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Estudos e Pesquisas em Psicologia

 ISSN 1808-4281

        20--2024

https://doi.org/10.12957/epp.2023.79962 

DOSSIÊ PSICANÁLISE E POLÍTICA: A INSISTÊNCIA DO REAL

Quem Pode Falar no Divã? Raça e Psicanálise Situada

Who can Speak on the Couch? Race and Situated Psychoanalysis

¿Quién Puede Hablar en el Diván? Raza y Psicoanálisis Situado

Thamy Ayouch* 

Psicanalista, psicólogo clínico, doutor em Pesquisas em Psicanálise, Professor titular no Departamento de Estudos Psicanalíticos da Universidade Paris-Cité.


http://orcid.org/0000-0002-9436-4774

*Université Paris-Cité, França


RESUMO

Quem pode falar no divã? Como a inscrição do sujeito e do sujeito do inconsciente em relações sociais de poder de classe, gênero, sexualidade, raça, idade, validade, limita o acesso a uma elaboração analítica? O reconhecimento da colonialidade, como efeito de dominação e lugar de enunciação que persiste além da colonização, tornou possível a emergência de novas formas subjetivas, culturais e epistêmicas, incentivando a psicanálise a escutar de outra forma. Este artigo propõe se debruçar sobre a incidência da raça e da branquitude na psicanálise a partir das epistemologias do posicionamento e da epistemologia da ignorância. No contexto social francês, enquanto uma parte crescente da população francesa experimenta diariamente a discriminação racial, essa é veementemente negada por uma maioria de político·as e pesquisadore·as, que recusam até o uso da palavra “raça”. A partir dessa negação oficial do racismo sistémico pelo poder político e por uma maioria de estudos acadêmicos, o artigo tenta analisar a epistemologia da ignorância que prevalece na postura clínica e teórica de uma psicanálise maioritária. Trata-se de estudar a forma como uma ignorância branca provoca uma desescuta das questões de raça no divã, produz efeitos transferenciais de silenciamento, e nega vivências particulares em nome do universalismo.

Palavras-chave: psicanálise; raça; silenciamento; epistemologias do posicionamento; epistemologia da ignorância.

ABSTRACT

Who can speak on the couch? How does the inscription of the subject and the subject of the unconscious in class, gender, sexuality, race, age and validity social power relations limit access to a psychoanalytical elaboration? The recognition of coloniality as an effect of domination and a locus of enunciation that persists beyond colonisation has made it possible for new subjective, cultural and epistemic forms to emerge, encouraging psychoanalysis to listen differently. This article looks at the impact of race and whiteness on psychoanalysis through the perspective of the Standpoint Epistemologies and the Epistemology of Ignorance. In the French social context, while a growing part of the French population experiences racial discrimination on a daily basis, it is vehemently denied by a majority of politicians and researchers, who refuse to even use the word "race". Starting from this official denial of systemic racism by the political establishment and a majority of academic studies, the article seeks to analyse the epistemology of ignorance that prevails in the clinical and theoretical stance of a majoritian psychoanalysis. The aim is to study the way in which white ignorance causes race issues to be non-listened to on the couch produces silencing transferential effects, and denies particular experiences in the name of universalism.

Keywords: psychoanalysis; race; silencing; epistemologies of positioning; epistemology of ignorance.

RESUMEN

¿Quién puede hablar en el diván? ¿Cómo la inscripción del sujeto y del sujeto del inconsciente en las relaciones sociales de poder de clase, género, sexualidad, raza, edad, validez, limitan el acceso a una elaboración analítica? El reconocimiento de la colonialidad como un efecto de dominación y un lugar de enunciación que persiste más allá de la colonización ha posibilitado la emergencia de nuevas formas subjetivas, culturales y epistémicas, impulsionando al psicoanálisis a escuchar de otra manera. Este artículo examina el impacto de la raza y la blanquitud en el psicoanálisis desde la perspectiva de las epistemologías del posicionamiento y la epistemología de la ignorancia. En el contexto social francés, mientras que una parte creciente de la población francesa experimenta a diario la discriminación racial, ésta es negada con vehemencia por una mayoría de políticos/as e investigadores/as, que se niegan incluso a utilizar la palabra "raza". Partiendo de esta negación oficial del racismo sistémico por parte del poder político y de una mayoría de estudios académicos, el artículo intenta analizar la epistemología de la ignorancia que prevalece en la postura clínica y teórica de un psicoanálisis mayoritario. El objetivo es estudiar el modo en que la ignorancia blanca hace que las cuestiones raciales sean des-escuchadas en el diván, produce efectos transferenciales de silenciamiento y niega las experiencias particulares en nombre del universalismo.

Palabras clave: psicoanálisis; raza; silenciamiento; epistemologías del posicionamiento; epistemología de la ignorancia.

Quem pode falar no divã? Qualquer sujeito, se responderia, com base numa concepção universalizadora da psicanálise. Porém, além do catecismo de uma psicanálise cosmicamente ecumênica, ilimitadamente humanista e universalmente redentora, quem, rigorosamente, pode realmente se expressar diante de um·a analista, em que termos, segundo que critérios de inteligibilidade do seu discurso, e que cânones de compreensibilidade consciente e inconscientemente concedidos ao/à analista e ao dispositivo inteiro? Deixemos de lado as condições financeiras e temporais que permitem o acesso a sessões bi, tri ou quadri-semanais, o valor das sessões que, segundo dizem, devem ter um custo para o/a analisando·a, o manejo do pagamento, ou o padrão de vida de uma maioria de analistas que consideram as questões econômicas como metafísicas. Imaginemos aqui uma psicanálise em extensão, inscrita em dispositivos que se destinam a ser acessíveis a todos·as, inclusive gratuitamente. Quem pode se expressar aqui e em que termos? Como a inscrição do sujeito e do sujeito do inconsciente em relações sociais de poder de classe, gênero, sexualidade, raça, idade, validade, limita o acesso a uma elaboração analítica? E não se trata aqui dos limites do·a analisando·a entravado·a por essas relações de poder, mas do·a analista, ou inclusive de todo o dispositivo analítico. O que a psicanálise pode ouvir sobre estas relações sociais de poder, e o que ela negligencia, devido ao fato de seus profissionais, mas também a sua própria teoria, serem situados? A psicanálise pode permitir-se o luxo de uma não-situação, e que efeitos isso tem sobre os·as analisando·as e sua escuta?

Se as dominações são sempre interseccionais, por razão de concisão, escolho me concentrar aqui nas questões de raça e colonialidade. Ao aparecer como um dos últimos produtos da modernidade, a psicanálise, da mesma forma que nasce dentro do dispositivo de sexualidade, também está inscrita na matriz da colonialidade e do capitalismo que fundou a era moderna. Embora ela questione fundamentalmente vários princípios do sistema capitalista ou do dispositivo de sexualidade, na maioria das vezes se isenta do estudo da colonialidade dentro de seu aparato clínico ou teórico. O reconhecimento da colonialidade, como efeito de dominação e lugar de enunciação que persiste além da colonização, tornou possível a emergência de novas formas subjetivas, culturais e epistêmicas. Não será isso, poder-se-ia perguntar, a possibilidade de a psicanálise escutar de outra forma? O que seria uma psicanálise da diferença colonial, dessa margem onde, no que diz respeito a relações sociais de raça, surgem aspectos psíquicos da colonialidade do poder, do saber, do gênero ou do ser? Que desobediência disciplinar epistemológica, específica ao gesto dos estudos decoloniais, por exemplo, poderia ser assumida aqui pela psicanálise?

Dar voz, criar um espaço para a voz própria, continua sendo um dos objetivos da escuta psicanalítica. Como, então, podemos criar um espaço para vozes alterizadas, vozes autóctones silenciadas pelos processos de re-atualização colonial, como podemos coletar memórias e seus efeitos atuais? Perguntar quem pode falar em psicanálise e em que termos implica examinar se não existe uma forma específica de silenciamento subjetivo, distinto do recalque freudiano, ou da alienação linguística, propriamente político, e até que ponto esse silenciamento vem a ser perpetuado no escritório do·a analista. Esta é a questão da subalternização. Cunhado por Gramsci (1948-51/2014), o conceito de subalterno·a se refere, além das categorias de oprimido·a ou dominado·a, a uma exclusão radical da esfera de representação. Em Can the Subaltern Speak? Reflections on the History of an Idea (em livre tradução, "Podem as subalternas tomar a palavra?"), Gayatri Spivak (2010) analisa a falta de representatividade e a intraduzibilidade da voz das subalternas no discurso ocidental, a fortiori quando alguém se empenha em falar em seu nome. Os·as subalternos·as levantam a questão ética, filosófica, política e clínica de quem pode falar, como este discurso é recebido e o que pode ser ouvido disso na sessão psicanalítica.

De acordo com que categorias se desenvolve a escuta psicanalítica, a escutabilidade psíquica e a inteligibilidade? Como podemos evitar que as modalidades de fala do·a analisando·a, e de escuta do·a analista, sejam reduzidas por uma gramática hegemônica que trai a singularidade do·a analisando·a? Além disso, o que é calado na sessão será também o que foi cultural e historicamente silenciado por uma razão hegemônica, tanto nas modalidades de escuta quanto nos termos da teorização analítica? Quais são os efeitos do desmentido social da raça? Que silenciamento social, imposto às experiências e representações conscientes e inconscientes dos·as analisandos·as racializados·as, é reproduzido no consultório do·a analista? O que acontece quando esse·a pretende escutar desde uma posição invisibilizada porque supostamente universal, tornando-se assim surdo·a à especificidade da experiência de raça do·a analisando·a?

Talvez um traço indireto desta questão possa ser encontrado na forma como Lacan analisa a prevalência do discurso do mestre na constituição do inconsciente de sujeitos racializados, no Seminário O avesso da psicanálise. Após ter definido o discurso analítico como oposto ao saber do mestre, Lacan dá este exemplo para mostrar que o discurso do inconsciente responde à instituição do discurso do mestre:

Logo depois da última guerra - eu já tinha nascido há muito tempo - tomei em análise três pessoas do interior do Togo, que haviam passado ali sua infância. Ora, em sua análise não consegui obter nem rastros dos usos e crenças tribais, coisas que eles não tinham esquecido, que conheciam, mas do ponto de vista da etnografia. Devo dizer que tudo predisponha a separá-los disso, tendo em vista o que eles eram, esses corajosos mediquinhos que tentavam se meter na hierarquia médica da metrópole - estávamos ainda na época colonial. Portanto, o que conheciam disso no plano do etnógrafo era mais ou menos como no do jornalismo, mas seus inconscientes funcionavam segundo as boas regras do Édipo. Era o inconsciente que tinham vendido a eles ao mesmo tempo que as leis da colonização, forma exótica, regressiva, do discurso do mestre, frente ao capitalismo que se chama imperialismo. O inconsciente deles não era o de suas lembranças de infância - isto era palpável -, mas sua infância era retroativamente vivida em nossas categorias famil-iares - escrevam a palavra como lhes ensinei no ano passado. Desafio qualquer analista, mesmo que tenhamos que ir ao campo, a que me contradiga.

Não é a psicanálise que pode servir para proceder a uma pesquisa etnográfica. Dito isto, a tal pesquisa não tem chance alguma de coincidir com o saber autóctone, a não ser em referência ao discurso da ciência. E infelizmente, a tal pesquisa não tem a menor ideia dessa referência: porque teria que relativizá-la. Quando digo que não é pela psicanálise que se pode entrar numa pesquisa etnográfica, todos os etnógrafos estariam certamente de acordo. Talvez estivessem menos se eu lhes dissesse que, para ter uma pequena ideia da relativização do discurso da ciência, quer dizer, para ter quem sabe uma pequena chance de fazer uma boa pesquisa etnográfica, seria preciso, repito, não proceder pela psicanálise, mas talvez, se isso existir, ser um psicanalista. (Lacan, 1991, pp 103)

Lacan quase coincide aqui com o Frantz Fanon de Pele negra, máscaras brancas (Fanon, 1952/2008). Esse sublinha como o·as negras das Antilhas só se descobrem negro·as na presença de brancos·as. “Lacan quase coincide”, se desconsiderarmos seu silêncio notável sobre as exatidões psíquicas que a situação colonial produz e sua omissão da cor de pele desses pacientes. Pois seria legítimo perguntar por que tipo de violência inaudita os inconscientes desses homens acabam abraçando as categorias familiares metropolitanas e abandonando radicalmente suas memórias de infância e os “usos e crenças tribais” descartados como curiosidades etnográficas. Como não pensar aqui no dramático dilema apontado por F. Fanon, “branquear ou desaparecer” (Fanon, 1952/2008, p 95)? Que racismo colonial, que alterização esmagadora vem impor o recalque e reduzir as formações inconscientes de uma cultura em benefício de outra? Se, como observa F. Fanon, contra Octave Mannoni, o Malgaxe não existe mais, só existe com o Europeu (Fanon, 1952/2008, p. 93), a estruturação psíquica dos Togoleses evocada por Lacan só existe com a situação colonial:

começo a sofrer por não ser branco, na medida que o homem branco me impõe uma discriminação, faz de mim um colonizado, me extirpa qualquer valor, qualquer originalidade, pretende que seja um parasita no mundo, que é preciso que eu acompanhe o mais rapidamente possível o mundo branco, ‘que sou uma besta fera, que meu povo e eu somos um esterco ambulante, repugnantemente fornecedor de cana macia e de algodão sedoso, que não tenho nada a fazer no mundo’. (Fanon, 1952/2008, pp. 94)

Aparece aqui uma verdadeira “branquitude” num duplo nível: primeiro no auto-branqueamento desses “mediquinhos” negros, colonizados, desejosos, consciente e inconscientemente, de apresentar garantias de conformidade com as normas brancas daquilo que a colonização lhes ensinou sobre os processos psíquicos. Mas a branquitude também entra em jogo na escuta e nos comentários de Lacan: na presunção de que estes homens racializados seriam diferentes de um ponto zero branco; na ignorância, aliás a recusa das vivencias particulares, na colônia e na metrópole, que lhes levam consciente e inconscientemente a forcluir os traços psíquicos dos seus “usos e crenças tribais”; mas também na despolitização do “discurso do mestre” que fundamenta esta forclusão, e se inscreve numa violência especificamente colonial e racial. O mestre é branco.

Se os “costumes e crenças tribais” não são formulados na cura, será provavelmente porque estes Togoleses têm interesse em silenciá-los diante do grande analista branco, e em adotar a atitude do etnógrafo em relação a si mesmos, para não se tornarem num exótico objeto de estudo. O que escapa à etnografia só pode ser abordado então, aponta Lacan, como analista. No entanto, é uma inversão da afirmação de Lacan que eu gostaria de pensar aqui: argumentaria que a especificidade das representações culturais tanto dos·as colonizados·as quanto dos·as colonizadores·as só pode ser abordada psicanaliticamente observando os efeitos da branquitude nas associações destes pacientes, a prevalência da norma de subjetivação branca como garantia de universalidade, e uma consequente exclusão da multiplicidade discursiva.

O que entendo aqui por branquitude? A noção, originada na sociologia e na literatura afro-estadunidense, está no centro dos Critical White Studies. Criado pela primeira vez no final dos anos 1980, o termo branquitude se refere à prevalência das normas sociais, culturais e políticas brancas às quais as minorias étnico-raciais são confrontadas. Os estudos críticos da branquitude examinam o modo em que o racismo estrutural e sistêmico, distinto do racismo ideológico ou psicológico, é o correlato da constituição de uma identidade branca invisibilizada como tal, por ser definida como universal, ponto zero da identidade. Correlativamente, a branquitude constitui os·as não-brancos·as como diferentes, marcados·as por um traço que os·as particulariza, e os·as exclui das gratificações socio-econômicas e simbólicas associadas à branquitude. Assim como o sujeito racializado, o sujeito branco é um produto do racismo. E a produção de saber a partir de uma posição branca se revela parcial e situada.

Com o objetivo de descentralizar a psicanálise, de interdisciplinar e indiscipliná-la para quebrar o seu eixo narcísico, mas também para evitar a tentação universalista de uma psicanálise não-historicizada, proponho me debruçar aqui sobre a incidência da raça e da branquitude na psicanálise a partir das epistemologias do posicionamento e da epistemologia da ignorância.

Vozes na Margem

As epistemologias situadas, oriundas tanto da reapropriação crítica de um certo pensamento marxista quanto das análises afro-feministas estadunidenses, se revelam particularmente úteis para evitar que o discurso psicanalítico fique pregando desde o mundo supralunar da neutralidade. Situadas na encruzilhada da elaboração teórica e das práticas militantes, elas ampliam o objetivo de reconhecer as mulheres como sujeitos do saber, promovido pelos grupos de consciência feminista dos anos 1970.

É antes de tudo a figura do·a subalterno·a, introduzida por Antonio Gramsci (1948-51/2014) em seus Cadernos da Prisão, que inspira esta reconfiguração epistemológica. Excluído·a de qualquer forma de representação, enquanto experimenta diretamente a dominação, o·a subalterno·a, um·a operário·a, desenvolve uma expertise de exploração na fábrica que fica inacessível aos patrões. De forma similar, as mulheres podem observar a partir de uma posição privilegiada a dominação masculina que fundamenta o sistema capitalista, e, assim, revelar o trabalho de reprodução invisibilizado. O saber situado das mulheres pode, portanto, transformar a esfera pública da qual elas são excluídas, e fundar uma epistemologia do posicionamento (Standpoint Epistemology) com efeitos teóricos, sociais e políticos.

Várias autoras afro-feministas estadunidenses, como bell hooks, Angela Davis, Audre Lorde ou Patricia Hill Collins, procuraram valorizar o saber produzido nas “margens” (hooks, 1984) pelas mulheres negras, que se revela mais apropriado do que o saber hegemônico supostamente definido por critérios de objetividade. Esta posição “na periferia, na borda, no limite”, “tanto de fora quanto de dentro”, concentrada “tanto no centro quanto na margem” (bell hooks, 1984) lembra a “dupla consciência” teorizada por Dubois (1903/2007). Para o sujeito negro, este sintagma designa a sensação de conjuntamente ser si mesmo, uma rica vida interior fundando uma subjetividade única, mas também ser racialmente reduzido à sua aparência negra, desprezada por um olhar branco aplicado a si mesmo. Desta consciência alienada ou infeliz, uma “visão dupla” também pode surgir, permitindo um saber mais objetivo do mundo. Esta é a perspectiva das outsiders within, teorizada por Hill Collins (2000) a partir da experiência de mulheres negras que são conjuntamente excluídas do saber acadêmico dominante, e participantes desse saber quando são acadêmicas. Esta consciência da margem no centro, interna e externa ao mesmo tempo, parece adequada ao objetivo da escuta analítica. A epistemologia do posicionamento afro-feminista se revela particularmente inspiradora para uma atenção flutuante que pretende ouvir as margens.

Num esforço para “conciliar subjetividade e objetividade” na produção do conhecimento acadêmico, para reunir uma “consciência afrocêntrica e feminista” (Hill Collins, 2000, p. 8) e a respeitabilidade da pesquisa, Patricia Hill Collins procura revelar esse posicionamento a partir das experiências de mulheres negras, relegadas às margens pela dominação branca, porém, portadoras de uma transformação política e social.

Contudo, esses saberes subjugados precisam ser escutados sem ter que se expressarem no único idioma familiar ao grupo dominante: sem ter que passar pelos processos de validação do saber próprios às instituições sociais dominantes e às epistemologias ocidentais ou eurocêntricas, controladas por uma elite de homens brancos e servindo a seus interesses (Hill Collins, p. 253). Portanto, a epistemologia situada do afro-feminismo difere ponto por ponto dos critérios que caracterizam as abordagens positivistas - distância entre o·a pesquisador·a, sujeito, e seu objeto coisificado, ausência de emoção, ausência de ética ou valores, debates contraditórios e solidez do argumento que sobrevive. Desta forma, a experiência vivida das mulheres negras é afirmada como critério fundamental para a constituição do conhecimento. Ademais, diferentemente do debate contraditório, o uso do diálogo, baseado nas tradições orais africanas, ressalta a importância da conexão, em vez da separação, nos processos de validação do saber. Uma ética do cuidado (care) conjuga esses processos com a expressão pessoal, as emoções e a empatia, para enfatizar a unicidade do indivíduo (individual uniqueness) ressaltada pela tradição humanista africana (Hill Collins, p. 263). Por fim, as mulheres negras tornam-se sujeitos do saber em vez de serem seus objetos passivos, falam em seu nome próprio, numa epistemologia alternativa, caracteristicamente negra e feminina, na interseção de duas opressões suscetíveis de se transformarem em empoderamento e justiça social.

A questão dos saberes situados poderia ser concebida como uma radicalização do posicionamento da psicanálise no avesso da ciência, e da produção do sujeito do inconsciente pelo sujeito da ciência. Para Harding (1993), a “Standpoint Epistemology” ressalta a maneira como todos os processos de saber estão socialmente situados e revela que algumas localizações marginais são preferíveis a outras para iniciar o conhecimento. As epistemologias do posicionamento ressaltam que os saberes maioritários não se revelam objetivos do ponto de vista das margens, em sociedades estratificadas pela cultura, a raça, a classe, o gênero e a sexualidade (Harding, 1993, p. 53). Trata-se, então, de produzir um conhecimento dirigido às populações marginalizadas, e não apenas aos grupos dominantes com os seus processos de administração e gestão dos grupos minoritários (Harding, 1993, p. 56). Contra os pressupostos sexistas e androcêntricos que impõem uma explicação hegemônica da natureza e da vida social, contra a ideia de que os saberes devem transcender a sua implicação com os interesses históricos locais, as epistemologias do ponto de vista buscam constituir uma “objetividade” rigorosa, “maximizada”.

Trata-se de evitar a ilusão de um ponto de vista de cima - chamado “truque divino” (God trick) para inscrever os saberes em múltiplas vidas femininas, racializadas, mas sem essencializar a feminilidade ou a raça. Enquanto a epistemologia empírica convoca um sujeito do saber desencarnado, invisível, individual, homogêneo e unitário, distinto dos objetos descritos pelo saber científico, o sujeito das teorias do posicionamento situado é incorporado e visível, inscrito na história, pouco diferente dos objetos de conhecimento socialmente constituídos, inscrito numa comunidade que produz o saber, múltiplo, heterogêneo, contraditório e desessencializado. Esse sujeito do saber, uma comunidade social historicamente localizada, deve ser considerado como parte do objeto do saber, numa reflexividade que critica as comunidades de especialistas (Harding, 1993, p. 70).

Donna Haraway (2007), por sua vez, inscreve a epistemologia situada dentro de uma concepção do saber como nó compacto no campo de luta pelo poder. O objetivo não é libertar o saber das relações de poder, mas, numa perspectiva foucaultiana, apontar continuamente para tais 1. Trata-se então de identificar o reducionismo universalista (Haraway, 2007, p. 114) e de se opor ao “ver sem ser visto/a” próprio à “posição não marcada de Homem e de Branco” (Haraway, 2007, p. 122), através de uma escrita feminista do corpo, em que a visão objetiva depende de uma perspectiva parcial. Correlativamente, o objeto de conhecimento destes saberes situados é visto como um ator e agente, com verdadeira capacidade de ação, que abre “um lugar para as surpresas e a ironia, que estão no centro de qualquer produção de saber” (Haraway, 2007, p. 132). Esse posicionamento lembra a perspectiva de “ciência do singular”, específica à abordagem analítica, e aponta claramente para a impossível generalização do ponto de vista assim como para a necessidade, contra qualquer unidade do saber, de uma multiplicidade constante.

Saberes situados não implicam, no entanto, que só os sujeitos afetados por uma questão estejam legitimados·as a falar sobre ela, mas que se trate sempre de revelar a situação da própria enunciação. Essa situação é que torna um discurso pertinente e legitimo, e, conjuntamente, revela os seus limites. Favorecer as abordagens das margens não silencia, portanto, aquelas do centro: continua sendo possível desenvolver um discurso a partir do centro se esta posição enunciativa não for invisibilizada, mas claramente evidenciada, na sua relevância e limitações. Se a psicanálise se define, por sua vez, dentro de uma epistemologia situada, toda a questão é saber se ela quer ocupar uma situação dominante, aferrada na universalização de um posicionamento maioritário, ou uma situação minoritária. Isso levanta a questão da enunciação, que está no centro da abordagem analítica: definir a psicanálise como epistemologia situada implica manter constante o questionamento do lugar a partir do qual um·a analista e um·a teórico·a da análise escutam e falam, e não isentar a psicanálise da crítica da enunciação que ela endereça a outras perspectivas.

O que está em jogo nesta definição da psicanálise como saber situado é, na hora da produção da teoria analítica, a traduzibilidade entre “saber analítico” e relações sociais de poder: a possibilidade de que esse saber continue a ressoar com a multiplicidade das vozes dos·as analisandos·as sem que essas sejam silenciadas por uma posição sábia de expertise.

Apontando a parcialidade do saber, sua subjetivação em ruptura com o modelo positivista, as epistemologias do posicionamento abrem caminho para o surgimento de campos de saber que combinam objetos e sujeitos minoritários: Women’s Studies, Chicano·a Studies, Disability Studies, Queer Studies, Transgender Studies ou Black Studies. Esta multiplicação dos lugares de enunciação que permite ouvir novas vozes só pode inspirar uma escuta psicanalítica preocupada em analisar o que a facilita e o que a compromete.

A Raça: Rir, Desprezar, Detestar para Conhecer

Na França, contexto cultural onde desenvolvo a minha prática clínica, o assunto da raça é tratado de forma singular. O racismo é considerado marginal, próprio a indivíduos ou à extrema direita, e de forma alguma decorrente do Estado ou da discriminação estrutural. Assim fica descartada a longa história francesa da escravidão, da dominação colonial ou do regime de Vichy. Este mito nacional de um Estado neutro impede de ver como o racismo estrutura muitas áreas da sociedade francesa: a polícia, a justiça, os âmbitos profissionais, a mídia, a cultura, o esporte, as universidades, a saúde e a educação são atravessados pela negrofobia, islamofobia, anti-ciganismo e racismo antiasiático.

Portanto, enquanto uma parte crescente da população francesa experimenta diariamente a discriminação racial, essa é veementemente negada por uma maioria de político·as e pesquisadore·as, que recusam até o uso da palavra “raça”. Através de uma espécie de fetichização do termo, se acredita que a evocação da palavra, por si só, faz existir o racismo, e que sua proibição, por si só, seria suficiente para pôr um fim a ele. Isso tem efeitos irredutíveis sobre os discursos acadêmicos, que se opõem até à mera evocação da raça, e também sobre as práticas e teorizações da psicanálise.

Portanto, considerando que o uso da raça como categoria de análise é racista, uma maioria da estudos acadêmicos a excluem da sua consideração, mantendo um verdadeiro desprezo pela legitimidade e competência das pessoas que se dispõem a falar sobre raça e racismo 2. Essa negação envolve um processo que não só afirma um saber dominante, mas reprime ativamente os outros saberes em nome da universalidade. A crença no universalismo, porém, se baseia na definição da branquitude como posição neutra com vocação universal. Qualquer discurso que contradiga o universalismo (que na verdade está sempre situado) é considerado, na esfera maioritária política e acadêmica francesa, como uma deriva “identitária” ou “comunitária”. Isso implica desqualificar as percepções das relações sociais de raça pelos sujeitos racializados e excluir toda consideração dos discursos minoritários. A branquitude poderia então ser definida como uma operação discursiva que procede à eliminação de qualquer outra discursividade que não obedeça a seu ideal de universalismo. É uma posição na qual o sujeito branco se afirma como o garantidor moral de uma ordem universalista, obscurecendo assim as vivências de sujeitos racializados.

Reinterrogar as relações raciais do ponto de vista da branquitude equivale então a estabelecer uma sociologia, uma filosofia e uma epistemologia do silêncio e da invisibilização como processos ativos de violência e eliminação de saberes e enunciações não brancos. Destaco aqui a utilidade da “epistemologia da ignorância” (Mills, 1997) para uma psicanálise desejosa de abordar os efeitos psíquicos desses processos de silenciamento.

A epistemologia da ignorância se fundamenta na concepção foucaultiana do poder produtor de saberes, e é reforçado, à sua vez, por estes saberes. Como aponta Michel Foucault, a verdade não é algo externo ao poder: o regime de verdade em cada sociedade depende da política geral presente nela, dos discursos que nela podem circular, dos mecanismos e instâncias que definem o verdadeiro e o falso, e dos meios de legitimação e transmissão da verdade. Este é provavelmente o sentido da crítica nietzscheana que, segundo Foucault (1970-71/2011), revela a verdade como vontade de potência e destaca a violência do desejo de saber. A história política da verdade revela a historicidade das relações de poder, dominação e luta, das quais a verdade é ao mesmo tempo a jogada, a ferramenta e o efeito. Se “entre o saber e a verdade [reina] uma relação de crueldade e destruição”, se saber é “produzir a coisa de acordo com a vontade dos instintos” (Foucault 1970-71/2011, p. 209), é porque:

(...) o conhecimento é o resultado de uma operação complexa (...) É antes de mais nada parecido com a maldade - rir, desprezar, odiar. Não se trata de se reconhecer nas coisas, mas de se manter à distância delas, de se proteger delas (rir), de se diferenciar delas desvalorizando-as (desprezar), de querer afastá-las ou destruí-las (detestari)”. (Foucault 1970-71/2011, pp. 196)

Retenhamos aqui esta “maldade radical do conhecimento” (Foucault, 1973/2001), uma relação de violência, ódio e destruição exercida pelo saber. Mais do que adequação ao objeto, o conhecimento implica uma relação de dominação e hostilidade, e envolve mais do que o modelo dos filósofos, aquele dos políticos. Como aponta Foucault (1973/2001), trata-se de considerar que as áreas do saber são formadas a partir de práticas sociais que geram novos conceitos, novas técnicas, mas também novos sujeitos e sujeitos do conhecimento. As práticas discursivas são assim favorecidas por sistemas de poder e, consequentemente, favorecem objetos particulares, formas de transmissão, instituições específicas, comportamentos, estereótipos e campos de visibilidade. Todo poder permite e fabrica um tipo de saber, formas de subjetividade, assim como todo saber estabelecido garante um exercício de poder.

Nessa perspectiva, cabe considerar que a formação discursiva da raça, através de suas várias etapas, de Linnaeus a Buffon ou Blumenbach, de Montesquieu a Hegel ou Renan, ou de Broca a Le Bon e Gobineau, instituiu objetos, as populações colonizadas ou escravizadas, e um sujeito do saber, o homem branco europeu. A hipótese da inferioridade dos humanos não-brancos foi longamente desenvolvida em vários regimes de verdade que estabeleceram diferentes modalidades de saber/poder. Este é um fio que pode ser traçado, segundo Charles Mills (1997), através das especulações de Locke sobre a incapacidade das mentes primitivas, a convicção de Hume de que somente os europeus poderiam criar uma civilização, as reflexões de Kant sobre as diferenças de racionalidade entre negros e brancos, ou a concepção por Hegel de uma África desprovida de história. Em sua análise da racionalidade que invisivelmente percorre o contrato social, Mills (1997) destaca a forma como a construção da verdade e as modalidades de diferenciação entre verdadeiro e falso são determinadas pela raça. Ele analisa assim o “contrato racial”, um conjunto de acordos ou meta-acordos formais e informais estabelecidos entre membros de um subgrupo de humanos designados, segundo critérios mutáveis de raça (fenotípico/genético/cultural), como “brancos”, isto é, pessoas plenas. Este contrato lhes permite classificar o subgrupo restante de humanos como sub-pessoas de estatuto moral inferior e, portanto, subordinado, nos grupos políticos dirigidos pelos brancos.

As regras morais e legais que normalmente regem o comportamento dos·as brancos·as em suas relações entre si têm pouca ou nenhuma aplicação, argumenta Mills, nas relações com não-brancos·as. O “estado de natureza”, teorizado por várias filosofias do contrato social, recebe um papel diferente na análise de Mills: não é um estado pré-político temporário (e muitas vezes hipotético) que diz respeito a todos os humanos, mas um estado não-político permanente dos humanos não-brancos. O contrato racial estabeleceu assim uma polaridade racial, um estado racial e um sistema jurídico racial, cujo objetivo é garantir os privilégios e vantagens dos cidadãos brancos e manter a subordinação dos não-brancos.

O que emerge aqui é uma verdadeira história política da verdade revelando a historicidade das relações de poder, dominação e luta que constituem várias epistemes da raça. Esta “maldade radical do saber” (Foucault, 1973/2001) se desenvolve numa “epistemologia da ignorância” (Mills, 1997), epistemologia invertida, que comporta disfunções cognitivas localizadas e globais - embora sejam compartilhadas e validadas pela autoridade epistêmica branca, religiosa ou secular. Psicológica e socialmente operativas, estas disfunções “produzem o resultado irônico que os brancos geralmente não serão capazes de entender o mundo que eles mesmos criaram” (Mills, 1997). A incompreensão, a distorção, o auto-engano sobre mitologias raciais e brancas formam assim uma economia cognitiva psiquicamente necessária para a conquista, a colonização e a subjugação. Estes fenômenos não são, porém, acidentais, mas foram prescritos pelos termos do contrato racial, que requer um programa de cegueira e opacidade estruturadas para estabelecer e manter uma hegemonia branca.

Este não-conhecimento epistemológico também implica uma psicologia moral racializada e uma dificuldade real, para os·as brancos·as, em reconhecerem certos comportamentos como racistas. O contrato racial, portanto, atribuiu deveres, direitos e liberdades de forma racialmente diferenciada durante séculos, fazendo com que o racismo e a discriminação racial não sejam apenas desvios da norma, mas a própria norma. Esta atitude pode aparecer no silêncio ensurdecedor histórico da maioria dos·as teóricos·as europeus e europeias sobre os grandes crimes da conquista europeia, alternadamente ignorados, aprovados ou pouco condenados.

Enquanto a epistemologia dos·as dominantes, signatários·as e agentes do contrato racial, exige urgentemente que se evitem e neguem as realidades da raça, a epistemologia das vítimas e objetos deste contrato coloca essas realidades no seu centro: reconhece o contrato racial como a verdadeira fonte da prática moral e política de uma maioria branca. A epistemologia da ignorância é assim apresentada por Charles Mills como uma versão racial das epistemologias do posicionamento: retoma a ideia de que, para entender o funcionamento de um sistema de opressão, a perspectiva de baixo para cima, dos·as dominados·as, se revela globalmente mais justa do que a dos·as dominantes.

Uma “ignorância branca” (White ignorance) (Mills, 2007) opera aqui como recusa constante. Mais do que meramente acidental, este não-conhecimento é efetivo, produtivo: como os processos do inconsciente, não é o que meramente escapa à consciência, mas o que ativamente se opõe a ela. A ignorância aparece assim não como negligência, mas como uma prática epistêmica substancial e sistêmica: condições estruturais produzem aqui uma vantagem ou uma disfunção no nível epistêmico. Não se trata apenas, como nas epistemologias do posicionamento, de aspectos relacionados com dimensões específicas das identidades de grupo (grupo de mulheres, grupo de trabalhadores, etc.), mas da forma em que sistemas opressivos produzem o não-saber como um de seus efeitos.

A raça desempenha aqui um papel central: como motivação racista direta, ou como causalidade socio-estrutural mais impessoal, efetiva mesmo na ausência do racismo individual do sujeito conhecedor. O sujeito branco é assim constituído como alienado, cegado por uma branquitude que define arbitrariamente a relação entre saber e poder, e a inscreve numa ignorância da dominação. Mais do que um sistema intencional e individual, o racismo aparece como produto de interesses inconscientes, subjetivos e coletivos, que causam formas ordinárias de não-conhecimento, silêncio ou inação. Isso se destaca hoje em dia na cegueira à cor (colour-blindness), característica do universalismo republicano na França ou da democracia racial no Brasil. Essa posição, que muitos·as brancos·as usam para combater o racismo, acaba perpetuando-o através deste mesmo processo de ignorância. Desaparece a construção histórica da linha de cor que distinguiu por séculos sujeitos brancos e não-brancos, e com ela qualquer tentativa de estabelecer medidas de reparação das desigualdades passadas, uma justiça retrospectiva ou uma correção histórica do privilégio branco. A ideologia da colour-blindness opera assim como uma ignorância efetiva, uma anulação retrospectiva da raça que mantém a hegemonia branca inquestionável e aumenta o desmentido da discriminação sofrida pelos sujeitos racializados. Quando estes sujeitos tentam testemunhar ou analisar os processos do racismo, são submetidos a uma presunção epistêmica que não afeta seus/suas semelhantes brancos·as:

Em qualquer disciplina que seja afetada pela raça, o 'testemunho' da perspectiva negra e suas ideias conceituais e teóricas particulares tenderão a ser apagados. Os·as brancos·as citarão outros·as brancos·as em um circuito fechado de autoridade epistêmica que reproduz as ilusões dos·as brancos·as. (Mills, 2007, pp 33-34)

Esta “ignorância branca” é comparável à “ignorância masculina”, muito mais antiga e, de forma semelhante, baseada numa desigualdade estrutural. Não é, entretanto, inabalável: algumas pessoas, por sua história particular, podem superá-la. Tentar saber quem pode se expressar no divã, e em que termos, implica analisar justamente esta epistemologia da ignorância na postura clínica e teórica da psicanálise: estudar a forma como uma ignorância branca provoca uma desescuta das questões de raça no divã, produz efeitos transferenciais de silenciamento, e nega vivências particulares em nome do universalismo na literatura analítica maioritária.

Escutar Além do Narcisismo das Grandes Indiferenças

Em 26 de setembro de 2019, uma coluna escrita por psicanalistas franceses·as, assinada por muitos·as deles·as, e publicada no Le Monde decreta que “o pensamento ‘decolonial’ reforça o narcisismo das pequenas diferenças” (Tribune Le Monde, 2019). Próprio de ativistas “obcecados pela identidade, reduzidos ao identitarismo”, esse pensamento perigoso “se infiltra na universidade [e] [...] ameaça as ciências humanas e sociais sem poupar a psicanálise” (Tribune Le Monde, 2019). Em nome da “singularidade do indivíduo” ou de uma psicanálise apresentada como “universalismo” e “humanismo”, trata-se aqui, nem mais nem menos, de uma verdadeira operação de censura. Os·as autores·as do texto consideram que as minorias políticas francesas, negras, árabes, muçulmanas ou oriundas da imigração não têm voz, não podem pretender desenvolver saberes legítimos sobre sua condição e devem se subordinar à única língua autorizada, aquela da qual os autores do fórum são os representantes. Se “acadêmicos, pesquisadores, intelectuais, psicanalistas se uniram em torno disso”, é porque estão enganadas·os, seduzidas·os por essas sereias “sectárias” e “comunitárias” (Tribune Le Monde, 2019). E a coluna pretende trazê-los de volta ao caminho certo, negando a existência do vasto campo acadêmico dos estudos pós-coloniais e decoloniais e estabelecendo uma clara distinção entre essas minorias, forasteiras, e os·as acadêmicos·as e psicanalistas, que, felizmente, não provêm de lá...

A questão que este texto coloca com força e a despeito de si mesmo é a da legitimidade da fala e dos discursos admissíveis. Na universidade, espaço de construção crítica do conhecimento, ou no divã do·a analista, lugar de sua desconstrução, quem pode falar, sobre o quê, e o que aceitamos ouvir? Podem as pessoas alterizadas, minoritárias, objetos do discurso oficial que denuncia o racismo, também serem seus sujeitos e designarem elas mesmas o que vivenciam do racismo? Como a escuta da singularidade da sua experiência subjetiva e societal fica aqui invalidada? Que violência social, experimentada diariamente por analisando·as, é assim perpetuada no escritório do·a analista quando esse·a esconde as relações sociais de discriminação por trás de um sujeito do inconsciente apolítico e etéreo? E por que narcisismo violentamente defensivo as discriminações de raça são assim evacuadas da escuta do·a analista?

Eis aqui um efeito direto da epistemologia da ignorância e da forma como se empenha determinadamente em deslegitimar todo saber sobre a raça. Aqui aparece claramente a incapacidade epistemológica de questionar um posicionamento próprio, característica da branquitude confundida com o universal. Essa coluna mostra, a contrario, as modalidades de apagamento do lugar de enunciação dos saberes analíticos, da palavra do·a analisando·a e da escuta do·a analista. A teorização analítica, visando a universalidade de suas ferramentas, opera aqui uma generalização da branquitude hegemônica.

A experiência analítica pode ser concebida como lugar onde um sujeito pensa a contingência dos discursos que o produzem, e as designações específicas que o subjetivam ao objetivá-lo, lugar onde ele emerge como sujeito fragmentado no cruzamento das determinações sociais do inconsciente, das relações sociais de poder de gênero, sexualidade, classe, raça, etc. Revelar a branquitude como uma construção social, um evento, e não como uma permanência invisibilizada, equivale a apontar sua contingência, a partir de uma distância crítica que permite repensar - fantasiar, elaborar, construir - processos de subjetivação não submetidos às normas dominantes, e mais suscetíveis de mudança e fluidez.

As epistemologias do posicionamento e a epistemologia da ignorância destacam uma subjetivação dos saberes e das enunciações, ao conceber a experiência como modalidade de conhecimento e o conhecimento como política de identidade. Estas perspectivas evidenciam a construção implícita de identidade realizada pela produção de saber que opera a partir da branquitude. Tematizar as normas de racialização e branquitude na interseção das quais um sujeito se subjetiva faz parte da elaboração analítica. Se não se trata diretamente de remover a opressão social, nem menos ainda de ocupar uma posição moralmente “louvável” (um angelismo que permanece em grande parte contaminado pelo imaginário), o objetivo é nada menos que libertar, para o·a analisando·a, uma fluidez psíquica - bloqueada pelo sintoma, uma repetição inscrita nas normas sociais de subjetivação. A fluidez psíquica, a possibilidade de optar por se posicionar, agir ou não agir em relação às estruturas sociais da racialização, ou pelo menos de considerar seu papel nas próprias produções psíquicas, são precisamente os objetivos de uma elaboração psicanalítica que concebe o sujeito como indissociável do grupo social, e legítimo a ocupar um estatuto de agente dentro dele. Assumir uma posição de sujeito, ser capaz de falar em seu nome próprio, não ceder sobre seu desejo, são metas do trabalho psíquico de elaboração que significam, no nível social, poder ter uma agentividade, uma capacidade de pensar e agir que tira o sujeito da pura passividade.

Parece urgente, portanto, desconstruir a branquitude que às vezes pode operar na teoria analítica quando ela promove a neutralidade ontológica certa do·a analista e o universalismo da psicanálise. A abstenção do·a analista só pode ser visada, assintoticamente, ao considerar a forma como a branquitude determina essa posição de neutralidade, através da primazia silenciosa concedida a uma perspectiva masculina, eurocêntrica, burguesa, hetero e cis-cêntrica. Trata-se de ver que a produção de sujeitos brancos implica a de sujeitos racializados e minoritários. Trata-se de apontar o real da raça, aquilo que a epistemologia dominante e a branquitude deixam sempre fora de toda simbolização. Caso contrário, o enquadre analítico correria o risco de reproduzir a maior vulnerabilidade que afeta os sujeitos racializados e minoritários (mas também os sujeitos trans, gays, lésbicos, queer, precarizados, etc.), cuja humanidade não é reconhecida da mesma forma que a dos sujeitos majoritários.

Quem pode falar no divã? Em que gramática e em que língua? Como propriamente escutá-lo·a? Provavelmente recorrendo a um modelo analítico da margem que não condene ao silêncio aqueles·as que o centro invisibiliza, e reconheça as designações sociais sem essencializá-las.

Notas

1 “As feministas têm interesse em projetar uma nova ciência que proporcione uma tradução mais precisa, aceitável e rica do mundo, para viver corretamente nele e numa relação crítica e reflexiva com nossas próprias práticas de dominação e com as dos outros, bem como com as partes desiguais de privilégio e opressão que constituem todas as posições” (Haraway, 2007, p 112).

2 Infelizmente, os exemplos de condenações acadêmicas e “científicas” das categorias de raça e colonialidade são inumeráveis na França - maioritariamente com uma ignorância grosseira no que diz respeito aos estudos críticos da raça, da branquitude e dos estudos decoloniais e póscoloniais. Cabe citar, por exemplo, Beaud, S., & Noiriel, G. (2021). Race et sciences sociales. Essai sur les usages publics d’une catégorie. Agone & Braunstein, J.-F. (2022). La religion woke. Grasset ; ou Roudinesco, E. (2021). Soi-même comme un roi. Seuil.

Num contexto político onde o Presidente da República acusou os movimentos antirracistas de “fragmentar a república”, o ministro anterior da educação travou a guerra contra a interseccionalidade e o “comunitarismo”, e a ministra anterior da educação superior e da pesquisa afirmou a necessidade de perseguir o “islamo-esquerdismo”, vários intelectuais se manifestaram contra o pensamento crítico, como na coluna publicada na revista Le Point em novembro de 2018 intitulada “Le décolonialisme, une stratégie hégémonique”, ou na criação de postos de alfândega do pensamento como o “Observatoire du décolonialisme et des idéologies identitaires”. Além da má fé, do reacionarismo e do racismo estrutural próprios a todas estas perspectivas, o erro comum consiste em considerar qualquer luta contra a discriminação e qualquer reivindicação de igualdade nos direitos e nas prerrogativas econômicas e simbólicas como “identitarismo”, em nome do universalismo republicano que pretende não ver as particularidades (de gênero, sexualidade, raça, classe, etc.). O livro de E. Roudinesco ilustra esta vexatória confusão, ao conceber que as posições de reivindicação feministas, LGBTQIA+, antirracistas ou supremacistas brancas são iguais: procederiam do mesmo narcisismo identitário. A dimensão social-política das psiques e da própria psicanálise fica assim totalmente erradicada.

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Recebido: 14 de Maio de 2023; Aceito: 02 de Outubro de 2023

Endereço para correspondência Thamy Ayouch 12 rue Henri Barbusse, 94800, Villejuif, Endereço eletrônico: thamy.ayouch@gmail.com

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