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Estudos e Pesquisas em Psicologia
versão On-line ISSN 1808-4281
Estud. pesqui. psicol. v.6 n.1 Rio de Janeiro jun. 2006
ARTIGOS
Trabalho docente rural: dores e prazeres do ofício
Rural teacher: pains and pleasures of the job
Cristina Miyuki Hashizume*, I; Marinete Maria Lopes**, II
I Universidade Bandeirante de São Paulo
II Escola São Francisco de Assis - ESFA
RESUMO
O presente trabalho objetiva analisar a realidade laboral dos docentes do meio rural de algumas comunidades de Sta Teresa e São Roque (Espírito Santo) a partir da compreensão das estratégias utilizadas por eles para lidar com as adversidades e alegrias do cotidiano; cartografar as dificuldades por que passam tais docentes e identificar os mecanismos de defesa/enfrentamento que os docentes utilizam no dia a dia da escola. Através de entrevistas e observações feitas com dez docentes, constatou-se momentos de dor vivenciados pelos mesmos, devido principalmente à sobrecarga de trabalho e à dificuldade no enfrentamento dessas adversidades, mas também momentos de prazer quando o docente é reconhecido pela comunidade.
Palavras-chave: Saúde docente, Educação rural, Psicologia social.
ABSTRACT
The objective of this study is to analyze the working reality of teachers in the rural area of some communities in Santa Teresa and São Roque do Canaã – ES having as a starting point the undestanding of the strategies . They use to deal with the adversities and joys of their quotidian. It maps the struggles these docents go through and identifies the defense strategies they use in their scholl life. After interviews and observations ten rural teachers, it was found out moments of pain because the work overload of work and which they do not know how to do manage. However, they have some sort of reward when they are knouwledged by the community.
Keywords: Health teachers, Rural education, Social pysicology.
INTRODUÇÃO
Pesquisas na área de Saúde do Trabalhador (CODO, 1999; NEVES, 1999; BRITO, 2001) têm demonstrado a ocorrência de stress, cansaços agudos, burnout1, ao mesmo tempo em que o corpo do trabalhador expressa resistência frente a essa nova forma de organização do trabalho globalizado e composto de diversos turnos. Aos acometidos por essa síndrome, o prazer do trabalhador parece se encontrar no tempo em que está fora do trabalho. Tais alterações no âmbito da saúde não podem ser entendidas como fraquezas ou incapacidades individuais. Os indivíduos estão inseridos num contexto político-histórico-social que permeia suas relações sociais, de trabalho, de família, o que acaba por delinear uma forma de viver específica. Levando em conta esse processo de subjetivação específico contextualizado e partindo do pressuposto de que, hoje, os professores de nível escolar fundamental e médio não têm seu trabalho valorizado, nem detêm mais um saber-fazer próprio e um trabalho que os dignifique enquanto produtores e conceptores de sua atividade laboral, o trabalho é visto como parte fragmentada do processo total e, como tal, sujeito a mediações, verificações, controle, padronizações. O presente texto pretende estudar essa subjetividade que se tem formado, enfatizando as diversas manifestações contemporâneas subjetivas (onipotência, apatismo, anestesia, dentre outras) e como elas se manifestam nas escolas rurais estudadas.
Ainda dentro das manifestações dos trabalhadores frente às condições de trabalho, daremos atenção especial às estratégias utilizadas pelos docentes rurais para lidar com as adversidades e alegrias do cotidiano de trabalho. Os docentes estudados, em 2005, trabalhavam nas escolas rurais de Santa Teresa e de São Roque do Canaã, no Espírito Santo. Coletamos depoimentos através de entrevistas semi-estruturadas e observações realizadas em diferentes escolas rurais. Tentando estabelecer um canal entre saber acadêmico e saber popular, identificamos estratégias de defesa/enfrentamento que os professores usam no cotidiano escolar. Com este artigo, pretendemos publicizar a trajetória de luta desses profissionais, dando voz àqueles que são calados pelos especialismos e pela administração e gestão educacionais, que os colocam numa posição de ouvintes passivos em relação à sua própria história.
ESCOLA RURAL
A escolarização rural foi e ainda é (de certa forma) vista preponderantemente pelos diversos governos brasileiros como um prolongamento da escolarização urbana. Nas escolas rurais, inicialmente, eram aplicados os mesmos métodos e materiais didáticos urbanos, em detrimento da diferença do processo de assimilação do conteúdo dos alunos do campo e da cidade.
Somente a partir da Lei de Diretrizes e Bases, Lei nº 9394 de 1996, é que se abre uma preocupação para a especificidade da realidade rural (LEITE, 2002). Tal fato ocorre a partir da sustentação da idéia de uma escolaridade preocupada com a consciência ecológica, na preservação dos valores culturais e da práxis rural, e primordialmente no sentido da ação política dos rurícolas.
Atualmente, ainda nos deparamos com muitos problemas em relação à escola rural. Em relação aos aspectos sociopolíticos, verificou-se a baixa qualidade de vida na zona rural, uma vez que os rendimentos dessa população são muito baixos, e forte penetração da cultura urbana, ocasionando alterações nos valores socioculturais campesinos. No que se refere à situação do professor, deparamo-nos com a presença do professor leigo ou de formação essencialmente urbana; que sofre graves problemas de transporte e moradia; a presença de clientelismo político na convocação dos docentes; baixo índice salarial, além do acúmulo de funções.
Quanto à clientela da escola rural, alguns aspectos são importantes de serem considerados: a condição do aluno como trabalhador rural (principalmente dos alunos do sexo masculino, que, auxiliam seus pais nas mais diferentes atividades do campo); a distância existente entre moradia, trabalho e escola, como um dificultador para a freqüência constante dos alunos; o acesso precário a informações gerais (direitos trabalhistas, serviços básicos de saúde, educação); as baixas condições financeiras familiares que podem gerar comprometimentos na saúde física ou mental (desnutrição, fome, baixa auto-estima/sentimento de inferioridade, pouca motivação).
Em relação à ação didático-pedagógica do professor na escola rural, temos também diversos problemas como: a inadequação do currículo, tendo em vista que, em grande parte das vezes, o mesmo é estipulado por resoluções governamentais e, apesar das adaptações à realidade rural, trazem um referencial urbano de escola; a estruturação didático-metodológica é deficiente, devido à escassez de verba pública para propiciar melhores condições de trabalho aos profissionais, ou mesmo pela precariedade da formação do profissional, que não detém conhecimento suficiente para dinamizar e tornar a aula mais atrativa ao aluno. As salas multisseriadas agregam, além da diversidade já existente entre alunos de um mesmo nível cognitivo, séries diferentes, com demandas diferentes, que requerem metodologias didáticas diferentes. O trabalho com personagens tão diferenciados não seria tão problemático se os docentes dispusessem de planejamentos especializados e materiais para tal. Infelizmente, essa não é a realidade que encontramos em grande parte das escolas estudadas.
A dissonância entre a sazonalidade da produção e o calendário escolar leva ao absenteísmo dos alunos e à conseqüente descontinuidade escolar, mesmo com a utilização da chamada “Pedagogia da alternância” (modelo recente desenvolvido em estados como RS e ES), que flexibiliza o calendário escolar, alinhando-o à colheita dos produtos plantados na região.
Weber (2001), em seu estudo numa comunidade rural, observa que a maioria dos habitantes se limita a permanecer no campo, dando continuidade à vida campesina. Apesar disso, por parte dos pais dos alunos, verificou-se a preocupação em relação ao conhecimento da língua, da matemática básica, como uma forma de “lapidar” a criança, inserindo-a no meio social.
A LDB de 1996, aliada à instância econômico urbano-capitalista, intensificou uma nova forma de relacionamento no campo, desencadeando níveis diferenciados de relações de trabalho e produção, de sociabilidade e de vivência política, inclusive de redefinição de valores socioculturais. Isso pode ser melhor exemplificado com o fato de que, a partir desse novo modo de pensar a educação rural, a escola passe a carregar em si a posição “incômoda” de ser também agente de modernização no campo e de colaborar, assim, para a sua crescente urbanização (DEMO, 1980 apud LEITE, 2002).
O TRABALHO DOCENTE E SUAS PECULIARIDADES
Segundo Neves (1999), a Psicopatologia do Trabalho enfatiza as articulações do singular e do coletivo na análise das vivências subjetivas no trabalho. As histórias singulares desses professores rurais, em aliança com as condições sócio-econômico-culturais em que se inserem, dão sentido à forma de exercerem o trabalho, assim como às estratégias de enfrentamento inventadas, para possibilitarem a defesa contra práticas que ameacem seu bem-estar enquanto trabalhador.
Segundo Rocha e Gomes (2001), a educação na Primeira República era destinada somente à elite e o professor era o centro do processo. Nessa época, o professor ocupava um lugar de reconhecimento na sociedade. A partir da Segunda República, com a industrialização do país, dá-se início à liberação dos estudos para parcelas mais amplas da sociedade, devido à necessidade de formação de mão-de-obra e mercado consumidor.
A expansão das escolas demandava a contratação de novos profissionais. As escolas de formação, porém, não acompanharam essa demanda, trazendo resultados insatisfatórios para a educação, aumentando assim o número de professores leigos. Assim, na Segunda República, o magistério começou a ser desvalorizado devido ao crescimento quantitativo de escolas, sem que houvesse garantia de condições de trabalho (recursos suficientes e planejamento adequado).
Saviani (1983) afirma que se ampliam os problemas para a categoria do magistério e que aumenta o fracasso escolar, pois ocorre um aprofundamento da dicotomia entre a cultura escolar e a realidade social, descaracterizando a atividade de ensino como forma de trabalho. A escola passa a ser considerada uma continuação do lar, constitui-se num espaço do cuidar, deixando de ser espaço de produção de conhecimentos. Tal fenômeno ocorre de forma significativa no campo. Nesse sentido a mulher, enquanto professora, passa a ter importante papel. Tal aspecto será melhor explicitado adiante.
A implantação do tecnicismo traz consigo uma crescente implantação de mudanças administrativas e metodológicas ao sabor de interesses políticos, sem possibilitar a intervenção do professorado. Desta forma, os especialistas do ensino passam a pensar/planejar a educação que o professor executa. O professor sente-se podado, uma vez que lhe é tirada a autonomia do pensar, o sentido do labor. Assim, ao mesmo tempo em que o volume de trabalho aumenta, com a superlotação de classes, diminui o poder de ação e reflexão sobre o trabalho que executa.
Desta forma, ao sabor de reformas educacionais vindas de gabinetes, onde se encontram os “pensadores da educação”, o trabalho docente torna-se cada vez mais superficial e instável, passando a ser considerado ineficiente, além de responsável pelo fracasso escolar.
Ressaltamos, portanto, que a desvalorização do trabalho docente e a desqualificação de seu exercício têm causas na forma de organizar o trabalho escolar decorrente de políticas de ensino embriagadas de liberalismo e neoliberalismo.
Penin (1995) nos lembra a existência, nas escolas, de práticas individualizantes, rotinizadoras, dispersas, com uma tendência à homogeneidade, fragmentação e hierarquização no trabalho docente, ao mesmo tempo em que gera a exclusão das camadas populares da escola. A homogeneização se concretiza através da lógica, segundo a qual todos os docentes passam a adotar os mesmos princípios e critérios de ação, em que o professor e alunos criam o menos possível, pois tudo se resume a uma rotina que se repete. A fragmentação acontece com a manutenção da divisão social do trabalho na escola, onde se perpetua a dicotomização entre concepção e execução, professor e alunos, o natural e o social, e que acaba produzindo isolamento e fragilização dos professores. Quanto à hierarquização dos papéis na escola, verificamos as normas, regulamentos, decretos e calendários que impõem a aceleração, repetição e uniformização dos corpos, em detrimento do tempo vivido e da riqueza do ensinar, compartilhar, aprender.
Heckert et al (2001) observam que as reformas educacionais apontadas como soluções para os problemas existentes no cotidiano escolar acabam dificultando o desenvolvimento escolar, comprometendo a autonomia das escolas. Acabam por transformar a escola em uma máquina de ensinar, sem se preocupar com as diferenças existentes em cada instituição.
A referida pesquisa apontou, ainda, que a saúde dos trabalhadores de educação está em estado alarmante, conseqüência da precariedade das instalações, da sobrecarga de trabalho, da quantidade excessiva de alunos nas escolas, além da desqualificação e desvalorização dos docentes com os baixos salários. Esses condicionantes acabam por provocar esgotamento físico e mental nos trabalhadores, afastando esses profissionais das escolas e, por outro lado, permitindo que pessoas desestruturadas continuem trabalhando devido à defasagem de professores na ativa.
A pesquisa de Heckert et al (2001), realizada em Vitória-ES, constatou ainda que licenças médicas eram evitadas, uma vez que poderiam interferir em outros pedidos e gratificações docentes. O fato de não tirarem licença gerava, dentre outros problemas, desgaste, estresse, cansaço e sofrimento fruto da estafa física e mental pelo intenso trabalho que desenvolvem.
O trabalho docente é uma ocupação prioritariamente ocupada por mulheres. Tratar-se-ia de uma opção? Nunes e Selligmann (2001) colocam que não se trata de uma justificativa tão simples. A procura das mulheres pelo magistério deve-se à necessidade da mesma auxiliar nas despesas familiares, além de sua “natural” identificação com a profissão, no sentido de que envolve algo de místico, sacrificante, é uma profissão de doações, ou mesmo um sacerdócio.
As referidas autoras constataram, em pesquisa realizada na Paraíba, em 2001, que as professoras entrevistadas optaram pelo magistério por vocação, sugestão/ imposição da família ou porque era a única opção que tinham. Essas professoras ainda viam o magistério como lugar de mulher, alegando que jeito e paciência seriam atributos femininos, traduzindo uma visão polarizada em que racionalidade contrapõe-se à afetividade, associadas à masculinidade e feminilidade, respectivamente. O magistério é visto como uma profissão feminina. Para o senso comum, a mulher estaria apta para cuidar e educar, pois este é o seu dom e, no limite, não precisaria sequer ser remunerada enquanto profissional. Outros fatores que influenciaram para que as escolas fossem consideradas um território de ação feminina foram: a perspectiva de que a escola seria uma extensão da família, o movimento higienista e a divisão social do trabalho vinculada a relações de gênero: enquanto para a mulher era suficiente ter o magistério, para o homem eram esperadas ocupações mais arrojadas e dominadoras.
Essa visão tradicionalista associa o salário da mulher como um complemento na renda familiar. No trabalho de Neves e Selligman (2001), citado acima, porém, foi demonstrado o contrário: o salário da mulher, muitas vezes, é a única renda da família, e quando se torna um complemento, nota-se a necessidade do mesmo, devido ao baixo salário pago aos trabalhadores de forma geral.
Estudo realizado por Brito (2001) demonstrou que a educação e o conhecimento contribuem para a geração de modos alternativos de conhecer e construir relações sociais, de modo que, através da cultura do trabalho e das condições de saúde desse ambiente, o trabalhador pode se superar, almejando sempre novas demandas. Mas esse estudo mostrou também que muitas profissionais de educação entrevistadas utilizavam remédios para aliviar a tensão, procedimento que individualmente resolveria um problema coletivo2.
A partir de pesquisa realizada em zona rural do município de Santa Teresa e São Roque do Canaã-ES, no ano de 2005, alguns aspectos emergiram para reflexão.
Primeiramente, consideramos que o próprio sindicato da categoria do magistério, junto aos docentes rurais organizados, deveria criar espaços de discussão acerca das questões pertinentes ao cotidiano de trabalho, que viessem a gerar reivindicações e ações junto aos sistemas educacionais, no sentido da implementação de treinamentos/ações relacionados à reestruturação da organização do trabalho, discussões sobre saúde e outros assuntos de interesse da categoria. Um aspecto suscitado na pesquisa, de extrema relevância para a categoria, seria a necessidade do trabalho de fonaudiólogos nas redes de ensino, devido aos inúmeros afastamentos de docentes por problemas de uso da voz. Além disso, no estudo foi evidenciada a relevância de atendimentos psicológicos devido ao sofrimento contínuo desses trabalhadores, à sensação de desvalorização da categoria, além de outros entraves existentes entre os personagens escolares, fatores que tornam o cotidiano de trabalho do professor mais conflituoso. Faz-se necessário explicitarmos de que tipo de atendimento psicológico essa categoria necessita. Não se trata de uma visão clínica individualizante a respeito da história individual desse sujeito, mas uma análise psicológica que contemplasse os determinantes sociais, culturais, históricos e institucionais do “ser professor”.
Esses dois direcionamentos ficaram bastante claros no estudo realizado, mas outras demandas se desdobrariam da discussão inicial, de forma a contemplar outras necessidades do grupo.
A mobilização coletiva configura-se como um importante instrumento para o exercício dos modos de resistência ou de conformação às normas rigidamente instituídas, uma vez que envolve os professores e suas formas de ver e lidar com o atual funcionamento da organização do trabalho docente. O engajamento no nível micro/ instituinte pode contribuir para o resgate dos direitos sociais, que estão se esvaindo à medida que a forma de pensar engessada e homogênea perdura.
Para os docentes estudados, conviver com uma sobrecarga de trabalho com a qual não conseguem lidar causa muito sofrimento. O cotidiano do docente rural estudado lembra-nos a existência de uma bárbara e selvagem forma de exploração de trabalhadores. Muitos desses docentes precisam terminar seus estudos superiores sem abrir mão dos afazeres domésticos, de sua vida familiar ou de sua tripla/quádrupla jornada de trabalho. A divisão capitalista do trabalho, que pressupõe a segmentação entre quem concebe e quem executa, também permeia as questões do trabalho docente rural. É como se aos professores coubesse apenas executar o que já foi decidido pela cúpula gerencial da educação.
Questões de gênero também se incluem nessa discussão, na medida em que, por nossa formação cultural machista, a profissão de professora é tachada como típica de mulher, a qual, por sua vez, acredita ter vocação para tal. Seus rendimentos são tidos como “complementares”, mesmo que, muitas vezes, representem a principal fonte de renda familiar.
No que concerne ao aspecto psicológico, acreditamos ser fundamental que esses espaços de discussão coletivos possam propiciar ao docente uma oportunidade de repensar sua prática, compartilhando entre si estratégias diferenciadas na forma de compreender a sua inserção na educação no contexto mais amplo, a nível nacional, estadual e municipal. Trata-se, portanto, de um resgate do exercício político e social no ambiente de trabalho. O resgate da cidadania e do exercício de direitos conquistados pelos trabalhadores deve ser visto como um “exercício” que vai de encontro com a visão passiva diante das políticas públicas. Trata-se de reacender a participação popular nos mais diversos âmbitos, o que nos imporia grandes desafios: desconstruir uma história de séculos de submissão, de baixa politização e semear o desejo de ação.
A carga de trabalho, como pudemos verificar, é muito grande, o que exige do professor criatividade inigualável para sobreviver a ela. É nesse sentido que a inteligência astuciosa, a elaboração intelectual e o agir propositivo podem ser elementos indispensáveis para o resgate da saúde desses profissionais, tão imprescindíveis para a formação de novos cidadãos. Se, por um lado, notamos que esses docentes se vêem apassivados com a necessidade de se adequar a um funcionamento tradicional, por outro, notamos que sua inteligência ardilosa não é deixada de lado. Pelo contrário, essa energia é sublimada de forma que seja construtiva para o trabalhador.
Frente ao estudo realizado, notamos que se faz necessário que, nos cursos de Licenciatura e de Pedagogia, juntamente com a reflexão teórica, ocorra uma formação teórico-prática que aborde as várias nuanças do cotidiano escolar, tais como: disciplina/indisciplina na sala de aula, autoridade/autoritarismo, especialidade/ especialismo, inovações com materiais reciclados ou que tenham baixo custo, liderança e dinâmica no lidar com o 1º e 2º ciclos ao mesmo tempo. Tais temas, dentre outros, são imprescindíveis ao docente, no seu lidar diário com os alunos. Sabemos, no entanto, que grande parte dos cursos de formação trata de matérias específicas e predominantemente teóricas, deixando o recém formado despreparado e ávido por outras formações no âmbito pedagógico. O estudo desses temas no ensino superior não substitui, porém, a construção inteligente de estratégias mais imediatas e embebidas do saber-fazer dos professores.
Além de temas ligados diretamente ao exercício do magistério, ressaltamos a grande importância de discussões (no ambiente laboral) acerca dos cuidados com a saúde do docente: desde a melhor forma de impostação da voz, postura e hábitos saudáveis até um exercício de reflexão e escuta das diferentes percepções desses profissionais frente à organização do trabalho, além do resgate do valor da luta coletiva para transformar, bem como outros conhecimentos necessários para que os professores e futuros professores possam realizar o trabalho docente de forma prazerosa, organizando os espaços e tempos para que a sua atividade não se transforme em fonte de desprazeres que afetem sua saúde. Assim como há discussões sobre a flexibilidade no calendário acadêmico do aluno da escola rural, respeitando a sazonalidade dos plantios e colheitas, essa mesma discussão deveria ser estendida aos profissionais que (trans)formam os futuros cidadãos do país.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A presente pesquisa foi um importante instrumento para o conhecimento dos modos de resistência ou de conformação às práticas instituídas em educação rural. Isso se deu através do contato com os professores e suas maneiras de ver e lidar com o atual funcionamento da organização de seu trabalho pedagógico no nível cotidiano. Os movimentos em nível micro também contribuíram para o resgate dos direitos sociais, que estão se esvaindo à medida que a forma de pensar “conservadora”/ global se instaura.
É necessário que o docente tenha consciência do que está acontecendo objetivamente em suas aulas e em seu cotidiano para que perceba até que ponto é necessário modificar sua postura para não sofrer ainda mais com a realidade vivenciada.
Uma pesquisa-intervenção seria indicada para dar continuidade ao trabalho iniciado, pois ela se propõe a ir além da simples observação e coleta de dados sobre o tema. Além disso, nesse estudo deparamo-nos com a rede de poder e o jogo de interesses que se fazem presentes no campo de investigação.
Implicados que somos nesse processo de construção da realidade educacional do país, cremos na necessidade de se ampliar as discussões do psicológico (em sentido estrito) ao microssocial, reconhecendo a amplitude de fatores relacionados à problemática do trabalho docente rural e contribuindo na transformação de uma realidade que merece especial atenção.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Endereço para correspondência
Cristina Miyuki Hashizume
Endereço: crismiyu@usp.br
Marinete Maria Lopes
E-mail: marinetelopes@uol.com.br
Recebido em: 10/07/2006
Aceito para publicação em: 25/09/2006
NOTAS
* Doutoranda em Psicologia Escolar-USP. Professora da Universidade Bandeirante de São Paulo-UNIBAN.
** Professora Mestre em Educação - ESFA.
1 Apud CODO, W. Educação: carinho e trabalho. Por burnout entende-se uma síndrome que afeta principalmente trabalhadores da área social. A causa para tal síndrome residiria no fim do sentido que o trabalhador deveria ver em seu trabalho, e é causado pela exposição excessiva a esse ambiente, além do desgaste causado pela falta de infra-estrutura de trabalho, desmotivação pelo salário, dentre outros fatores.
2 Tais trabalhadoras compreenderam, em atividades grupais ocorridas ao longo da pesquisa, a importância da união da coletividade para a busca de situações que fossem favorecedoras para a categoria.