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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.23 no.spe Rio de Janeiro  2023  Epub 20-Maio-2024

https://doi.org/10.12957/epp.2023.80104 

DOSSIÊ PSICANÁLISE E POLÍTICA: A INSISTÊNCIA DO REAL

Do Narcisismo das Pequenas Diferenças ao Gozo Narcísico Racismo, Colonialidade, Segregação, Genocídio

From the Narcissism of Small Differences to Narcissistic Jouissance Racism, Coloniality, Segregation, Genocide

Del Narcisismo de las Pequeñas Diferencias al Goce Narcisista Racismo, Colonialidad, Segregación, Genocidio

Betty Bernardo Fuks* 

Psicanalista. Dra. em Comunicação e Cultura (UFRJ). Professora do Programa de Pós-graduação em Psicanálise, Saúde e Sociedade da UVA.


http://orcid.org/0000-0002-5325-7382

Ana Paula Galdino de Farias** 

Doutoranda em Teoria Psicanalítica na UFRJ. Mestre em Psicanálise, Saúde e Sociedade na UVA. Bacharel em Relações Internacionais na UFRRJ.


http://orcid.org/0000-0001-8147-8724

*Universidade Veiga de Almeida - UVA, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

**Itaguaí, RJ, Brasil


RESUMO

A proposta desse ensaio é retomar a incursão de Freud, a partir da Primeira Guerra Mundial, na fonte do sofrimento que vem das relações entre os humanos, indicando a novidade que significou o conceito de narcisismo das pequenas diferenças na apreensão dos movimentos coletivos que declaram uma inócua expressão de hostilidade ao outro, ou os que promulgam ações destrutivas e mortíferas contra o outro eleito como seu inimigo absoluto. Com o advento da pulsão de morte, Freud redimensiona o conceito de narcisismo das pequenas diferenças e introduz a ideia de que a satisfação das pulsões que atingem a mais cega fúria de destruição, está conectada a um gozo [Genuβ] narcísico. Esse gozo, na leitura de Lacan, é um mal porque comporta um mal à alteridade. É com esse legado que nos propomos pensar a extensão da psicanálise ao discurso decolonial e outros discursos contra hegemônicos, através do diálogo interdisciplinar, na leitura das linguagens de ódio que enfrentamos em nossa época.

Palavras-chave: narcisismo das pequenas diferenças; gozo narcísico; colonialidade; genocídio.

ABSTRACT

The purpose of this essay is to resume Freud's incursion, from the First World War, on the source of the suffering that comes from the relationships between humans, indicating the novelty that meant the concept of narcissism of small differences in the apprehension of collective movements that declare an innocuous expression of hostility to the other, or those who enact destructive and deadly actions against the other chosen as their absolute enemy. With the advent of the death drive, Freud re-dimensions the concept of narcissism of small differences and introduces the idea that the satisfaction of drives that reach the blindest fury of destruction is connected to a narcissistic jouissance [Genuβ]. This jouissance, in Lacan's reading, is an evil because it entails an evil to alterity. It is with this legacy that we propose to think about the extension of psychoanalysis to the decolonial discourse and other counter-hegemonic discourses, through interdisciplinary dialogue, in the reading of the languages of hate that we face in our time.

Keywords: narcissism of small differences; narcissistic jouissance; coloniality; genocide.

RESUMEN

El propósito de este ensayo es retomar la incursión de Freud, desde la Primera Guerra Mundial, sobre el origen del sufrimiento que proviene de las relaciones entre los humanos, señalando la novedad que significó el concepto de narcisismo de las pequeñas diferencias en la aprehensión de los movimientos colectivos que declaran una expresión inocua de hostilidad hacia el otro, o los que ejecutan acciones destructivas y mortíferas contra el otro elegido como su enemigo absoluto. Con el advenimiento de la pulsión de muerte, Freud redimensiona el concepto de narcisismo de las pequeñas diferencias e introduce la idea de que la satisfacción de las pulsiones que alcanzan la más ciega furia de destrucción está ligada a un goce narcisista [Genuβ]. Este goce, en la lectura de Lacan, es un mal porque implica un mal a la alteridad.Es con este legado que nos proponemos pensar la extensión del psicoanálisis al discurso decolonial y otros discursos contrahegemónicos, a través del diálogo interdisciplinario, en la lectura de los lenguajes de odio que enfrentamos en nuestro tiempo.

Palabras clave: goce narcísico; colonialidad; segragación; racismo.

Sob o impacto da Primeira Guerra Mundial, Sigmund Freud escreve dois textos nos quais registra suas primeiras reflexões sobre o sofrimento e a dor oriundas das relações entre os humanos. Em Considerações contemporâneas sobre a Guerra e a Morte (Freud, 1915/2020a), inspirado em sua experiência clínica e sem objetivo algum de explicar a guerra a partir da psicanálise, mas, ao revés, tomar a destruição e a violência como realidades do psiquismo e disso retirar consequências teóricas para responder aos problemas mais cruciais da cultura que testemunhou. Freud oferece um argumento psicanalítico contrário ao ideal de paz eterna: se no homem, amor e ódio intensos convivem conflitantes (ambivalência de sentimentos), e as pulsões são aquilo que são - nem boas nem más, dependendo do destino que seguem na história do sujeito e da civilização -, então a guerra, e a desumanização dos laços sociais não são apenas momentos efêmeros, fadados à superação no futuro. Muito ao contrário, são acontecimentos inexoráveis que incorporam um elemento radicalmente social e histórico. É nesse contexto que o criador do conceito de inconsciente desconstrói a ideia, inscrita no imaginário europeu do século XIX, de uma superioridade da civilização moderna sobre aquelas que eram consideradas mais ancestrais, passando a defender a tese de uma certa unidade da espécie. Embora à época da escrita do texto em questão a pulsão que se expressa através das pulsões de destruição, de crueldade e também na de domínio ou de poder - a pulsão de morte - não tivesse sido conceituada, nada impede ao leitor de situá-la nas entrelinhas - na preocupação do autor para com a engrenagem pulsional da dissolução e destruição de tudo aquilo que a vida e os laços sociais constroem.

Ao final da guerra de 1914, Freud (1918/2020b) redige O tabu da virgindade, um ensaio igualmente fundamental às reflexões psicanalíticas em relação à fonte maior do sofrimento humano, aquela que supera até mesmo as que são causadas pelo próprio corpo destinado à decadência e à dissolução e as da própria natureza e suas forças poderosíssimas - as relações humanas. Inspirado na ideia do antropólogo Alfred Crawley de que cada indivíduo se isola dos demais através de um “tabu de isolamento pessoal” e que justamente as pequenas diferenças, em meio a semelhanças, é o que motiva os sentimentos de estranheza e hostilidade entre eles, Freud enuncia a noção de narcisismo das pequenas diferenças. E a define como “a hostilidade que vemos em todas as relações humanas lutar com sucesso contra os sentimentos de união e vencer o mandamento do amor generalizado aos seres humanos” (Freud, 1918/2020b, p. 164). Freud junta na mesma expressão dois termos opostos”: Narcisismo, o UM que faz corpo (registro do imaginário), e diferença, a Alteridade (registro do real). No ponto de identidade entre o familiar e o estranho eclode, ao mesmo tempo, a dissolução de um espaço - o imaginário - e a abertura para um outro - o real - surge a vivencia de estranhamento, porta aberta para a angústia - campo das “vivencias indizíveis que horrorizam” (Freud, 1895/1977, p. 262).

Nesse primeiro momento da construção do futuro conceito de narcisismo das pequenas diferenças, Freud o introduz no corpus da teoria pela via da ambivalência humana, não pacificada com facilidade, que em geral um tabu atualiza na sexualidade. Não é de se menosprezar no ensaio Tabu da virgindade (Freud, 1918/2020b), o fato do autor prever, ainda em 1918, uma combinação entre o corpo feminino (signo da Alteridade), a elaboração psicanalítica das consequências psíquicas da diferença anatômica do sexo , em 1925, e seus estudos que envolvem uma crítica à política da primeira metade do século XX, sobretudo em seu livro O homem Moisés e o monoteísmo (Freud, 1939/2018), no qual aproxima o horror à castração, presentificada pela ausência do falo na mulher, à circuncisão no corpo do judeu. Essas duas figuras de alteridade - a feminilidade e a judeidade assombravam Viena, o que nos dá a medida do quanto Freud sempre esteve atento às tensões sociais de sua época.

Alguns anos depois, em meio a redação final do Além do Princípio do Prazer (Freud, 1920/2016), obra na qual a pulsão de morte é enunciada, Freud dá início à redação de Psicologia das massas, análise do Eu (Freud, 1921/2020c). O cenário da formação dos laços sociais pós 1ª. Guerra Mundial e à sombra do nacionalismo alemão, que viria a ser implantado nos anos 30, é o pano de fundo sob o qual dará um novo passo em relação ao narcisismo das pequenas diferenças galgando-o ao status de conceito. Inspirado, na parábola do porco-espinho de Arthur Schopenhauer, Freud emite seu conhecido diagnóstico: os homens, tal qual a comunidade de os porcos-espinhos que num dia frio de inverno se juntaram uns aos outros para se proteger do congelamento através do calor recíproco, mas que ao sentir os espinhos novamente se afastaram até descobrir uma distância intermediária para aguentar melhor a situação, (Freud, 1921/2020c, p. 174, n.1), precisam aprender a viver juntos separadamente.

Na parábola, o frio aparece como a impossibilidade dos indivíduos vierem separados, enquanto os espinhos representam a impossibilidade de viverem em simbiose uns com os outros. Eis, então, a dimensão estrutural do conceito que estamos examinando. Uma boa distância é a base da diferenciação entre o eu e o outro. Distinção igualmente imprescindível entre os “nós” e o “eles”, pois trata-se de uma diferenciação que tem como função resguardar o narcisismo da unidade social (Reino & Endo, 2011). Em função disso é possível reconhecer nas injúrias, antipatias expressas através de chiste, por exemplo, e nas aversões dirigidas aos outros próximos, um narcisismo empenhado na afirmação de afirmação de si. Percebe-se nessas expressões “uma cômoda e relativamente inócua satisfação da agressividade, através da qual é facilitada a coesão entre os membros de uma comunidade” (Freud, 1930/2020, p. 367).

Entretanto, há um encaminhamento do narcisismo na unidade social que se forma e se sustenta tendo por causa a diferença e, paradoxalmente, sua permanente exclusão. Esse é o ponto em que a massa fascista que Freud viu nascer sob a égide da pulsão de destruição, opera uma “macabra manobra” na função dos espinhos de impedir a fusão. No lugar de manter a distância necessária entre as diferentes comunidades, a ideologia ou o Eu ideal da massa, se encarrega de transformá-los em armas contra o inimigo objetivo, usando aqui as palavras de Arendt (2013). Dentro desse quadro, o estado anímico da massa - a idealização e identificação - oferece aos indivíduos razão para destruir os marginalizados a quem, pela própria condição de excluídos destina-se o ódio que a pulsão de morte dá vazão.

Nesse sentido, o que Freud agrega ao conceito de narcisismo das pequenas diferenças em O mal-estar na cultura, diz respeito ao que está reservado ao outro da diferença sob a mira da pulsão de morte. Nos termos desse destino, lemos nessa obra: “mesmo onde a [pulsão de destruição] surge sem propósito sexual, incluindo a mais cega fúria de destruição, não podemos ignorar que a sua satisfação está conectada a um gozo [Genuβ] narcísico extraordinariamente elevado, pelo fato de essa satisfação mostrar ao Eu a realização de seus antigos desejos de onipotência. (Freud, 1930/2020, p. 374). Essa passagem é importante: Freud retoma o conceito de narcisismo das pequenas diferenças e, numa nova torção, faz entender que as “pequenas diferenças é um mero pretexto para o exercício da destrutividade” (Endo, 2011 p. 24). E toda a parcela da pulsão de morte que esteja desligada da pulsão de vida, revela que a agressão é uma disposição pulsional originária, autônoma do ser humano que se põe como obstáculo à cultura.

Trata-se, portanto, da fruição de um gozo, supostamente recalcado ao longo do processo civilizatório, segundo o mito de Totem e Tabu (1913), mas condenado à repetição. E assim, a Civilização sela sua aliança com a Barbárie. E esse gozo está definido no próprio texto sobre o mal-estar na cultura, de acordo à leitura de Jacques Lacan, como “um mal porque comporta um mal ao próximo. E isso tem nome - é o que se chama além do princípio do prazer”. (Lacan, 1959/1991, p. 225). Justamente, esse real pulsional não passível de simbolizar, ou que “não cessa de não se escrever”, aparece em certas figuras de barbárie que acusam a presença do sadismo “em toda a sua crueldade sobre o outro, revelando a fúria agressiva, o gozo narcísico do exercício de um poder” (Vidal, 2022, p. 45) - racismo, genocídio, extermínio, homofobia, feminicídio, etc...

Chegamos, assim, ao cerne da questão que nos propomos desenvolver: o racismo que levou da adoção da Solução Final, o genocídio programado da população judaica, o alterocídio, a demarcação radical do outro como um dessemelhante, tal como ocorreu e ainda ocorre em relação ao negro, ao indígena e outras etnias e grupos sociais, que ao igual leva ao extermínio e ao genocídio, são fenômenos que transcendem o narcisismo das pequenas diferenças que Freud deriva do tabu de isolamento. A rigor, um tabu se sedimenta sob a condição de uma ambivalência originária dado que se institui lá onde se teme um perigo, daí a sensação de estranheza diante de nossas próprias moções internas de hostilidade (Freud, 1918/2016, p. 164-165). A ambivalência descrita no mito de Totem e tabu desemboca nas primeiras divindades restauradoras do ancestral animal morto e nos tabus que constituem a cultura. No genocídio e no alterocídio, lá onde o ódio emerge em estado bruto, sem o menor resquício de ambivalência, não cabe a existência de qualquer tabu. É preciso indagar os modos pelos quais a relação entre os falantes se assenta no gozo mortífero.

A rigor, é impossível pensar e refletir sobre racismo, à luz da teoria psicanalítica, sem nos servir da tese freudiana, exposta em Psicologia das massas análise do Eu (1921) de que sendo o humano um animal da horda, a linguagem é o que promove a coesão identificatória das massas. mantém os indivíduos unidos. Ou seja, “a linguagem deveria sua importância à aptidão que ela tem de assegurar o entendimento recíproco no rebanho; nela estaria em grande parte fundamentada a identificação dos indivíduos uns com os outros” (Freud, 1921/2016, p.79). Num ponto Freud concordava com o seu principal interlocutor quando da escrita do texto de 1921: Gustave Le Bon: “a massa está submetida ao poder realmente mágico das palavras que podem provocar na alma [dos indivíduos] as mais terríveis tormentas e também podem apaziguá-las” (Le Bon, 1895, p. 149). Ciente da influência e do poder das palavras, Le Bon tinha uma teoria de que seria preciso apenas saber manejá-las de acordo o sentido que cada uma delas estaria sendo usada, pois “as palavras, tal como as ideias, são vivas” (Le Bon, 1895 p. 101). Ou seja, o líder deveria “escolher bem os termos [da narrativa ideológica] para fazer com que fossem aceitas as coisas mais odiosas” (Le Bon, 1895, p. 102); tese que o sociólogo justifica elencando como exemplo algumas ações de déspotas que, ao longo da história, haviam invocado o manejo de palavras populares de modo a conduzir a multidão unida. Em termos da história política do século XX, as ideias do sociólogo inspiraram o desempenho de líderes como Adolf Hitler, entres outros. De fato, é possível notar em Mein Kampf tal influência pois o autor, insiste na necessidade de o Partido Nacional Socialista adotar a palavra como estratégia de convencimento da massa, desde que “fosse possível contar com um exército de demagogos em alto estilo para influenciar, através da oratória, a luta contra o inimigo” (Hitler, p. 296). A proximidade do ponto em que a linguagem toca a verdadeira alavanca do projeto político de implementação nazifascista do ódio ao outro, aparece na seguinte afirmativa: “a palavra falada, por motivos psicológicos, é a única força capaz de provocar grandes revoluções” (p. 293). À posteriori sabemos o quanto o Führer se serviu do poder da oratória no campo político de forma a implementar a insurreição das massas contra indivíduos que não cabiam dentro da definição identitária de “raça pura”.

Linguagens do Ódio: Nazismo, Racismo e Colonização

“A linguagem é mais do que sangue”. Essa frase cunhada pelo filósofo Franz Rosenzweig consta na epígrafe do livro LTI - a Linguagem do Terceiro Reich do filólogo Klemperer (2009). Ela resume o sentido desse livro que ilumina, com cores fortes, o modo como a língua foi se tornando um instrumento de identificação, manipulação e aliciamento do povo alemão aos valores e visões de mundo ultra-nacionalistas e xenofóbicas, todas elas condizentes com a ideologia que movia os nazifascistas: o racismo. A adulteração da linguagem foi a peça mais importante à reformatação da identidade alemã, segundo o mito da raça pura e nobre, o mito ariano. Por exemplo, foi preciso perverter o significante judeu, degradando-o a tal ponto que o Judeu foi reduzido a um vírus portador de infecção. O significante judeu ficou reduzido a um ser intricadamente patológico, transmissor de diversas doenças e sexualmente degenerados. (Gilman, 1994, p. 20). O programa político da Alemanha nazista foi mais além da manipulação dos significantes mestres, ao recorrer a prática de instalar o estado de isolamento e clausura impedindo a presença da alteridade da linguagem. Assim se impôs o “idioma” da barbárie que viabilizou, de mãos dadas com a ciência de ponta do início do século XX, o genocídio de homossexuais, ciganos, judeus e doentes mentais.

A linguagem colonialista, também teve efeitos devastadores sob as populações negras colonizadas e escravizadas. Franz Fanon, psiquiatra e filósofo político marxista autor de “Peles negras, máscaras brancas” (Fanon, 2020), mostrou de que modo essa linguagem operou a desumanização do negro com vistas a sua exploração e dominação. Entende-se, então, que aquilo que se encontra em jogo na política racista é a criação de um objeto demonizado que se subjuga, segrega e extermina.

Sobre isso, os teóricos da teorias pós-colonialistas e anticolonial sustentam que o discurso hegemônico que se impõem sobre os povos colonizados, tem o poder de transformar a barbárie em algo invisível. Por exemplo, o racismo ao longo dos séculos, segundo o próprio Fanon, foi institucionalizado por uma “constelação de dados, uma série de proposições que, lentamente, insidiosamente, por intermédio de textos literários, dos jornais, da educação, dos livros escolares, dos cartazes, do cinema, do rádio, penetram um indivíduo - constituindo a visão de mundo da coletividade a que ele pertence. Nas Antilhas, essa visão de mundo é branca simplesmente porque inexiste expressão negra” (Fanon, 2020, p. 167-168). Uma análise extremamente semelhante foi exposta pelo teatrólogo e escritor Nélson Rodrigues em “Anjo Negro”. Essa obra desvela a dimensão estruturante da ideia de sub-raça atribuída ao povo negro através de um casamento interracial no qual fica evidente o repúdio de um homem negro, bem-sucedido economicamente, à sua própria pele.

De acordo com o pensamento decolonial, todo projeto de civilização europeu se configurou como um processo sanguinolento de invasão e imposição violenta da cultura europeia enquanto bastião da civilização. Para melhor apreender tal denúncia, se faz necessário separar colonização de colonialidade. Colonização é o ato em si perpetrado pelo colonizador europeu que invade, destrói, silencia, acultura e impõe a modernidade europeia como única possibilidade ou parâmetro de civilização. As impressões que as violências coloniais imprimiram no mundo foram tão fortes que as condicionantes hierárquicas estipuladas outrora pelo colonizador continuam organizando o mundo inteiro, aos mesmos moldes que àqueles impostos pela espada do colonizador. Já o significante colonialidade diz respeito à insistência dos parâmetros coloniais como formatadores sociais e políticos até mesmo após o processo de independência das colônias que têm início na década de 1960. Mas como algo assim é possível sem o uso da coerção da violência direta? Trata-se de um discurso, uma linguagem que é produzida tanto pelos opressores como reproduzida pelos oprimidos, ainda que esses últimos não tenham consciência disso.

Desde Freud, a linguagem é o elemento mediador da relação dos sujeitos com a realidade e que, aqueles elementos que permanecem fora do campo das representações, permanece isolado, coeso (Freud, 1895/1976), o que impede a realização ainda que contingente de uma identidade, simbólica ou imaginária, de si consigo mesmo. E na esteira do mestre de Viena e do estruturalismo Jacques Lacan criou um de seus mais importantes axiomas: ‘o inconsciente é estruturado como uma linguagem’ (Lacan, 1964/1985, p.27). É por isso que para o sujeito oprimido pelos efeitos da colonização é tão difícil vislumbrar um mundo para além dos parâmetros opressores. O que podemos verificar é que a dominação, além de ser algo estrutural como nos informa a psicanálise, se trata de algo linguageiro, dinâmico e que insiste em retornar. A realidade política se forma então como um espalhamento daquilo que há de mais fundamental no psiquismo humano. Desta forma, o que formata as estruturas de poder no social são reflexos das pulsões originárias, da compulsão à repetição. Esse é o mecanismo diabólico da colonialidade.

Se só apreendemos da realidade o que conseguimos nomear, quais seriam as consequências para aqueles sujeitos que não têm os elementos simbólicos alternativos aos hegemônicos - ou os tiveram usurpados pelo processo colonial - para reconhecer as faces da dominação? Nos restaria apenas reprodução automática das lógicas opressivas vigentes nas estruturas de poder? Não é isso que Fanon (2020) denuncia ao acusar a falta de referenciais para além da branquitude nas Antilhas e outras colônias?

De acordo com o ambientalista, escritor, filósofo, poeta e líder indígena Aílton Krenak, (2018) no documentário Guerras do Brasil, o descobrimento do Brasil é um mito que foi absorvido ao longo dos séculos não sem grandes consequências. Foi invasão, roubo, culturicídio, genocídio. A questão é se isso tem o potencial de se perpetuar por meio da colonialidade, quais são as consequências de não se subverter as estruturas de poder impostas pelos colonizadores aos verdadeiros e únicos donos da terra? A destruição deles? Como nos alerta em um documentário o ambientalista, escritor, filósofo, poeta e líder indígena Aílton Krenak (2018) “A falsificação ideológica que sugere que nós temos paz é para fazer a coisa continuar funcionando. Estamos em guerra. Não há paz em lugar nenhum. Estamos em guerra o tempo todo”.

Se o discurso hegemônico é o elemento linguageiro mais acessível aos sujeitos na cultura é importante entender o porquê disso, qual sua origem e como podemos resistir. Segundo os decoloniais - tais como Quijano (1992), Dussel (1993) e Grosfoguel (2008) - esse retorno dos efeitos da colonização se dá devido ao aprisionamento na matriz epistemológica europeia. Isto é, a epistemologia ocidental é vista como único parâmetro para fazer ciência. Como resultado, a ciência, e até mesmo o pensamento contra-hegemônico, podem ficar presos aos conceitos cartesianos que, tal como denunciam os autores decoloniais, são os mesmos que justificam a própria colonização. Como sair dessa teia linguageira da colonialidade e pensar em uma resistência efetiva?

Para o entendimento dos riscos que tal teia linguageira impõe, é necessário que haja descrições dos fenômenos sociais e da origem da des-razão da razão moderna. Ou seja, o porquê a razão enquanto conceito basilar parece flertar com a dominação ao longo da história. Ou ainda, o porquê a razão pode funcionar como um dispositivo capaz de denegar a falta e Alteridade.

Não problematizar tais mecanismos pode contribuir para a manutenção dos mesmos, sobretudo, quando sabemos que o Eu, isto é, o que se entende como consciência, tem sua maior parte assentada no inconsciente. Isso implica que a maior parte do Eu, tal como nos esclarece Freud é guiado por razões que o próprio Eu desconhece. Ou seja, “a mania de grandeza humana deve sofrer da pesquisa psicológica atual, que busca provar ao Eu que ele não é nem mesmo senhor de sua própria casa, mas tem de satisfazer-se com parcas notícias do que se passa inconscientemente na sua psique” (Freud, 1917/2016, p. 381).

Se a colonialidade é algo tão potente a ponto de se infiltrar nas nobres tentativas de pensar o contra-hegemônico teoriacamente, é possível também que uma política genocida seja uma das engrenagens comuns às democracias hodiernas como nos alerta o teórico político e filósofo Mbembe (2020), ao denunciar a lógica da necropolítica - o poder da morte sobre a vida -, como veremos mais adiante. Elementos como esses apontam para a ineficácia dos valores e da lei da civilização moderna no que tange à barragem das pulsões de agressividade direcionadas à Alteridade. Estamos diante de um discurso que borra o pacto de renúncia pulsional ao qual Freud (1930) se referia como o sustentáculo mais fundamental da civilização e da civilidade. Precisamos problematizar o fato de se tratar de um discurso ainda colonial e colonizador que tem sua força ancorada na formação de massas identificadas com os ideais coloniais. Tal discurso, promove o imperativo de adequação ou morte. No qual os corpos que não se adequam parecem já nascer condenados à margem e à morte política ou à destruição do próprio corpo.

Patriarcado; Branquitude; Neoliberalismo; Discurso hegemônico

Freud em O mal-estar da civilização (1930), como anunciamos mais acima, leva em conta que o sujeito vê no outro “uma tentação, de com ele se satisfazer a sua tendência à agressão, de explorar a sua força de trabalho sem compensação, de usá-lo sexualmente sem o seu consentimento, de se apropriar de seus bens, de humilhá-lo, de lhe causar dores, de martirizá-lo e matá-lo” (Freud, 1930/2020, p. 363). Seria isso socialmente estruturante? Já sabemos que sim! A descoberta freudiana, justamente, faz notar que há algo que escapa à razão e se infiltra na cultura, na modernidade, na religião, no direito e até mesmo no pensamento contra-hegemônico. Ou seja, anterior ao debate decolonial, a psicanálise já expunha questões semelhantes. O que se pode descobrir com as teorias políticas é que há sempre uma maioria que serve à elite e que as dores e demandas dessa maioria política e socialmente minorizada tendem, pelo mesmo motivo, a serem silenciadas e apagadas da história.

A matéria da dominação, como dito acima, é linguageira e o discurso que se faz hegemônico foi sendo gestado durante séculos escamoteado como moral e civilização. Seu vetor de institucionalização sempre foi a violência e a privação do reconhecimento da humanidade dos oprimidos. O discurso hegemônico tem o poder de transformar essa barbárie em algo natural e silencioso. Um exemplo disso, no que tange ao patriarcado, está no que apontou a historiadora feminista Gerda Lerner: “A subordinação sexual das mulheres foi institucionalizada nos mais antigos códigos de leis e imposta pelo poder total do Estado” (Lerner, 2020, p. 35).

Já no que tange à branquitude, no entender de Franz Fanon

Existe uma constelação de dados, uma série de proposições que, lentamente, insidiosamente, por intermédio de textos literários, dos jornais, da educação, dos livros escolares, dos cartazes, do cinema, do rádio, penetram um indivíduo - constituindo a visão de mundo da coletividade a que ele pertence. Nas Antilhas, essa visão de mundo é branca simplesmente porque inexiste expressão negra. (Fanon, 2020, pp. 167-168)

E no campo das ciências sociais, Mbembe considera o significante negro como uma construção social erigida pelo hemisfério ocidental que se outorgou direitos inalienáveis tais como: terra natal da razão, vida universal e verdade da humanidade. Só ele codificou uma gama de costumes aceitos por diferentes povos, que abrangem rituais diplomáticos, as leis de guerra, os direitos de conquista, a moral pública e as boas maneiras, as técnicas de comércio, da religião e do governo (Mbembe, 2018, p. 29).

O problema central da civilização europeia moderna de acordo com a maior parte dos autores e teorias aqui apresentados é o fato de se arrogarem como único parâmetro de civilização e imporem isso ao mundo através do projeto colonial. Tal projeto foi maquinado através da imposição de quatro eixos centrais elevados à categoria de ideais: patriarcado, branquitude, capitalismo e cristianismo. Esses ideais diluídos em uma linguagem, terão o poder de se infiltrar no psiquismo dos sujeitos colonizados ao ponto de fazerem com que eles próprios reproduzam a lógica que os oprime por estarem identificados ao opressor. Paulo Freire explicita bem o funcionamento da linguagem colonial: “[na] experiência existencial dos oprimidos, uma irresistível atração pelo opressor. (...). Na sua alienação querem, a todo custo, parecer com o opressor. Imitá-lo.” (Freire, 1987, p 31).

Esse discurso hegemônico, ainda colonial, é capaz de se infiltrar não apenas no direito, mas também na ciência e no pensamento contra-hegemônico - como vimos alertar os autores decoloniais mencionados acima. Como isso se dá? Somos advertidos disso através do conceito de colonialidade. A colonização e seus efeitos hipnóticos deslizam na história reeditados sob novas roupagens e escondem-se onde menos suspeitamos. Esses autores denunciam que enquanto insistirmos em ter a epistemologia europeia como único parâmetro para fazer ciência o feitiço colonial se perpetua junto com seus condicionamentos hierárquicos. O que chega primeiro até qualquer sujeito inserido na cultura é a imposição do discurso hegemônico, isto é, um conjunto de ideais culturais compartilhados como unanimidade e que por via de regra apenas o são por não serem problematizados. São percebidos pelos sujeitos como algo natural. A repetição significante, enquanto insistência da pulsão de morte na estrutura da linguagem, é um instrumento potente para a extensão da psicanálise a outros saberes, dentre eles a teoria política.

Logo, no início da psicanálise Freud já pôs em questão a epistemologia médica de sua época que silenciava e ejetava as histéricas da civilização. Ele notou que o sintoma delas subverte no corpo uma moral que as mutilava a partir de ideais que não conseguiam se adequar. Vemos com a psicanálise que o processo de dominação colonial se faz possível porque vai de encontro a tudo que há de mais estrutural no psiquismo humano. O primeiro ponto importante é pensar que as pulsões de domínio ou de poder são originárias, assim como as pulsões agressivas, e portanto, estruturais em todos os sujeitos. Sem distinção. Não há culturas mais ou menos elevadas e “Eros e Ananque também se tornaram os pais da cultura humana” (Freud, 1930/2016 p. 358).

Se os sujeitos se encontram chafurdados na linguagem colonial que se fez hegemônica eles ficam restritos somente aos elementos ideais que tal linguagem os impôs violentamente através do processo colonial direto. Isto é, (...) aquilo que podemos chamar de formações de ideal dos seres humanos, suas representações de uma possível perfeição da pessoa isoladamente, do povo, da humanidade inteira, e das exigências que eles apresentam em razão dessas ideias (Freud, 1930/2020, p.343). O processo colonial os rouba elementos para pensar a si próprios, deixando para isso, majoritariamente, apenas, os ideais coloniais. Davi Kopenawa, escritor, xamã e líder político yanomami, dá um testemunho contundente desse processo. “Dizia a mim mesmo: Porque não imitar os brancos e virar um deles? Eu só queria uma coisa: parecer com eles. Por isso observava-os o tempo todo em silêncio, com muita atenção. Queria assimilar tudo o que diziam e faziam” (Kopenawa, 2021, p. 283). Nesse testemunho evidencia-se a presença da violência simbólica que se institui por meio da adesão que o dominado não pode deixar de conceder ao dominante, quando ele não dispõe para pensá-la e para se pensar, ou melhor, para pensar sua relação com ele, de mais instrumentos de conhecimento que ambos têm em comum e, que não sendo mais que a forma incorporada da relação de dominação, fazem essa relação ser vista como natural; (Bourdieu, 2020, p. 64-65).

A consequência disso é a identificação dos sujeitos com o opressor e a intolerância a qualquer pessoa que traga no real do corpo - no sentido de uma menor passibilidade - o furo desse ideal. E sabemos que se o líder que inspira uma massa remete à nostalgia do pai, o que está em jogo é a questão do desamparo. De forma semelhante aos decoloniais, que apresentam expressamente a urgência da necessidade da superação dessa racionalidade e da modernidade, Freud nos dá pistas sobre elementos extremamente obscuros e ambíguos na lei - no sentido jurídico - e no discurso moderno que organizam a Europa na qual ele vivia. Segundo ele, o direito deveria deixar de ser a expressão da vontade de uma elite para que não pudesse representar uma violência para um grupo maior subjugado. “O direito da comunidade se torna então a expressão das relações desiguais de poder em seu meio, as leis serão feitas por e para os dominantes e elas concederão poucos direitos aos submetidos” (Freud, 1933/2020, p. 430).

E, de forma análoga às pautas feministas que denunciam o apoderamento do patriarcado sobre o corpo da mulher, Freud faz observar que

A exigência que a moça não traga, para o casamento com um homem, a lembrança do comércio sexual com outro homem não passa, afinal, da continuação lógica do exclusivo direito de posse sobre uma mulher, que constitui a essência da monogamia - a ampliação do monopólio do passado (...) produz-se na mulher um estado de sujeição que garante o calmo prosseguimento de posse, e que a torna capaz de resistir a novas impressões e desconhecidas tentações. (Freud, 1918/2016, pp. 365)

Outro importante ponto a destacar no contexto do diálogo entre psicanálise e teorias políticas é a elaboração de Freud em 1933 sobre as Weltanschauungen, ou cosmovisões. Tratam-se de visões por meio das quais a humanidade se organiza e que têm uma tendência totalitária por serem tidas como as portadoras absolutas da verdade. A linguagem colonial não é outra coisa senão uma cosmovisão. Se a pulsão de é estrutural em todo sujeito, é natural que cosmovisões sejam sedutoras a todos como numa tentativa de ter controle sobre o que se entende como realidade na fantasia subjetiva e sobre o Outro que pode colocá-la em risco.

Psicanálise: Uma Resistência à Colonialidade

Discursos são a matéria que engendram as cores, as vozes, os ritmos da história da humanidade. A linguagem colonial é o eixo epistemológico ocidental, é o cartesianismo, o racionalismo e o princípio de emancipação da modernidade restrito à imagem do homem branco europeu totalmente imbricados às dimensões materiais e objetivas produtos da dominação colonial. E também está contida nas entranhas da atualidade e dos seus ideais, como aponta o conceito de colonialidade.

A colonização é um empreendimento de massificação do mundo no qual o líder incorpora os ideais da civilização europeia os quais seu séquito tenta engolir desesperadamente. Autores como o sociólogo Grosfoguel (2008), Dussel (1993), um dos mais expressivos filósofos da libertação da América Latina e Quijano (1992), sociólogo que cunhou o conceito de colonialidade de poder, colocaram em questão a epistemologia que mais se recorre para fazer ciência e até mesmo construir um pensamento contra-hegemônico: o eixo epistemológico europeu. Como é possível dispor de elementos que questionem os pilares hegemônicos se buscamos esses elementos ainda no seio epistêmico do próprio pensamento hegemônico? Isso, que é ação da colonialidade, torna possível que as mesmas condicionantes hierárquicas impostas durante a colonização continuem organizando o mundo e as sociedades segundo a sua lógica; isto é, subalternizando, marginalizando e silenciando tudo a todos que não são ou não se adequam às condicionantes culturais coloniais.

É preciso pensar de onde vem o esteio do pensamento contra-hegemônico. Quem fala? De onde fala? Quando fala? Qual é a epistemologia que fundamenta sua fala? Qual seu gênero, etnia, classe social, qual corpo tem? A proposta decolonial é objetiva, para que possamos dar um basta no caráter de condicionamento e adequação contínuos da colonialidade é importante que os subalternizados tenham um lugar de fala reconhecido, isto é, que as epistemologias subalternizadas tenham lugar como um ponto de partida para fazer ciência para além do eixo epistemológico europeu. Isso também põe em movimento e reconfigura a parte material da dominação.

Afinal de contas impor a epistemologia europeia como a única possível também é uma forma de dominação e recolonização a qual outros autores não puderam se dar conta. A ciência também pode tornar, portanto, os ideais europeus como estruturantes da sociedade. Mas como isso poderia conectar-se com a psicanálise?

Todos nós somos colonizados! Não existe meio termo quanto isso. Não existe sujeito que entre na cultura sem que antes seja colonizado pela figura materna que, por sua vez, por estar inserida na cultura, será totalmente atravessada pelo discurso que é hegemônico. E, assim, é esse discurso que não apenas será transmitido ao pequeno sujeito, como também será a linha que costurará seu Eu e seu Ideal-de-Eu. A principal implicação disso é que o complexo do Outro [Nebenmensch], trabalhado por Freud desde seu texto O projeto de uma psicologia científica (1895) é o protótipo da colonização na cultura tal como a conhecemos na modernidade. Da primeira experiência de satisfação do pequeno ser algo é para frente perdido colocando o sujeito em uma incessante busca de satisfação pulsional fadada a ser parcial. É nesse objeto perdido que reside a condenação sujeito a busca pelo poder. Algo prometido pelo discurso hegemônico. É esse Outro superpotente e onipresente que vem em socorro do sujeito. Entretanto ao mesmo tempo que a salva tem o potencial de destruí-lo. O desamparo ata o pequeno sujeito à superpotência da alteridade desde o início, a qual será tecida por fios de mal-estar exatamente por essa ambiguidade que o Outro traz em si. Isso faz com que a relação com a alteridade seja, por definição, traumática.

Tal questão, juntamente ao conceito de colonialidade, talvez possa explicar sobre como algo que aconteceu há séculos atrás ainda continua potente o suficiente para condicionar os sujeitos e manter uma miríade de sociedades de acordo com os valores modernos do colonizador europeu. A cada novo sujeito inserido na linguagem por um Outro há, potencialmente, uma nova transmissão do discurso que se impõe na cultura como hegemônico, o que, por sua vez, garante sua reprodução com novas facetas por meio de cada subjetividade que atravessa.

De saída, elementos do desejo desse Outro serão transmitidos ao pequeno sujeito através dos significantes desse Outro aos quais, por sua vez, não descendem da cultura na qual o Outro se insere, sobretudo, o que há de mais hegemônico nela. Nas palavras de Lacan: “o inconsciente é a parte do discurso concreto, como transindividual, que falta à disposição do sujeito para restabelecer a continuidade de seu discurso consciente” (Lacan, 1953/1998, p. 260). É daquela primeira interpretação do choro do pequeno sujeito pela figura materna que este passa, não apenas a ser inserido na linguagem, como também a ser enquadrado nas regras e ideais sociais na cultura que o Outro que vem em seu socorro se insere - e possivelmente tentou se adequar - antes disso. As chances maiores são que essas regras e ideais partam justamente do discurso hegemônico, no caso, herdeiro da colonização europeia.

Sendo assim, se o discurso hegemônico, é patriarcal, branco, burguês-elitista e cristão, não há sujeito que escape totalmente da condição de ser também misógino, racista, elitista e moralista a partir de premissas cristãs em algum nível. Não reconhecer isso seria corroborar com a reprodução do próprio discurso hegemônico, como nos alertam também os decoloniais - e a própria psicanálise. Tal discurso dará forma e será, pois, transmitido no laço com esse Outro que ocupa a posição de ideal. Por isso, é no mínimo inviável separar o individual do coletivo no que tange à busca de pistas sobre a origem da dominação da alteridade na história; ambos são duas faces da mesma moeda. “Na vida psíquica individual, o Outro é via de regra considerado enquanto modelo, objeto, auxiliador e adversário, e, portanto, a psicologia individual é também, desde o início, psicologia social, num sentido mais ampliado, mas inteiramente justificado” (Freud, 1921/2016, p 14).

Voltemos ao livro A crítica da razão negra no qual somos levados a percorrer ao longo de uma reflexão erudita, à denúncia de que a razão branca se tornou pura barbárie, através dos dispositivos de escravização e da colonização dos povos africanos. O negro é apresentado por Mbembe como uma construção social marcada pela castração e subalternidade. O termo necropolítica, cunhado pelo autor designa, portanto, a capacidade do Estado moderno tem de manter suspensas o compêndio de regras protetivas à dignidade humana nas quais se baseiam o estado democrático de direito como se houvesse um contínuo estado de sítio combinado a poderes capaz de exacerbar seus poderes contra os indivíduos.

Trata-se de um exercício de eliminação do outro, tal qual vimos acontecer durante a Segunda Guerra Mundial. A aliança entre civilização e barbárie que transformou cadáveres em sabão, acusa o gozo preponderante no genocídio orquestrado pelo Estado moderno. Eis aí a novidade que a psicanálise tem a oferecer aos estudos políticos e a outros discursos, já que sua análise do laço social parte do narcisismo das pequenas diferenças que constituem o alvo da ação do jogo pulsional ambivalente até chegar no ponto no qual o gozo narcísico se assenta no barulho ensurdecedor da pulsão muda, a pulsão de morte.

Na atualidade, a catástrofe do racismo no Brasil atinge também à população indígena dando sequência ao que teve início no século XVI. Além do sofrimento que lhe foi imposto pela manipulação da língua portuguesa, em especial as expressões negativas que levaram à segregação sistemática dos indígenas o discurso capitalista transformado, como mostrou Walter Benjamim, numa verdadeira religião, empreende uma guerra santa em nome da extração de ouro, minerais, etc.… na intenção de “modernizá-los”. O genocídio dos Yanomami do qual tomamos conhecimento recentemente através de fotografias, acusa a intolerável crueldade que em suas múltiplas figurações revela, de acordo com Freud, o caráter inexpugnável da inclinação inata do ser humano ao “mal, a agressão e à destruição”. O que nos leva a indagar minuciosamente sobre a reatualização do incentivo ao gozo sem limite pelo homem branco europeu que aqui chegou, dando mostras que na atualidade as fotografias desvelam o gozo narcísico do Estado brasileiro em dar continuidade ao processo colonial de dominar os povos originários. Não por acaso muitos de nós associamos as imagens dos yanomamis aos campos de extermínio que o Estado Alemão criou.

Mais uma vez a voz de David Kopenawa, denuncia o gozo desenfreado da devastação, projetada na natureza: “as características monstruosas da civilização ocidental, prevendo, “um futuro funesto para o planeta”: a maioria não indígena, os brancos, vivem “em altas e cintilantes casas de pedra amontoadas sobre um chão nu e estéril”. São “assombrados por um desejo sem limites - sonha[m] com suas mercadorias venenosas e suas vãs palavras”. “Quando a floresta acabar e as entranhas da terra tiverem sido destroçadas pelas máquinas de minério, (...) o céu desabará sobre os viventes”. Essas palavras proféticas do xamã, junto às fotografias do povo Yanomami que acusam o sadismo mortífero exercido pelo outro no corpo indígena, nos impõe a questão sobre onde está o Brasil nesse momento? E de imediato me vem a resposta: Ali, na Amazonia, no corpo de cada criança morta infectada pelo mercúrio depositado no leito do Rio responsável pela falta de alimentos saudáveis que a floresta incendiada deixou de produzir. Eis porque o assassinato de uma só criança é signo de um genocídio. O que nessa morte se revela é a interrupção da cadeia transgeracional da transmissão da herança cultural que cada uma delas, segundo Freud, deveria conquistar.

No que tange à essa tragédia, é necessário reconhecer plenamente, como condição preliminar, que a ofensiva final do Estado brasileiro contra os povos indígenas, se nos horroriza é porque cada um de nós desenvolveu uma aversão ética e estética capaz de nos reorientar ao mais além do ideal de erradicar o mal e nos afastar da ilusão da construção de um mundo sem violência e ódio. Retomando as principais diretrizes da Carta de Freud a Einstein (1933), é possível dizer que indignar-se contra o racismo significa simplesmente que para nós, antirracistas, trata-se de uma intolerância constitucional, de uma idiossincrasia. Sentimentos que convergem para o ato de indagar minuciosamente do que se trata a barbárie.

Considerações Finais

Por fim, evoquemos uma das últimas advertências de Primo Levi em Afogados e Sobreviventes livro no qual adverte que diversos sinais remetem à uma genealogia da violência pós-guerra como herdeira daquela que reinou sob as ordens do “histrião - Adolph Hitler. Aconteceu, logo pode acontecer de novo” (Levi, 1984, p. 164). “A história se repete pela primeira vez como tragédia, e a segunda como farsa” (Marx ,1852/2020 p. 25); mas nem por isso menos trágica. “Só esperar um novo histrião” (Levi, 1984, 164). Diante dessas clareza de Levi nos sentimos autorizadas a parodiá-lo em base aos estudos decoloniais: “Diversos sinais remetem a uma genealogia da violência atual, herdeira daquela que reinou nas colônias escravocratas e que permanece se propagando na colonialidade.”

Essas advertências, cabe a nós psicanalistas mantê-las em aberto, uma vez que se em nossos dias assistimos o aumento vertiginoso, mesmo em Estados democratas, da institucionalização das linguagens do ódio e exercício da crueldade. Isso significa que devemos estar mais do que nunca dispostos a levar adiante a função da psicanálise de despertar através do diálogo com o discurso decolonial e outros discursos contrahegemônicos para as consequências dos comandos linguageiros, injunções ferozes e obscenos do Supereu, de destruir o outro.

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Recebido: 14 de Maio de 2023; Revisado: 12 de Agosto de 2023; Aceito: 31 de Agosto de 2023

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