Arquivos Brasileiros de Psicologia
ISSN 1809-5267
ARTIGOS
Matéria pensante - a fertilidade do encontro entre psicanálise e neurociência
Thinking matter - the fertility of the encounter between psychoanalysis and neuroscience
Monah Winograd
PUC-Rio. Departamento de Psicologia. Grupo de pesquisa Matéria Pensante
RESUMO
Psicanálise e neurociência: apesar da recusa de alguns, o diálogo entre estes dois campos vem se desenvolvendo de modo bastante fértil. Nosso objetivo é apontar os novos fatos científicos que estimulam a interlocução, bem como ilustrar a possibilidade do encontro por meio do relato de pesquisas já realizadas. Com isso, pretendemos fazer ver as novas possibilidades abertas pelas contribuições entre os dois campos, bem como estimular seu desdobramento, sem que isso implique a redução de um campo ao outro. Pelo contrário, as especificidades são mantidas, apenas o isolamento se desfaz. Com isso, ganham aqueles que, em função de seu sofrimento, precisam recorrer às "medicinas da alma".
Palavras-chave: Psicanálise; Neurociência; Cérebro; Pensamento.
ABSTRACT
Psychoanalysis and neuroscience: in spite of the refusal of some scholars, the dialogue between these two fields is developing in a fertile manner. Our objective is to highlight new facts that stimulate this dialogue and to illustrate the possibility of this encounter by examining current research on this issue. In doing so, we intend to examine new possibilities opened by the the contributions put forth by both fields and examine their unfoldings without reducing each field to the other. On the contrary, their specificities are to be maintained while the respective isolation of each field is called into question. The beneficiaries of this move are those who find the need to turn to "medicines of the mind" due to their suffering.
Keywords: Psychoanalysis; Neuroscience; Brain; Thought.
INTRODUÇÃO
Ultimamente, a neurociência vem suscitando um interesse crescente no mundo científico e fora dele. Isto não acontece por acaso, pois para uma sociedade presa na eficácia, uma sociedade que funda suas tecnologias sobre as ciências, nada parece impossível. O homem acredita dominar cada vez mais a natureza. Mas será ele também mestre de si mesmo? Temos razões para duvidar disso. Nos últimos anos, o ser humano tem estado muito engajado em conhecer melhor como sua mente funciona. O empreendimento não é novo, uma vez que define, por exemplo, a psicanálise. Contudo, o desenvolvimento da neurociência que testemunhamos atualmente lhe dá novos contornos e suscita algumas problematizações novas e outras antigas.
Este desenvolvimento das ciências do cérebro foi marcado, por alguns de seus participantes, por um tom um pouco messiânico acompanhado pela rejeição desdenhosa de considerações tidas como "não científicas" e que concernem às noções psicanalíticas de afeto, pulsão, fantasia, enfim, tudo o que faz a vida dos homens e das mulheres de carne e osso. é uma questão puramente de funcionamento biológico, dizem-nos os discursos biologizante e naturalizante. O inconsciente foi tido como teorização não aceitável: ele seria nada mais do que uma ignorância provisória, não havendo nada como processos ativos de rejeição de uma grande parte da vida psíquica sob o efeito do recalque, como pretendem os psicanalistas. Também a paixão foi rejeitada como pitoresca, esta mesma paixão que marca de modo caricatural alguns destes discursos cujo estilo desmente o objeto. é curioso ver alguns cientistas sustentarem, com tanta paixão, que a paixão não tem importância científica. Assistimos também, nas versões extremas destas correntes de pensamento, a um espantoso ressurgimento, em trajes modernos, de filosofias que acreditávamos em desuso. Será o triunfo do homem-máquina?
Não completamente. Em quais condições, com quais ilusões, por quanto tempo se daria tal triunfo? São questões que a psicanálise pode e deve propor e que também surgem dentro do próprio campo destas ciências novas, por autores como Edelman (1992; 2000) ou Varela, Thompson & Rosch (1991/2003), em uma perspectiva séria de abertura, sem indulgência, mas também sem sectarismo. O exame de tais questões supõe que, diante das ingenuidades filosóficas dos cantadores do homem-máquina, evitemos nos restringir: a ciência não se reduz ao cientificismo.
Parece urgente uma pesquisa que, com criatividade e abertura crítica e séria, possa investigar tanto o novo campo formado, quanto os efeitos deste movimento internamente à psicanálise. Nem a psicanálise pode mais manter sua "belle indifference" relativamente à neurociência, nem esta pode mais seguir afirmando que a psicanálise deve ser descartada por ser uma teoria ficcional, fruto da imaginação fértil de um positivista excêntrico que abandonou a via tradicional da experimentação confiável cientificamente.
Eu sou meu corpo: um ponto de convergência
"é o sangue que faz com que nós pensemos, ou bem o ar, ou o fogo? Ou bem não é nenhuma destas coisas, mas antes o cérebro...?", já se perguntava Platão no Fédon (1999). Sem querer remontar até os pensadores da Antiguidade, é certo que nosso interesse pelas ciências do cérebro - a neurociência - não data de hoje. Desde a segunda metade do século XIX, época do nascimento da neurologia "verdadeiramente científica", encantamo-nos por este domínio. Materialistas e espiritualistas atormentaram-se com a questão da relação entre corpo e espírito, bem como com a questão da unidade ou pluralidade do eu, ou com o conceito de localização cerebral. Neste contexto, apareceram: o famoso Matéria e memória, de Henri Bérgson (1897), em Paris; os Princípios de psicologia, de William James (1890), em Nova Iorque; Interpretação das afasias, de Sigmund Freud (1891), em Viena, seguido pelo marcante A interpretação dos sonhos (FREUD, 1900).
Mais tarde, nossa atenção para com as ciências do cérebro enfraqueceu nitidamente, mesmo se, nos primeiros decênios do século XX, tenham sobrevindo ainda - impulsionados pelos adeptos da teoria da Gestalt - debates animados em torno da questão das localizações cerebrais. De qualquer modo, para a maioria dos intelectuais do início do século passado, os cientistas tornaram-se uma corja tão estranha quanto os teólogos, como afirmou Rorty (1979/1994) em seu A filosofia e o espelho da natureza.
Em nossos dias, não é mais assim. Ao contrário, um entusiasmo notável renasceu para as ciências do cérebro. Nos Estados Unidos em particular, a neurociência - da mesma forma que disciplinas vizinhas como a psicologia cognitiva e a inteligência artificial - cativa cada vez mais pensadores. Do mesmo modo, filósofos americanos como Patrícia e Paul Churchland encorajam seus pares a se iniciar em neurociência. Alguns chegam mesmo a propor termos híbridos, como "neurofilosofia" (CHURCHLAND et al., 1991) ou "neuropsicanálise" (SOLMS, 1998). Outros, como Damásio (1995; 2004) e Dennett (1991; 1997), tentam criar links; entre filosofia, psiquiatria, psicologia cognitiva, inteligência artificial e neurociência.
Este fenômeno, contudo, não é exclusivo dos Estados Unidos. Nos países francófonos, um movimento similar desenhou-se. O francês André Comte-Sponville (1989), por exemplo, observou - em um artigo intitulado "O demônio de Changeux: neurociências e filosofia" - que a neurociência é importante também filosoficamente porque permite formular a questão "que sou?" em termos novos e, sobretudo, responder ou começar a responder de uma maneira mais precisa. Comte-Sponville acredita dever responder a esta pergunta sobre o que sou afirmando que a resposta que a neurociência não inventou nem provou, mas que tornou cada vez mais plausível, é a seguinte: eu sou meu corpo (do qual o cérebro é uma das partes mais importantes).
Eis aí uma opinião que não contradiria Jean-Pierre Changeux, autor de O homem neuronal (1983/1985) e um dos chefes da doutrina materialista. Também não contradiria Sigmund Freud, inventor da psicanálise, mesmo seu ponto de vista sendo menos fisicalista e operando com conceitos como inconsciente, pulsão, desejo e recalque. Apesar de seu reducionismo evidente, e mesmo por causa dele, Changeux foi um dos primeiros neurocientistas que encorajou e desafiou a psicanálise a retomar seu interesse pelas ciências do cérebro. é fato que, até bem recentemente, as teorias sobre o funcionamento do cérebro e aquelas sobre o funcionamento psíquico raramente se deram utilizando as mesmas teorias como fundamento e fonte de hipóteses. No passado, com efeito, o fosso que separava estes dois tipos de teorias era o mesmo que separava a ciência da filosofia. Entretanto, no curso do século XX, um novo corpus de conhecimentos científicos emergiu, trazendo problemas teóricos e epistemológicos tão importantes que não podem mais ser ignorados pela psicanálise.
Por outro lado, a reposta proposta por Comte-Sponville (1989) - segundo a qual a pergunta sobre o que sou deve ser respondida por uma referência explícita ao corpo - tem sido tema de investigação em psicanálise desde Freud. Por exemplo, o conceito central de pulsão (um dos mais veementemente rejeitados pela neurociência e, contudo, extremamente fértil) explicita muito bem esta idéia. Por definição, pulsão é um conceito fronteiriço entre o somático e o psíquico e demarca uma zona de indiscernibilidade entre os dois registros, corpo e psiquismo. Além disso, este termo se refere à exigência de trabalho, feita pela fonte corporal, a partir da qual o psíquico se constitui, ou em outras palavras, a mola mestra do psiquismo. Diferente da noção de instinto (entendido como um padrão inato mais ou menos fixo de comportamento), a pulsão talvez permita pensar o que nos torna humanos, nossa especificidade enquanto uma espécie cujo comportamento é tão complexo e plástico que não permite sua adjetivação como instintivo (WINOGRAD, s/d).
Outro exemplo ainda é a célebre fórmula psicanalítica segundo a qual o Eu é, antes de tudo, um eu corporal, definição tão próxima, embora distinta, das noções de proto-self, self central e self autobiográfico formuladas por Damásio (1999). Segundo os termos utilizados em por Freud (1996/1895) para a elaboração de um modelo de aparato neurônico, o investimento simultâneo (ou a ativação, em termos mais atuais) de dois ou mais neurônios vizinhos estabelece um campo neuronal que permanece ativo por algum tempo e que tende a ativar-se novamente em presença de uma nova excitação. Freud refere-se a estas integrações como "organizações", que ele chama de Eu, cada uma um pequeno eu ainda larvar, parcial, passivo que, com o desenvolvimento do aparelho psíquico, se associarão entre si e formarão o Eu central e autobiográfico. Mais adiante em sua obra, em 1923, Freud retoma a fórmula citada acima, propondo que o corpo e sua superfície fornecem dois tipos de sensações: externas (ao ser visto, por exemplo) e internas (por exemplo, ao ser tocado, além das sensações viscerais). A superposição entre os dois tipos permite a formação de uma imagem projetada deste corpo, particularmente a sua superfície, seu contorno (WINOGRAD, 1998).
Como o exemplo acima sobre a corporeidade do eu indica, os temas sobre os quais um diálogo entre psicanálise e neurociência pode se dar são múltiplos. Citemos apenas mais alguns: o problema tradicional da relação entre corpo e espírito, a questão da consciência, a noção de intencionalidade, o conceito de localização cerebral, a metodologia a adotar para um estudo dos fenômenos mentais, as relações entre inato e adquirido, o papel eventual da teoria darwinista da evolução em uma teoria do funcionamento do "espírito-cérebro", a validade das noções de "unidade do eu" ou de "unidade do espírito", entre tantos outros.
Os "novos fatos científicos" e a interdisciplinaridade necessária
Os dois últimos decênios nos forneceram "fatos científicos novos" que modificaram profundamente o estatuto das questões relativas ao psiquismo-cérebro, fazendo-o deixar de ser um mistério impenetrável. De modo geral, eles são de três ordens:
1. Produziu-se uma floração inédita de dados descrevendo o sistema nervoso. Novas técnicas neurocientíficas tornaram possíveis descrições estruturais e funcionais muito detalhadas do sistema nervoso em seus diversos níveis de organização. Isto contribuiu tanto para desfazer certas concepções errôneas sobre os mecanismos cerebrais quanto para catalisar o desenvolvimento de teorias novas e a retomada de outras antigas, como a própria psicanálise. Em psicologia experimental e em etologia, os estudos do comportamento aprofundaram nossa compreensão do que são exatamente as capacidades psicológicas, clarificando por aí os fenômenos molares para os quais a neurobiologia busca os mecanismos - aqui, cabe perguntar por que os fenômenos identificados pela psicanálise não foram até recentemente considerados como fenômenos molares dos quais a neurobiologia deveria pesquisar os fundamentos biológicos.
2. As abordagens informáticas permitindo simular redes neuronais conduziram a descobertas computacionais sobre o modo como as redes de neurônios artificiais - possuindo conexões sinápticas artificiais organizadas em paralelo - podem realizar certas tarefas complexas como a memória associativa ou o reconhecimento de padrões. Como as funções cognitivas e afetivas revelam-se propriedades de níveis de organização sistêmica - e podem, portanto, ser consideradas como propriedades emergentes -, estas abordagens prometem fazer as vezes de ponte entre neurociência, psicologia, psiquiatria e psicanálise.
3. Dados neurobiológicos relativos a questões caras aos psicanalistas, como a representação, a consciência, a percepção, a busca de prazer, a sexualidade, entre outros, começam a estar disponíveis. Os psicanalistas em geral não podem mais especular sobre estas questões ignorando estes dados. Não se trata de ajoelhar-se diante das neurociências, mas, antes, de conversar e ouvir o que elas têm a nos dizer e as informações novas que trazem, problematizando-as e a sua importação para o campo Psi. O próprio inventor da psicanálise previa ser a biologia um campo de possibilidades ilimitadas que poderia pôr por terra todo o "nosso edifício artificial de hipóteses" (FREUD, 1920: 58-59). Ele também tinha certeza de que, por exemplo, na sexualidade humana fatores químicos desempenhavam papel fundamental. Como poderia ser diferente?
Os psicanalistas tendem a admitir que os homens são particulares no sentido de que a vida mental do homem deve ser localizada para além de uma compreensão inteiramente científica, ou, pelo menos, fora da visada da neurociência (talvez seja mesmo este entendimento uma das contribuições que a psicanálise tem a oferecer à neurociência). De fato, os homens são particulares e o cérebro humano aparece como o mais complexo do planeta. Apesar de nossas capacidades notáveis, nós somos, como qualquer outro organismo, produto da seleção natural: nosso cérebro evoluiu a partir de cérebros mais simples. A evolução, como nos lembra François Jacob (1981), não procede recriando a partir do nada, mas modificando o que já existe. Ter em mente a lição darwinista é, talvez, o elemento mais importante para desfazer a abordagem psicanalítica tradicional que rejeita a neurociência como sendo fora de propósito para o entendimento de nossa natureza psíquica.
Por outro lado, não foi somente a psicanálise que rejeitou a neurociência. A recíproca foi completamente verdadeira. A partir dos anos 1950, os cientistas decidiram que, por não ter como método principal de pesquisa a experimentação controlada de laboratório, mas somente o encontro clínico no consultório, a psicanálise não fornecia hipóteses confiáveis, merecedoras de crédito. Os tratamentos medicamentosos ganharam terreno e a biologização irrestrita do entendimento das afecções psíquicas não cansou de anunciar a morte iminente da teoria construída por Freud. Na década de 1980, conceitos como "inconsciente", "ego, id e superego", "desejo", "pulsão" eram considerados falsos e obsoletos. O motivo "real" do mal-estar dos indivíduos estava em um desequilíbrio em suas substâncias neuroquímicas, de modo que os modelos freudianos do psiquismo deveriam ser totalmente descartados por serem equivocados e ultrapassados. Mais radicalmente, assistíamos a um projeto de naturalização do psiquismo denunciado ferozmente por Canguilhem (1980) e ignorado histericamente pelos psicanalistas.
No entanto, também a psicofarmacologia não foi capaz de oferecer uma teoria consistente sobre o psiquismo, sua organização e seus modos de funcionamento. Sem esse modelo, a neurociência concentrou seu trabalho em pontos específicos e, cada vez que retomava o quadro geral, dava as mãos para alguma teoria psicológica. Foi assim que, nos anos 1990, o cognitivismo reapresentou a sua face conexionista e fundiu-se, a ponto de ser mesmo confundido com as ciências do cérebro. Assim é que, no começo do século XXI, pesquisadores "neurocientíficos" como Solms (1996; 1998; 2004), Solms & Kaplan-Solms (2005), Panksepp (1985; 1998; 1999), Ramachandran (1994), Ramachandran & Blakeslee (1998/2004), entre outros, pretendem dar à teoria freudiana do funcionamento mental o lugar de modelo de interpretação dos dados que eles extraem da observação empírica "científica". "Freud está de volta!", "Vamos terminar o serviço!", eles anunciam em tom belicoso, defendendo a possibilidade e a necessidade de composição de grupos interdisciplinares que reúnem campos nem tão distantes nem tão contrários como psicanálise, neurociências, psicologia, psiquiatria etc. (SOLMS, 2004; SOLMS & KAPLAN-SOLMS, 2005). A verdadeira palavra de ordem é "interdisciplinaridade"!
Psicanálise e neurociência: confirmando hipóteses
Neste espírito interdisciplinar, tais pesquisadores pretendem desenvolver o que eles chamam de "novos parâmetros intelectuais", dentro dos quais a teoria sobre a organização cerebral desenhada por Freud não só deve ser o modelo, como deve e pode ser enriquecida por novidades extraídas a partir da experimentação neurocientífica. Repetindo a conduta inicial do próprio Freud, mas agora tendo a tecnologia ao seu dispor, estes pesquisadores afirmam ter, entre outras coisas, confirmado cientificamente a existência e o papel essencial dos processos psíquicos inconscientes. O exemplo é a verificação de que o comportamento de pacientes incapazes de lembrar de acontecimentos passados por causa de lesões em estruturas cerebrais responsáveis pelo armazenamento de memória é claramente influenciado pelos fatos "esquecidos". Os neurocientistas cognitivos explicam casos assim por meio da hipótese de que a memória seria formada por alguns sistemas mnêmicos diferentes que processam a informação "explicitamente" (conscientemente) ou "implicitamente" (inconscientemente). Nem é preciso dizer que os modelos de aparelho psíquico desenhados por Freud, incluindo aí o modelo neurônico de 1895 (FREUD, 1996/1895), eram formados por sistemas de memória diferentes, nos quais ocorriam processos que poderiam ou não vir a tornar-se conscientes. Neste caso, qualquer semelhança será mera coincidência? (SOLMS, 2004; SOLMS & KAPLAN-SOLMS, 2005).
Outro exemplo é a identificação, na terminologia neurocientífica, de sistemas de memória que controlam o aprendizado emocional. Em 1996, na Universidade de Nova Iorque, LeDoux et al. (1996) demonstraram a existência, sob o córtex consciente, de uma via neuronal que conecta informações perceptivas com estruturas primitivas do cérebro responsáveis pela geração de reações de medo. Atravessando o hipocampo - gerador de memórias conscientes -, esta via parece estar envolvida no desencadeamento de lembranças carregadas de afeto a partir de percepções atuais, provocando sensações aparentemente irrefletidas como uma sensação estranha ao ver homens de barba, por exemplo.
Ainda outra "descoberta" científica bastante representativa da possibilidade de pelo menos uma interlocução entre psicanálise e neurociência foi divulgada pelo caderno Mais! da Folha de S. Paulo de 2/6/2004. Com o título de "A chave da memória", a matéria apresentava as conclusões das pesquisas de um grupo de cientistas do Massachusetts Institute of Technology (MIT). O grupo liderado pelo biólogo japonês Susumu Tonegawa (TONEGAWA et al., 2004), Nobel de fisiologia em 1987, acredita ter esbarrado na chave para a consolidação das memórias. Eles encontraram uma proteína que funciona como um disjuntor nas células do cérebro, ativando uma série de reações fundamentais para estabelecer a memória de longo prazo. Tal proteína, conhecida pela sigla MAPK, pertence ao grupo das quinases, uma família de interruptores moleculares. O cientista e quatro colaboradores mostraram, a partir de experimentos com camundongos, que a proteína-interruptor é ligada nos neurônios toda vez que memórias de longa duração - as que definem o aprendizado -consolidam-se. A ativação acontece na vizinhança das sinapses, mais especificamente nos dendritos, modificando-as conforme o estabelecimento da memória. A associação entre os traços de memória e o seu registro de longo prazo revelam agora seu substrato material? Na base desta concepção está a idéia de que as sinapses se modificam durante a consolidação de uma memória, hipótese que Freud (1996/1895) esboçou ao falar das "facilitações" entre os neurônios, uma vez que não dispunha ainda do conceito de sinapse.
Mantendo-nos neste tema da memória, a neurociência também demonstrou que as principais estruturas do cérebro essenciais para a formação de memórias conscientes não são funcionais durante os dois primeiros anos de vida, explicando o que Freud identificou como amnésia infantil. Assim como o metapsicólogo hipotetizou, não poder trazer à luz da consciência a maior parte de nossas memórias de infância não quer dizer que elas não se tenham inscrito em nós, nem que não afetem nossos sentimentos, pensamentos e comportamentos presentes. Quem negaria que as experiências da primeira infância, sobretudo entre mãe e bebê, influenciam o padrão das conexões cerebrais e, correlativamente, o padrão de nossos atos e pensamentos. Mesmo assim, não podemos lembrar destas experiências conscientemente.
Igualmente, hoje em dia, já se acumulam estudos que pretendem oferecer sustento experimental para a hipótese freudiana do recalque. Um dos mais recentes foi anunciado na mídia como tendo revelado um mecanismo neurológico de bloqueio da memória. Em janeiro de 2004, em Washington, cientistas americanos identificaram em imagens de ressonância magnética o mecanismo biológico por meio do qual as pessoas esquecem ativamente lembranças indesejáveis (GABRIELI et al., 2004). O estudo destes cientistas da Universidade de Stanford (Califórnia) e da Universidade de Oregon pretendeu explicar casos de bloqueio de memória especialmente nas situações de abusos sexuais sofridos por crianças que não lembram deles quando se tornam adultas1. Sua existência foi percebida por meio da utilização de imagens cerebrais que mostravam os sistemas neurológicos participantes deste bloqueio.
Os cientistas afirmaram ter descoberto o mecanismo em uma complexa experiência com 24 pessoas que as fazia lembrar de nomes de coisas sem nenhuma relação entre si. Ao mesmo tempo, estas mesmas pessoas passaram por um exame de ressonância magnética (scanner) em que foi demonstrada a atividade cerebral quando tentavam esquecer de algumas das palavras. Observou-se que a lembrança de uma coisa piora quanto mais tentamos não pensar nela. Os cientistas afirmaram também ter demonstrado que o controle de lembranças não desejadas está ligado a uma maior atividade do córtex frontal esquerdo e direito, o que reduz a do hipocampo, o setor da memória. "Pela primeira vez vimos um mecanismo que poderia desempenhar um papel no esquecimento ativo", declarou John Gabrieli, professor de psicologia de Stanford e co-autor do relatório.
Sempre é bom lembrar do famoso "esquema pente", o modelo desenhado em 1900 por Freud, formado por sistemas de captura de estímulos, sistemas de registro das informações (memória-inscrição) e sistemas de conexão da informação (memória-articulada) conhecidos como inconsciente e pré-consciente/consciente. Por meio deste modelo, podemos visualizar que a maior parte de nossa atividade psíquica ocorre fora do sistema pré-consciente, sendo, portanto, inconsciente. Tal atividade de produção de pensamento desejante é regida por princípios diferentes do Princípio de Realidade que organiza boa parte da atividade egóica consciente. Levando isso em consideração, alguns neurocientistas desenvolveram a hipótese de que danos em estruturas inibidoras do cérebro permitiriam a emergência de formas "irracionais" das funções psíquicas. O campo de estudo foram pacientes com danos na região límbica frontal que controla alguns aspectos da autoconsciência. Eles apresentavam uma síndrome conhecida como psicose de Korsakoff: não percebem que têm amnésia e preenchem as lacunas da memória com invenções, construindo a realidade como desejam que ela seja. Conclusões de pesquisas semelhantes alegam basicamente que danos na região límbica frontal que produzem estas confabulações prejudicam os mecanismos de controle cognitivo - base da monitoração normal da realidade -, intensificando a influência do desejo na percepção, na memória e no julgamento. Enfim, poderíamos citar outros tantos exemplos como esses (ver Referências Bibliográficas a seguir). Freud não veria motivos para antagonismos entre psicanálise e neurociência, nem entre psicanálise e cognitivismo.
No livro A mente incorporada (1991/2003), Varela, Thompson & Rosch nos lembram que Freud foi o primeiro cognitivista, tendo freqüentado o curso de Brentano em Viena, e tendo endossado integralmente a visão representacional e intencional do psiquismo. Segundo os autores, para Freud, somente o que fosse mediado por uma representação, mesmo no caso da pulsão, poderia afetar o comportamento ou, nos termos estritamente freudianos, fazer-se representar no psiquismo. Embora discutível, tal afirmação expressa o esforço de diálogo entre os saberes em jogo.
Além disso, as descrições feitas por Freud das estruturas e dos processos mentais são tão gerais e metafóricas que se mostraram passíveis de tradução, com graus discutíveis de perda de sentido, para uma linguagem de outra teoria psicológica. é o caso, por exemplo, da tradução feita por Erdelyi (1995) para a linguagem de processamento de informações com base cognitivista, placidamente aceita. O conceito freudiano de recalque/censura tornou-se, em termos cognitivos, o emparelhamento de informações a partir de uma percepção ou idéia para um nível do padrão do julgamento de quantidades de ansiedade aceitáveis: se está acima do padrão de julgamento, a idéia vai para uma caixa que impede o processamento/acesso de informações, de onde é jogada de volta para o inconsciente; se abaixo do padrão de julgamento, tem permitida sua entrada no pré-consciente (VARELA, THOMPSON & ROSCH, 1991/2003).
Esta descrição acrescenta alguma coisa a Freud? Certamente, ela serve para "traduzir" noções como a de inconsciente freudiano para o que é considerado uma moeda corrente no meio científico atual. Também se pode dizer que muitos teóricos contemporâneos pós-freudianos, na Europa, como Jacques Lacan, discordariam veementemente: esta teorização não apreenderia o espírito central do empreendimento psicanalítico, qual seja, mover-se além da armadilha das representações, incluindo as representações sobre o inconsciente.
Neste sentido, ao mesmo tempo que a terminologia informacional permite que organizemos diferentemente as idéias psicanalíticas dando-lhes força, o mesmo podemos dizer das idéias cognitivistas e neurocientíficas. A psicanálise tem muito a dizer em um debate do qual os grandes beneficiários serão os que precisam recorrer ao que Ellenberger (1995) chamou de "medicinas da alma".
A estruturação do psiquismo e a clínica de pacientes neurológicos
Um excelente exemplo da produção psicanalítica atual convergente com, mas não submissa à, neurociência é o trabalho realizado por Victor Manoel de Andrade (2003) relativamente ao tema da estruturação do psiquismo. Aprofundando a noção metapsicológica de estruturas afetivas, Andrade (2003) elabora teoricamente seu prolongamento em estruturas ideativas. A definição freudiana mais básica do afeto, como Andrade explica, é ser ele "um estágio final de um fator quantitativo, de uma energia que [Freud] chamou de quota de afeto (ou soma de excitação), isto é, o elemento metapsicológico primordial" (p. 69). Em psicanálise, o afeto corresponde à descarga de energia no interior do corpo acompanhada de prazer ou desprazer conjugada à percepção da descarga. Inspirado pela teoria do marcador somático elaborada por Damásio (1995), Andrade acrescenta serem os afetos (sentimentos, na linguagem de Damásio) conseqüência de dispositivos de biorregulação formados por circuitos neurais cerebrais ativados ou inibidos em função de processos bioquímicos do corpo em interação com o ambiente. Os registros mnêmicos contíguos e sucessivos das percepções das descargas formarão as idéias ou representações que serão posteriormente mais ou menos ativas, mais ou menos intensas.
Ao tomar o afeto como ponto de partida, todo o corpo torna-se pensamento e cognição. Nas palavras de Andrade (2003: 74), estamos "na presença de um psiquismo, pode-se dizer, exclusivamente corporal". Esta remissão do psíquico ao corporal leva o autor a concluir ser a quota de afeto o elemento não variável, comum a todos os indivíduos, adquirido filogeneticamente por meio de um processo de seleção natural (genótipo). Por sua vez, a representação ou a idéia associada ao afeto é o componente variável, ontogenético, específico de cada indivíduo (fenótipo) e, portanto, dependente da história das vivências afetivas experimentadas com os objetos.
Outro exemplo, mais clínico, é o trabalho que vem sendo realizado na França por Hélène Oppenheim-Gluckman (s/d; 2000) e seu grupo. Dedicando-se a atender pacientes que sofreram lesões cerebrais, eles trazem o problema da cognição para o centro da pesquisa em psicanálise, ao mesmo tempo que sublinham a questão da experiência subjetiva para a clínica neurológica. Para esta autora, o traumatismo craniano e, conseqüentemente, qualquer lesão neurológica, incluindo as degenerativas, são experiências existenciais que transformam o paciente e todos que o cercam. São completamente modificados a identidade subjetiva, seus aspectos narcísicos e a relação do sujeito consigo mesmo e com o mundo, gerando um sofrimento psíquico nem sempre passível de verbalização adequada, até mesmo por conta das lesões sofridas. A partir disso, este grupo estuda também as relações entre processos cognitivos e economia psíquica, já que às lesões neurológicas se associam problemas cognitivos que podem afetar o senso de reconhecimento de si, do próprio corpo, da fisionomia dos familiares, da memória autobiográfica (WINOGRAD, SOLLERO-DE-CAMPOS & LANDEIRA-FERNANDEZ, no prelo).
Evidentemente, a psicopatologia psicanalítica e a neurociência cognitiva têm referências e modos de abordagem totalmente diferentes. Se a psicanálise é uma prática centrada na transferência e na causalidade psíquica inconsciente, a neurociência cognitiva situa-se do lado de uma causalidade científica apoiada no método experimental. Contudo, a clínica de pacientes neurológicos com problemas cognitivos faz com que a psicopatologia psicanalítica tenha relação, entre outras coisas, com o problema da cognição, uma vez que os distúrbios cognitivos atingem o sujeito em suas sensações de identidade e de existência sustentadas pela memória, pela imagem do corpo, pelo esquema corporal, pela relação com o espaço e a temporalidade, bem como pela continuidade da relação com o outro e pelos processos de reconhecimento de si e do outro. Em outras palavras, a cognição parece ter uma função de apoio interno para o sujeito, permitindo-lhe integrar em seu espaço psíquico as representações de si e do mundo. Neste sentido, pode-se supor que danos cognitivos induzam a uma desestabilização do chamado "narcisismo primordial" ou "sensação de mesmidade do ser". Em uma referência a Winnicott, os distúrbios cognitivos põem o "self" em perigo, uma vez que o sentimento de integridade se apoiaria no desenvolvimento de um "eu integrado", abalado, por exemplo, por distúrbios neurológicos envolvendo a memória ou a noção de tempo do sujeito (SOLLERO-DE-CAMPOS & WINOGRAD, 2005).
Todos esses elementos exigem a formulação de questões fronteiriças entre os campo da psicanálise e da neurociência cognitiva, tais como: danos à cognição facilitariam a atenuação dos processos de censura e de recalque? Processos cognitivos seriam necessários ao funcionamento dos processos secundários? Por meio de quais mecanismos? A resposta a estas perguntas é difícil e merece ser desdobrada internamente ao campo psicanalítico e, também, em um confronto com a neurociência por meio de um trabalho de pesquisa interdisciplinar que permita entender melhor as relações entre os mecanismos cerebrais, os processos cognitivos e a emergência do inconsciente.
O problema epistemológico
Além de todos estes pontos de convergência e de interseção, parece-nos que o estabelecimento do diálogo entre psicanálise e neurociência só será conceitual e clinicamente interessante se não implicar necessariamente na adesão da primeira ao modelo epistemológico da segunda. As possíveis confirmações científicas de hipóteses psicanalíticas expostas acima, a formulação de hipóteses testáveis empiricamente ou mesmo a produção de conceitos clínicos novos expressam a fertilidade do encontro entre psicanálise e neurociência. Acreditamos, contudo, que tal fertilidade jaz também na exigência de aprofundamento de certas questões mantidas no subterrâneo, tanto pelos neurocientistas, quanto pelos psicanalistas. O problema dos modelos epistemológicos em jogo e de sua compatibilidade é uma dessas questões a serem aprofundadas. Outra é a afirmação de que a psicanálise não é - e por isso, supostamente, deveria tornar-se - científica.
O termo "epistemologia" refere-se à natureza, às etapas e aos limites do conhecimento humano. Refere-se também ao estudo dos postulados, conclusões e métodos dos diferentes ramos de saber científico ou das teorias e práticas em geral, avaliados em sua validade cognitiva ou descritos em suas trajetórias evolutivas, seus paradigmas estruturais ou ainda suas relações com a sociedade e com a história. Neste sentido, podemos dizer que há compatibilidade entre psicanálise e neurociência? Seus postulados, métodos e conclusões permitem uma composição? Se o parentesco histórico entre estes campos de saber expressa uma compatibilidade ancestral, a validade cognitiva e os paradigmas estruturais dos postulados, conclusões e métodos de ambas não necessariamente convergem.
Não faltou quem afirmasse que, em breve, apenas alguns ingênuos fanáticos, movidos por respeito religioso pelo fundador e por interesses materiais continuariam a enganar a si mesmos, aos seus pacientes e ao público em geral com a falácia do inconsciente (MEZAN, 1994). De outro lado, também começou a aparecer quem acreditasse que, com os avanços da neurociência, enfim a psicanálise encontraria um substituto eficaz, uma vez que os resultados por ela prometidos poderiam ser obtidos de modo mais rápido e eficaz por vias "científicas".
Classicamente, a psicanálise é definida ao mesmo tempo como um método de investigação do sentido das ações e produções mentais do ser humano, uma teoria geral da mente humana baseada nos resultados destas investigações e uma forma de tratamento de algumas afecções mentais derivada de um método e de uma teoria próprios. Estes três aspectos têm sido alvo de ataques renovados: como método, a psicanálise seria pouco sólida e sem legitimidade; como teoria, seria mal construída e especulativa demais; enfim, como tratamento, seria inútil ou longa e custosa demais.
Sigmund Freud, o inventor deste método, desta teoria e desta forma de tratamento acreditava em seu caráter científico e tinha nas ciências da natureza o seu modelo. Mas o que era "científico" para ele? De saída, significava uma observação cuidadosa, em condições favoráveis, do que se pretendia explicar. Em segundo lugar, descoberta e verificação de leis universais que governam os fenômenos descritos pela observação cuidadosa. Em terceiro lugar, possibilidade de comprovação dos resultados por observadores independentes, possibilidade de correção dos conceitos e hipóteses formulados anteriormente, possibilidade de ampliar o campo das observações por meio da utilização de instrumentos mais aperfeiçoados. Freud julgava que seus procedimentos e suas teorias obedeciam a esses critérios. Sua exigência era fundar uma ciência. Tal exigência, como ensina Stengers (1993), longe de remeter para um cientificismo - marca da dimensão irremediavelmente datada de sua obra - constitui uma chave essencial para sua invenção: a "cena analítica".
Ainda segundo Stengers (1993), é vã a tentativa de procurar uma definição geral, não contextual, da diferença entre ciência e não-ciência. Um dos traços mais marcantes da atividade científica é o fato de ela levar os humanos a trabalharem em conjunto, em outras palavras, o seu caráter social. Porém, isto não deriva do fato de que a ciência destacaria enunciados objetivos, suscetíveis de por de acordo todos os que se preocupam com isso. A passagem do cientista isolado para o conjunto de cientistas não resulta de uma simples adição de indivíduos que devem verificar se cada um está conforme à sua disciplina comum. Os critérios de cientificidade ou de objetividade não preexistem às controvérsias da ciência; ao contrário, são tema importante de discussão entre os cientistas.
O problema complexo do que liga cientistas foi resolvido de modo trivial pelos que definiam a ciência por sua objetividade: o objeto, impondo-se a todos, seria a liga. Mas como os cientistas evitariam se dispersar, construindo cada um a sua própria definição? Por que aceitam o veredicto dos colegas se este não traduz nenhuma definição preexistente? O que liga os cientistas é o "interesse". Interessar no sentido de concernir a alguém.
Nenhuma proposição - dispositivo, raciocínio, hipótese - pode ser dita verdadeira se ninguém se ocupou dela, incorporou-a em seus trabalhos, permitindo que ela interviesse em sua vida, transformando-a eventualmente. Por outro lado, uma proposição que interessou e que foi aceita, articulando o trabalho de muitos, não é, evidentemente, verdadeira em sentido absoluto. Ela o é relativamente aos meios pelos quais foi provada, mas também relativamente às relações de força que prevalecem em um momento dado. Dito de outro modo, uma proposição interessante e aceita estabelece uma relação de forças, mas não é necessariamente objeto do consenso de uma comunidade que lhe preexiste. Ela cria este consenso e a comunidade que lhe corresponde.
A questão é saber como, diferentemente, por exemplo, da política, a atividade dos cientistas permite-lhes que se ponham relativamente de acordo e que façam convergir interesses disparatados. A singularidade das argumentações científicas é que elas fazem intervir um "terceiro": o "fenômeno estudado". Trata-se de fazer dos fenômenos os atores da discussão, ou seja, de fazê-los falar de uma maneira que todos os outros cientistas interessados sejam levados a reconhecer como confiável. Trata-se, com efeito, de inventar, produzir testemunhos confiáveis que não possam ser desqualificados, remetidos à subjetividade do cientista que os produziu. Pode acontecer de um testemunho ser reconhecido como definitivo, sendo, por exemplo integrado em um dispositivo de medida aceito sem maiores interrogações sobre as teorias que o pressupõem. Neste caso, como disseram Latour & Woolgar (1993), uma ciência terá conseguido constituir uma "caixa preta", ou seja, estabelecer uma relação entre o que entra e o que sai de maneira que praticamente ninguém tem os meios para contestar: são tomadas pela comunidade científica como evidências, como dados. O prestígio de uma ciência está ligado ao número de caixas que ela conseguiu fechar ou, em outros termos, à solidez da tradição que une seus membros, ao número de "fatos" que eles aceitam ativamente ao canalizarem suas pesquisas.
Certamente, este prestígio é legítimo. Mas é preciso prestar atenção, desconfiar do caráter convincente desta descrição. Indo adiante, o passo seguinte seria ratificar como normal a hierarquia atual das ciências, a diferença entre as que conseguem fechar caixas pretas - as ditas ciências duras - e as que são chamadas de ciências moles porque nenhum de seus enunciados escapa à contestação, porque não conseguem inventar testemunhos confiáveis dos quais elas seriam reconhecidas como os representantes autorizados. As ciências duras procedem separando retrospectivamente, ao final de uma controvérsia, aquilo que todos reconhecem como testemunho objetivo e aquilo que será lido e interpretado como derivada subjetiva, desqualificando de direito desde o início os que foram, na verdade, vencidos. Elas criam o direito em nome do qual o vencido deveria ser vencido. E os epistemólogos ratificam este procedimento introduzindo, por exemplo, o tema da "ruptura epistemológica" para desqualificar um pouco mais aqueles cujas proposições não interessam mais.
Um dos argumentos preferidos para isso - também no diálogo entre psicanálise e neurociência - refere-se ao método. As ciências duras fazem do método, que deriva do acontecimento, o responsável por ele e, assim, ocultam o essencial: não há garantias de que em todos os campos de saber o mesmo tipo de acontecimento se reproduzirá. Elas, as ciências duras, matam o que a noção de método dissimula: o fato de que todas as medidas não se equivalem, não criam sentido, de que toda interrogação metódica não engaja quem a conduz (STENGERS, 1993).
Em que medida o prestígio do estatuto de ciência dura não paralisa as ciências às quais não foi dado inventar os meios de atingir a este estatuto? Como conseguir trabalhar em conjunto lá onde o acontecimento não se produz, onde os fenômenos continuam a falar com muitas vozes, recusando-se a serem reinventados enquanto testemunhos unívocos?
Perguntar pela cientificidade da psicanálise é perguntar pela sua pretensão ao privilégio de não ter que prestar contas. Seguramente, tais argumentos remetem ao modelo das ciências duras. Neste sentido, são boas as razões para afirmar que a psicanálise não é ciência: a mais comum diz respeito ao método. Afirma-se que o método psicanalítico não é válido porque se distancia do método experimental.
No inacabado Regras para a orientação do espírito, Descartes (1701) define o método como um conjunto de regras certas e fáceis, graças às quais todos aqueles que as seguirem jamais tomarão por verdadeiro aquilo que é falso e, sem sobrecarregarem a mente inutilmente, mas aumentando progressivamente o saber, obterão o conhecimento verdadeiro de todas as coisas que forem capazes. Esta definição de método evidencia as seguintes características do método: (1) um método consiste em seguir regras, (2) o método procura a economia de forças, (3) o método preserva-nos do erro ou dos passos em falso e (4) a ação metódica é exaustiva e cumulativa. Leibniz (1721), por sua vez, entende o método a partir da insistência em seu aspecto de "arte de inventar", estendendo-o a todos os processos de raciocínio quase mecânicos que conduzem à descoberta de novos conceitos a partir dos elementos dados tal como uma combinatória.
Efetivamente, podemos distinguir dois pólos irredutíveis da idéia de método. Um corresponde às noções de receita, procedimento, algoritmo, que descrevem detalhadamente a concatenação do que deve ser feito. O outro corresponde ao conceito de estratégia, que não fornece necessariamente uma indicação particularizada dos atos a cumprir, mas somente do espírito dentro do qual a decisão deve ser tomada e do esquema global no qual as ações devem ocorrer. é a metáfora militar, cujos aspectos são os seguintes: (1) uma apreensão global das situações: a decisão deve ser concebida como inserida em uma cadeia e associada às conseqüências prováveis; (2) a capacidade de discernir pontos singulares no tecido da ação e no seu contexto; (3) uma repartição das forças mobilizadas e, mais freqüentemente, uma concentração móvel destas forças mais do que uma distribuição uniforme; e (4) finalmente, a determinação de uma ordem de ações. O método psicanalítico aproximar-se-ia deste segundo sentido, sendo a metáfora militar recorrente em psicanálise, por exemplo, em conceitos como investimento/ocupação, deslocamento, entre outros.
Ainda outra razão evocada para afirmar que a psicanálise não é ciência é o fato de não ser seu objeto uma coisa material, um fato do mundo físico do qual existem inúmeros exemplares que permitem reiterar observações e procedimentos sobre o mesmo elemento. Efetivamente, o objeto de investigação da psicanálise é um sujeito único e singular, irreprodutível e, portanto, impossível de ser submetido a um novo experimento em condições idênticas ao primeiro. Ainda que se afirme ser o objeto da psicanálise o inconsciente e ser o inconsciente existente em toda parte como co-determinação de qualquer ato, sentimento, pensamento ou obra do humano, esta afirmação não resolve o problema. As condições favoráveis de observação do inconsciente ocorrem na situação analítica, o que envolve dois sujeitos únicos e singulares. O procedimento consiste na fala de um e na escuta de outro, posições que não são rígidas, uma vez que podem ser invertidas ocasionalmente. Só isso já impossibilita a reprodução do experimento. Trata-se de uma singularidade absoluta que implica o fracasso do desejo de verificação.
Contudo, se a experiência de cada sessão é única, a reiteração delas permite a produção de certos elementos constantes ou, se preferirmos, padrões característicos de cada indivíduo, traços de caráter, modos de conduzir relações, angústias predominantes. A singularidade é mantida, não mais no plano de cada fala ou fenômenos observado, mas no plano do indivíduo. Contudo, deixando de lado os conteúdos específicos de cada história singular, pode-se observar os traços de um universal imanente, ou seja, daquilo que esse indivíduo compartilha com os outros. Eis o paradoxo da psicanálise: como teoria, ela visa o não-individual, mas, como prática, não pode deduzir das correlações estabelecidas pela teoria, qual é o caso agora. Chegamos, assim, ao coração da psicanálise. Ela se interessa sobretudo pela significação inconsciente que precisa ser, necessariamente, construída a cada vez.
Vê-se como a centralização da interlocução sobre a questão da cientificidade da psicanálise e da fragilidade de seus métodos e procedimentos não leva muito longe. Certamente, a questão é de suma importância, mas deve ser desdobrada internamente ao campo da psicanálise sem ser alvo de julgamentos de valor. Nenhuma ciência pode servir de modelo para outra. A neurociência não pode posicionar-se como um juiz que, para dar uma sentença favorável, faz exigências de comportamento e impõe as suas regras e seus modelos. Exigir e impor seja lá o que for promove uma relação de domínio, jamais de composição. Cabe à psicanálise avaliar a pertinência da questão e aprofundá-la como lhe for possível, chegando às suas conclusões singulares. Qualquer dessimetria resultante de imposições de um dos saberes em jogo implode a interlocução e impossibilita a composição.
Contudo, se a noção de ciência aparece como a primeira questão que retorna para a psicanálise em seu reencontro com a neurociência, a recíproca é verdadeira. Ou seja, a psicanálise também propõe questões para a neurociência que dizem respeito sobretudo aos sujeitos e às significações que o constituem e que ele produz. Uma de suas formulações poderia ser: que transformações nos processos de subjetivação a neurociência produz ou ajuda a produzir? Em outras palavras, qual a imagem de pensamento que está sendo proposta e quais as suas implicações éticas?
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Endereço para correspondência
Claudia E. Abbês Baeta Neves
E-mail: abbes@luma.ind.br
Recebido em: 26/08/06
Revisado em: 07/02/06
Aprovado em: 23/03/06
1Aqui cabe toda uma discussão sobre questões como as fantasias, a realidade psíquica, a memória como construção atual, entre outras.