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Estudos e Pesquisas em Psicologia

 ISSN 1808-4281

        03--2024

https://doi.org/10.12957/epp.2023.79279 

PSICOLOGIA CLÍNICA E PSICANÁLISE

A Invisibilidade da Influência Colonial na Formação da Identidade Social Brasileira: Mediações Psicanalíticas

The Invisibility of Colonial Influence in the Formation of the Brazilian Social Identity: Psychoanalytic Mediations

La Invisibilidad de la Influencia Colonial en la Formación de la Identidad Social Brasileña: Mediaciones Psicoanalíticas

Camila Ferreira Sales* 

Psicóloga graduada pela Universidade Federal de Minas Gerais, mestre em Psicanálise pela UFMG e doutoranda pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais / PUC Minas.


http://orcid.org/0000-0002-6926-3197

1Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC Minas, Belo Horizonte, MG, Brasil


RESUMO

O artigo discute a formação da identidade social brasileira com base no critério da raça, considerando as consequências sociais e psíquicas do racismo estruturado na cadeia simbólica social. O caráter invisível, porém, profundamente enraizado do racismo faz com que os efeitos de ordem social, econômica, política e subjetiva de nossa herança colonial sejam escamoteados. Nesse sentido, as atitudes e comportamentos racistas são invisibilizados em torno do mito da miscigenação racial, fazendo com que o racismo e a branquitude apareçam como sintomas de nosso passado escravocrata. A psicanálise nos serve como dispositivo clínico-político para o reconhecimento das consequências desse apagamento a nível inconsciente, ao mesmo tempo em que se oferece como leitura dos sintomas sociais atravessados pelo gozo racista. Através do trecho de um caso clínico, analisaremos de que modo os efeitos sintomáticos do racismo chegam à clínica. A aposta no real como campo irrefreável frente à repetição significante nos orienta rumo a uma práxis de fato implicada na defesa da pluralidade de nossa identidade social.

Palavras-chave: identidade social; colonialidade; racismo; branquitude; psicanálise.

ABSTRACT

The article discusses the formation of Brazilian social identity based on the criterion of race, considering the social and psychic consequences of structured racism in the social symbolic chain. The invisible but deeply rooted character of racism makes the social, economic, political and subjective effects of our colonial heritage hidden. In this sense, racist attitudes and behaviors are made invisible around the myth of racial miscegenation, so that racism and whiteness emerge as symptoms of our slaveholder past. Psychoanalysis serves us as a clinical-political apparatus for recognizing the consequences of this erasure at an unconscious level, as well as it offers itself as a reading of the social symptoms crossed by racist jouissance. Through the excerpt of a clinical case, we will analyze how the symptomatic effects of racism reach the clinic. The bet on the real as an unstoppable field in the face of the significant repetition guides us towards a praxis that is actually involved in the defense of the plurality of our social identity.

Keywords: social identity; coloniality; racism; whiteness; psychoanalysis.

RESUMEN

El artículo discute la formación de la identidad social brasileña a partir del criterio de raza, considerando las consecuencias sociales y psíquicas del racismo estructurado en la cadena simbólica social. El carácter invisible pero profundamente arraigado del racismo hace que los efectos sociales, económicos, políticos y subjetivos de nuestra herencia colonial se oculten. En este sentido, se invisibilizan actitudes y comportamientos racistas en torno al mito del mestizaje racial, haciendo que el racismo y la blanquitud aparezcan como síntomas de nuestro pasado esclavista. El psicoanálisis nos sirve como dispositivo clínico-político para reconocer las consecuencias de esta supresión a nivel inconsciente, al mismo tiempo que se ofrece como lectura de los síntomas sociales atravesados por el goce racista. A través del extracto de un caso clínico, analizaremos cómo los efectos sintomáticos del racismo llegan a la clínica. Apostar por lo real como campo imparable frente a la repetición significante nos orienta hacia una praxis que se implica realmente en la defensa de la pluralidad de nuestra identidad social.

Palabras clave: identidad social; colonialidad; racismo; blanquitud; psicoanálisis.

A Invisibilidade Colonial no Brasil e seus Efeitos Nefastos

Frantz Fanon (1952/2020) faz uma denúncia explícita ao que ele chama de “mundo branco”: nele, “o homem de cor encontra dificuldades na elaboração do seu esquema corporal. O conhecimento do corpo é uma atividade puramente negacional” (p. 126). Isso significa que, desde a colonização e escravização, a mulher e o homem negros foram tornados invisíveis pelo sistema-mundo que nega seus corpos e, ao desumanizá-los, os transforma em produtos de exploração, seja sexual ou laboral. A pele é o órgão que, sendo o maior do corpo humano, tornou-se o mais expropriado pelo capitalismo, o mais denunciado, mais discriminado: “o esquema corporal, atacado em vários pontos, então desabou, dando lugar a um esquema epidérmico racial” (Fanon, 1952/2020, p. 127).

Esse esquema denunciado por Fanon acusa a verdade de uma sociedade colonizada, regida pela necropolítica (Mbembe, 2018), em que o Estado escolhe quais corpos devem morrer e quais devem permanecer vivos. Dessa maneira, o processo de se tornar negro (Souza, 2021) é uma construção do corpo no mundo, no sentido de tornar visível o “esquema epidérmico racial” (Fanon, 1952/2020) e desmantelar sua força, resgatando a historicidade que forja o corpo negro no lugar da negação e da invisibilidade. Sem o resgate dos processos sócio-históricos constituintes do racismo, atribui-se a este causas individuais, por meio da naturalização da negação, o que dificulta a construção de estratégias políticas de enfrentamento. Logo, o redimensionamento necessário das causas reais do racismo evidencia sua raiz na colonialidade, de onde partem seus efeitos nefastos manifestados no cotidiano das instituições, das redes relacionais entre grupos e indivíduos e das estruturas políticas internas e externas no Brasil.

Ademais, é preciso perspectivar o problema do racismo em um matiz que abrange a invisibilidade dos privilégios das pessoas brancas, herança da colonialidade, o que é nomeado branquitude. Como adverte Bento (2022), é preciso ultrapassar a reflexão sobre os efeitos do racismo nas pessoas negras a fim de interrogar as pessoas brancas sobre a ocultação e o segredo a respeito dos atos anti-humanitários que seus antepassados cometeram. Essa tarefa exige o questionamento da branquitude também em sua implicação com a história da colonização e escravidão.

Sabemos bem qual é o cenário aqui no Brasil: a divisão de classes é uma divisão racial. A maioria dos moradores de favela são homens e mulheres negros, que têm subtraídas as condições ideais de moradia, educação, higiene e saúde, e sofrem por carência de emprego ou precisam se submeter a empregos miseráveis (Gonzalez, 2020b). O fator racial é determinante nas posições social e econômica, sendo impossível falar sobre o problema da desigualdade sem tocar no aspecto racista que o estrutura desde os tempos da colonização.

Conforme Segato (2021), os estados republicanos são depositários da herança das administrações coloniais, o que faz com que o sistema-mundo colonial-moderno atual repita o modelo de segregação colonialista. Neste, as elites compactuam com o privilégio branco, ao passo que os afrodescendentes permanecem na linha de pobreza. O racismo brasileiro está institucionalizado no Estado, com estatuto “difuso, sutil, evasivo, camuflado, silenciado em suas expressões e manifestações, porém eficiente em seus objetivos” (Munanga, 2017, p. 41).

É nesse contexto que se pretende trazer a psicanálise para a discussão, colocando em causa o atravessamento do racismo e da branquitude sobre os sujeitos, de maneira que as ferramentas teóricas e clínicas da psicanálise sejam utilizadas a serviço do enfrentamento da alienação colonial que ainda perdura. Como explica Silva (2021), o enfrentamento ao racismo ocorre em duas vias: politicamente e psiquicamente. Com isso, surge a necessidade de atenção às especificidades do racismo histórico e de compreensão dos efeitos psicossociais do racismo na sociedade brasileira, o que leva a constituir um eixo de escuta psicológica e psicanalítica voltado a essa questão.

A dificuldade de reconhecer a própria branquitude tem a ver com o que Munanga (2017) aponta sobre o racismo no Brasil. Enquanto nos Estados Unidos e no sul da África ele era explícito pelas políticas segregacionistas, como o apartheid, o racismo à brasileira aparece de forma escamoteada por não ter sido oficializado em leis que declaravam abertamente a superioridade racial. Isso faz com que os brasileiros não enxerguem individualmente seu racismo e persistam na crença da democracia racial.

A importância atribuída à miscigenação no debate ideológico-político da construção de uma identidade nacional gerou a crença em uma democracia sustentada sobre a harmonia entre as raças. No entanto, não houve harmonização entre as raças, senão exploração e violência. O processo intenso de miscigenação foi encabeçado pela ideologia do branqueamento conduzida pelo colonizador branco. A nova raça, mais embranquecida, substituiria os indígenas, negros e os próprios mestiços. A interiorização desse pensamento, segundo Munanga (2016), levou à alienação e negação da própria natureza humana entre os negros e mestiços, obrigando-os ao ideal de embranquecimento físico e cultural que permearia os processos de socialização e educação. As consequências disso para a formação da identidade são as mais funestas, atingindo diretamente o psiquismo, gerando autoestima baixa entre a população negra e a supervalorização da pessoa branca (Munanga, 2016).

Abdias Nascimento (2016), ativista e intelectual brasileiro, fundador do Teatro Experimental do Negro (TEN), faz uma crítica contundente ao mito da democracia racial, que vem acompanhado de diversos outros, como o mito do senhor benevolente, mito do africano livre e exaltação da mulher negra. A bibliografia do pós-colonialismo, como o lusotropicalismo de Gilberto Freyre, significou uma estratégia de ofuscamento e negação da violência desde sempre perpetuada contra os povos negro-africanos e suas culturas - violência que nomeada acertadamente como genocídio do negro brasileiro (Nascimento, 2016).

O apagamento da “mancha negra”, conforme Nascimento (2016, p. 93), foi uma política sistematicamente implantada no Brasil após a abolição da escravatura, em maio de 1888. Porém, ela ocorreu de forma disfarçada: o mito do senhor benevolente e da cordialidade das igrejas católica e protestante fizeram a sociedade acreditar que não houve imposição cultural e desumanização aos afrodescendentes. A imagem que se passava do Brasil no exterior, ocultando dados de mortalidade e doença entre os ex-escravizados e mostrando a benevolência das elites em abrigarem certas manifestações da tradição africana, como danças, cantos, batuques, habilitava o governo republicano a se desimplicar com a vida de pessoas negras e manter a ideologia de uma miscigenação harmoniosa.

Escamoteava-se, pois, o fato de que os ex-escravizados não recebiam qualquer tipo de assistência do Estado no pós-abolição. Os que não conseguiam trabalhar, devido às deformações físicas e aleijamentos corporais decorrentes das torturas sofridas, eram entregues à própria sorte.

Depois de sete anos de trabalho, o velho, o doente, o aleijado e o mutilado - aqueles que sobreviveram aos horrores da escravidão e não podiam continuar mantendo satisfatória capacidade produtiva - eram atirados à rua, à própria sorte, qual lixo humano indesejável; estes eram chamados de “africanos livres”. Não passava, a liberdade sob tais condições, de pura e simples forma de legalizado assassínio coletivo. As classes dirigentes e autoridades públicas praticavam a libertação dos escravos idosos, dos inválidos e dos enfermos incuráveis, sem lhes conceder qualquer recurso, apoio, ou meio de subsistência (Nascimento, 2016, p. 79).

Isso significa que, após a Lei Áurea, em 1888, os africanos e seus descendentes foram submetidos a um estado econômico e político de escravidão em liberdade. Faustino (2020, p. 325) o qualifica como “um projeto abolicionista que não apresentou estratégias de inserção do africano e seus descendentes escravizados”. A ciência eugenista no período pós-abolição contribuiu para a marginalização crescente dos afrodescendentes, por espalhar a falsa ideia de uma inferioridade natural da pessoa negra. Nesse sentido, a independência do Brasil foi apenas formal, mantendo-se a economia, a cultura e a mentalidade social como dispositivos racistas de colonização e subordinação.

Essa questão também é central na discussão empreendida por Gonzalez (2020a; 2020b), intelectual negra, filósofa e ativista que dialogava com a psicanálise. Ela reafirma o desarranjo que o mito da democracia racial criou na sociedade brasileira, de modo que as camadas ideológicas, políticas e econômicas do capitalismo continuam se utilizando da raça como elemento nevrálgico de dominação. Desde a abolição da escravatura, a formação social brasileira é sustentada pelos excedentes de trabalhadores que, em sua maioria negros, são mantidos na exclusão do sistema, reforçando a discriminação racial. O aparelho ideológico do Estado serve à manutenção das relações de produção que perpetuam a lógica racista de exclusão e alienação da população negra. A questão, muitas vezes transformada em uma situação meramente econômica, acaba por ignorar o subsídio racista que mantém os mecanismos de dominação nos moldes de uma desigualdade racial (Gonzalez, 2020b).

A filósofa demonstra que o racismo está na base de nossa estrutura social, funcionando para a manutenção do sistema desigual ao posicionar a população negra na “massa marginal crescente” ou como “exército industrial de reserva” (Gonzalez, 2020a, p. 35). Dessa forma, enquanto o capitalismo industrial monopolista acentua o crescimento desigual da produção em países subdesenvolvidos, o Brasil exibe uma dependência econômica neocolonial ao se manter na posição de exportação de matéria-prima para as metrópoles, formando a massa marginal da qual faz parte a população negra.

Disso decorre que o racismo brasileiro opera tanto no plano material quanto simbólico. Ainda que não tenhamos tido uma legislação específica que sustentasse um sistema de segregação racial formal, o acesso aos recursos públicos e a divisão social do trabalho são completamente diferentes para brancos e negros, o que escancara um racismo imbricado na estruturação social. A falta de verba em escolas públicas, por exemplo, atinge diretamente a população negra. A amálgama entre racismo e desigualdade social no Brasil resulta nisto: “aqui pobreza tem cor” (Rosemberg, 2017, p. 132).

Apesar dos dados estatísticos que escancaram a diferença social e econômica entre negros e brancos, a maior parte da população ainda insiste em se apoiar na mestiçagem como argumento de que não há discriminação. O efeito de se naturalizar a desigualdade, como se as posições ocupadas pelos diferentes fenótipos em nossa sociedade fossem resultado do mérito individual, contribui para a invisibilidade do racismo.

Afinal, na ausência de uma política discriminatória oficial, na ausência de registros no corpo da lei, andamos cercados por uma boa e falsa consciência que ora nega o preconceito, ora o reconhece como mais brando, ou afirma que ele existe, sim, mas na boca da pessoa ao lado (Schwarcz, 2017, p. 115).

Esse racismo “silencioso e ambivalente que se esconde por trás de uma suposta garantia da universalidade e da igualdade das leis” (Schwarcz, 2017, p. 117) acaba sendo reduzido ao terreno do privado. Ele acontece na calada da noite, quem o pratica muitas vezes nem sabe que é racismo ou, quando sabe, silencia e coloca a culpa no vizinho. O sincretismo cultural e religioso é manipulado para ser usado contra as políticas raciais, alegando-se que há apenas uma história e uma cultura resultantes do sincretismo: “os aspectos de resistência cultural negra que se tornaram símbolos da identidade nacional, como a música, a dança, a culinária e, principalmente, a religião, são bem manipulados pelo mito para afirmar a harmonia entre grupos” (Munanga, 2017, pp. 38-39).

Ademais, o privilégio branco faz com que o grupo branco sinta a necessidade de proteger os pares, segundo Bento (2022). Em consequência, há um descompromisso moral e distanciamento psicológico em relação aos que estão fora do grupo. A autora explica que “há um lugar simbólico e concreto de privilégio construído socialmente para o grupo branco” (p. 64). Disso decorre que a falta de reflexão sobre o papel das pessoas brancas no racismo “é uma forma de reiterar persistentemente que as desigualdades raciais no Brasil constituem um problema exclusivamente do negro, pois só ele é estudado, dissecado, problematizado” (p. 31).

Assim, o que se observa é uma relação dialógica: por um lado, a estigmatização de um grupo como perdedor e a omissão diante da violência que o atinge; por outro, um silêncio suspeito em torno do grupo que pratica violência racial e dela se beneficia, concreta ou simbolicamente. . . . O silêncio, a omissão, a distorção do lugar do branco na situação das desigualdades raciais no Brasil têm um forte componente narcísico, de autopreservação, porque vem acompanhado de um pesado investimento da colocação desse grupo como grupo de referência da condição humana (Bento, 2016, p. 36).

Esse componente narcísico da branquitude engendra uma estreita relação entre o medo do estrangeiro e a projeção do ódio que levam à assimilação do negro pelo branco em busca de uma sociedade majoritariamente branca. A elite do final do século XIX agia no sentido de incorporar ou devorar o outro, à maneira de um amor canibal, mas, no caso, sendo movida pelo ódio narcísico. Por meio da projeção, ela se livrava daquilo que não podia admitir ou reconhecer em si mesma, fazendo do negro um objeto mau, alvo de pulsões destrutivas (Bento, 2016).

Vale lembrar que o racismo está ligado a uma experiência coletiva, logo, está implicado em uma teia social de dominação que ultrapassa o ser individual. Importa considerar que, embora exista gesto ou atitude racista cometidos por um indivíduo, e embora se perceba ou não, pela consciência individual, a branquitude, a dominação racista repete um modelo grupal, o que implica que o racismo nunca atingirá apenas a pessoa negra a quem se dirige a violência, mas a todo um grupo, contemporâneo e ancestral. Da mesma forma, uma pessoa branca representa o grupo de brancos; portanto, seu gesto carrega uma história, fazendo subsistir a lógica da branquitude por meio das instituições, dos grupos e comunidades.

Fanon (1956/2018) nos convida a pensar a desalienação como uma reestruturação do mundo, dissolvendo os fetiches criados pela colonização e revendo a suposta universalidade branca a fim de englobar as outras culturas, mas sem abrir mão dos termos do universal. Ou seja, trata-se de lutar por um universal em que cada grupo seja igualmente universal, com sua autonomia e livre da alienação ao universal eurocêntrico. Para tal, é necessária a emancipação dos sujeitos protagonistas da cultura: “embora reificadas as culturas não podem conviver em pé de igualdade enquanto os seus sujeitos (pessoas vivas e reais) não desfrutem desta igualdade real conquistada na comunidade política” (Faustino, 2013, p. 14).

Ser Mulher e Ser Negra no Brasil

A miscigenação, produto da ideologia do embranquecimento, também manteve invisíveis as práticas de exploração sexual da mulher negra em torno do mito da harmonia entre as raças. Em Racismo e sexismo na cultura brasileira, Gonzalez (2020a) fala das categorias em que a mulher negra era colocada: as “crioulas” eram usadas na iniciação sexual dos homens brancos, enquanto as “pretas” serviam ao trabalho doméstico. Quando estas mudavam para a posição de cuidado com as crianças, ocupando o lugar de “mãe preta”, “nessa hora a gente é vista como figura boa e vira gente” (p. 87). Nessa hora, a mulher preta vira a mãe, aquela que amamenta, que dá banho, que cuida, que conta histórias, que ensina a falar o “pretuguês” (p. 88).

O processo de exclusão da mulher negra é imbricado aos papeis sociais a ela destinados: ora doméstica, ora servente, ora produto de exportação e exploração sexual (no caso da “mulata”). Gonzalez (2020a) explica que sua sujeição e exploração (social e sexual) garante a emancipação das mulheres brancas dentro de seus movimentos feministas. É a mulher negra que, trabalhando como empregada doméstica, sustenta a dupla jornada de trabalho da patroa branca. Quando ela assume a fala para reivindicar um lugar social, seu discurso é tratado como sendo emocional.

O modo paternalista mais sutil é exatamente aquele que atribui o caráter de “discurso emocional” à verdade contundente da denúncia presente na fala do excluído. Para nós, é importante ressaltar que emoção, subjetividade e outras atribuições dadas ao nosso discurso não implicam uma renúncia à razão, mas, ao contrário, são um modo de torná-la mais concreta, mais humana e menos abstrata e/ou metafísica. Trata-se, no nosso caso, de uma outra razão (Gonzalez, 2020a, p. 44).

A objetificação do corpo da mulher negra, fato que perdura até os dias atuais, se iniciou com sua exploração sexual pelo colonizador. A condição de pobreza, desamparo e precariedade social das mulheres negras tem origem na escravidão, quando os africanos escravizados não tinham o direito a uma estrutura de família. Nascimento (2016) conta que elas não viviam em família, mas eram forçadas pela conjuntura a permanecer na condição de exploração a serviço dos escravocratas. A exploração da mulher africana era então dividida entre a violação sexual (estupro) da mulata e o trabalho compulsório da mulher negra.

A situação da mulher negra é, pois, caracterizada por um processo tríplice de discriminação: de raça, de sexo e de classe. O alastramento da instituição da mãe-preta, em sua função de mãe-seca (substituta da ama-de-leite) e de criadora dos filhos das mulheres de classe média, faz parte do cenário da economia produtiva no espaço doméstico. Isso só pôde se dar através da sub-remuneração da mulher negra em detrimento do enriquecimento contínuo das mães biológicas (brancas) e da participação destas entre a população economicamente ativa. A alocação de mulheres negras mais novas, a fim de baratear o serviço doméstico, é uma mera continuidade histórica do trabalho não pago da escrava para o trabalho mal remunerado da menina (Segato, 2006).

A objetificação do corpo materno - escravo ou livre, negro ou branco - fica aqui delineada: escravidão e maternidade revelam-se próximas, confundem-se, neste gesto próprio do mercado do leite, onde o seio livre oferece-se como objeto de aluguel. Maternidade mercenária se equivale aqui à sexualidade no mercado da prostituição, com um impacto definitivo na psique do infante no que respeita à percepção do corpo feminino e do corpo não branco (Segato, 2006, p. 15).

A situação se agrava quando se constata, dentro do movimento feminista, uma liderança de mulheres de classe média branca que muitas vezes corroboram com a exploração sexual e de trabalho das mulheres negras. Sem se atentarem para o fato da opressão racial, as categorias utilizadas nas pautas políticas neutralizam o problema da discriminação. Assim, denega-se o racismo para preservar o privilégio branco das mulheres. A precariedade das condições trabalhistas do emprego doméstico favorece o enriquecimento da mulher branca, bem como ainda prevalece a entrega do cuidado dos filhos brancos à mãe preta, mantendo assim a exploração da mulher negra pela mulher branca.

Diante disso, surge a necessidade de, como sugere Carneiro (2011), enegrecer o feminismo, revendo ao mesmo tempo as epistemologias do movimento feminista e as pautas sobre racismo a fim de contemplar a interseccionalidade entre gênero e raça. O desafio colocado às mulheres negras diante dos crescentes episódios de violência passa não apenas pelo enfrentamento do machismo, como também da invisibilidade de suas pautas dentro do feminismo e da luta contra a opressão racial.

Lugones (2014) propõe que a hierarquia dicotômica entre humano e não humano é a hierarquia central da modernidade colonial, à qual se somam outras, como a dicotomia homem/mulher, branco/negro. Nessa lógica, os povos escravizados indígenas e africanos/as foram desde a colonização tomados na categoria de não humanos, caracterizados como selvagens e sexualizados à maneira dos animais. As mulheres colonizadas eram demonizadas: “a confissão cristã, o pecado e a divisão maniqueísta entre o bem e o mal serviam para marcar a sexualidade feminina como maligna” (p. 938).

Por isso, Lugones (2014) afirma que “descolonizar o gênero é necessariamente uma práxis” (p. 940). Trata-se, portanto, de compreender a colonialidade do gênero na perspectiva de uma intersubjetividade enraizada historicamente, produzida pela norma cis-heterossexual eurocentrada. A crítica à opressão de gênero deve ser tomada em suas vertentes racializada, colonial e capitalista.

A Incidência do Signo Racial na Esfera Psíquica

Fanon (1952/2020) chama a atenção a uma psicologização da inferioridade entre as raças, alertando para o fato de que a história social faz marcas sobre o psiquismo. Ele propõe uma prática onde a combinação entre indivíduo e grupo produza algo no sentido de “conscientizar o inconsciente” (p. 114, grifo do autor), o que deve acontecer de forma associada à vontade de mudança das estruturas sociais. Assim, sua sugestão é de que se verifique se há um complexo de inferioridade no sujeito negro que chega à clínica e, se houver, deve-se trabalhar no sentido de libertá-lo do desejo inconsciente de embranquecer. Se há um desejo de ser branco, é porque o sujeito está inserido em uma sociedade que se sustenta sobre a ideia da superioridade racial, o que alimenta o complexo de inferioridade da pessoa negra.

Em outras palavras, o negro não deve mais se ver colocado diante deste dilema: branquear-se ou desaparecer, mas deve poder tomar consciência de uma possibilidade de existir; dito de outra maneira, se a sociedade lhe cria dificuldades em razão da sua cor, se constato em seus sonhos a expressão de um desejo inconsciente de mudar de cor, meu objetivo não será dissuadi-lo, aconselhando-o a “manter distância”; ao contrário, meu objetivo será, uma vez elucidados os motivos, colocá-lo em condições de escolher a ação (ou a passividade) diante da verdadeira fonte conflitual - isto é, diante das estruturas sociais (Fanon, 1952/2020, p. 114, grifo do autor).

Com isso, Fanon (1952/2020) introduz um modo de pensar a intersecção entre o racismo e a clínica psicanalítica: ele não ignora a possibilidade de a pessoa negra ter um desejo inconsciente de se tornar branca, mas tampouco atribui esse desejo a uma causa natural proveniente de um julgamento pessoal sobre a superioridade da cor branca. Sua atitude aponta para uma tomada de consciência de que a atribuição inconsciente de uma qualidade positiva à cor branca, bem como de uma qualidade negativa à cor preta, provém de um estigma social, construído pela situação de colonização e mantido pela questão racial estrutural.

Diante dessa teorização de Fanon, trazemos o fragmento de um caso clínico para pensar como o racismo chega à clínica. Vale ressaltar que a invisibilização da influência colonial na esfera racial de nossa identidade muitas vezes aparece sob a forma de um silêncio, como se faltassem palavras para descrever o encontro traumático com racismo vivido. É um exercício ético e político a nomeação dessa experiência, inscrevendo no tecido simbólico social a violência que subjaz ao racismo, articulando a experiência racial à história que forjou a representação da hierarquia entre as raças.

Após alguns dias de férias na Bahia, Sandro relata que estava entre amigos e, em meio a música, cerveja gelada e risadas à beira-mar, um deles “solta” um comentário racista. Sem que a pessoa que proferiu a fala percebesse que Sandro fazia parte do grupo atingido por tal “piada” (talvez pelo fato de não lhe atribuir a condição de pessoa negra, afinal, a cor parda não é reconhecida por muitos como parte integrante da negritude), ele vai ao banheiro e entra em uma “crise de choro” (sic). Em tempo, pede a um dos amigos que lhe acompanhe e com ele desabafa, observando que o comentário foi percebido também por este amigo, mas sem lhe parecer algo absurdo.

Enquanto chorava, visitou as imagens do ex-namorado (branco), alegando sentir naquele momento uma espécie de saudade, talvez associando seu corpo a um abrigo (branco) para o racismo que o atingia. Durante a sessão, após relatar a cena, a associação livre o leva a outros caminhos sobre a questão racial, sem, no entanto, que ele contasse qual foi o comentário.

Pergunto, ao final (temendo, confesso, que a pergunta avançasse o sinal de um silêncio necessário), se ele gostaria de contar o que foi falado. Ele responde: “não consigo”. Engole seco, os olhos marejam. “Ainda dói tanto que se eu falar essa dor vai explodir aqui dentro”. Fico em silêncio. Ele continua: “eu queria esquecer, mas se eu esquecesse voltaria depois. Não podemos esquecer uma coisa dessas, mas também é insuportável lembrar” (sic).

O que se pode escutar nessa fala? O desejo do esquecimento é confrontado à necessidade de não esquecer para não voltar a acontecer. Não voltar ao ato, à atormentadora repetição obsessiva dos gestos racistas, ao ininterrupto ciclo de violências que só termina caso a memória grite. A palavra, viva no corpo, insiste contra o apagamento da lembrança que ecoa de outros modos (nos sonhos, na inibição, na baixa autoestima, no impedimento de reconhecer sua dignidade humana, enfim). Lembrar é como reviver a cena, o que traz tamanho sofrimento.

Gonzalez (2020b) faz menção a um jogo dialético entre consciência e memória: enquanto a consciência trabalha a favor do esquecimento, encobrimento, alienação e desconhecimento, constituindo-se em ideologia dominante, a memória é o lugar de inscrição onde o registro da história se dá. Memória é o “lugar da emergência da verdade, dessa verdade que se estrutura como ficção” (Gonzalez, 2020b, p. 78). Por isso é rejeitada pelo discurso da consciência, que tem a pretensão de se impor sobre ela como a verdade. A importância do resgate da memória incide neste ponto: “consciência exclui o que a memória inclui” (p. 78).

Essa negação da memória e ocultamento da verdade, com consequente imposição de outra verdade, é o que Gonzalez (2020b, p. 76) nomeia como “neurose cultural brasileira”. Sua sintomática inclui o ocultamento do sintoma, pois isso “o liberta da angústia de se defrontar com o recalcamento” (p. 84). É justamente isso que se vê no apagamento da memória da escravidão, bem como dos crimes cometidos na ditadura e dos atos anti-humanitários que o discurso de poder hegemônico tende a ocultar.

Nogueira (2021) argumenta que as consequências do não reconhecimento da condição jurídica de cidadão da pessoa negra no período escravista implicava a negação de sua condição de humanidade. Os efeitos dessa negação ainda são sentidos pela pessoa negra quando, nos processos de constituição de sua identidade, ela é endereçada a uma identificação fantasmática com a classe dominante e com o ideal de brancura.

A consequência disso é que o negro, no seu processo de tentar se constituir como indivíduo social, desenvolveu um horror a se identificar com seus iguais, pois estes representam, para ele, o retorno de um sentido insuportável, que tenta recalcar: a gênese histórico-social de sua condição de negro, que o remete ao estatuto de “peça”, em primeiro lugar; ao estatuto de lumpem, em segundo lugar (Nogueira, 2021, p. 58).

Nogueira (2021) fala de uma dualidade que marca a estrutura psíquica do sujeito negro: por um lado, há o reconhecimento do amor materno, este que afirma a existência do sujeito. Por outro, o processo identificatório do negro passa pelo desejo do que seria ser branco, o que é projetado na criança sob a forma de uma brancura que ela nunca será por sua condição biológica.

Com efeito, o real de sua condição de negro é ele próprio negado. O desejo da mãe, uma vez que também é atravessado pelo desejo de brancura, divide a criança entre a imagem que ela vê no espelho e a imagem que ela busca, em vão, identificada com a imagem ideal da pessoa branca.

A mãe negra, como já foi observado, ama seu bebê, mas nega, ao mesmo tempo, o que a pele negra representa, simbolicamente. Tal dualidade vai marcar a experiência do espelho na criança negra, caracterizando seu processo de identificação: coincido com o que, da minha imagem, corresponde ao desejo materno; não coincido com o que, dessa mesma imagem, contraria o desejo materno. . . . Para reconciliar-se com a imagem do desejo materno - a brancura - a criança negra precisa negar alguma coisa de si mesma (Nogueira, 2021, p. 123).

Assim, segundo a psicanalista, a experiência da criança negra comporta uma singularidade: desde o início, é marcada pelo confronto com o ideal de brancura presente nos pais. A identificação aos pais já comporta desde os primórdios a fragilização que afeta os pais negros, decorrente do medo e desconfiança associados à discriminação que esses pais já sofreram. Nesse sentido, a discriminação se manifesta na criança antes mesmo da experiência social, uma vez que seus efeitos se fazem aparecer na psique dos pais e são transmitidos à criança na fase inicial de seu desenvolvimento (Nogueira, 2021).

Em decorrência disso, a pessoa negra busca a ascensão social como meio de se atingir o ideal da branquitude. Souza (2021) explica que ascender socialmente significa tornar-se gente, uma vez que os serviços respeitáveis são os da pessoa branca e para ser gente é preciso se assemelhar ao branco, ainda que isso custe a renúncia à própria cor. O custo psíquico e emocional da ascensão social é a perda da própria identidade. A pessoa negra passa a perceber seu grupo de origem como referência negativa e dele tenta escapar para realizar, individualmente, a mobilidade vertical ascendente.

A história da ascensão social do negro brasileiro é, assim, a história de sua assimilação aos padrões brancos de relações sociais. É a história da submissão ideológica de um estoque racial em presença de outro que se lhe faz hegemônico. É a história de uma identidade renunciada, em atenção às circunstâncias que estipulam o preço do reconhecimento ao negro com base na intensidade de sua negação (Souza, 2021, p. 53).

Tal negação leva a pessoa negra a se distanciar da identificação com sua negritude. Ela reedita a desigualdade introjetada no seu universo psíquico quando, ao conviver com outro negro, reproduz o ritual de separação, distanciando-se das figuras representativas do mito negro, quais sejam, o irracional, o feio, o ruim, o sujo, o sensitivo, o superpotente, o exótico (Souza, 2021). É o que se constata na fala de Sandro, quando, depois de algumas sessões sem conseguir voltar à cena traumática, ele recupera a lembrança e conta o comentário racista feito pelo amigo: “aqui na Bahia o povo é feio. Temos que ir pro Sul, lá é que tem gente bonita” (sic).

Para ser negro, conforme argumenta Souza (2021), é preciso tomar consciência do processo ideológico que o aprisiona em uma imagem alienada, desfazendo o discurso mítico que paira sobre si. É preciso criar uma nova consciência que sobreponha a dignidade a qualquer nível de exploração. Por isso ser negro não é uma condição dada: “é um vir a ser. Ser negro é tornar-se negro” (p. 115).

Decolonizar a Psicanálise: O Real em Cena

A/o analista é convocada/o, em sua práxis, pelos acontecimentos externos, uma vez que a violência, a guerra, as discriminações lhe chegam sob a forma de sintomas, dando sinais de um mal-estar na cultura. Ou seja, o sintoma é atravessado pelo social, uma vez que ganha significado pelo Outro e acompanha as transformações desse Outro social. Koltai (2000, p. 111) afirma que se deve compreendê-lo como “a maneira singular pela qual o sujeito enfrenta o discurso de seu tempo”.

Isso implica as relações do sujeito com aquilo que lhe excede. O conceito de infamiliar de Freud (1919/2019) invoca a subversão da ideia de que o homem é integrado a si mesmo. Sendo determinado por algo que lhe é estrangeiro, ele é constantemente interpelado por um sofrimento que aparece como um corpo estranho, infamiliar.

É isto que a psicanálise põe em jogo: a complexidade do laço com o Outro, sendo que não há relação psicanalítica sem que se considere a presença e a ausência do Outro enquanto tal, do estrangeiro como estrangeiro. Trata-se de uma dessubjetivação que remete cada sujeito à sua própria estruturação subjetiva. Portanto, ao invés de confrontar duas entidades divergentes em sua estrutura, cabe investigar a relação de um sujeito que se constitui no Outro: “o reconhecimento da incompletude constitutiva de seu ser, sua dependência do significante do Outro” (Koltai, 2000, p. 29).

O ideal de eu branco narcísico - ligado ao narcisismo do branco colonizador e correspondente ao eu de prazer - converte em avesso, em abjeto, o que é configurado como não-eu (Kon, 2017). Essa articulação não é natural, mas instituída pelos aparatos ideológicos de poder, cujo discurso antidemocrático e discriminatório que mantém a dominação e o privilégio elege o estrangeiro como negativamente desigual, alvo de violência e injustiça social.

Nessa perspectiva, supõe-se que o totalitarismo se baseie no ódio como cimento social; não apenas o ódio ao outro que é expelido para fora do grupo, como também no ódio interno ao próprio sujeito. É o que Miller (2016, n.p.) afirma ao dizer que “a raiz do racismo é o ódio de meu próprio gozo”. Portanto, o racismo tem a ver com a inflação imaginária do ódio que diz respeito ao gozo da relação especular com o outro (a---a’). A instabilidade identitária faz os sujeitos se agruparem em torno de objetos e saberes legitimados pelo mercado e pela ciência, culminando em ideologias segregacionistas, como o racismo, sexismo, xenofobia, dentre outras (Prudente, 2018).

Dentro dessas ideologias, o real do gozo é submetido a uma operação de unificação que suprime as diferenças e apaga as singularidades. Insiste-se em fazer Um com o Outro, reproduzindo a relação especular que investe narcisicamente o corpo e enfraquece a operação do Nome-do-Pai. O sujeito fica, então, extraviado de seu ponto mais íntimo e estranho, sem reconhecer a diferença, pois a marca da divisão do sujeito pela linguagem é justamente o suporte da diferença. “Essa diferença é desde onde se marca uma coordenada de gozo como sendo aquilo em razão do qual o Outro é o Outro, um Outro interior ao próprio sujeito, íntimo exterior, estranho, êxtimo” (Prudente, 2018, p. 86).

Desse modo, no lugar do reconhecimento da diferença, impõe-se a universalização de saberes, identidades, classes, raças. O apego aos discursos tradicionalistas - discursos estes que têm um forte manejo de poder - prescrevem modos de lidar com a relação sexual, modos de gozo que submetem o desejo do sujeito a uma ordem moralista, eurocentrada, racista, sexista, heteronormativa, etc. A apreensão do Outro pela faceta do gozo racista, com o consequente apagamento da marca da diferença, pressupõe o Um que tem no modelo colonialista o predicado essencial para sua consolidação. Como sugere Guerra (2021, p. 275), “há um movimento hegemônico de unicidade e homogeneização que reduz as experiências plurais e os saberes em dispersão num único modo de gozo que se pretende universal”.

Lacan fala do racismo como algo que “se enraíza no corpo, na fraternidade do corpo” (Lacan, 1971-72/2012, p. 227). O insuportável de se ver separado do Outro pela operação de castração provoca o desejo de negar o diferente e, consequentemente, atribuir a ele o sentimento de ódio - ódio àquele que goza diferente de mim. Essa parcela de ódio presente no discurso racista “objetificou os corpos negros no processo colonial, que era como um objeto desumanizado, fonte de um gozo sádico e caprichoso . . . e, ao mesmo tempo, objeto precioso, fonte de poder e lucro” (Mollica, 2021, p. 246).

A psicanálise nos ensina que o ser só pode se realizar no um-a-um, ou seja, na ausência de um predicado que o substancialize. “O que diz respeito ao ser, ao ser que se colocaria como absoluto, não é jamais senão a fratura, a rachadura, a interrupção da fórmula ser sexuado, no que o ser sexuado está interessado no gozo” (Lacan, 1972-73/2008, p. 18). Daí a “impossibilidade lógica” de se reduzir o sujeito a qualquer substância que o defina. Recorrer à psicanálise para interpretar a razão dialética da colonialidade nos permite compreender como a noção de estrangeiro quebra o acordo que pretende à universalização do ser, uma vez que não há sujeito que não seja estranho a si mesmo, da mesma forma que não há um coletivo sem que o estrangeiro esteja presente desde o seu fundamento. A lógica que regula a relação entre os membros de um grupo implica necessariamente o caráter falho da relação sexual, a partir do qual se pode constituir o laço com o outro.

A resistência do real contra a repetição dos signos (que, na sociedade patriarcal imperialista, se forjam em torno do ideal de eu branco universalista), ressurge na cena analítica, criando veios por onde é possível fazer escoar a posição de gozo do sujeito, confrontando-o com a dimensão inabitada do desejo. O infamiliar emerge do apagamento significante, quando se torna possível habitar outros campos que não aqueles da repetição sintomática.

Se “o desmentido e o recalque, como operações de defesa contra o real do gozo, estão na base constitutiva da dimensão histórica do processo de racialização como condição da estrutura da Modernidade” (Guerra, 2021, p. 271), a ética da psicanálise recolhe o sofrimento psíquico como resposta singular ao regime de significações racistas que modela o campo simbólico social. Nossa práxis se orienta em direção ao “descentramento subversivo que resguarde o singular da experiência de gozo, sem perder de vista o horizonte geopolítico e histórico de sua inscrição violenta como universal” (Guerra, 2021, p. 276). Diante disso, torna-se necessário o “levantamento do véu neocolonial” (p. 276) que ameaça os modos de gozo singulares.

Figueiredo (1999) alerta para o risco de tomarmos a psicanálise como um instrumento de poder, contribuindo para acentuar ainda mais as desigualdades no país. Ao invés de fazer dela um adorno, uma via de ascensão social, o psicanalista propõe que façamos uso desse instrumento com a condição de não-familiaridade que nos permite ver e ouvir aspectos que, quando são demasiado familiares, acabam se tornando invisíveis. Deve-se, pois preservar um “lugar fora de lugar” (p. 25), uma relativa estranheza que é, afinal, a posição desde onde se pode exercer a enigmática tarefa de acolher o inconsciente.

Tornar-se sujeito, em análise, exige o confronto com o solo irregular do desejo. Exige também a queda dos ideais, dentre eles o ideal da brancura que persiste na identificação fantasmática com o colonizador. É nesse sentido que o desinvestimento narcísico nos ideais favorece o desvelamento do espelho europeu de nossa identidade colonial. A psicanálise tem a contribuir na escansão dessa certeza universal, na mesma medida em que desfigura a imagem do ideal de eu que impede o sujeito de acessar o real de sua experiência.

Kon (2017) lembra que a ética da psicanálise é a ética do desejo e, como tal, não pode se eximir de fazer oposição à tirania em favor da justiça, tampouco deixar de considerar o desejo do outro. “Penso que é mais do que hora de avançarmos em direção a uma psicanálise brasileira, que teria o dever de desenterrar, de tirar de sob os escombros do recalcamento e da denegação, as marcas que instituíram nossa nação” (p. 27). Recuperar as narrativas singulares que se atualizam na medida em que se transmuta a história social é um dever ético da psicanálise. Cabe a ela abrir espaço para a metabolização das dores infligidas pela colonização e exploração de nosso povo, restituindo sua potência ativa e valorizando toda e qualquer história pessoal em sua diversidade.

A aposta é no real que fura a repetição incansável do significante, em torno do qual se ordena o discurso colonial, o que faz aparecer o infamiliar como índice da castração. Desnudar o objeto a enquanto vetor do desejo é sair das amarras da ilusão de um corpo unificado em torno dos ideais. Como sugere Mollica (2021, p. 249), “não se trata de abolir o Outro: trata-se de se “autoabolir”, libertando-se da parte servil constitutiva do eu e trabalhando pela realização do eu enquanto figura singular do universal”. A diferença pode então ser ressignificada na estrutura do laço com o outro e cabe a cada um, em sua experiência singular, torná-la motor do fazer-com, fazer-junto, dando vazão à pluralidade que marca nossa identidade cultural.

Notas

Financiamento: A pesquisa relatada no manuscrito foi financiada pela bolsa de doutorado da autora (CAPES -PROSUC- nº do processo 88887.342942/2019-00)

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Recebido: 14 de Abril de 2023; Revisado: 20 de Julho de 2023; Aceito: 22 de Julho de 2023

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