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Arquivos Brasileiros de Psicologia

 ISSN 1809-5267

     

 

ARTIGOS

 

Acidente radioativo de Goiânia: "o tempo cura todos os males"?

 

Goiânia's radioactive accident: "does time heal it all?"

 

 

Fábio Jesus MirandaI,III; Luiz PasqualiII; Sebastião Benício da Costa NetoI,III; Márcio de Queiroz BarretoI,IV; Gilberto David Filho; Thyago do Vale RosaI

IUniversidade Católica de Goiás. Departamento de Psicologia da UCG
IIUniversidade de Brasília (UnB). Instituto de Psicologia da UnB
IIINúcleo de Estudos Psicossociológicos (NEP)
IVLaboratório de Análise do Comportamento (LAEC)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O acidente com o césio-137 em Goiânia é considerado o segundo maior acidente envolvendo substância radioativa, depois de Chernobyl. O presente estudo constitui-se em um follow up e objetiva analisar a percepção das pessoas diretamente atingidas, com ênfase nos levantamentos de como perceberam os problemas vividos no momento crítico e as questões remanescentes após três anos e em seus depoimentos à imprensa após quinze anos. O estudo também registra uma avaliação sistemática do acidente, bem como das reações e sentimentos descritos pelas pessoas vitimadas. Conclui-se que as pessoas radioacidentadas foram submetidas a severos sofrimentos, nos níveis orgânico, psicológico e social. A comparação entre os resultados dos estudos indica seus problemas e preocupações: questões de saúde - físicas e psicológicas, discriminação, descaso e omissão das autoridades, insuperabilidade do trauma. Tais problemas e preocupações ainda persistem, constituindo-se no terror presente e futuro das vítimas.

Palavras-chave: Acidente radioativo; Efeitos psicológicos; Saúde geral.


ABSTRACT

The Radioactive accident with Cesium 137 in Goiânia is the second largest incident involving radioactive substance after Chernobyl. This study is a follow up and aims at studying the perception of the people directly affected by the accident, with emphasis on surveys of the victims' views of their problems at the critical moment and remnants after 3 years, and those manifested in their statements to the newspapers after 15 years of the accident launching. It also registers a systematic evaluation of the accident, as well as the reactions and feelings described by the victims. It concludes that radioactive contaminated people underwent severe physical, psychological and social suffering. The comparison between the results of both studies points out the victims' problems and concerns: health and psychological issues, prejudice, disregard and omission of the authorities, the impossibility of overcoming the trauma. Such problems and concerns are still part of their lives, being their present and future most acute fears.

Keywords: Radioactive accident; Psychological effects; General health.


 

 

BREVE HISTÓRICO DO ACIDENTE RADIOATIVO DE GOIÂNIA

O acidente radioativo de Goiânia, que se iniciou no dia 13 de setembro de 1987, colocou o Brasil no rol dos países que também sofreram catástrofes de ordem radioativa. Dois catadores de metal e papel da cidade de Goiânia adentraram os escombros do Instituto Goiano de Radioterapia, no setor central da cidade, informados de que ali se encontrava uma peça contendo chumbo, metal de alto valor financeiro - especificamente, um aparelho de raios X que continha uma fonte de césio-137. Usando instrumentos simples, após várias tentativas, removeram partes da peça que envolvia uma fonte radioativa. Na noite desse mesmo dia, com o auxílio de um carrinho de mão, o conjunto de peças, pesando cerca de 200 kg, foi transportado para a casa de um dos homens, situada em local próximo (FUNLEIDE, 1988).

Uma tentativa preliminar de desmontar o invólucro externo não foi inteiramente executada, em função da resistência do material, mas fragmentos de substância radioativa espalharam-se pelas áreas adjacentes. Algumas horas depois, os dois homens desenvolveram sintomas de náusea, seguidos por vômitos e, um deles, diarréia e queimaduras nas mãos e nos braços. Esses primeiros sintomas persistiram nos dias subseqüentes (FUNLEIDE, 1988).

No dia 18 de setembro de 1987, o material foi vendido para um depósito de ferro-velho. O dono do depósito, intrigado com a beleza da luminosidade azul que provinha da cápsula, a levou para dentro de sua casa, deixando-a na sala - acessível ao contato da família, amigos e vizinhos. Durante esse período, fragmentos do tamanho de um grão de arroz, retirados com o auxílio de uma chave de fenda, foram distribuídos entre várias pessoas, em sua maioria parentes e amigos (FUNLEIDE, 1988).

No dia 29 de setembro de 1987, notando que aumentava o número de pessoas que desenvolviam sintomas gastrintestinais (tais como: perda de apetite, náusea, vômito e diarréia), a esposa do proprietário do ferro-velho relacionou o material às condições de saúde apresentadas, procurando, por essa razão, a Divisão de Vigilância Sanitária da cidade de Goiânia. O transporte da peça foi realizado em ônibus coletivo, expondo várias pessoas à radiação. Cerca de 250 foram contaminadas interna ou externamente, e um número muito maior de indivíduos foi irradiado pelo césio-137 (FUNLEIDE, 1988).

A análise do material indicou um nível extremamente alto de radiação, levando à total evacuação do edifício da Divisão de Vigilância Sanitária e ao isolamento da área à sua volta. A cidade de Goiânia passou a ser ocupada por um grande número de pessoas responsáveis pela divulgação dos acontecimentos, remoção do material radioativo, execução de serviços de monitoramento e de suporte geral , e pelo tratamento das pessoas radioacidentadas. No mês de outubro de 1987, um dos catadores de papel teve um de seus braços amputado e quatro pessoas morreram como conseqüência do contato com o material, entre elas uma menina de seis anos de idade. Todo o lixo retirado das escavações permanece em um depósito a pouco mais de 20 km da cidade de Goiânia (FUNLEIDE, 1988).

 

Efeitos das radiações

Foi com a descoberta dos raios X, em 1895, na Alemanha, pelo professor Wilhelm Conrad Roentgen, que se iniciou a história das radiações. Radiação é uma forma de energia, emitida por uma fonte, que se propaga de um ponto a outro sob a forma de partículas com ou sem carga elétrica ou, ainda, sob a forma de ondas eletromagnéticas. Quando a radiação possui energia suficiente para arrancar um dos elétrons orbitais de átomos neutros, transformando-os em um par de íons, diz-se que ela é ionizante.

A radiação ionizante é invisível, inaudível, inodora, insípida. Possui ação microscópica que independe do tipo de substância emissora da radiação. No caso de doses altas, a síndrome aguda de radiação surge logo após a exposição e no caso de doses baixas, os efeitos podem ficar latentes e só aparecerem anos depois. Uma exposição do organismo à radiação ionizante pode desencadear uma série de problemas biológicos e hereditários: morte por hemorragia, infecção ou deficiência imunológica, problemas gastrintestinais, leucopenia, câncer, anemia aplástica e aumento da incidência de outras doenças crônicas.

Os efeitos agudos da radiação são observados em apenas horas, dias ou semanas após a exposição do indivíduo a uma alta dose de radiação, em um pequeno intervalo de tempo. Os sintomas característicos de tal exposição são: vômitos, naúseas, leucopenia, problemas gastrintestinais e, em alguns casos mais críticos, hemorragia, infecção e deficiência imunológica, que podem levar à morte.

Os efeitos tardios aparecem em pessoas irradiadas por doses baixas, mas crônicas, em um longo intervalo de tempo, ou em pessoas que receberam uma alta dose de irradiação, porém não letal. Esses efeitos são o câncer, as lesões degenerativas, a anemia aplástica, e surgem, aparentemente, apenas em algumas pessoas. É importante enfatizar que não há nenhuma enfermidade específica ligada aos efeitos tardios da radiação. O que se verifica é um aumento da incidência de certas doenças, em relação à incidência normal.

 

Algumas dimensões do acidente radioativo de Goiânia

No acidente de Goiânia, a massa liberada pela violação da fonte de césio-137 atingiu a totalidade de 91g, sendo que apenas 19,26g eram compostos por cloreto de césio. A atividade da fonte, na ocasião, era de 1.375 Curie1. O solo dos locais em que havia focos de contaminação e algumas casas (com tudo que havia em seu interior) foram completamente removidos. Os rejeitos gerados (cujo volume atingiu 3.461 m3) foram compactados e acondicionados em diversos tipos de embalagens.

Um grande número de pessoas envolveu-se no acidente radioativo de Goiânia. Algumas voluntariamente ou por força de suas ocupações profissionais e técnicas, outras involuntariamente vitimadas pelo acidente.

O monitoramento da população foi realizado em um estádio de futebol. Um total de 112 mil pessoas foi monitorizado. Destas, mil foram externamente irradiadas com exposição acima da radiação natural. O número de pessoas que apresentaram contaminação interna e/ou externa foi igual a 249. Deste total, 49 pessoas foram internadas: 21 exigiram atendimento médico intensivo, 10 apresentaram estado grave com complicação, 1 pessoa teve seu braço amputado e 4 foram a óbito: duas por hemorragia e duas por infecções (MIRANDA, 1993).

Para a inclusão das pessoas em grupos para acompanhamento médico, o Núcleo Médico da Fundação Leide das Neves Ferreira (FunLeide) adotou os critérios da Nuclear Commission e da Energy Research and Development Administration, quais sejam:

"Grupo I (54 pessoas). Pacientes com radiodermites e/ou dosimetria de corpo inteiro igual a 20 rad e/ou atividade equivalente a ½ LIA (50 MCi);

Grupo II (50 pessoas). Familiares ou contactantes das vítimas diretas, cujo índice de irradiação não atingiu os índices do Grupo I, e sem radiodermites;

Grupo III (+ de 300 pessoas). Profissionais que lidaram e lidam com material contaminado pelo césio-137 ou com pacientes irradiados ou contaminados pelo césio-137;

Grupo IV (500 pessoas). População vizinha dos sete primeiros pontos de contaminação." (FUNLEIDE, 1988)

Entre os pacientes com radiodermites (queimaduras provocadas pela radiação) que tiveram de amputar membros ou sofreram cirurgias reconstitutivas, verificaram-se, com freqüência, recidivas em extremidades (mãos e pés). O acompanhamento médico, realizado nos três anos em seguida ao acidente, indica o seguinte quadro geral, entre homens adultos: hipertensão arterial, epigastralgia, leucopenia, alterações psiquiátricas, doenças sexualmente transmissíveis e verminose. Já entre mulheres adultas, além do quadro descrito entre homens adultos, observam-se a leucorréia e a displasia mamária. Entre crianças: graus variados de anemia (MORAIS, ASSIS & OLIVEIRA, 1990).

As pessoas radioacidentadas passaram por sofrimentos severos, não apenas físicos, mas também psicológicos. A vivência de circunstâncias aterrorizantes foi colocada às pessoas atingidas. Durante a fase emergencial, observou-se entre as pessoas radioacidentadas um quadro de desorganização psíquica, alimentada por fantasias e desinformação. Em um estudo sobre os aspectos psicológicos, Costa Neto e Helou (1990) apresentam uma descrição dos quadros emocionais e de sentimentos verificados à época emergencial do acidente, que se manifestavam por: temores de doenças causadas pela contaminação, ansiedade, insegurança, tensão, processos regressivos, auto-imagem comprometida, baixa auto-estima, retraimento, sentimento de impotência, depressão, revolta, agressividade, perda de identidade, ansiedade ocasionada pela expectativa de morte, culpa, tristeza, angústia, exacerbação das defesas, desamparo, vivência de discriminação social, sentimento de perda, crises de choro e gritos, raiva, revolta, histerismo, medo do futuro, reações psicossomáticas, autodiscriminação e psicopatias. Em crianças, acrescentam-se os distúrbios do sono, enurese noturna e fantasias de perda de membros. Em outro estudo sobre aspectos psicossociais, Helou (1990) descreve reações e sentimentos apresentados durante a fase crítica do acidente: medo, tristeza, angústia, depressão, idéias suicidas, ansiedade, revolta, sentimento de perdas materiais, mudança afetiva, mudança do papel social.

Um manifesto de 1990 elaborado pela Associação das Vítimas do Acidente com o césio-137 e encaminhado ao presidente da República do Brasil enfatiza aspectos importantes da percepção das pessoas radioacidentadas sobre a sua condição. São eles: sentimento de desamparo, revolta contra o acobertamento da situação real, desesperança, sentimentos de discriminação social, incerteza quanto ao futuro, revolta contra os critérios de seleção das pessoas radioacidentadas, insuficiência da assistência recebida, descaso para com as pessoas radioacidentadas, desqualificação dos direitos humanos, sentimento de estarem sendo tratadas como cobaias, preocupação com câncer e leucemia. Os dados extraídos do manifesto indicam como, à época de sua elaboração, as vítimas avaliavam o acidente radioativo.

 

Vitimação e características dos acidentes radioativos

Existem condições que nos são impostas e que ultrapassam muito nossos recursos auto-reguladores. Esses desafios podem ser de uma ordem de severidade tão extrema que rompem, ou possuem força suficiente para romper, nosso nível homeostático. As pressões impostas pelos acidentes são dessa ordem.

Quando um indivíduo, ou grupo de indivíduos, sofre algum infortúnio ou sucumbe a uma desgraça, como morte por acidente, contaminação em uma epidemia, envolvimento em alguma catástrofe ou guerra, ou seja, quando sofre algum tipo de dano, é considerado uma vítima (FERREIRA, 1988).

Existem várias possibilidades de uma pessoa se tornar uma vítima. Ela pode contrair uma doença grave; ser assaltada ou estuprada; sofrer um acidente sério; estar em locais atingidos por furacões, enchentes, terremotos, incêndios; ou mesmo ser atingida por um acidente tecnológico. Os acidentes são possivelmente uma das formas mais poderosas de vitimação, por serem, em geral, não previsíveis, altamente destrutivos e de impacto repentino. Enquanto evento psicológico, os acidentes podem produzir trauma, medo, estresse, choque, entre outras possíveis reações. Possuem uma dimensão de impacto e de efeitos severos sobre as pessoas afetadas (BAUM, 1987; BAUM, FLEMING & DAVIDSON, 1983; BAUM, FLEMING & SINGER, 1983).

Os acidentes tecnológicos, principalmente os que envolvem radiação ou substância tóxica, estabelecem não só um nível de ameaça que termina com a fase crítica, mas também uma parcela de ameaça crônica, que tende a continuar mesmo após o término do evento. Desse modo, o impacto maior pode não passar e a percepção de ameaça continuar indefinidamente. A presença de substância tóxica ou radiação parece gerar um sofrimento persistente. Como o efeito dessas substâncias pode demorar a aparecer, essa característica o torna crônico, e esse padrão de influência pode estender a duração da vitimação (BAUM, 1987).

Uma característica do acidente é que ele está fora do campo da experiência habitual, cotidiana, fora do controle imediato, e é percebido como exercendo uma enorme pressão física, econômica, social e psicológica sobre as vítimas. É virtualmente capaz de produzir estresse, e o grau em que isso acontece e seu efeito na saúde em geral são determinados por um rol de qualidades do evento, da população vitimada e dos indivíduos envolvidos (BAUM, 1987).

As pesquisas realizadas em Three Mile Island (TMI) mostram que os residentes da área relataram grande sentimento de desamparo e nenhum controle percebido sobre a situação (DAVIDSON, BAUM & COLLINS, 1982). Os dados também sugerem que os residentes estão incertos sobre os efeitos do acidente em seu bem-estar (BAUM et al. apud BAUM, 1987).

O sofrimento psíquico apresentado no período agudo do acidente de TMI foi superior ao verificado após quatro e nove meses, contudo, após nove meses 20% das pessoas continuavam apresentando sintomas de estresse (HOUTS et al., 1984).

Estudos de Bromet et al. (1982) indicaram que as mães de crianças residentes na vizinhança da usina de TMI apresentaram níveis altos de sofrimento e esse problema persistiu por todo o primeiro ano depois do acidente. Estudos posteriores indicaram a persistência desses efeitos por mais de três anos (DEW, BROMET & SCHULBERG, 1987).

Baum, Gatchel e Schaeffer (1983) e Gatchel, Schaeffer e Baum (1985) indicam que os residentes da área de TMI relatam maior número de sintomas indicadores de estresse do que grupos usados como controle em vários períodos de medida.

Dohrenwend (1983) encontrou evidências de elevada desmoralização, medo e distúrbios emocionais durante o mês seguinte ao acidente, mas esses efeitos declinaram rapidamente no segundo mês.

Os resultados do estudo de Davidson e Baum (1986) demonstraram que o estresse persistiu por, pelo menos, cinco anos após o acidente, e assinalaram que os residentes da área de TMI e de uma área de lixo tóxico exibem sintomas crônicos semelhantes aos do estresse pós-traumático.

Em um resumo das pesquisas realizadas em TMI, Bromet (1988) realça que os estudos indicam, em sua maioria, a presença de estresse tanto no período agudo, como em período posterior ao acidente. Em outro trabalho, Bromet (1991) sugere que as mães de crianças nascidas entre janeiro de 1978 e março de 1979 são, em geral, consistentes em suas preocupações, mesmo depois de passados dez anos. Por meio desses estudos, podemos concluir pela presença e persistência dos sintomas de estresse, distúrbios psicológicos, problemas de saúde e mudanças psicofisiológicas, e que o acidente de TMI se constituiu em um evento extremamente estressor.

Contudo, o estressor é construído, é um construto mental: um estado interno do indivíduo que percebe ameaças ao seu bem-estar emocional ou físico. Uma condição para que algo seja estressante é a percepção de uma suposta incapacidade de defesa contra suas conseqüências prejudiciais (SINGER, 1984). Assim, os acidentes são, primariamente, questões de percepção de risco, e não de realidade objetiva. O modo como as pessoas percebem sua situação, no contexto do acontecido, deve ser considerado como fator determinante na avaliação dos efeitos dos acidentes.

 

OBJETIVOS DO TRABALHO

Comparar a percepção das pessoas radioacidentadas pelo césio-137, em Goiânia, com ênfase na descrição da visão que têm de seus problemas no momento emergencial e remanescentes, após três e quinze anos do acidente.

Metodologia

1ª Fase: 1990

Considerações gerais - Os dados coletados nessa primeira fase antecedem a existência da Resolução 196/1996, que regulamenta os preceitos éticos da pesquisa com seres humanos.

Instrumentos - Avaliando os instrumentos sugeridos para a pesquisa dos aspectos psicológicos e psiquiátricos de acidentes e desastres (RAPHAEL, LUNDIN & WEISAETH, 1989), concluiu-se que, em separado, não se adaptavam completamente ao levantamento das características específicas do acidente radioativo de Goiânia. Desse modo, formulou-se uma entrevista estruturada com os conteúdos retirados dos instrumentos sugeridos e que se apresentavam como apropriados às dimensões do acidente ocorrido em Goiânia. Essa entrevista foi aplicada três anos após o acidente, com a finalidade de levantar as vivências das pessoas radioacidentadas e suas percepções sobre as características e dimensões do acidente radioativo, em dois momentos distintos: no período inicial, quando da eclosão do acidente, e no momento da pesquisa, três anos depois. A entrevista abrangeu uma avaliação da percepção do acidente radioativo sob os seguintes aspectos: problemas com nervos, saúde física, medo de morte, preocupação com efeitos do acidente, medo de lesões como conseqüência do acidente, medo do retorno de lesões, nível de tensão etc.

Visando avaliar a percepção da saúde geral, foi utilizado o Questionário de Saúde Geral de Goldberg (QSG), 1972. Esse instrumento, por voltar-se para o estado momentâneo, avalia mais os aspectos sintomáticos do que os aspectos estruturais (traços de personalidade e caráter), refletindo o estado atual do respondente em divergência ao seu estado usual. Nesse sentido, é considerado como o melhor instrumento para definir, na situação de desastres e acidentes, uma possível morbidez psiquiátrica (RAPHAEL, LUNDIN & WEISAETH, 1989; GOLDBERG, 1972). O QSG é composto por sessenta itens que apresentam uma estimativa do grau de distúrbio psiquiátrico de um indivíduo. O instrumento fornece tanto uma medida global da saúde geral, quanto uma análise de seus aspectos parciais. Em sua validação para o Brasil (PASQUALI et al., 1996), todos os itens se mostraram discriminatórios e a análise da estrutura interna do instrumento indicou que este não é unidimensional, sendo constituído pelos seguintes fatores: fator 1 - capacidade de realização; fator 2 - desejo de morte; fator 3 - tensão ou estresse psíquico; fator 4 - distúrbios psicossomáticos; e, fator 5 - distúrbios do sono.

Amostra

Pessoas radioacidentadas - Levando em consideração os critérios de classificação constituídos pelo Núcleo Médico da FunLeide (1988), optou-se por trabalhar com: a) os sujeitos que apresentaram os maiores níveis de contaminação e irradiação pela substância césio-137, com idade igual ou superior a 18 anos, que apresentaram radiodermites, ou dosimetria de corpo inteiro igual a 20 rad ou, ainda, atividades equivalentes a ½ LIA igual a 50 MCi; e, b) familiares ou pessoas que tiveram contato com as pessoas radioacidentadas, mas sem radiodermites, visto que o acidente teve um caráter comunitário e familiar, atingindo principalmente quatro famílias e as pessoas que mantinham interações com as mesmas. O tamanho da amostra foi condicionado à aceitação, por parte da pessoa contatada, em participar da pesquisa. Algumas pessoas se recusaram, alegando vinculação do pesquisador com a FunLeide, não desejarem ser tratadas como cobaias ou considerarem inútil sua participação ou a própria pesquisa. Um total de onze pessoas contaminadas e dez pessoas irradiadas foi entrevistado.

Grupo de controle - Para estabelecer um critério comparativo no que se refere aos resultados do Questionário de Saúde Geral, foram selecionadas 27 pessoas sem envolvimento no acidente, com as mesmas características demográficas apresentadas pelas pessoas contaminadas e irradiadas - sexo, idade, estado civil e renda.

Procedimentos - A aplicação dos instrumentos realizou-se integralmente na casa dos entrevistados, aceitando as condições do ambiente, no mês de novembro de 1990. Nas questões abertas, o entrevistador lia as perguntas e anotava as respostas do sujeito; nas fechadas, eram lidas as questões e as opções de resposta, e assinaladas as respostas escolhidas.

2ª Fase: 1992

Procedimentos - Buscando levantar a vivência e a percepção das vítimas sobre as características e dimensões do acidente radioativo de Goiânia, após quinze anos se realizou uma compilação de depoimentos veiculados em meio impresso e eletrônico. A fonte principal do corpus de análise é fornecida pela reportagem especial do jornal O Popular (28/9/2002) (ASSUNÇÃO) sobre os quinze anos do acidente radioativo de Goiânia. Procedeu-se a uma Análise de Conteúdo (BARDIN, 1977) dos depoimentos, visando estabelecer, para cada um dos relatos, sua síntese temática.

Considerações gerais - Os dados dessa fase foram coletados de forma indireta e correspondem, em sua maioria, a depoimentos individuais publicados em pesquisa realizada pelo jornal O Popular, nos meses de julho a setembro de 2002, por época dos quinze anos do acidente radioativo. A intenção do jornal era saber como viviam as vítimas, o que sentiam, o que havia sido feito por elas, o que haviam sofrido e o que gostariam de dizer sobre o acidente.

Os depoimentos foram colhidos junto a: (1) servidores públicos (bombeiros, policiais militares, funcionários da vigilância sanitária, etc.) que prestaram serviços no período da eclosão do acidente, e que fazem parte do inquérito do Ministério Público que busca apurar responsabilidades; (2) pessoas radioacidentadas indicadas pela Associação das Vítimas do Acidente com o césio-137; (3) pessoas indicadas pelas próprias vítimas (vizinhos e parentes que viviam nas zonas atingidas pelo acidente radioativo).

Embora possa ser questionado o uso de depoimentos para a imprensa em uma pesquisa científica, que deve de preferência buscar seus dados de forma direta, nessa segunda fase da pesquisa o uso de dados indiretos justifica-se pelo que se segue: (a) aumento da resistência a participar de pesquisas científicas entre as pessoas envolvidas no acidente: historicamente, a investigação científica com as vítimas tornou-se impossível em função da imagem negativa que estas desenvolveram dos cientistas, explicitando com freqüência o sentimento de serem tratadas como "cobaias"; (b) os depoimentos individuais publicados no jornal não foram editados em seu conteúdo, salvaguardando a integridade do testemunho dos participantes3.

 

RESULTADOS

Resultados da primeira fase (1990)

Para as variáveis que compuseram a entrevista, foram calculadas as distribuições de freqüência. Na descrição dos sintomas, utilizou-se a expressão empregada pelos participantes para descrever suas queixas, abaixo discriminadas.

A percepção de problemas com os "nervos" - A percepção da presença de problemas com os "nervos" eleva-se após o acidente, entre as pessoas contaminadas, de 9,1% para 72,7% e, entre as pessoas irradiadas, de 30% para 90%. O problema relatado em primeiro lugar por todos os sujeitos é o nervosismo ou irritação; seguem-se, ainda, sentimentos de confusão, encucação e tensão.

A percepção de problemas físicos (orgânicos) - Em relação à percepção de problemas físicos (orgânicos), antes do acidente nenhuma das pessoas contaminadas relatou a presença deles, enquanto 30% das pessoas irradiadas afirmaram sofrer de pressão alta, chagas, pneumonia, reumatismo, dores no corpo, dor no estômago (queimação) antes do acidente. Após o acidente, há um incremento no relato de problemas físicos (orgânicos), sendo que em 72,8% das pessoas contaminadas os mais freqüentes são: queimações no estômago, dores de cabeça e perda de membros. São relatados, ainda, dores no corpo, náusea, pressão alta, vista fraca e desenvolvimento de tumor. Entre as pessoas irradiadas, a proporção de problemas físicos elevou-se para 90%, sendo os mais freqüentes: dores no corpo, tonturas e náuseas. Aparecem também: úlceras nervosas, pressão alta, queimações no estômago, dores de cabeça, vista fraca e cólicas renais.

A morte como conseqüência do acidente - Entre as pessoas contaminadas, 63,6% pensaram que iriam realmente morrer como conseqüência do acidente, 9,1% pensaram que era possível que isso acontecesse, e 27,3% que era pouco provável. Entre as irradiadas, 50% pensaram que iriam realmente morrer, enquanto os outros consideravam isso pouco provável. Entre as pessoas contaminadas e irradiadas, respectivamente, 90,9% e 70% relatam a morte de pelo menos uma pessoa próxima como conseqüência do acidente.

A ocorrência e a severidade das lesões - 81,8% das pessoas contaminadas relataram lesões provocadas pelo acidente com o césio-137. Destas, a maioria (88,8%) considerou as lesões como severas, sendo que 27,3% registraram a permanência de lesões, 36,4% acusaram recidiva após a cicatrização, e 54,5% afirmaram sentir medo de que as lesões pudessem retornar. Entre as pessoas irradiadas, apenas uma pessoa (10%) relatou a presença de lesão como conseqüência do acidente, sendo essa considerada moderada. Contudo, havia o receio de retorno, embora não se tenha verificado permanência ou recidiva da mesma.

As maiores preocupações à época do acidente - Os problemas de saúde, apontados por 54,6% das pessoas contaminadas e por 50% das pessoas irradiadas, foram as maiores preocupações à época do acidente. São relatados também: o medo da própria morte e/ou da morte de familiares, o medo das autoridades, o medo de ficar deficiente, a incerteza quanto ao futuro, o aumento da dependência, a crise financeira, a desatenção das autoridades e a discriminação.

Após três anos do período agudo do acidente, os problemas de saúde (câncer - incluindo as leucemias - e outros problemas genéticos) continuavam a ocupar o centro da preocupação das pessoas radioacidentadas.

Os efeitos sobre a vida no trabalho - Antes do acidente, 63,6% das pessoas contaminadas trabalhavam em serviços externos (atividades autônomas ou com vínculo empregatício no mercado de trabalho) e 36,4% em serviços do lar. Após o acidente, as pessoas que exerciam funções externas foram aposentadas, e indicam como razões para não voltarem ao trabalho, principalmente, os problemas de saúde e a discriminação: 72,2% avaliaram sua situação de trabalho como pior que antes do acidente. Entre os irradiados, 70% trabalhavam em serviços externos e, após o acidente, 40% dessas pessoas foram aposentadas, sendo que 70% consideraram que sua situação em relação ao trabalho piorou após o acidente.

As conseqüências para a vida - Um total de 100%, nos dois grupos, considerou que o acidente trouxe conseqüências sérias para suas vidas. No grupo dos contaminados foram relatados: a discriminação, os problemas com o trabalho, os problemas nos relacionamentos, os problemas de saúde, a autodiscriminação, os problemas financeiros, a cansativa rotina de exames médicos e os problemas psicológicos. As pessoas irradiadas, por sua vez, relataram problemas de relacionamento, incerteza quanto ao futuro, problemas de saúde, perda de familiares, problemas com o trabalho e dependência. Entre os contaminados, 90,9% consideraram que seus problemas atuais são conseqüências do acidente e, entre os irradiados, 30% atribuem seus problemas atuais, em sua totalidade, ao acidente. O restante das pessoas - 10% no grupo das contaminadas e 70% no grupo das irradiadas - considera o acidente como parcialmente responsável por seus problemas.

A responsabilidade pela resolução de problemas - A resolução de problemas foi considerada atribuição,, principalmente, dos governos federal e estadual, tanto por pessoas contaminadas (81,8%) como por pessoas irradiadas (90%).

A necessidade de ajuda e a ajuda recebida - Durante o acidente, 81,8% dos contaminados relataram ter recebido algum tipo de ajuda, e destes 100% consideraram como forma principal o apoio/conversa/informação. Em seguida, aparecem o apoio material (alimentos, roupas, dinheiro) e a assistência médica. Entre os irradiados, 60% consideraram ter recebido algum tipo de ajuda. Destes, 30% relataram como principal forma de ajuda o apoio/conversa/informação, 20% a ajuda médica e 10% o apoio material.

Após três anos do acidente, 100% das pessoas contaminadas e 90% das pessoas irradiadas sentiram a necessidade de ajuda médica. Essas porcentagens caem para 72,7% e 60%, respectivamente, no que se refere à necessidade de ajuda psicológica, subindo para 81,8% e 80% em relação ao apoio social, e para 90,9% e 100% com referência à necessidade de ajuda econômica.

A superação do trauma com o tempo - Perguntadas se o acontecimento poderá ser superado com o tempo, 72,7% das pessoas contaminadas e 70% das irradiadas manifestaram a percepção de que o acidente nunca será superado em suas vidas.

A tensão ocasionada pelo acidente - À época crítica do acidente, as pessoas contaminadas indicaram ter sentido extrema tensão (45,5%) e muita tensão (27,3%); passados três anos, ainda indicavam sentir extrema tensão (27,2%) e muita tensão (36,4%). As pessoas irradiadas apontaram sentimentos de extrema tensão (60%) e muita tensão (20%) à época do acidente. Passados três anos, ainda relataram extrema tensão (40%) e muita tensão (20%).

O contato social - As médias para os dois grupos apresentaram uma tendência à diminuição.

A avaliação de saúde geral - Para verificar a ocorrência de diferenças entre os níveis de saúde geral em função do grau de envolvimento no acidente, foram realizados testes de diferenças entre as médias das pessoas contaminadas, das irradiadas e de um grupo de controle (pessoas sem qualquer envolvimento no acidente). A observação das médias indica uma padronização nos resultados obtidos na escala de saúde. O escore médio das pessoas irradiadas é sempre superior ao escore médio das pessoas contaminadas, exceto no fator 5, e este ,por sua vez, é sempre superior ao escore médio das pessoas sem envolvimento no acidente. Quanto maior for o escore médio obtido no teste, pior se considera o nível de saúde geral (Tabela 1, Figura 1).

 

Tabela 1: Médias e Desvios Padrões dos Escores em Saúde Geral.

 

As comparações entre os grupos indicaram que, em relação ao escore médio em saúde, as pessoas irradiadas, as pessoas contaminadas e o grupo de controle diferenciaram-se significativamente em três fatores do QSG (Tabela 2):

Pessoas Irradiadas versus grupo de controle:

Fator 2 - Desejo de Morte;

Fator 3 - Tensão ou Estresse Psíquico;

Fator 4 - Distúrbios Psicossomáticos; e

Escore Total.

Pessoas Contaminadas versus grupo de controle:

Fator 4 - Distúrbios Psicossomáticos.

 

Tabela 2: Diferenças entre Escore Parcial por Fatores e Escore Total no QSG.

 

Resultados da segunda fase (2002)

A Tabela 3 apresenta a síntese temática e a descrição dos problemas relatados pelas pessoas radioacidentadas, a partir dos depoimentos veiculados pelos meios de comunicação eletrônicos e impressos, após quinze anos do acidente.

 

Tabela 3: Síntese Temática dos Depoimentos das Pessoas Radioacidentadas, após quinze anos do acidente.

 

Os dados apurados por meio dos depoimentos indicam que a maior parte dos entrevistados declara ter ou ter tido vários problemas relacionadas à radiação pela substância césio-137. Os problemas descritos podem ser, mesmo que de forma secundária, vinculados à exposição ao material radioativo e/ou ao estresse pós-traumático crônico provocado por essa situação. São relatados, principalmente, problemas de saúde, problemas psicológicos, insuperabilidade do trauma, e, também, muitas suspeitas das pessoas de que os filhos, nascidos após o acidente, tiveram doenças genéticas a ele relacionadas.

São relatadas, ainda, mortes ligadas ao acidente, embora não reconhecidas oficialmente. Várias pessoas citaram nomes de colegas de trabalho, de parentes ou de vizinhos que tiveram envolvimento no acidente e que morreram com doenças como câncer.

Existe queixa da falta de critérios claros para o reconhecimento e a classificação das pessoas radioacidentadas. Esse não-reconhecimento implica na não-prestação de qualquer tipo de assistência médica, psicológica ou material.

Histórias de humilhação e discriminação, das mais variadas formas, são descritas nos depoimentos das pessoas entrevistadas. O valor da pensão recebido pelas pessoas radioacidentadas (somente as reconhecidas) funciona como um fator a mais de discriminação. As dificuldades em ingressar no mercado de trabalho restringem o sustento aos valores das pensões, o que é relatado como fator de queda no nível socioeconômico das famílias. A própria Superintendência responsável pela assistência às pessoas radioacidentadas é acusada de situações de discriminação, maus-tratos, ocultamento de informações, rejeição e falta de assistência.

 

DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

As limitações inerentes às pesquisas psicológicas sobre acidentes sugerem cautela na interpretação dos resultados; assim, todos eles se referem, exclusivamente, aos períodos de realização da pesquisa.

O acidente ocorrido em Goiânia constituiu-se em um evento altamente destrutivo, produzindo, por um lado, enquanto evento social: segregação, desorganização e migração. Por outro, enquanto evento psicológico: choque, estresse, medo e trauma.

Os resultados indicam, ainda, que a percepção de problemas psicológicos, bem como de problemas de saúde geral, tanto para as pessoas contaminadas quanto para as irradiadas, permanece elevada após três e quinze anos do acidente.

O acidente com o césio-137 parece ter influenciado tanto a saúde geral quanto a saúde física das pessoas radioacidentadas, aumentando o índice de percepção de problemas por todo o período que a ele se seguiu. Sobre o aspecto de saúde mental, a avaliação por meio de entrevistas, na primeira fase da pesquisa (três anos), não registrou diferenças entre os sintomas relatados pelas pessoas irradiadas e contaminadas. O nervosismo ou irritação foi o problema mais apontado, seguindo-se de sentimentos de confusão, encucação e tensão. Sobre o aspecto físico, os problemas mais constantes foram, nesta ordem: queimações no estômago, dores de cabeça, perda de membros, dores no corpo, náuseas, pressão alta, vista fraca, tumor, tonturas, úlceras nervosas, cólicas renais.

É importante ressaltar que os problemas de saúde física relatados não se referem diretamente a efeitos radiogênicos e parecem indicar a interação entre o orgânico e o mental, formulada por meio de sintomas somáticos. Os resultados indicam ainda que o maior contato com o material se associa a níveis mais altos de distúrbios orgânicos, o que é confirmado pela porcentagem superior de pessoas com tais problemas (físicos) no grupo de contaminados. Avaliando o aspecto das lesões provocadas pelo césio-137, a intensidade, a recidiva após cicatrização e a permanência das lesões (cicatrizes) parecem fomentar o medo de que elas possam retornar.

A preocupação principal, à época da eclosão do acidente, referiu-se aos problemas de saúde. Foram também relatados: medo da própria morte e/ou de familiares, discriminação, medo das autoridades, medo de ficar deficiente. À época da pesquisa (três e quinze anos depois), os problemas de saúde (câncer - incluindo as leucemias - e problemas genéticos) não deixaram de ser apontados como foco principal de preocupação das pessoas radioacidentadas. São ainda citadas: a incerteza quanto ao futuro, o aumento da dependência, a crise financeira, o medo da morte antecipada, a discriminação e a desatenção das autoridades.

Da mesma forma que em Chernobyl (TORUBAROV, 1991) e Hiroshima e Nagasaki (YAMADA, KODAMA & WONG, 1991), a principal preocupação refere-se ao medo das conseqüências da contaminação e da exposição à radiação sobre a saúde: perigo de desenvolver doenças, e morte.

Os resultados demonstram que, de modo geral, as questões predominantes no período agudo do acidente ainda se constituem em fator maior da preocupação presente e futura das pessoas radioacidentadas. Essa constatação corrobora os resultados de outros estudos, reafirmando que o fato de se tratar de acidente envolvendo substância radioativa estende a vitimação, tornando-a crônica (BAUM, 1987).

A preocupação com a saúde, a incerteza quanto ao futuro, bem como o medo de ficar deficiente e o medo de morte são compreensíveis, como assinalamos, a partir da especificidade radioativa do acidente. Contudo, uma outra preocupação, a saber, o processo discriminatório sofrido, embora à época do acidente pudesse ser compreendido a partir do mesmo fator, nos momentos temporais da pesquisa parece advir da falta de conhecimento e informação da grande parte da população que acredita, ainda, que seu bem-estar possa ser afetado pela proximidade dessas pessoas. Esse aspecto se reflete, principalmente, nas mudanças radicais ocorridas no plano do trabalho, em que o fator mais agravante foi a discriminação das pessoas radioacidentadas.

Sobre esse aspecto, poderia ser importante que, no âmbito microssocial (compreendendo o circuito de relacionamentos desses indivíduos), houvesse uma intervenção com função de esclarecimento e informação que pudesse extinguir ou, pelo menos, diminuir a discriminação a que os radioacidentados são muitas vezes submetidos.

Todas as pessoas radioacidentadas consideram que o acidente ocasionou conseqüências em suas vidas e a quase totalidade delas sente a necessidade de ajuda médica, econômica, social e psicológica. Sobre a ajuda recebida durante o acidente, o apoio/conversa/informação são indicados pelos dois grupos como a principal forma, seguida pelo apoio material e a assistência médica. À época da primeira fase da pesquisa (três anos), no entanto, é o apoio econômico (material) que aparece como a forma principal para os grupos.

Para as pessoas irradiadas e contaminadas, o acidente não será superado. Os resultados indicam que, decorridos três e quinze anos, a percepção da maior parte dos radioacidentados é a de que seus efeitos permaneceram em suas vidas. Os dados referentes à tensão provocada, tanto no período crítico quanto nos dois momentos da pesquisa, indicam que não houve um decréscimo substancial da tensão relatada, o que corrobora os dados referentes à percepção de superação do acidente. Sobre esse último aspecto, o trabalho de Quarantelli (1991) indica a mesma percepção de longa duração para os acidentes envolvendo radiação. A incerteza sobre os efeitos e o fato de que os problemas de saúde podem não se manifestar por muitos anos constituem-se em fonte de ansiedade e depressão (GILBERTI & WALD, 1991).

No Questionário de Saúde Geral (QSG), os resultados indicam que, provavelmente, as pessoas contaminadas apresentam um padrão mais baixo de saúde que as do grupo de controle, mas registrando um nível de significância, principalmente sob o aspecto psicossomático. Contudo, as pessoas irradiadas também apresentam um padrão mais baixo de saúde geral em comparação ao grupo de controle, de forma generalizada, ou seja, significante em diversos fatores. De uma maneira geral, os escores indicaram um nível mais baixo de saúde geral para as pessoas radioacidentadas, em comparação ao grupo de controle.

 

CONCLUSÃO

As pesquisas psicológicas sobre acidentes são caracterizadas por vários aspectos que as tornam singulares. Uma razão para isso é que o estudo padece de dificuldades metodológicas, em parte inflacionadas pela própria natureza do evento. Dados anteriores aos acidentes, relacionados às pessoas atingidas, são raramente conhecidos, e uma avaliação do estado mental e físico é quase impossível. No momento agudo dos acidentes, principalmente, é muitas vezes impraticável fornecer ajuda e manter uma coleta de dados sistematizada, em virtude do próprio caos instalado. Por essas razões, muitos estudos só se iniciam após o seu término.

O presente estudo consistiu em uma sistematização de dados sobre a percepção das pessoas radioacidentadas em Goiânia, com ênfase no levantamento dos problemas relatados no momento do acidente e remanescentes após três e quinze anos passados de sua ocorrência.

Os acidentes, de um modo geral, e o acidente radioativo de Goiânia, em específico, trazem questões de realidade objetiva que sofrem a interferência da realidade subjetiva das pessoas envolvidas. Assim, a percepção de risco, a forma pela qual as pessoas percebem sua inclusão no contexto situacional do acidente radioativo e a configuração contexto-situacional do momento da pesquisa devem ser consideradas. Desse modo, é possível inferir que os depoimentos, tanto da primeira quanto da segunda fase, podem estar sendo modulados pela intencionalidade dos pesquisados, muitas vezes em uma atitude de "militância política" em causa própria, visando tanto ampliar a natureza dos benefícios de saúde e financeiros recebidos quanto o número de pessoas a serem beneficiadas. Contudo, para além da consideração dos "benefícios secundários", é preciso não perder de vista a dramaticidade, a severidade e a destrutividade das conseqüências do acidente para as pessoas nele envolvidas, em aspectos físicos, sociais e psicológicos, bem como não se pode esquecer o papel das incertezas e do terror provocados pelo envolvimento de substância radioativa.

No que se refere à segunda fase da pesquisa (2002), o uso de depoimentos veiculados na imprensa como corpus de análise implica a necessidade de flexibilizar os resultados, em virtude de o material de imprensa ser coletado em condições diferentes daquelas em que se dá uma entrevista de pesquisa acadêmica. Embora se afirme a não-edição do conteúdo dos depoimentos e a integridade do testemunho dos participantes, as declarações podem, ainda assim, ter sido mediadas por vários fatores, desde o estilo do jornalista e/ou do editor, até o espaço previsto para a veiculação e o público que se desejou atingir, podendo esse corpus não ser fiel à percepção das pessoas entrevistadas, e sim à forma como a imprensa decidiu tratar a matéria.

No entanto, embora os aspectos assinalados devam ser considerados no que se refere aos resultados e conclusões, eles não obstruem o fato de que o cotejamento entre os dados obtidos pela análise do conteúdo dos depoimentos da primeira fase da pesquisa (1990) e os dados obtidos pela análise de conteúdo dos depoimentos veiculados pela mídia (2002) indica uma coincidência de resultados.

Em resumo, a análise dos dados sugere que:

1. O acidente foi e continuou sendo de grande severidade para as pessoas nele envolvidas, após três e quinze anos de sua eclosão. O envolvimento de substância radioativa parece estar estendendo a duração da vitimação.

2. O nível de estresse experienciado no acidente não decresceu substancialmente após três e quinze anos passados do período crítico de sua eclosão.

3. O acidente parece ter influenciado a saúde geral das pessoas radioacidentadas, aumentando a percepção de problemas no período de três e quinze anos após o acidente. No período de três anos, a comparação dos escores indicou que, de um modo geral, as pessoas radioacidentadas não se diferenciam entre si e apresentam, provavelmente, níveis mais baixos de saúde geral que as pessoas sem envolvimento no acidente.

4. As preocupações principais, tanto no período crítico do acidente quanto nos períodos da pesquisa, referem-se a problemas de saúde, problemas psicológicos, discriminação, descaso e omissão das autoridades, insuperabilidade do trauma, entre outras.

5. A principal forma de ajuda percebida no período crítico do acidente refere-se a apoio/conversa/informação. Após três anos, a principal forma de ajuda percebida concentra-se em recursos materiais (ajuda médica e econômica).

6. Após três anos passados do acidente, a maior parte dos radioacidentados avaliou que o acidente não seria superado. Após quinze anos, verifica-se, por meio dos depoimentos, a permanência de seus efeitos nas vidas das pessoas radioacidentadas.

Conclui-se que os efeitos dos acidentes radioativos na saúde geral podem ser estruturados, apresentando componentes agudos que podem desaparecer com o término do evento, ou crônicos, que tendem a se prolongar mesmo após a sua "resolução".

O impacto de um acidente é exacerbado quando a radiação é um de seus componentes. Pouco sabemos sobre esse fenômeno, e muito precisamos aprender para entender e responder efetivamente às pessoas que sofrem de problemas de saúde relacionados à radiação ou, preferencialmente, para minimizar a potencialidade de desenvolvimento de tais efeitos no futuro.

No segundo maior acidente radioativo do planeta, mesmo após quinze anos, a dor do césio-137 não decresce. Para muitos radioacidentados, ao contrário, ela está cada vez mais forte. O tempo não cura.

 

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Endereço para correspondência
Prof. Dr. Fábio Jesus Miranda
E-mail: fabiomiranda@ucg.br

Prof. Dr. Luiz Paquali
E-mail: labpam@unb.br

Prof. Dr. Sebastião Benício da Costa Neto
E-mail: sbcneto@ih.com.br

Prof. Ms. Márcio de Queiroz Barreto
E-mail: samspade_48@hotmail.com

Gilberto David Filho
E-mail: gilbert_psi@yahoo.com.br

Thyago do Vale Rosa
E-mail: thyagovr@yahoo.com.br

Recebido em: 15/10/05
Revisado em: 06/07/05
Aprovado em: 01/08/06

 

 

1Unidade do Sistema Internacional de Medidas utilizado para medir a atividade de uma amostra radioativa, ou seja, o número de desintegrações nucleares dos seus átomos na unidade tempo. O Becquerel (Bq) foi introduzido em substituição ao Curie (Ci). A relação ente o Ci e o Bq é: Ci = 3,7 X 1010 Bq (OKUNO, 1988).
2Cileide Alves, coordenadora editorial (Comunicação pessoal em 14/7/2006).

 

ANEXO

Este anexo é composto de 63 depoimentos de pessoas radioacidentadas em Goiânia. Os depoimentos têm como fonte principal a reportagem especial do jornal O Popular, edição de 28/9/2002, sobre os quinze anos do acidente radioativo de Goiânia.

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