SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.23 número3Percepções sobre Momentos de Visitações para Adolescentes Privados de Liberdade: Relações Familiares e AfetividadeOs Sentidos do Trabalho: Análise do Trabalho Fabril em uma Indústria Farmacêutica índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.23 no.3 Rio de Janeiro set./dez. 2023  Epub 03-Maio-2024

https://doi.org/10.12957/epp.2023.79260 

PSICOLOGIA SOCIAL

Um Relato de Experiência por um Letramento Racial: Sofrimento Psíquico, Racismo e Corpos Brancos na Universidade

An Experience Report for Racial Literacy: Psychic Suffering, Racism and White Bodies at the University

Informe de Experiencia para un Letramento Racial: Sufrimiento Psíquico, Racismo y Cuerpos Blancos en la Universidad

Gabrielle Reichelt* 

Psicóloga, especialista em Saúde Mental (UNISINOS), mestranda em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.


http://orcid.org/0000-0002-7959-9735

Carolina dos Reis** 

Psicóloga, doutora e docente em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.


http://orcid.org/0000-0001-6482-2677

*Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, Porto Alegre, RS, Brasil

**Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, Porto Alegre, RS, Brasil


RESUMO

A escrita deste relato de experiência parte da vivência enquanto pesquisadoras brancas dentro da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e uma preocupação ética-política de buscar compreender o sofrimento psíquico na universidade e formas de produzir saberes que não reproduzam práticas racistas. Se busca, assim, colocar em evidência um modo de fazer pesquisa que opera a partir de situações de violência, oriundas de uma dimensão imperial do conhecimento que historicamente vulnera vidas negras e periféricas e que, em maior ou menor grau, produz sofrimento psíquico. A orientação metodológica perpassa a noção de experiência foucaultiana, sendo que o objetivo deste relato não é confirmar teorias ou hipóteses, mas perfazer percursos em conjunto à vida acadêmica por meio de movimentos coletivos e denúncias de racismo. A aposta consiste, portanto, numa proposta ética de firmar uma postura crítica enquanto corpos brancos como condição étnico-racial, num combate aos posicionamentos violentos da branquitude. Para tanto, se propõe uma noção de desamparo como coragem afirmativa da renúncia à violência branca e a construção de mundos plurais em que um letramento racial e alianças antirracistas se faça possível.

Palavras-chave: sofrimento psíquico; branquitude; universidade; letramento racial.

ABSTRACT

The writing of this experience report comes from the experience of white researchers within the Federal University of Rio Grande do Sul and an ethical-political concern to try to understand the psychic suffering in the university and ways of producing knowledge that does not reproduce racist practices. The objective is to show a way of doing research that operates from pratices of violence, arising from an imperial dimension of knowledge that historically vulnerates black and peripheral lives and that, to a greater or lesser extent, produces psychic suffering. The methodological orientation permeates the notion of Foucaultian experience, and the objective of this report is not to confirm theories or hypotheses, but to complete paths in conjuction with academic life through collective movements and denunciations of racism. The bet consists, therefore, of an ethical proposal to establish a critical stance as white bodies as an ethnic-racial condition in a fight against the violent positions of whiteness. To do so, a notion of helplessness is proposed as an affirmative courage of renouncing white violence and the construction of plural worlds in which racial literacy and anti-racist alliances become possible.

Keywords: psychic suffering; whiteness; university; racial literacy.

RESUMEN

La redacción de este informe se basa en la experiencia como investigadoras blancas dentro de la Universidad Federal de Rio Grande do Sul y una preocupación ético-política por tratar de comprender el sufrimiento psíquico en la universidad y formas de producir conocimiento que no reproduzcan prácticas racistas. Se busca resaltar una forma de hacer investigación que opera desde situaciones de violencia provenientes de una dimensión imperial del saber que históricamente vulnera las vidas negras y periféricas y que, en mayor o menor medida, produce sufrimiento psíquico. La orientación metodológica permea la noción de experiencia de Foucault y el objetivo de este informe no es confirmar teorías o hipótesis, sino completar caminos juntos en la vida académica a través de movimientos colectivos y denuncias del racismo. La apuesta consiste, por tanto, en una propuesta ética de instaurar una postura crítica como cuerpos blancos como condición étnico-racial, en lucha contra las posiciones violentas de la blanquitud. Para ello, se propone una noción de desamparo como la valentía afirmativa de la renuncia a la violencia blanca y la construcción de mundos plurales en los que el letramento racial y las alianzas antirracistas sean posibles.

Palabras clave: sufrimiento psíquico; blancura; universidad; letramento racial.

A escrita deste relato de experiência inicia a partir da vivência de uma das autoras como aluna do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional (PPGPSI), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e a percepção do seu corpo branco como mediador das relações que estabelece com colegas, professores e a produção do conhecimento. Pensamento que atravessou uma preocupação ética-política de buscar compreender o sofrimento psíquico na universidade e formas de produzir saberes que não reproduzam práticas racistas. Para tanto, se tornam necessárias, neste momento, algumas considerações.

Atualmente, a produção da ciência marca um cenário de relações de poder-saber que se inter-relacionam entre produção, difusão e circulação do conhecimento, materializado, por exemplo, no uso e na construção de indicadores de Ciência, Tecnologia e Inovação (CT&I). A partir desta lógica, criam-se rankings de publicações entre os pesquisadores para a liberação de bolsas, popularizam-se os docentes mais produtivos, instituem-se provas e trabalhos a fim de medir saberes, criam-se plataformas de controle onde é possível avaliar rendimentos e, por fim, decidir investimentos econômicos, políticos e sociais em detrimento de outros (Maurente, 2019). Assim:

Apesar do pesquisar envolver uma série de agenciamentos coletivos, que vão desde o cotidiano de trabalho até o compromisso com a sociedade, as recompensas são individuais, garantidas pela apresentação de um currículo “produtivo” em seleções, concursos, editais e progressões (Maurente, 2019, p. 4).

Como efeito, observamos a intensificação do trabalho, o sofrimento psíquico, o abuso moral, o aumento da competitividade e o fazer científico como status de reconhecimento pessoal. Indo de acordo com a crítica a uma demanda incessante de produtividade, em 2017 a Frente Universitária de Saúde Mental (FUSM) criou a Campanha “Não é Normal” com o intuito de mostrar que não é normal sacrificar a saúde mental por um diploma. O movimento Universitário se formou a partir da crítica a precarização e a negligência da saúde mental dos alunos, demarcando a união de diversas universidades em prol de um mesmo objetivo (FUSM, 2018).

Entendendo que, muitas vezes, o sofrimento dentro do espaço acadêmico passa a ser concebido como um problema individual, ao invés de um sintoma coletivo de adoecimento social, o movimento teve a pretensão de expor essa realidade coletiva. Percepção que se confirma, novamente, quando, em 2018, estudantes de Medicina da UFRGS criaram a página do Facebook “Previamente Hígido” - termo médico que define um paciente com histórico saudável antes do motivo que o levou ao atendimento -, em que, por meio de relatos anônimos, denunciaram abusos, violências e desabafos da vida acadêmica.

Fica evidente nas narrativas a premissa de que só haverá sucesso profissional se você for “um acadêmico 100% engajado, que faz cursos, publica artigos, participa de ligas, faz monitoria, tira 10 em tudo, vira madrugadas... E causa muito sofrimento perceber-se fora desse padrão” (Previamente Hígido, 2018a). As denúncias ganharam repercussão jornalística e protagonizaram um novo relato a partir de uma vivência acadêmica que expõe uma série de tensionamentos, jogos de poder e campos de possibilidades.

Vi professor considerando ser um absurdo e falando de maneira agressiva sobre as manifestações dos alunos no Previamente Hígido. Isso porque "sujaram o nome de uma instituição respeitada há mais de um século" e ele se mostrou muito mais preocupado com a importância das percussões para a imagem da faculdade do que com a situação alarmante que os depoimentos nos mostram - depressão, crises de pânico, abuso de drogas e medicamentos, ideação e tentativa de suicídio, assédio moral, homofobia.

"Meu deus, na Zero Hora! Agora na Veja! Que vergonha!!".

Vi professor falando que "era muito fácil pra alunos fazerem aqueles depoimentos e manchar a imagem da faculdade de forma anônima, sem mostrar a cara". Vi professor falando em fazer uma investigação para descobrir quem fez os depoimentos anônimos porque é um absurdo sujar a imagem da instituição e ficar impune. Vi professor falando que certo autor de um depoimento do Previamente Hígido "não deveria ser médico, porque não conseguiria aguentar".

"Deixa eu te contar, na minha época de doutorando..."

Quando tentei argumentar... Adivinhem? Fui interrompida no meio da frase e não consegui expressar meu ponto de vista sobre o assunto. [...] Não vou citar o nome do professor, com medo de represália. E nem o meu. Mas, professor, não é porque é "fácil ser anônimo". Eu preferia ter conseguido falar pro senhor. É medo de represália mesmo. Porque quando eu for argumentar ao vivo, não vão me deixar falar. (Previamente Hígido, 2018b)

Narrativas que ilustram um cenário onde a existência de práticas de violência e violações aparecem como parte corriqueira da vida acadêmica e que potencialmente vulnera a vida de todos os corpos imersos nesse contexto. Contudo, torna-se necessário ressaltar que há produções de sofrimento psíquico com condições de possibilidades de compreensão e amparo distintas, o que evidencia a existência de diferentes corpos e marcadores sociais que ocupam espaços e possibilidades de ação também distintas.

Ressaltamos, portanto, que em Novembro de 2018, a UFRGS, mais especificamente o Departamento de Psicologia Social e Institucional, entrou em luto com o suicídio do professor Carlos Baum, primeiro professor negro do Instituto de Psicologia (IP), e importante pesquisador na área de estudos da cognição em psicologia social. As reverberações adentraram o corpo docente, discente e as paredes do IP em forma de memorial com recados e poesias que não somente gritaram como nos convocaram a olhar, e mais que isso, pensar. Ressaltamos um trecho da poesia de um discente que foi compartilhada na página do Facebook “Afronta Fabico”:

"Não falem sobre o Carlos não, vai que isso se repete"

Mas como assim "vai que isso se repete"? Tolo

Já se repetiu ontem, vai se repetir amanhã de novo

Com professor e com aluno enquanto continuarem no rumo de

ignorar a existência do meu povo

Não me impressiona o fato

Deles terem dado um jeito de colocar os próprios pretos como culpados

"É que ele sofria pressão do movimento negro"

Mas é pelos brancos que todo negro nasce pressionado

Observe a métrica dessa poesia

Se você for contar, cada estrofe tem 4 linhas

4 linhas

Isso já é mais do que a nota de falecimento do Instituto de Psicologia

Se a gente não tivesse voz, nosso algoz

Invisibilizaria nossa morte mais uma vez (Marques, 2018)

A dor dessa perda ecoou pelos corredores criando tensões, que pouco a pouco, explodiam em sala de aula expondo o racismo institucional e o sofrimento psíquico que caminhava ao nosso lado dentro da UFRGS e, por sua vez, a morte. Dessa forma, cabe ressaltar que, ainda que o sofrimento psíquico ou o próprio suicídio ocorra de forma multifatorial, o que está em discussão ultrapassa qualquer compreensão individualista adotando a conotação de um sofrimento coletivo, estratégico e, em certa medida, apagado que atravessa as paredes do IP.

Poderíamos, ou deveríamos salientar, portanto, que na atualidade é cada vez mais comum encontrarmos nos jornais ou redes sociais relatos de suicídios. Embora este ainda seja considerado uma temática a ser evitada - “vai que isso se repete” (Marques, 2018) - e ainda que não existam muitos levantamentos estatísticos de pesquisas sociodemográficas com o recorte universitário, no país, o suicídio é a terceira principal causa de morte entre a faixa etária dos 15 e 35 anos, período no qual os jovens começam a ingressar no mercado de trabalho e nas universidades (Quero Bolsa, 2018). No que tange a raça, as informações, se associadas ao ensino superior e ao adoecimento psíquico, são ainda mais escassas, assim como a quantidade de estudantes não brancos que ocupam a academia. Torna-se necessário, portanto, ressaltar que em 2012 foi sancionada a Lei 12.711/2012, conhecida como “lei de cotas”, a fim de democratizar o acesso à educação superior, reservando, para isso, metade das vagas das universidades para estudantes vindos de escolas públicas, subdivididos entre candidatos autodeclarados pretos, pardos e indígenas e candidatos das classes socioeconômicas mais baixas, independente da cor ou raça (Carmona, 2018).

Fortalecendo esta percepção, o censo de 2016, realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) do Ministério da Educação, constatou que a população negra segue sendo minoria no ensino superior. Somado a isso, a pesquisa em questão pediu para que os docentes da rede pública e privada fizessem uma autodeclaração de raça, e os dados apontaram que menos de 1% dos docentes são negros e cerca de 0,4% dos docentes na pós-graduação são mulheres negras, o que significa apenas 219 mulheres negras no topo da carreira acadêmica no Brasil (Carmona, 2018). No que se refere à produção de sofrimento entre discentes e docentes negros, podemos ressaltar que a Cartilha publicada pelo Ministério da Saúde no início 2019 mostrou que a população negra possui 45% mais chances de cometer suicídio, sendo que a cada dez suicídios na faixa etária dos 10 aos 29 anos, aproximadamente seis ocorreram com negros (Brito, 2019). O documento também alerta para o maior risco de vulnerabilidade psicológica desse grupo, por enfrentar questões relativas ao preconceito, discriminação e racismo institucional (Brito, 2019).

Dessa forma, por reconhecer os efeitos do racismo na saúde mental, os Conselhos Regionais de Psicologia passaram a compor comissões com o foco étnico-racial, produzindo diálogos e práticas pautadas num cuidado ético, decolonial e corporificado. Para isso, se passou a evidenciar as diferenças históricas, políticas e econômicas, assumindo que a discriminação de determinadas populações étnicas marca uma vulnerabilidade de longa duração com condições degradantes em larga escala (Mader, 2016). Conjuntura que afeta as relações intersubjetivas e multigeracionais como resultado do processo colonial que produz relações assimétricas onde determinados grupos são destituídos da sua humanidade (Mader, 2016).

A formação em Psicologia (assim como muitas outras) sofre de um genocídio epistêmico, percebido aqui como uma materialização perversa do racismo, que exclui a produção produzida por e a respeito de sujeitos negros, com isso, excluindo os próprios sujeitos. A escolha de quais autoras/es visibilizar e quais excluir advém de importantes motivos, assim como gera importantes efeitos (Silva, 2019, p. 19).

É a partir deste cenário e destas afirmações que o presente relato de experiência foi escrito, em conjunto com a vivência das autoras enquanto mulheres brancas e pesquisadoras da UFRGS, na tentativa de compreender a dinâmica de sofrimento psicológico que opera no campo da educação superior. E que, não raras as vezes, é percebido como parte constituinte da vida acadêmica que naturaliza práticas pautadas na violência de um fazer científico colonial e patriarcal.

Para tanto, em um primeiro momento discutimos sobre a produção do sofrimento psíquico que opera dentro da universidade. Num segundo momento discorremos com maior cuidado sobre o percurso metodológico que perfaz a escrita deste relato e atravessa uma preocupação ética. Abrimos a discussão, em um terceiro momento, problematizando a noção de corpo, raça e a produção de sofrimento. Encerramos, em um quarto momento, discorrendo sobre as possibilidades de construir um letramento racial e alianças pautadas em um contrato ético que coloca a branquitude em discussão para se assumir uma postura antirracista.

Percurso Metodológico

A escrita deste artigo perpassa uma preocupação ética-política que busca compreender o sofrimento psíquico na relação com diversos jogos de poder que operam sobre o corpo, colocando em discussão os corpos brancos na relação com a produção e legitimação de saberes que carregam uma herança colonial racista. Preocupação que passou a orientar o pensamento e a construção da metodologia deste relato de experiência, tomando como campo de discussão a UFRGS e a experiência de uma das autoras como mulher, branca, cis-gênero, classe média e mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional (PPGPSI).

Assim, o presente artigo propõe problematizar as práticas que corroboram para o adoecimento dentro da universidade, possibilitando que se articule uma história da educação, enquanto experiência, entendendo por experiência a correlação entre campos de saber, tipos de normatividade e formas de subjetivação (Foucault, 2006). O conceito de experiência parte de uma compreensão foucaultiana, que coloca a experiência enquanto procura de proximidade com o que não foi passível de ser vivido, onde “o que é requerido é o máximo de intensidade e, ao mesmo tempo, o máximo de impossibilidade” (Foucault, 2006, p. 43).

Como tal escrita parte da experiência de autoras brancas, algumas das reverberações dos questionamentos vividos utilizam como base outros autores brancos, como Foucault e Butler, que também buscam compreender as relações de poder, fazendo uma ponte entre uma referência teórica mais familiar às autoras, com autores negros e decoloniais, abrindo possibilidades de se pensar e repensar o letramento racial, os corpos e os jogos de poder.

Utilizamos para tanto, como instrumento de pesquisa, a vivência como representação discente na Comissão de Pós-Graduação, instância ordinária de decisão e coordenação do Programa de Pós-Graduação, de Agosto de 2019 a Agosto de 2021, com reuniões mensais na segunda quarta-feira de cada mês, e nas reuniões do Conselho de Pós-Graduação, que ocorrem com todo o corpo docente, dentro deste mesmo período. Dessa forma, fez-se o uso de atas públicas de reuniões institucionais e cartas-abertas à comunidade, escritas pelas representações discentes do PPGPSI e pela Comissão Permanente de Combate ao Racismo Institucional do Instituto de Psicologia (CPCRI-IP), de 2018 a 2021 - relacionadas a denúncias sobre racismo, sugestões e ações para combate e reparação, acesso e permanência estudantil e lutas por garantia de direitos.

Somado a isso, foi analisada a página do Facebook “Previamente Hígido”, criada em Julho de 2018, pelos estudantes de Medicina da UFRGS e a Campanha “Não é Normal”. Os trechos utilizados foram escolhidos por serem de acesso público, conter temas relacionados ao território da pesquisa e expor, além de vivências, denúncias as situações vividas de racismo por meio de movimentações coletivas, dentro do período de 2018 a 2021. Ressaltamos, ainda, que tais materiais não foram analisados de forma exaustiva, mas serviram como elementos que compõem a elaboração desta escrita, uma vez que as narrativas partem do movimento de experenciar o campo da educação superior em diálogo com esses materiais, sendo que o intuito não é confirmar teorias ou hipóteses, mas disparar problematizações e potencializar condutas antirracistas.

Corpo, Raça e Produção de Sofrimento

Retomamos neste momento algumas considerações sobre a necessidade dos corpos brancos serem compreendidos dentro de uma posição privilegiada de múltiplos sistemas de opressão, que se manifestam sobre os corpos dos sujeitos e suas condições de possibilidades, de uma produção de sofrimento psíquico e práticas de violência que atravessam a inseparabilidade estrutural do racismo, capitalismo e cis-hétero-patriarcado dentro da universidade.

Dessa forma, atentamos para o fato de que a branquitude, em termos teóricos, se pauta em uma categoria analítica que situa o branco enquanto sujeito racializado marcando sua posicionalidade e singularidade (Bento & Carone, 2002). Se nomear branco significa, portanto, quebrar com os pressupostos de universalidade, colocando em foco a circunscrição histórica, os jogos de poder e os privilégios que a categoria branca se beneficia desde o período colonial e que durante anos não foram debatidos dentro da Psicologia.

Como destaca Schucman (2012) o contexto brasileiro não deve ser pensado sem uma análise racial, visto que a formulação do seu território propicia condições de possibilidades diferenciadas para a constituição dos indivíduos como sujeitos, o que incide diretamente na subjetividade de brancos e não brancos, com uma desigualdade que perpassa diversas categorias de socialização para se viver os espaços públicos e privados dentro do país. Fato este que caracteriza, portanto, o conceito de branquitude como categoria analítica para se pensar os corpos brancos e os jogos de poder. Sendo o conceito definido como:

[...] uma posição em que sujeitos que ocupam esta posição foram sistematicamente privilegiados no que diz respeito ao acesso a recursos materiais e simbólicos, gerados inicialmente pelo colonialismo e pelo imperialismo, e que se mantêm e são preservados na contemporaneidade (Schucman, 2012, p. 23).

O conceito de branquitude marca assim uma condição de privilégio permanente no qual um grupo étnico-racial se mantém no poder em detrimento de outro, e, nesta condição, passa a perpetuar o racismo naturalizando os lugares sociais historicamente construídos. Nessa perspectiva, combater o racismo impõe a necessidade de se enfrentar o privilégio branco, sendo a luta contra a branquitude um dever dos brancos em determinar sua construção histórica e condição étnico-racial.

Por esse motivo, colocamos em discussão nesse relato de experiência alguns eventos que envolvem a denúncia de ações racistas dentro da universidade capazes de provocar problematizações. Em 2019, houve duas denúncias de racismo dentro do PPGPSI. Atentamos não para o julgamento dos atos ou repercussões diretas da denúncia, mas aos movimentos que se sucederam a partir destes acontecimentos, como a confecção de cartas-abertas por parte da comunidade discente e docente, que repercutiram em encontros para se pensar o letramento racial entre docentes e discentes, além de ações visando a responsabilização pelos atos racistas, mas não antes de diversos movimentos terem ocorrido dentro da universidade. Para tanto, compartilhamos a narrativa de uma das discentes envolvidas:

Começou na graduação, quando eu ia diariamente pra lá. O início foi deveras complicado, não tinha vontade, tinha medo, tinha a sensação de que todos me olhavam diferente. Curiosidade? Receio? Empatia? Apatia? Medo?... Os olhares de meus colegas e professores expressavam de tudo um pouco. “Os cotistas estão aqui” os olhares diziam. Os banheiros diziam “fora macacos imundos”, “lugar de preto é na cozinha do RU. Isso marcava nossa entrada nesse espaço (espaço da UFRGS num contexto geral). [...] Um dia após os 80 tiros, entramos no Instituto de Psicologia, subimos no quarto andar e dirigimo-nos para o departamento de psicologia social (psicologia o que?), é nesse momento que um renomado professor olha os três alunos negros caminhando em direção ao departamento, com cara de espanto/surpresa/curiosidade, levanta as mãos pro alto e diz: “é um assalto?”. Sim, ele disse isso, e sim, estudamos sobre racismo, discutimos sobre o racismo e SIM sofremos com o racismo nosso de cada dia, essa pergunta foi um soco violento no estômago, essa pergunta acabou com a minha tarde, essa pergunta reafirmou que esse lugar “não é para nós”. Ele só verbalizou o que muitos quando nos olham gostariam de falar, mas só pensam. E não é sobre eles, é sobre nós, sobre a dor que atos assim ainda nos acometem, sobre a vontade de não estar mais “ali”, sobre a sensação de impotência frente a um racismo tão descarado (Silva, 2019).

Como afirma Silveira et al. (2018), a negação e o silenciamento se tornaram um dos maiores obstáculos para o avanço da discussão racial no Brasil, por consequência do mito da democracia racial. O racismo, ao retirar a sensibilidade frente ao sofrimento do outro, causa, por efeito, a banalização da dor e da violência que acompanha tal comportamento, assim como todos os prejuízos sociais e econômicos (Silveira et al., 2018). Ação que fortalece comentários questionadores quanto à validade da denúncia do racismo e o reconhecimento como vítima de discriminação racial. O silenciamento, acompanhado da deslegitimação do que é experienciado, acaba por produzir na comunidade negra uma dúvida sobre sua própria sanidade (Silveira et al., 2018). À vista disso, em maio de 2019 a Assembleia Discente do PPGPSI/UFRGS, divulgou em forma de nota pública um pronunciamento acerca das denúncias de racismo dentro do IP.

Apesar das relações raciais serem um dos assuntos estudados e debatidos no PPGPSI, a atitude desse professor evidenciou como o racismo estrutural está presente no cotidiano, contribuindo para o adoecimento e a impossibilidade de permanência de estudantes negros na Universidade. [...] Deixar de nomear um acontecimento como racista é silenciar o sofrimento gerado, assim como tratar tal acontecimento como uma mera piada no corredor também contribui para a perpetuação do silenciamento sobre as formas mais cotidianas e sutis pelas quais o racismo nos interpela. Aproveitamos a presente carta para também colocar em análise as próprias ações da representação discente nesse processo de afirmação do racismo institucional. A comoção e a visibilidade que a maioria das/os representantes discentes brancas/os conferiram a esse episódio de racismo - se comparado a outras ocorrências de agressões a estudantes por outras causas - indicam dificuldade e demora para se mobilizar no apoio às/aos discentes negras/os. É necessário colocar em questão a nossa branquitude. Assim, é preciso repensar tanto a participação docente quanto a contribuição discente neste processo de perpetuação do racismo institucional. Queremos propor às/aos professoras/es e colegas que possamos nos responsabilizar por nossa participação nesse processo de manutenção do racismo institucional, compondo ações antirracistas continuadas. (Assembleia Discente, 2019)

Como ressalta a nota pública da assembleia discente, é dever do corpo discente, docente e institucional formado por sujeitos brancos passar por um letramento racial e compreender o conceito de branquitude, que nos impõe outras formas de acessar e compreender o território, marcando uma posição de privilégio em detrimento de outros corpos, bem como a existência de um racismo estrutural que nos constitui enquanto corpos brancos numa sociedade colonial.

A partir disso, tomamos como base Mbembe (2017) para pensar o processo de colonização, racismo e democratização na relação entre o eu e o outro dentro da universidade. Torna-se possível, por meio deste autor, pensar que dentro do espaço acadêmico “coexistem duas ordens - uma comunidade de semelhantes, regida, no mínimo teoricamente pela lei da igualdade, e uma categoria de não-semelhantes, ou ainda de sem-lugar, também ela instituída por lei (Mbembe, 2017, p. 34). A história da democracia poderia ser compreendida como a história de duas faces e de dois corpos (Mbembe, 2017) que, no espaço institucional da UFRGS cria entraves entre discentes, docentes, técnicos e demais sujeitos que habitam a universidade. Percorre assim, uma política que tem como ação marcar para governar, num jogo de cidadania excludente que oscila constantemente entre semelhantes e não semelhantes.

Trazemos para a discussão, portanto, outra passagem do Previamente Hígido constatando a violência o racismo institucional: “primeiro dia de aula no pequeno grupo com este professor. Ele: ‘Alunos cotistas não tem condições de concorrer com alunos não cotistas! Alunos cotistas possuem menos neurônios que não cotistas’” (Previamente Hígido, 2018b). Fica evidente que se em um primeiro momento é possível tomar o corpo discente como uma unidade homogênea, ao focar no âmbito das relações que se dão no contexto universitário, é possível perceber que nem todos os corpos que constituem o corpo discente e também, consequentemente, docente, possuem relações e posições iguais dentro do espaço acadêmico.

Somado a isso, Mbembe (2017) afirma que o neoliberalismo é a reedição da escravização negra moderna na medida em que a escravização dos povos africanos marca a condição para o capitalismo moderno e a abertura para o capitalismo contemporâneo. Ao passar do liberalismo para o neoliberalismo, reatualiza o processo de escravização onde todas as ações possuem valor de mercado. As democracias modernas marcam, assim, um funcionamento que a todo momento suspende direitos. Nas palavras de Mbembe (2017) “a democracia contém em si a colônia, tal como a colônia contém a democracia, muitas vezes mascarada” (p.49). O que possibilita e permite comportamentos e falas como a do docente que coloca os alunos cotistas numa posição inferior aos demais alunos, por se situar numa posição sem medo de represálias, sustentado pelo corpo do homem branco. Pouco a pouco, tornam-se possíveis relatos de experiências que expressam sofrimento e adoecimento psíquico.

Durante toda a faculdade presenciei um ambiente extremamente homofóbico e repressor, não apenas por professores, mas por colegas também. Piadinhas com pacientes afeminados e a perpetuação de humor de gosto duvidoso. Durante a faculdade sucumbi à depressão; a dificuldade e o estresse (comum a todos) aliados à necessidade de esconder minha própria natureza me levaram a buscar ajuda. Fiz terapia e usei antidepressivos por todo o curso (Previamente Hígido, 2019a).

Logo, torna-se preciso, nesse contexto, atentar-se ao fato de que, enquanto o homem branco hegemônico sofre dentro do espaço universitário com as exigências do produtivismo acadêmico e do abuso de figuras de poder institucionais - mais fortes que o seu próprio corpo - os demais discentes, além de estarem sujeitos a violências desse tipo, ainda sofrem racismo, sexismo, homofobia, transfobia, xenofobia e etc. Como afirma Hooks:

Estudantes brancos não estavam vivendo diariamente num mundo fora do campus onde também tinham que enfrentar a degradação, a humilhação. Para eles, tolerar formas de exploração e dominação na pós-graduação não evocava imagens de uma vida inteira de abuso. Eles podiam suportar certas formas de dominação e abuso, aceitando isso como um processo de iniciação que acabaria quando se tornassem a pessoa no poder [...] aqueles que jogavam melhor o jogo eram homens brancos, e eles não enfrentavam discriminação, exploração e abuso” (Hooks, 2019, p. 131-132)

Consequentemente, foi apenas ao compreender os nossos corpos brancos como mediadores das relações que estabelecemos com os outros e com a produção dos saberes, que passamos a nos atentar para as formas de violência que habitam na academia, tomando consciência do significado dos nossos corpos brancos. Da mesma forma, foi apenas lendo o trabalho de conclusão de curso de uma colega, por exemplo, que nos deslocamos do olhar colonizador que nos constitui para compreender os saberes da população indígena Kaingang, numa narrativa sensível e autoral que o nosso corpo jamais seria capaz de transpor.

Como ela interroga e ao mesmo tempo afirma, os povos indígenas são invisíveis na história do nosso país, pois se você perguntar “quem descobriu o Brasil, ele dirá, sem dúvida, ‘Pedro Álvares Cabral’. Mas, na realidade, aqui havia milhares de povos que foram esquecidos propositalmente para que o colonizador fosse o protagonista” (Carvalho, 2020, p. 18). A partir desta reflexão, podemos constatar o genocídio epistêmico e os jogos de poder que constituem e atravessam os saberes acadêmicos do que é compreendido enquanto relevante e, a partir disso, validado como verdade. Sinal que nos alerta para a necessidade de uma compreensão de saúde mental e sofrimento psíquico ampliado que dialogue com a história colonial e coloque em foco os múltiplos sistemas de opressão. Como afirma Carvalho (2020):

Nossa visão do que é a doença é muito diferente dos fóg, por isso é interessante comparar diferentes tipos de adoecimento, pois temos o adoecimento espiritual para os indígenas que muitas vezes é visto como depressão, sendo tratado como uma doença psíquica e que precisa ser medicalizada. Para nós, isso que se chama “saúde mental” é diferente da visão ocidental, pois engloba vários aspectos mais amplos da saúde. (Carvalho, 2020, p. 13)

Ao entrar em contato com a narrativa da nossa colega Kaingang começamos a colocar em discussão concepções não colonialistas da saúde mental e, principalmente, compreender como o sofrimento psíquico é avaliado, interpretado e, então, validado como tal, sendo que diferentes corpos ocupam diferentes posições sociais e, portanto, possibilidades de ações igualmente diferenciadas. Facilmente, é possível compreender e associar o produtivismo acadêmico como um fator de adoecimento psíquico, mas muito pouco se discute o sofrimento de uma mulher indígena, dentro da universidade, que não permite que uma criança circule e resida com a sua mãe, na Casa do Estudante Universitário.

Eu mesma fui diagnosticada com a CID de depressão pós-parto e medicada, mas sem levar em conta que a insegurança gerada pela não aceitação do meu filho pela universidade foi a causa do meu adoecimento. [...] muitas denúncias foram feitas para nos tirar da casa [estudantil], mas Tupê em sua infinita bondade nos deu muitas alegrias, pessoas que lutaram e lutam para que mãe e filho permanecessem juntos, pois seria desumano separar duas almas que são uma só. (Carvalho, 2020, p. 12-13)

Assim, torna-se possível constatar que nem todo sofrimento é passível de ser legitimado como sofrimento, na medida em que nem todos os corpos e saberes possuem lugar de escuta. Enquanto o produtivismo é naturalizado, o racismo é velado no mito da democracia racial, o que, por sua vez, possibilita violações de direitos que podem ser violados sem que haja responsabilização por isto. Desta forma, as violências e violações se tornam a norma e o sofrimento, o dano colateral. Como resultado, se invisibiliza a produção da dor, da violência e das violações que operam no âmbito das relações.

Para tanto, trazemos Butler (2018) para a discussão na tentativa de compreender os jogos de poder que atravessam os corpos dentro da universidade, tendo em vista que tal autora branca possui diversos estudos sobre corpos e a preocupação ética da sua constituição enquanto sujeito, para pensar as aproximações do letramento racial e da branquitude dentro desta visão teórica. Para a autora, ser um corpo é estar exposto a uma modelagem e uma forma social dentro de um campo de forças e regras de sociabilidade - linguagem, trabalho e desejo - que torna a existência de um corpo possível (Butler, 2018). Assim, ao tentar responder à questão “o que é uma vida?”, Butler (2018) afirma que o “ser” é constituído por meios seletivos, não sendo possível fazer referência a esse “ser” fora das operações de poder e dos mecanismos específicos de poder nos quais a vida é produzida. O ser “está sempre entregue aos outros, a normas, a organizações sociais e políticas que se desenvolveram historicamente afim de maximizar a precariedade para alguns e minimizar a precariedade para outros” (Butler, 2018, p. 15).

A produção normativa que constitui o que entendemos por vida produz, segundo Butler (2018), o problema epistemológico de apreender uma vida e o problema ético de definir e reconhecer as violações e violências que acometem essa vida. Dessa forma, a autora nos ajuda a pensar uma aproximação à necessidade do letramento racial e do combate ao racismo numa luta contra a branquitude que demarca privilégios. A precariedade expõe uma condição politicamente induzida que perpassa categorias identitárias e mapas multiculturais. Dessa forma, quando nos orientamos de modo a não combater situações de violência ou violações, nos tornamos parte desta violência. Sendo assim, cabe a nós, enquanto corpos brancos, nos questionarmos sobre o tipo de relação que estamos formando, produzindo ou reproduzindo dentro do espaço acadêmico e fora dele para a não propagação da violência.

Um Contrato Ético Para uma Política de Alianças

Mbembe (2017) afirma que o “tornar-se homem no mundo” exige do sujeito “que ele abrace conscientemente a parte fragmentada da sua própria vida; que ele se obrigue a desvios e reconciliações, por vezes improváveis” (p. 247). Sem esquecer, contudo, que “habitar um lugar não é, no entanto, a mesma coisa do que pertencer a esse lugar” e a ética, nesse sentido, consiste no fato de que “só quando nos afastamos de um lugar temos condições para nomeá-lo e habitá-lo (p. 247-248).

Indo de encontro com isso, Safatle (2020) discute em “Os circuitos dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo” como a vida social e a experiência política produz e mobiliza afetos. Ser afetado permite não apenas a construção de vínculos como fornece o impulso necessário para ser deslocado em outra direção e a outros afetos (Safatle, 2016). Para o autor, o medo como afeto político está intimamente ligado ao modo como o indivíduo se percebe dentro dos seus sistemas de interesse e fronteiras externas, e tal percepção, por sua vez, exige uma defesa dos processos de reconhecimento que operam a partir de identificações e concorrências - fator que, impulsionado pela sociedade neoliberal, acaba por nutrir uma dinâmica de “invasor em potencial” (Safatle, 2016). Isso se aproxima de Mbembe (2017) acerca dos processos de inimizade característicos da democracia liberal.

Talvez por este motivo, tenha sido possível sentir e compreender a atmosfera de medo que uma de nós presenciou, em 2018, ainda enquanto aluna especial dentro do IP. Um medo que se manifestava a partir do receio do que falar em sala de aula, acompanhado de justificativas para se proteger de um perigo iminente, de um “inimigo em potencial”. Acrescentamos também que foi apenas em 2018, ao entrar na UFRGS, neste contexto de denúncias de racismo, que uma de nós ouviu pela primeira vez o termo “pacto narcísico da branquitude”. Ainda que não soubesse nesse momento o que o termo significava, sabia que tal afirmativa nos envolvia, pois éramos brancas e indiretamente dizia algo sobre nós e sobre nossas ações, que nos tornava cúmplices e, portanto, potenciais inimigas. Foi, novamente, lendo Bento, que compreendemos teoricamente o que disseram.

Tudo se passa como se houvesse um pacto entre brancos, aqui chamado de pacto narcísico, que implica na negação, no evitamento do problema com vistas a manutenção de privilégios raciais. O medo da perda desses privilégios, e o da responsabilização pelas desigualdades raciais constituem o substrato psicológico que gera a projeção do branco sobre o negro, carregada de negatividade. [...] Alianças inter-grupais entre brancos são forjadas e caracterizam-se pela ambigüidade, pela negação de um problema racial, pelo silenciamento, pela interdição de negros em espaço de poder. (Bento & Carone, 2002, p. 7)

História cultural que pode não dizer da nossa história pessoal, mas que diz respeito ao significado e a forma como o nosso corpo branco é visto e compreendido socialmente, pela carga histórica que ele possui e ultrapassa a nossa existência. Logo, se os nossos corpos brancos são historicamente violentadores, manter uma posição protetiva é duplamente violentador na medida em que nega a violência que eles representam, vendo apenas no “outro” a figura ameaçadora. Foi igualmente lendo Bento que compreendemos a importância de

focalizar o problema das relações raciais como um problema das relações entre brancos e negros e não como um problema de negro como habitualmente se faz no Brasil: o branco não é o elemento essencial dessa relação, como se identidade racial não tivesse fortes matizes ideológicos, políticos, econômicos e simbólicos que explicam, e ao mesmo tempo, desnudam o silêncio e o medo. [...] O silêncio e o medo marcam profundamente a maneira como o Brasil vem lidando com as desigualdades raciais. (Bento & Carone, 2002, p. 59-60)

Como afirma Safatle (2016), o medo advém do risco da morte social, de um estado contínuo de guerra que se impõe através do jogo paradoxal de transgressão e norma. A partir dessa problemática, Safatle (2016) aponta que “o desamparo não é algo contra o qual se luta, mas algo que se afirma” (p. 17). Multifacetado, o sentimento de desamparo pode se transformar em medo e angústia social ou, a partir dele, afirmar a contingência e a errância, e possibilitar, assim, um pensamento de transformação política. Sendo necessário

compreender o desamparo como condição para o desenvolvimento de certa forma de coragem afirmativa diante da violência provocada pela natureza despossessiva das relações intersubjetivas e pela irredutibilidade da contingência como forma fundamental do acontecimento (Safatle, 2016, p. 55).

Somado a isso, Butler (2019) assinala em “Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia” que pensar uma política de alianças necessitaria, indiscutivelmente, de uma ética de coabitação. Para a autora, a ação depende de diferentes tipos de apoio, traçando uma aproximação entre os corpos, os objetos e os espaços públicos que tornam o movimento do nosso corpo possível (Butler, 2019). Tal leitura remete às vivências dentro da universidade ao pensar os espaços coletivos universitários, a assembleia estudantil sobre a necessidade do letramento racial e as denúncias de racismo realizadas que repercutiram em ações pela representação discente em forma de cartas-abertas e encontros entre discentes e docentes para pensar ações de combate ao racismo - como a consolidação da Comissão Permanente de Combate ao Racismo Institucional e a exigência do letramento racial por meio do corpo docente e implementação de uma grade curricular antirracista.

Ao tomar o espaço e a localização como efeito de criação e ação plural, apoiada e corporal, “os suportes materiais para a ação não são apenas parte da ação, mas são também aquilo pelo que lutamos” (Butler, 2019, p. 83). Por efeito, o aparecimento de processos de transformação precisa considerar as dimensões corporais, o espaço histórico e as ações coletivas que nele emergem. Esses acontecimentos performativos, que percorrem a universidade, evidenciam um processo de transformação a partir do encontro que se dá entre diferentes corpos na brecha entre o meu corpo, o nosso corpo e o do outro.

Dessa forma, podemos compreender que os corpos dentro da UFRGS, no emaranhado das tensões entre docentes e discentes, fazem emergir um espaço de encontro e contestação da legitimidade de estruturas políticas. A presença de movimentos coletivos dentro da universidade - como as representações discentes, as comissões e associações de graduandos e pós-graduandos, os grupos de trabalho de combate ao racismo institucional, os movimentos sociais de coletivos negros e propostas coletivas como o “Previamente Hígido”, para denúncias institucionais - abrem um importante espaço para a transformação do cenário acadêmico em prol do combate ao racismo e a consolidação de um letramento racial entre corpos brancos.

Dessa forma, diversas alianças podem ser propostas e vislumbradas em diferentes momentos que ora se aproximam e ora se distanciam entre corpos brancos e não brancos, mas marcam um campo de possibilidades para se explorar a potência em um movimento antirracista na universidade. Salienta-se, contudo, que o presente artigo diz respeito a um relato de experiência e não da realidade das instituições superiores brasileiras como um todo. Além disso, o presente artigo não tem a pretensão de resolver os problemas aqui descritos, visto que se entende que a complexidade da temática necessita de soluções específicas para situações singulares. Destaca-se, ainda, a necessidade de se seguir pesquisando sobre a branquitude e a aplicação do letramento racial no cotidiano das universidades brasileiras e para além delas, responsabilizando os corpos brancos no combate ao racismo.

Em relação a estes corpos, se torna fundamental a marcação do ponto de vista do qual partimos, assim como a compreensão das possibilidades e limites do nosso conhecimento corporal, num jogo de relações de poder e heranças coloniais racistas. O que, por sua vez, compreende a necessidade de sustentar o desamparo como coragem afirmativa, que se recusa a manter políticas de inimizade, abrindo campos de sociabilização que se dão nas interferências. Por fim, torna-se imprescindível afirmar um letramento racial dentro das universidades e a construção de canais de denúncias e ações de reparação histórica para que emerjam no corpo branco discente, docente e institucional posturas antirracistas.

Referências

Assembleia Discente PPGPS/UFRGS. (2019). Nota pública do/as discentes do programa de pós-graduação em psicologia social e institucional [Ata Comissão de Pós-Graduação]. [ Links ]

Bento, M., & Carone, I. (2002). Pactos narcísicos no racismo: Branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público [Tese de doutorado, Universidade de São Paulo]. Biblioteca Digital USP. https://doi.org/10.11606/T.47.2019.tde-18062019-181514Links ]

Brito, M. (2019). Suicídio é maior entre adolescentes e jovens negros. Núcleo de ações e pesquisa em apoio diagnóstico da Faculdade de Medicina da UFMG. https://www.nupad.medicina.ufmg.br/suicidio-e-maior-entre-adolescentes-e-jovens-negrsLinks ]

Butler, J. (2018). Quadros de Guerra: Quando a vida é passível de luto? (5a ed.). Civilização Brasileira. [ Links ]

Butler, J. (2019). Corpos em aliança e a política das ruas: Notas para uma teoria performativa de assembleia (4a ed.). Civilização Brasileira. [ Links ]

Carmona, E. (2018, Novembro 23). Onde estão os negros nas universidades? Comunica.ufu.br. http://www.comunica.ufu.br/noticia/2018/11/onde-estao-os-negros-nas-universidadesLinks ]

Carvalho, R. (2020). Kanhgang Êg My Há: Para Uma Psicologia Kaingang [Monografia de Graduação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul]. LUME. https://lume.ufrgs.br/handle/10183/212727# [ Links ]

Frente Universitária de Saúde Mental. (2017). Home [Página do Facebook]. Recuperado em Outubro, 2021 de https://www.facebook.com/pg/frentedesaudemental/about/?ref=page_internalLinks ]

Foucault, M. (2006). Ética, Sexualidade, Política (2a ed.). Forense Universitária. [ Links ]

Hooks, B. (2017). Ensinando a transgredir: A educação como prática de liberdade (2a ed., M. B. Cipolla, Trad.). Martins Fontes. [ Links ]

Mader, B. (2016). Caderno de psicologia e relações étnico-raciais: Diálogos sobre o sofrimento psíquico causado pelo racismo. CRP-PR. https://crppr.org.br/wp-content/uploads/2019/05/AF_CRP_CadernoEtnico_Social _pdf.pdfLinks ]

Marques, H. (2018, Outubro). A UFRGS queria silêncio. Afronta Fabico. Facebook. https://www.facebook.com/AfrontaFabico/posts/1481518231951008Links ]

Maurente, V. (2019). Neoliberalismo, ética e produtividade acadêmica: Subjetivação e resistência em programas de pós-graduação brasileiros. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, 23, 1-15. https://doi.org/10.1590/Interface.180734Links ]

Mbembe, A. (2017). Políticas da inimizade (M. Lança, Trad.). Antígona. [ Links ]

Previamente Hígido. (2018a, Outubro). Paciente 19 [Comentário 1]. Facebook. https://www.facebook.com/previamentehigido/posts/2525662487996 90?__tn__=-RLinks ]

Previamente Hígido. (2018b, Outubro). Paciente 42 [Comentário 2]. Facebook. https://www.facebook.com/previamentehigido/posts/2763970364166 11?__tn__=-RLinks ]

Previamente Hígido. (2019a, Outubro). Paciente 35 [Comentário 3]. Facebook. https://www.facebook.com/previamentehigido/posts/276394379750210Links ]

Previamente Hígido. (2019b, Outubro). Paciente 18 [Comentário 4]. Facebook. https://www.facebook.com/previamentehigido/posts/251664152223233Links ]

Quero Bolsa. (2018). Medicina: Por que o suicídio nesse curso é tão comum? G1 Bolsa de Estudo. https://g1.globo.com/sp/vale-do-paraiba-regiao/especial-publicitario/quero-bolsa/bolsas-de-estudo/noticia/2018/08/22/medicina-por-que-o-suicidio-nesse-curso-e-tao-comum.ghtmlLinks ]

Safatle, V. (2016). O circuito dos afetos: Corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. Autêntica. [ Links ]

Schucman, L. V. (2014). Entre o encardido, o branco e o branquíssimo: Branquitude, hierarquia e poder na cidade de São Paulo. Annablume. [ Links ]

Silva, C. (2019, Outubro). 10 anos frequentando um espaço, te faz sentir parte dele? [Status Update]. Facebook. https://www.facebook.com/CarolineDamazio/posts/2236799006380688Links ]

Silva, L. (2019). Racismo tem dessas coisas: Construção de posicionalidade e posturas descolonizadas. In Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul (Org.), Núcleo de Relações Raciais: Percursos, histórias e movimentos (pp. 16-22). Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul. https://www.crprs.org.br/conteudo/publicacoes/ebook_NRR_final.pdfLinks ]

Silveira, R. S., Nardi, H. C., Oliveira, M. A., Batista, A. F., Alves, M. C., & Bairros, F. S. (2018). Racismo e saúde mental: Breves apontamentos. In H. C. Nardi, M. V. F. Rosa, P. S. Machado, & R. S. Silveira (Orgs.), Políticas públicas, relações de gênero, diversidade sexual e raça na perspectiva interseccional (pp. 31-37). Secco Editora. [ Links ]

Recebido: 11 de Abril de 2022; Revisado: 12 de Julho de 2023; Aceito: 09 de Agosto de 2023

Endereço para correspondência Gabrielle Reichelt Avenida Professor Paula Soares, 905, Jardim Itú Sabará, Porto Alegre - RS, Brasil. CEP 91220-450, Endereço eletrônico: gabi_reichelt@hotmail.com

Carolina dos Reis Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Psicologia, Rua Ramiro Barcelos, 2600, Rio Branco, Porto Alegre - RS, Brasil. CEP 90035-003, Endereço eletrônico: carolinadosreis@gmail.com

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons.