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Arquivos Brasileiros de Psicologia

 ISSN 1809-5267

     

 

ARTIGOS

 

Trabalho em saúde em tempos de biopoder

 

Health care work at the biopower times

 

 

Miguel Angelo Barbosa MaiaI; Cláudia OsorioII

IInstituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira (IPPMG/UFRJ)
IIUniversidade Federal Fluminense. Programa de Pós-graduação em Psicologia. Estudos da Subjetividade

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Tendo como referência a Clínica da Atividade de Yves Clot, Foucault e Agamben, fazemos uma reflexão teórica acerca das atividades de saúde no momento em que se deparam com as modulações do capitalismo atual. Por meio de um breve histórico, refletimos sobre como as práticas de saúde privilegiaram o controle sobre um corpo biológico abstrato e como hoje são atravessadas pela lógica de mercado, o que tem efeitos diretos não só para quem recorre a estes serviços, como para aqueles que neles exercem suas atividades. Postulando o trabalho como atividade criativa, concluímos com uma breve sugestão sobre o cuidado do doente como prática do cuidado de si, referidos em Foucault, como forma de resistência à transformação de tais serviços em setores emblemáticos do biopoder, em que o valor de uma vida passa a ser decidida pelo poder de um soberano, como nos diz Agamben.

Palavras-chave: Saúde; Atividade de trabalho; Biopoder.


ABSTRACT

Making reference to the theories of Yves Clot's Activity Clinic, Foucault and Agamben, we carry out a theoretical reflection on health care workers when they are crossed by contemporaneous Capitalism's inflection. By a concise historical analysis, we consider that the health care practices have favored to have the control over an abstract biological body and that they have been crossed by a market logic, that takes immediate effects both on the people who needs medical treatment and those whose jobs are to take care of them. Considering the work as creative activity, we bring this article to a close suggesting that the care of others can be the same as caring for oneself, as postulated by Foucault, a kind of resistance against the changing of the health care system in a biopower emblematic territory, where the value of one life is decided by a sovereign, as Agamben have said.

Keywords: Health; Work activity; Biopower.


 

 

INTRODUÇÃO

Neste artigo, realizamos uma reflexão teórica acerca do processo de trabalho em saúde, lançando um olhar sobre isto que se apresenta como uma intenção de acolhimento, de cuidado daquele que sofre, enquanto atravessado pelas modulações atuais do capitalismo. Estas modulações, denominadas táticas de biopoder por Foucault (2002), acirrando-se, parecem fomentar uma lógica de mercantilização da saúde que, se tem efeitos diretos sobre aqueles que necessitam de cuidados, não deixa de incidir também sobre os profissionais de saúde, que se debruçam sobre quem padece e que, padecendo, entregam-se de corpo e alma a um pretenso agente do saber, com poderes sobre o adoecer, em relação aos quais tornam-se, então, pacientes.

Instrumentados com o referencial da Clínica da Atividade postulada por Yves Clot (1999), analisamos o trabalho em hospital com enfoque nas práticas instituídas, na potência instituinte de toda atividade laboral, e, embora sem ser nosso foco, na capacidade de resistência do receptor desta produção, que não entendemos como mero paciente, mas como agente ativo, apesar da relação dissimétrica de poder à qual se encontra submetido (FOUCAULT, 2004a).

Baseados no conceito de soberania articulado por Agamben (2002), tentamos mostrar como os hospitais públicos se tornam setores emblemáticos do biopoder. Ao final do artigo, em uma articulação com o conceito de "cuidado de si", postulado por Foucault (2004a: 264-287), propomos uma reflexão aos profissionais de saúde, um convite não à liberação, como se precisássemos simplesmente nos libertar de um opressor, mas às práticas de liberdade, que envolvem um posicionamento ético, uma implicação completa daquele que se move nas relações de poder - e todos nos movemos - para que não se permita ser seduzido pelas tentações da dissimetria, pois nesta o cuidado com o outro se transmuta em dominação e controle.

Como entendemos que as práticas de cuidado não são naturais, mas se constroem e se modificam ao longo da história, faremos uma breve contextualização de como elas, desenvolvendo-se no âmbito das relações sociais e, portanto, sensíveis às relações de poder, modificaram-se e produziram subjetividades diferenciadas e diferenciantes no entendimento do que seja saúde e doença e na forma de seus enfrentamentos: o que é um corpo, o que é um corpo doente, como lidar com um corpo doente, a quem submeter um corpo doente, como tratá-lo e, até mesmo, o que é a vida e o que é a morte, práticas e saberes diferentes no decorrer da história (FOUCAULT, 2004b).

 

A saúde na história, breve história da saúde

Como Foucault (1989: 101) adverte, o hospital emerge na história não como um lugar de práticas terapêuticas, mas como um espaço caritativo, ligado principalmente a práticas religiosas, onde os pobres, os sem recursos, são isolados quando moribundos. Portanto, um lugar não especificamente voltado para o cuidado com a saúde, mas para o acolhimento piedoso da morte dos desassistidos. Desta época, permanecerá o sentido de sacrifício, de vocação ou missão, de um profissional que, aplicando-se sobre serviços desprezíveis, que ninguém ousava fazer, via neste serviço caritativo, religioso, uma forma de aproximar-se de Deus. Este sentido, sob diversos disfarces, ainda pode ser detectado no discurso manifesto dos profissionais, principalmente os de enfermagem e medicina.

Com a entrada em cena do capitalismo, ocorre um êxodo do campo para as cidades que, por isso, ficam abarrotadas de indigentes que tiveram seus modos de vida radicalmente transformados com o fim do feudalismo. Surge, então, uma massa de indigentes, ansiosa por se estabelecer, buscando condições de prosperar e que, dadas as terríveis condições de vida, começa a padecer, contraindo diversas doenças infecto-contagiosas. As causas destas doenças, por sua vez, serão entendidas como inerentes a este contingente, percebido como sendo formado por indivíduos desregrados, quase selvagens, do mesmo modo como a AIDS, em nosso tempo, a princípio foi percebida como inerente a um determinado segmento da população: os homossexuais.

Nesta perspectiva, não é estranho que o problema seja encarado como um perigo para a ordem social e que se procure, evitando o contato com estes indigentes contagiosos, isolá-los do meio, o que é feito em lugares de depósito específicos: os hospitais. Depósito mesmo, porque não havia critério algum de tratamento: "A desordem dos contágios: dos corpos misturados nas camas coletivas, da difusão da sarna, da proximidade entre feridos e doentes febris, dos altos índices de mortalidade até no meio de seus funcionários" (ANTUNES, 1991: 161).

A passagem para o que Foucault (2002) designa como a sociedade disciplinar, com suas práticas higienistas, altera a perspectiva sobre estes corpos indigentes, que, com o incremento do capitalismo, tornam-se corpos de produção, força de trabalho. Uma nova maneira de lidar com estes corpos e de encarar a doença entrará em cena. A necessidade de manter saudável esta população de produtores, de controlar a doença em escala social, construirá uma teoria da doença como fenômeno coletivo. Mudando as relações de forças, produz-se uma nova subjetividade.

Começa a haver um esquadrinhamento dos corpos, que são catalogados e separados, o que torna o controle uma arma terapêutica importante e, sem dúvida, fomenta a invenção de saberes capazes de controlar as doenças de forma mais efetiva, com métodos de tratamentos que provocam progressiva queda nos índices de mortalidade, o que se estende até os dias atuais.

Contudo, para o foco dessa análise, desenvolveu-se também uma concepção instrumental e individualizante do cuidado com os doentes, "uma expropriação do corpo doente do doente" (ANTUNES: 1991: 103) e a construção de um corpo relativamente abstrato, reduzido às suas dimensões biológicas. Este corpo, ao qual o seu possuidor não tem acesso algum, torna-se o corpo doente dos profissionais de saúde que nele e por meio dele desenvolvem uma prática que, se fomenta o saber e controla a doença, também desumaniza e torna a saúde uma mercadoria, um bem consumível, um produto do processo de trabalho de agentes sociais autorizados e legitimados e, portanto, também controlados por relações de poder. Assim, o acesso a este produto só é possível individualmente e a um certo preço, o que faz dos serviços de saúde um foco de negociações e de barganhas sociais.

Este controle passa a ser cada vez mais acirrado, construindo saberes cada vez mais específicos, especialismos (CHAUÍ, 1982) que, progressivamente, até os dias atuais, fragmentam o corpo doente. O corpo, então, deixa de ser corpo para se transformar em pedaço de corpo; pedaço de corpo que se transforma em parte de pedaços de corpo; partes de pedaços de corpo que estilhaçam em minúsculos fragmentos o saber terapêutico, a tal ponto que poderíamos nos perguntar se esta produção ainda se move no âmbito das relações humanas, já que na outra ponta se encontra um outro expropriado do seu corpo, alijado de qualquer saber relevante sobre ele, outro silenciado e ensurdecido pela especificidade de um saber ao qual não tem alcance.

Trata-se de um outro docilizado, dependente e vulnerável, outro que não é outro, mas pedaço do pedaço de um outro que quase esquece de sua alteridade, se é que a percebe. Outro que, sem dúvida, não é passivo, e cuja resistência se faz sentir nas relações terapêuticas, tencionando o plano de constituição da "arte" do cuidar, que se constitui, então, como um plano em construção constante, no qual o estado de sujeição nunca se completa totalmente. Este outro resiste e se impõe, com seu saber-poder, ainda que em uma relação dissimétrica, mas na qual sua liberdade, como a entende Foucault (2004a: 264-287), nunca é completamente nula. A análise das múltiplas formas que esta resistência pode tomar exigiria um outro artigo, motivo pelo qual não abordaremos esta questão, embora queiramos demarcá-la com ênfase nesta passagem.

Por outro lado, tais especialismos também fragmentam as práticas de saúde, fazendo os profissionais desta área transitarem em uma verdadeira Torre de Babel, na qual ninguém mais entende ninguém, cada qual é dono e possuidor de uma parte do pedaço, cada vez mais despedaçado, fazendo desaparecer aquele que, diante de sua dor singular, busca uma dimensão de acolhimento humano já difícil de alcançar.

Na atualidade, já que as táticas de poder açambarcaram a vida, naquilo que Foucault (2002) denominou como biopoder, tentando formatar todas as práticas de vida em modelos abstratos, com seus manuais sobre a "arte" de bem-viver e de fazer viver a qualquer custo, urge analisar como a questão aqui discutida tem se infiltrado nos serviços de saúde. A tendência de tais serviços parece desenvolver-se no sentido do esvaziamento da esfera pública, o que faz com que eles se tornem uma mercadoria oferecida à esfera privada, como um artigo de consumo precioso, nos dois sentidos, de necessário e custoso. Assim é que o marketing desenvolve a mesma estratégia de venda destes serviços e de serviços de crédito, na qual até o cartão utilizado toma a mesma forma no mercado, com planos diferenciados para capacidades de consumo diferentes.

O limite entre a vida e a morte torna-se também, cada vez mais, elástico. Se, por um lado, há o prolongamento indefinido de uma vida que, deixada em seu fluxo, se extinguiria, sendo mantida por custosas tecnologias de ponta, por outro, há o abandono de uma massa de pretensos cidadãos que, fragilizados em todos os seus vínculos sociais, encontram-se em processo contínuo de desfiliação, para usar um termo de Castel (1994). O direito de acesso à saúde desta massa é precário e seu grito de direito à vida é silenciado ou transformado em espetáculo pela mídia, o que faz dos serviços de saúde, predominantemente os hospitalares, verdadeiros setores emblemáticos do biopoder, com seu "fazer viver, deixar morrer" (FOUCAULT, 2002).

No serviço público de saúde, único meio de tratamento possível àqueles que não têm acesso aos custosos planos privados, os profissionais e os gestores confrontam-se com a difícil decisão de ter que fazer uma triagem dos casos para atendimento, dada a "impossibilidade" material de uma cobertura universal, integral e equânime, princípios legais previstos pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Diante da enorme demanda que não consegue atendimento, o privilégio do socorro estende-se àqueles que parecem ter mais chances de sobreviver, efetivando na prática o "fazer viver, deixar morrer" (FOUCAULT, 2002): escolha que não pode se efetuar com base em princípios objetivos estabelecidos solidamente e que, inclusive, tem implicações que entram em desacordo com os limites profissionais regulamentados, os princípios éticos profissionais e os princípios morais individuais, gerando desconforto e sofrimento psíquico para aqueles envolvidos na situação.

Um dos autores deste artigo, ao participar de um fórum que tinha por objetivo refletir sobre a qualidade do atendimento prestado pelo hospital em que trabalha, acompanhou o discurso de um profissional - médico pediatra - que se sentia visivelmente incomodado ao receber um paciente em estado grave, necessitando de cuidados urgentes, e que, após transitar por vários hospitais da rede pública, sem conseguir atendimento, chegou à unidade em questão, que não possuía a especialidade requerida para o tratamento do paciente. Este profissional, sem ter como atender ou como transferir o paciente, sentiu-se pessoalmente atingido e responsável por aquela vida, mobilizando toda a equipe para, em um esforço de formar uma rede pessoal de comunicação com outras unidades, dar conta daquilo que deveria ser papel da rede pública.

Apresentada tal problemática, seguiu-se uma discussão sobre responsabilidades e limites institucionais, bem como sobre a política de saúde que vem sendo posta em prática, com seus funcionamentos e disfuncionamentos. Mas, se essas discussões podem precariamente abrandar sentimentos de culpa e de responsabilidades pessoais, não dão conta do desconforto emocional de quem, acreditando ter a "vocação de cuidar e salvar vidas" (termos do próprio profissional), vê-se na crueza de ter sua ação amputada e de não poder simplesmente se conformar com o pensamento de que isto não é responsabilidade sua.

Em se tratando de um contexto profissional tanto desmobilizador quanto perigoso, tal situação torna urgente uma tomada de posição política, ética e estética por todos aqueles que estão envolvidos nesta ocupação em que o cuidar se torna, paulatina, mas indisfarçavelmente, decisão sobre uma vida dependente de um soberano que determina qual e em que condições esta vida deve ser preservada (AGAMBEN, 2002).

Quem de nós, acreditando na potência da vida, ainda é capaz de somar esforços para que a saúde não deixe de ser vista como direito inalienável, como bem público? Quem de nós ainda terá sentidos suficientemente alertas e não anestesiados por uma sociedade drogadicta para ser capaz de ouvir um grito abafado ou performatizado de uma multidão de indigentes que nem voz possui? Tudo é uma urgente questão de implicação, pois aqui, não fazer escolhas, deixar-se levar pelos acontecimentos, já é ter escolhido.

 

Trabalho e criação: a clínica da atividade

Nos limites cabíveis a um artigo, deixaremos de lado toda a discussão acerca das várias definições científicas incidentes sobre o conceito de trabalho e diremos que o entendemos como uma atividade histórica, construída e reconstruída em cada situação com a qual o trabalhador se defronta. A atividade, entendida neste artigo no sentido que lhe atribui Yves Clot, é sempre mais do que um simples gesto realizado, passível de observação direta e mensurável para fins de avaliação de produtividade, envolvendo também, além do que foi realizado, o que não foi feito, o que é feito para não fazer, o que se gostaria de fazer e o que deveria ser feito (CLOT, 2001).

Com base nesta definição ampliada de atividade, entendemos que falar em trabalho é já falar em processos de subjetivação, processos estes também históricos, oriundos do interjogo entre o coletivo e o singular, em um encontro sempre ímpar no qual emergem, ao mesmo tempo, um sujeito que designamos trabalhador e um objeto que designamos trabalho, o que nos autoriza a postular que, mais do que o trabalho, o que interessa é o trabalhar, a atividade com seu movimento e singularidade. Diremos com Duraffourg et al. (1993) que o trabalho é historicamente construído, negociado e, portanto, coletivo. A atividade, mesmo realizada por um único trabalhador, tem uma história e uma inserção coletiva que a autoriza, as diversas competências só se constroem e só se desenvolvem em uma coletividade.

O conceito de gênero, que não se refere à diferença entre os sexos, mas que remete a um plano coletivo de constituição do trabalho, ao qual o trabalhador recorre e faz frente às variabilidades que se apresentam (CLOT, 1999), permite que analisemos os coletivos de trabalho considerando que há um dispositivo aberto de regras impessoais, historicamente construído, ao qual esse coletivo se refere na relação com os objetos e nas relações entre sujeitos, um meio de agir de cada um, uma singularidade, mas que o é levando em conta a história do grupo e a memória impessoal do meio de trabalho, coletivo e singular em uma mescla impossível de ser desfeita. Toda atividade de trabalho pode então ser entendida como um encontro entre corpos, atravessamentos múltiplos que se agenciam, se interconectam, demandam escolhas e decisões e, portanto, tornam todo trabalho uma atividade de criação. Mais do que um mero executor de tarefas, o trabalhador constitui e é constituído pela sua atividade, sendo ao mesmo tempo produtor e produto, estando sempre presente a capacidade de afetar e de ser afetado.

A distinção entre trabalho prescrito e trabalho real, desenvolvida pelos ergonomistas franceses, torna-se aqui pertinente, já que, para eles, a dimensão vivida do trabalho é sempre uma criação, uma novidade, que não pode ser apreendida em palavras ou descrita previamente, mesmo levando em consideração o depoimento daqueles que trabalham (SCHWARTZ, 1993; CLOT, 1999). Entre a prescrição, ou a norma, e o que é efetivamente realizado, há sempre um deslocamento, uma recriação; e é isso que faz com que cada tarefa possa ser realizada. Os trabalhadores, considerados coletivamente, são capazes de inovações, de produzirem suas próprias regras, não se limitando jamais a se submeterem a elas. Essa negociação permanente da atividade existe sempre, passa por situações de conflito, mas se mantém mesmo em situações de "trabalho dominado" (SELLIGMAN-SILVA, 1994).

Esse desenvolvimento, coletivo e singular, é o que sustenta, segundo Clot (1999), o sentido do trabalho para o trabalhador, é o que o insere no mundo, o que possibilita o encontro consigo mesmo e com o outro. Quando os limites são tantos que o desenvolvimento coletivo e singular ficam impedidos, os custos psicológicos são altos: entra em cena o sofrimento psíquico, bastante estudado atualmente.

 

A atividade no hospital

A abordagem que levaremos a efeito terá por base dados colhidos na prática da Psicologia do Trabalho, a que se dedicam, há longo tempo, ambos os autores, exercida em hospitais públicos situados na cidade do Rio de Janeiro. Privilegiaremos, nessa análise, atividades diretamente ligadas à assistência aos pacientes. No que concerne à dinâmica das enfermarias, além das observações colhidas no exercício de nossas funções, serão utilizados, também, dados colhidos em trabalho de campo por parte de um dos autores, quando da atividade de pesquisa relacionada à defesa de sua dissertação de mestrado (OSORIO, 1994).

Embora os hospitais em que trabalham os autores sejam diferentes e, portanto, possuam suas especificidades, o que aqui discutimos é partilhado por ambas as unidades de saúde e, de forma geral, em maior ou menor grau, acreditamos fazer parte do gênero de atividades desenvolvidas na grande maioria dos hospitais públicos brasileiros.

Constatamos que trabalhar em hospital requer um alto nível de colaboração entre diversas pessoas, de diferentes especialidades ou posições na rede de cuidados ao paciente, exigindo um trabalho coletivo bem coordenado. Há uma enorme variação nas redes de solidariedade que compõem o trabalho necessário para a consecução de cada objetivo. Os componentes de cada equipe terapêutica devem dispor de meios para fazer frente aos imprevistos constantes do trabalho. Estes meios são em parte dados pela bagagem coletiva da atividade - o gênero, que deve pertencer e estar disponível para todos, não fracionado para e por cada profissão em separado - e, em parte, fruto da singularidade de cada trabalhador, com sua forma diferenciada de inserção em sua atividade, com sua criação particular que, se utiliza este plano coletivo de constituição, também o modifica e o expande, podendo-se dizer que já não é possível separar o que é próprio do coletivo e o que é próprio do singular.

Diversas características do processo de trabalho no hospital são compartilhadas por todos os participantes da rede de cuidados, fazendo com que haja muita variabilidade nas formas de entendimento de "como deve ser feito" o trabalho, formas estas que nem sempre se harmonizam na coexistência de inúmeros protocolos, nem sempre úteis. Embora as rotinas prescritas no trabalho hospitalar sejam numerosas, há necessidade de grande flexibilidade a fim de que o trabalho, sempre coletivo, possa ser realizado. As composições mesclam-se, os estilos variam, os acordos devem se renovar a todo o momento.

A gestão do tempo no hospital é necessariamente multidimensional, com freqüente superposição e entremeamento de tarefas; os atos têm finalidades múltiplas, que encerram diversas ações. A exigência elevada de flexibilidade tem, entre outros motivos, a rotatividade das equipes parciais, organizadas por plantões que se alteram para garantir assistência 24 horas, incluindo rodízios de fim de semana e plantões noturnos.

A flexibilidade é inicialmente facilitada ou limitada pelo tempo prescrito. As tarefas no hospital estão planejadas sobre um quadro fixo que é dado em parte pela tradição, em parte pelas necessidades biológicas dos doentes, em parte pelas regras externas ao hospital, que devem ser respeitadas. Os horários de refeição são fixados tanto pela regulação biológica da digestão, quanto pela necessidade de conformar o serviço de cozinha às possibilidades de pessoal e horário diurno de trabalho. Todos os quadros de distribuição de pessoal devem respeitar as legislações trabalhistas e as específicas de cada profissão. Concluímos, portanto, que o controle do espaço, do tempo e do corpo é uma constante.

Desse quadro de planejamento, que respeita valores compartilhados, temos como conseqüência o fato de que todo o pessoal conhece previamente as linhas gerais de sua carga e conteúdo de trabalho, com as variações habituais de cada período do dia, dia da semana e épocas especiais do ano. A partir disto, há uma adaptação fina da organização do trabalho às tarefas e imprevistos que se apresentam com maior ou menor tempo de antecedência ou, por vezes, com urgência. Nessa reorganização, os limites legais são freqüentemente esquecidos. Aos auxiliares de enfermagem mais experientes, por exemplo, são atribuídas tarefas que não lhes seriam próprias, o que leva profissionais de diferentes formações a desvios de função. Os deslizamentos de função (OSORIO, 1994; FOUILLEUL & MATHERON, 1992) são fundamentais para a realização do trabalho. Compondo essa multiplicidade a ser gerenciada, temos ainda as interfaces com outras unidades, serviços, especialidades e esferas da vida dos doentes.

A busca da dominação pela produção do discurso competente, pelo especialismo, atravessa os diferentes grupos no hospital. Na formação do profissional de saúde, há uma grande valorização do saber acadêmico, supostamente objetivo e freqüentemente empolado. A segmentação por corporação profissional, sempre visível no hospital, garante que cada um fale exclusivamente de e sobre seu domínio de competência. Por exemplo, em um evento organizado para discussão da qualidade do atendimento, cada grupo funcional falava de si, ninguém se referia ao atendimento prestado pela equipe ou à interdependência nas tarefas (OSORIO, 1994).

O discurso competente, reconhecido e autorizado, é cientificista e restringe a linguagem, informando que não é qualquer um que pode dizer a qualquer outro qualquer coisa em qualquer lugar e em qualquer circunstância. O discurso competente confunde-se com a linguagem institucionalmente autorizada, isto é, com um discurso no qual os interlocutores já foram previamente reconhecidos como tendo o direito de falar e ouvir, no qual os lugares e as circunstâncias já foram predeterminados para que seja permitido falar e ouvir e, enfim, no qual o conteúdo e a forma já foram autorizados segundo os cânones das esferas de competência (CHAUÍ, 1982: 7).

As salas em um hospital são divididas; se uma sala é do médico, o nutricionista, o enfermeiro ou o assistente social não podem trabalhar nela. Razões pseudoconcretas, pseudo-objetivas, são dadas. Neste campo de disputas e territórios estanques, o nutricionista, o enfermeiro, o assistente social, o psicólogo e outros reagem defendendo a SUA sala, suposto sinal de reconhecimento institucional, espaço de defesa de identidades e de segredos diversos, trincheira tão funda que, se protege, impedindo de fato de ser visto, vai mais longe e acaba por não permitir ver mesmo nada (nem a si) (OSORIO & ATHAYDE, 1996).

A cada proposta de participação, a resposta, irritada ou desanimada, é: "não tenho tempo!" A resposta, sustentada na realidade dos ritmos intensos de trabalho, é defensiva. Representa uma defesa contra a adição de mais uma tarefa e contra mais uma frustração. Tais ritmos, frenéticos na parte da manhã, monótonos no restante do dia, são apontados por Libouban (apud PITTA, 1989) como uma das estratégias defensivas presentes no ambiente hospitalar: hiperatividade verbal ou cinética, como modo de afastar a angústia, segundo ele, proveniente do contato com o doente.

Nas enfermarias, o ritmo do trabalho é o ritmo do desespero; não há cadências agradáveis, só uma correria nervosa, uma indolência cansada ou uma monotonia sobressaltada. O ritmo da vida, o tempo de sentir solidariamente o que vivem os pacientes internados, a necessidade de colaboração com um colega ou de inventar formas de cuidar dirigidas a cada singularidade são atropelados. Os tempos e as realidades dos diversos profissionais presentes no hospital não são os mesmos. Os corpos de que tratam não são os mesmos. Essa diversidade alimenta as dificuldades de construção de um trabalho coletivo e solidário. São assim produzidos profissionais individuais e individualizantes, "que olham para dentro (nunca em torno, com receio de ficarem tontos) como se atentos ao dentro se soubesse de si" (OSORIO & ATHAYDE, 1996), salvando-se como e quando podem do trabalho (aparentemente impossível de ser bem feito), do salário insuficiente, do contato com a dor própria, gerada por tudo isso.

Entendendo que as estratégias adotadas têm como finalidade a proteção da vida, constatamos que os trabalhadores do hospital estão enfraquecidos e mesmo doentes. Estudos como os de Rego (1993) revelam números e estatísticas preocupantes: trabalhadores hipertensos, nervosos, entristecidos, em uso permanente de remédios diversos. Mas a linguagem da dor foi capturada pela medicina: se todas as angústias, como diz Birman (1980), são assunto dos médicos e da medicina, por que em um hospital seria diferente? Os trabalhadores do hospital, em sofrimento psíquico, expressam corporalmente este sofrimento: talvez essa seja a forma de sofrimento considerada digna de atenção em um hospital.

 

Reflexões finais (ou seriam iniciais?)

Do quadro exposto, percebemos que o cuidado com o outro é um imperativo da atividade hospitalar, seja este outro aquele que busca o tratamento, seja aquele com quem se compartilha a atividade profissional, que é, por isto, desenvolvida em uma organização do trabalho que exige a orquestração bem ordenada de um coletivo de trabalhadores para os quais o entendimento do que é o cuidado não é o mesmo e, portanto, os referenciais coletivos, os gêneros, muitas vezes se desencontram.

A situação do trabalho apresenta enorme variabilidade, na qual as contraintes (termo da ergonomia francesa - sem um correspondente satisfatório em português - que significa tudo aquilo que constrange o trabalhador quando realiza sua atividade) exigem escolhas e decisões constantes, sem a necessária construção e reconstrução do gênero.

A precariedade da formação dos coletivos de trabalho faz com que haja um insulamento de cada qual dentro das prescrições próprias à sua corporação, como meio de precaver-se de possíveis responsabilidades por qualquer erro cometido, em uma atividade cujo produto é sempre resultado do trabalho parcelado de muitos.

Dentro desta organização de trabalho já complexa, o resultado dessas atividades incide sobre um receptor que não só consome, não sendo mero paciente, apesar do designativo comum nos hospitais, mas faz parte ativa da própria produção, nela interferindo com os seus referenciais, suas decisões e escolhas, ainda que sem conhecimento do processo de trabalho do qual ele é a parte interessada e para o qual raramente é convocado a participar e decidir, mas que, no entanto, é um processo que se desenvolve em seu próprio corpo, o que o faz reagir e se afirmar, gerando mais contraintes.

Aquele que busca o cuidado está constantemente pondo em questão o modelo de corpo biológico abstrato, afirmando-se como um corpo vivo e pulsante, um corpo desejante, apesar disto freqüentemente parecer ser esquecido na frenética aceleração de um tempo marcado pela falta, que não encontra o tempo para este corpo que sente.

Corpo que sente do doente, corpo que sente do trabalhador e, no entanto, corpo ausente da pretensa "arte" de cuidar, preterido por um mecanismo biológico abstrato sobre o qual se exerce uma atividade fragmentada e fragmentante, gerando ações que, se individuais e individualizantes, são, no entanto, totalizantes quando abstraem do cuidado aquilo que, aliando-nos a Foucault (2004a), entendemos vir antes do cuidado com o outro, que é o cuidado de si.

Foucault (2004a: 264-287) diz que sempre procurou saber como os sujeitos humanos entravam nos jogos de verdade, estes jogos que (no nosso entender) abstraem a vida por um suposto ideal de vida, "esses jogos de verdade não se referem mais a uma prática coercitiva, mas a uma prática de autoformação do sujeito" (FOUCAULT, 2004a: 265).

Discutimos o trabalho na acepção das teorias da atividade e percebemos que ele é também uma atividade de autoformação. Vimos como o trabalho prescrito é sempre distinto do trabalho real. Precisamos do prescrito, sem dúvida, pois a organização é necessária a toda atividade humana; o que não precisamos, também sem dúvida, é nos engessarmos no prescrito de tal forma que ele perturbe, ou até mesmo impeça a realização do trabalho.

A Clínica da Atividade aponta-nos que o trabalho é sempre criação, o trabalhador nunca é um mero executor do prescrito, mas sempre um agente singularizador do coletivo, do gênero da atividade. Assim, o próprio conceito de gênero é uma liberação do trabalho, mas, citando Foucault (2004a), "essa prática de liberação não basta para definir as práticas de liberdade que serão em seguida necessárias" (p. 265). A liberação, como dissemos no início, passa por uma reação ao instituído, enquanto as práticas de liberdade são do âmbito do instituinte, uma implicação ética do cuidado de si.

Para as práticas de liberdade, é necessário o cuidado de si, pois "o cuidado de si visa sempre ao bem dos outros: visa administrar bem o espaço de poder presente em qualquer relação, ou seja, administrá-lo no sentido da não-dominação (...). Não se deve fazer passar o cuidado dos outros na frente do cuidado de si: o cuidado de si vem eticamente em primeiro lugar, na medida em que a relação consigo mesmo é ontologicamente primária" (FOUCAULT, 2004a: 271).

Profunda reflexão é, portanto, sugerida aos profissionais do cuidado, o que não quer dizer que aqui se sugira um solipsismo, uma interiorização do sujeito. Este "si" do qual se fala não se volta para dentro; é um "si" que se dobra para fora, uma potente resolução ética de não tornar as relações de poder, sempre existentes em qualquer interação humana, imóveis e cristalizadas, uma verdadeira forma equilibrista de não cair na dessimetria absoluta das relações de poder, de não cair no egoísmo, quase o oposto do cuidado de si.

Assim, o cuidado de si é prática de liberdade, potência de uma ética ativa, que sabe utilizar o prescrito de forma criativa, sem nunca deixá-lo formatar o real, mas que vai além da simples atividade, pois que é uma atitude de vida, o verdadeiro cuidado de si que jamais se separa do cuidado com o outro (FOUCAULT, 2004a).

Gostaríamos de terminar pensando, então, no cuidado com o doente como um cuidado de si. Cuidado que encontra tempo para o corpo que sente, que não adoece também a liberdade do doente, que não se deixa adoecer enquanto cuida e, principalmente, cuidado que se cria e recria na experiência, sem se deixar engessar por um ideal nunca alcançável, ideal de um tempo todo marcado pela falta, de um espaço dividido pelo controle e de uma vida despotencializada pela abstração.

Quem sabe assim o hospital possa, finalmente, ser um lugar de conforto e de cuidado tanto para aquele que busca o acolhimento humano para o seu padecer, quanto para aquele que acolhe o padecimento, já que, como vimos, os dois pólos dessa relação parecem enfraquecidos por aquele lugar que se intitula serviços de saúde.

Quem sabe assim a saúde possa ser recusada como mais um bem de consumo, da ordem de um luxo, de um excedente, defendida então, nestes tempos de biopoder, como um capital não negociável, não passível de mercantilização, mas um bem público inalienável, um grito de resistência e de poder instituinte que, longe de se deixar formatar, longe de se deixar seduzir, recuse por completo esta instauração de um capital (neo) liberal e se institua como liberdade de si, no sentido foucaultiano (FOUCAULT, 2004a).

O que se quer, portanto, é uma vida que não se conforme com as escolhas de uma fila de triagem em um serviço de saúde pública, uma vida que não se deixe ser mercadoria, que não caia na rede de serviços como um peixe, mas que se institua como um direito inalienável, como um corpo vivo que sente e que, ao se afirmar, restitua a humanidade de um serviço que, longe de corroborar com um estado de exceção (AGAMBEN, 2002), longe de ser paciente, realize a potência de ser, na qual o que sofre e o que quer cuidar de quem sofre restituam a dimensão humana de um encontro entre seres vivos que, com toda a sua complexidade, com toda a sua dimensão não passível de uma cientificidade positivista, seja positivante de uma aposta no viver.

Que a saúde possa retomar a dimensão do afeto, redirecionando-se no sentido do encontro entre corpos vivos, no qual a racionalidade científica tenha a sua parte, tenha a sua função, mas sem deixar de levar em conta a vida em seu movimento. Tema que, se desde o início da filosofia grega, assombrou o pensamento, hoje exige um reordenamento da razão, uma aposta de que enquadrar o vivo na racionalidade é perder de vista o movimento da vida, é compartilhar com um campo de concentração (AGAMBEN, 2002) em que todos nós, que buscamos a saúde e trabalhamos por ela, a deixamos escoar entre nossos dedos, esquecidos de que a dor e o sofrimento são alheios à cientificidade e à tecnologia, sendo sentidos por um corpo que, quando busca ajuda, agradece os avanços científicos, mas se ressente da dimensão humana: medicamento impossível para a indústria farmacêutica e que, esperamos, abunde nos meios hospitalares e em todas as práticas de saúde.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência
Miguel Angelo Barbosa Maia
E-mail: miguel.maia@terra.com.br

Cláudia Osorio
E-mail: cosorio@vm.uff.br

 

Recebido em: 28/10/05
Revisado em: 15/12/05
Aprovado em: 06/02/06

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