refere-se ao fato de que as relações entre seres humanos se ordenam em torno de dois grandes pólos, o técnico e o fantasmático. O pólo técnico está ligado ao desenvolvimento do sistema percepção-consciência e à realização de tarefas comuns ou em comum; permite a circulação de bens e idéias.

Continuando, o autor descreve outro pólo, nos vínculos inconscientes intersubjetivos, resultante de uma circulação fantasmática, vinculado mais aos modos de ser e sentir que aos de agir. Esta circulação fantasmática é necessária à saúde psíquica pela descarga pulsional regular que traz e pela circulação nos níveis intra e interpsíquico. Ela reúne ou opõe os indivíduos, estimula, desvia ou impede as realizações técnicas reais.

Aliadas a tais reflexões encontram-se aquelas desenvolvidas por Fernandes. Segundo Fernandes (2003), Bion considera que qualquer grupo movimenta-se em dois planos – um consciente, relacionado ao funcionamento grupal quando está voltado para executar tarefas com a cooperação entre os integrantes (grupo de trabalho). Concomitantemente, outro plano – inconsciente – permanece em estado latente e gera outro clima emocional, cujas manifestações clínicas estão vinculadas a estados primitivos de pulsões e fantasias inconscientes (grupo de (pré) supostos básicos).

Considerando dessa perspectiva, os possíveis fantasmas se apresentariam na co-relação entre modos de ser e sentir e fantasias inconscientes, e estariam mais atuantes quando prevalecessem no grupo os (pré) supostos básicos.

No caso dos prováveis fantasmas em cena, algumas hipóteses podem ser levantadas. Claro está que não pretendo desconsiderar múltiplas implicações e vinculações a outros conceitos fundamentais e sim, apenas, favorecer mínima fundamentação para os aspectos que foram até aqui desenvolvidos a partir das ressonâncias das entrevistas.

Uma das hipóteses refere-se à possibilidade de que a pseudo-inexistência dos fundadores institucionais (no que diz respeito ao reconhecimento explícito e possível de ser veiculado na instituição) estaria vinculada à circulação fantasmática de “pais tirânicos e dominadores” (utilizando analogia familiar). Seguindo essa reflexão, o não reconhecimento poderia estar, provavelmente, a serviço da manutenção do “status quo” da irmandade.

Pensemos nesta hipótese à luz da contribuição de Pagés e Ávila (2003, p.80):

Vemos como é fecunda a hipótese freudiana: em um passado encoberto pelas brumas da distância histórica e das repressões milenares, pulsa latentemente um drama extraordinário. De um pai tirânico e dominador, de filhos oprimidos e mulheres submissas, nascem as tensões de uma nova ordem. Em vez da imposição pela violência, se originará uma sociedade fraterna. (...) Não mais o medo e o ódio, mas a noção dos direitos de todos, nascidos da mútua consciência de que todos devem constituir o seu próprio espaço de satisfação de impulsos e de restrição de excessos.

As reflexões dos autores me levaram a pensar em outra possível circulação fantasmática: “somos uma fraternidade em que todos são iguais”. Isto porque parece remeter a fantasias implícitas relacionadas ao modelo de “progressão hierarquizada”7, sendo esta associada, por sua vez, ao estancamento e aprisionamento. O presente, assim, parece entrelaçado às histórias vividas no passado pela maioria dos membros da instituição.

Interligando as duas hipóteses poderíamos aventar que a ocupação de determinados lugares (principalmente aquele “paterno” – reutilizando o modelo familiar) ficaria associada à idéia de tirania, na medida em que, parece, os “irmãos” podem ter participado de histórias permeadas por ressonâncias de rigidez, autoritarismo e ortodoxia. Seguindo esse raciocínio, poderíamos também conjecturar que haveria todo um contra-investimento da irmandade, na verdade, a favor da recusa.

Buscando ampliar essa associação ao “modelo familiar”, acrescento contribuições de Adamson (1977) que, ao refletir acerca das fases e mitos em grupo operativo, lança algumas hipóteses instrumentais para compreensão da problemática dos grupos.

Para a autora, o conceito de mito está relacionado a possíveis estereótipos das fases grupais. Uma das hipóteses baseia-se no fato do mito grupal se referir, tanto quanto o familiar, a um número de crenças bem sistematizadas e compartilhadas a respeito dos mútuos papéis e da natureza de sua relação. São regras secretas, crenças organizadas que justificam muitas pautas interacionais e que promovem a estabilidade nas relações, evitando fantasias de caos e desestruturação.

Essas considerações podem reportar ao que aventei como o sopro silencioso da morte, provavelmente camuflada na repetição de antigos modelos – talvez em função de sua recusa – ao se manifestar em subgrupos que lutariam por preservar sua identidade.

A contribuir com estes argumentos, temos o minucioso estudo de Enriquez. Para Enriquez (2001), a presença de Tânatos na vida institucional se revelaria, por exemplo, na dificuldade de seus membros admitirem que a instituição, apesar de suas estruturas, não estabelece anteparo suficiente para impedir que aqueles se sintam invadidos por mútuas projeções, experimentando, então, sentimentos de invasão da psique, enxugamento de pensamentos e emoções e sendo atravessada por movimentos de investimentos e contra-investimentos.

As contribuições de Enriquez (2001), associadas às dos outros autores aqui citados, encontram ressonância e são bem sintetizadas nas colaborações de Cerveny e Oliveira (1989), ao escreverem como as instituições (de ensino de grupos) representam as idéias dos profissionais que trabalham em psicoterapia de grupo. As autoras refletem quanto à diferença entre ser a instituição e ser da instituição; o conflito que pode se apresentar é o de querer ser o grupo, misturar-se e perder-se nele e, por outro, preservar a identidade, discriminando-se dos demais. Ampliando as reflexões, as autoras discutem a possibilidade de seguirmos os modelos, sermos englobados pela instituição e não mais a ameaçarmos e (acrescentaria às suas colaborações) também não nos sentirmos ameaçados.

 

V – Considerações Finais: Reflexôes para recriar e possibilitar outras histórias

Olá amigo. Outras estações aconteceram e estamos no verão de 2005. Gostei muito das tuas contribuições e agora compartilho contigo o que me ocorreu.

Pois bem, a partir dessa investigação e leitura, percebi que a instituição foi gerada pelo desejo de criar lugares e espaços – para estar junto com, ampliar, não reproduzir relações hierárquicas de poder e estereotipias no saber. Creio que pude vivenciar estas possibilidades ao apresentar o trabalho, pois aproveitamos tempo e espaço para compartilhar histórias. Tivemos, do meu ponto de vista, um “bom encontro”, no sentido da capacidade de ser afetado pelo outro, num processo infinito de criação e de entrelaçamentos. Assim, parece-me que com “nosoutros” ocorreram transformações.

Obviamente, não quero te fazer crer que somente pétalas de rosas existem! Pelo contrário: há espinhos nesta trajetória. De meu ponto de vista parece-me que muitas vezes ainda prevalecem estereótipos nos vínculos interpessoais, talvez em função da homeostase nas relações. Não obstante, temos agora instituído um espaço mensal, com coordenadores extra institucionais, para cuidarmos dos nossos vínculos, o que tem se revelado bastante promissor.

As tuas reflexões a respeito de que o trabalho com grupos talvez não dependa somente de talento, capacidades intelectuais, teóricas e/ou técnicas, e sim também de sermos “bons seres humanos, convivendo em grupo”, fazem bastante sentido para mim. É evidente que diferentes pessoas podem perceber de maneiras opostas o que é um “bom ser humano” ou o que é agradável e desagradável e talvez isto soe por demais abrangente, até mesmo piegas. Creio, porém, que te referes a assumirmos a responsabilidade por nossas emoções e ações e, conseqüentemente, sermos tolerantes uns com os outros, porque somos humanos.

Tenho aprendido que o conhecimento passa, sem dúvida, pelo famoso tripé – formação, análise e supervisão – como também e, talvez, principalmente, pela complexa convivência interpessoal. Cuidar dos vínculos grupais, deste ponto de vista, pode significar tanto cuidar do presente quanto recordar sombras do passando, revelar suas ressonâncias e (re) construir histórias; compartilhar e conviver com “bons” e “maus” encontros.

Nesse sentido, creio que podemos pensar para além desta instituição específica, na medida em que em qualquer instituição vivemos histórias; estas podem nos anteceder, acontecer conosco ou com “nósoutros”, podem vir a acontecer, extrapolar o âmbito institucional e ainda assim impregná-lo, mas estarão presentes explícita ou implicitamente. Penso que ao compartilhar possíveis histórias (e histórias possíveis) e suas ressonâncias, em grupo, talvez possamos favorecer, também, sermos com os outros e sermos para os outros, cuidando dos vínculos grupais. O que tu pensas?

Um grande abraço amigo! Espero que possamos recriar outras histórias.

Vera

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ANZIEU, D. O grupo e o Inconsciente: o imaginário grupal. Casa do Psicólogo, São Paulo, 1993.        [ Links ]

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Endereço para correspondência
E-mail: veralalli@yahoo.com.br

 

 

1 Psicóloga, Mestre em Educação, Grupoterapeuta, Docente e Supervisora do NESME – Núcleo de Estudos em Saúde Mental e Psicanálise das Configurações Vinculares e da SPAGESP - Sociedade de Psicoterapias Analíticas do Estado de São Paulo, Coordenadora da Clínica do NESME (2003/2005).
2 Trecho adaptado do filme “Antonia´s Line” (1995), traduzido em português como “A excêntrica família de Antônia”.
3 Toda as vezes em que redigir “instituição” ou “institucional” estarei me referindo à instituição de ensino de grupos a qual pertenço. O termo “trabalho” refere-se ao texto apresentado como requisito para passagem a membro efetivo desta instituição. Entretanto, em razão das condições necessárias para esta publicação, o trabalho foi sintetizado e teve algumas pequenas alterações; caso haja o interesse do leitor em sua obtenção, na íntegra, a solicitação poderá ser feita por correspondência eletrônica constante no final deste.
4 Conceito proposto por Janine Puget e Isidoro Berenstein como possibilidade de modelo de aparelho psíquico e desenvolvido por Fernandes e Svartman (2003), como espaço psíquico, caracterizado por três zonas diferenciáveis, porém simultâneas que atuam no psiquismo (intra, inter e transpsíquica).
5 As cartas que virão a seguir também estão sintetizadas, conforme já esclarecido na nota 2.
6 Esse termo, “fantasmas”, não é aleatório e posteriormente te explicarei como as reflexões de Anzieu (1993) podem contribuir para pensarmos a respeito.
7 Termo utilizado por Fernandes (1991, p.79), que se baseia em Enriquez, referindo-se a uma progressão hierarquizada que causa a gerontocracia e o medo de mudança e que parecia estar presente no instituto de origem.

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