Arquivos Brasileiros de Psicologia
ISSN 1809-5267
ARTIGOS
Fantasia e a transferência: articulações a partir do texto Gradiva de Jensena
Fantasy and transference: the shifts in the psychoanalytic clinic
Karla Patricia Holanda MartinsI; Débora Passos de OliveiraII
I Docente. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade de Fortaleza (Unifor). Fortaleza. Ceará. Brasil
II Mestranda. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade de Fortaleza (Unifor). Fortaleza. Ceará. Brasil
RESUMO
O presente trabalho destina-se a investigar a relação entre os conceitos de fantasia e de transferência. Nosso interesse é explicitar os desdobramentos do fazer analítico, tendo em vista a inter-relação entre os dois conceitos a partir do ensaio freudiano sobre a Gradiva de Jensen. Dessa forma, analisaremos os principais deslocamentos que o conceito de fantasia promove no entendimento da transferência, em especial nas suas relações com a repetição.
Palavras-chave: fantasia; transferência, repetição, Gradiva.
ABSTRACT
This paper aims to investigate the relationship between fantasy and transference. Our interest is to explain the outspreads of the analytic doing, focusing in the interrelationship between the concepts, coming out of Freud's essay on Jensen's Gradiva. Thus, we will analyze the major shifts that fantasy provides to the understanding of transfer and relationship with repetition.
Keywords: fantasy, transference, repetition, Gradiva.
Introdução
A proposta deste texto é creditar importância aos primeiros debates entre Freud e seus contemporâneos. Em particular, pensar sobre o impacto do texto do escritor W. Jensen sobre as formulações acerca dos conceitos de fantasia e transferência na primeira década do movimento psicanalítico.
Cem anos atrás, Freud seguia os passos de Gradiva, celebrando o início de sua amizade com Carl Jung, momento ainda fértil pela fascinação e descobertas de ambos. A graciosa mocinha – personagem do texto do escritor alemão W. Jensen – foi apresentada por Jung a Freud ainda em 1906. Na correspondência entre maio e junho de 1907, Freud agradece os elogios de Jung a seu texto sobre Gradiva (termo que significa “aquela que se movimenta”), afirmando que o livro de Jensen “(...) nos permite regozijarmo-nos de nossa riqueza (...)”. Jung responde: “(...) acho excelente esta frase de sua última carta, de que podemos nos regozijar da riqueza. Eu me regozijo toda semana da riqueza do senhor e vivo das migalhas que caem da mesa do rico” (MCGUIRE, 1907/1976, p.120). Freud responderá, dois dias mais tarde, para marcar sua estranheza que seja ele o rico de cuja mesa cai alguma coisa para o amigo.
Embora o texto de Freud apareça em muitos momentos citado ao lado dos textos que se ocupam da estética, O delírio e os sonhos na Gradiva de W. Jensen será considerado aqui como o texto que vai inaugurar uma nova vertente do conceito de transferência e de sua operacionalização na clínica. Cabe ressaltar que nenhuma contradição no que diz respeito a sua participação no rol dos textos freudianos sobre a estética está sendo apontada. Ao contrário, entende-se que a transferência nos permite pensar a dimensão estética do trabalho analítico, posto ser considerada uma operação que, ao colocar em cena o discurso amoroso em sua articulação com a pulsão, convoca o corpo erógeno e seus afetos, registro do sensível na experiência analítica.
Freud falará mais tarde sobre a propriedade da transferência de produzir, no trabalho de elaboração, uma “nitidez plástica“ (1940/1970, p.176). Em síntese, Gradiva conduz Freud a uma nova concepção do conceito de transferência e principalmente a uma nova clínica analítica, aquela que pode ser chamada de“clínica do amor”.
Os deslocamentos do conceito de transferência
O termo transferência aparecerá nos Estudos sobre a histeria (1895b) como uma forma de deslocamento. Nos anos seguintes, mais precisamente no Pós-Escrito ao relato do caso Dora, Freud (1905/1970) mantém a ideia de deslocamento, acrescentando a função de substituição de edições revistas de antigas fantasias, tomando-a assim como fenômeno-condição do trabalho analítico.
O conceito de transferência foi ganhando em seu curso novos aspectos que não implicavam necessariamente uma abolição das afirmações feitas anteriormente. Frases sobre a transferência, tais como: “(...) somente depois de resolvê-la o paciente pode obter uma sensação de convencimento (...)” e “(...) ela [transferência] tem uma força de convicção maior que qualquer outra coisa (...)”, são encontradas no Caso Dora – Fragmentos da análise de um caso de histeria (1905/1970, p.102) e no “Esboço de Psicanálise” (1940/1970, p.204), respectivamente. O que se modifica, ao longo desses anos, é a posição a ser ocupada pelo analista diante da transferência, considerada como um lugar estratégico. De um caso particular de deslocamento a fenômeno-condição da análise, há uma mudança especialmente quanto a seu estatuto e sua utilização. A entrada em cena da transferência como um lugar estratégico para vencer a resistência levará Freud a reconsiderar a importância antes dada à interpretação das resistências.
É com Gradiva que veremos surgir explicitamente uma concepção de transferência articulada ao conceito de fantasia e à dinâmica pulsional. A ideia fundamental é de que a libido já está pronta “por antecipação” para ser dirigida ao objeto mais disponível, posto que a necessidade de amor não é jamais satisfeita pela realidade (FREUD, 1912/1970, p.98). No texto Pontualizações sobre o amor transferencial (1915/1970) Freud ressalva que, embora a resistência desempenhe um papel inquestionável no amor transferencial, ela “(...) não cria esse amor, encontra-o pronto, à mão” (p.166). O amor já existia quando a resistência resolveu dele se utilizar, agindo como um agent provocateur – ela [a resistência] intensifica o estado amoroso da paciente e exagera sua disposição à rendição sexual” (IDEM, p.167, grifos do autor). Desse modo, “o valor do objeto pode ser meramente tático” (1912/1970, p.101).
No texto de 1912, “Sobre a dinâmica da transferência”, Freud faz uma analogia entre a posição ocupada pelo analista e uma situação de guerra em que a posse de uma igrejinha está sendo disputada por seu valor puramente estratégico, não significando que esse objeto contenha em si um valor especial. O analista representa um “objeto imaginário” (FREUD, 1917/1970, p.530) que será incluído nas séries psíquicas já formadas pelo paciente. Nesse momento: “(...) a paciente, ainda que a mais dócil, perde todo o entendimento do tratamento e todo o interesse por ele, não quer falar nem ouvir mais que de seu amor (...)” (FREUD, 1915/1970 p.165).
Curiosamente, quanto mais perto da dissidência com Jung mais Freud aprofunda a dimensão sexual da transferência, ou a presença do sexual na cena analítica, o que coloca a transferência a serviço da resistência. De acordo com Freud(1912/1970): “(...) na cura analítica a transferência nos aparece sempre (...) como a arma mais poderosa da resistência” (p. 102). Mais tarde, quando retoma o tema da transferência, Freud (1915/1970) afirma que o caráter sexual na cena analítica produz: “(...) uma completa mudança de cena, como quando um jogo dramático é interrompido por uma realidade que irrompe subitamente, por exemplo, um grito de incêndio que se ergue durante uma representação teatral” (p.165). É válido ressaltar que Freud, nessa ocasião, relaciona a paralisia das associações à irrupção do sexual. No entanto, com essa suspensão do movimento, tal como um grito inesperado, Freud já demarca o valor dissociativo de alguns materiais que emergem na cena analítica. Se o amor é condição de análise, o mesmo não ocorre com o caráter sexual. A transferência, aqui representada pela figura da Gradiva, atualiza a vertente do amor, da pulsão, do deslocamento e da paralisia, do “fechamento do inconsciente” (LACAN, 1964, p.125).
Voltemos à cena de Gradiva, onde encontraremos em Freud as primeiras teorizações de temas que posteriormente serão também caros à psicologia analítica, tais como: a percepção, o dejà vu e a fausse reconassance. Como foi dito, o conceito de transferência agora se articula ao de fantasia. O que Freud vinha tomando por fantasia e o que se modifica nesste momento pontual de suas conceituações?
A transferência: a cena da fantasia
O conceito de fantasia na obra de Freud recebe várias denominações, que vão do brincar infantil, passando pelo devanear e pelas criações literárias, até as fantasias inconscientes, precursoras dos sintomas. A fantasia, situando-se no limite entre o consciente e o inconsciente, não adquire nos textos freudianos uma distinção no que diz respeito aos seus vários usos. Laplanche e Pontalis (1985), por exemplo, assinalam que pensadores pós-freudianos chegaram a sugerir a utilização de grafias diversas para diferenciar as fantasias inconscientes daquelas de acesso livre.
A fantasia ocupa o pensamento freudiano desde 1897, época em que Freud compartilhava suas elaborações através de uma correspondência assídua com Fliess. Podemos observar que esta, a princípio, ainda se associava à teoria da sedução, sendo vista como uma proteção da cena verídica. De acordo com Freud (1892-1899/1970), as fantasias são, nesse momento: “(...) estruturas protetoras, sublimações dos fatos, embelezamento deles (...)” (p. 296). Nesse período, Freud afirma que só podemos chegar aos fatos da realidade material através dessas fantasias encobridoras.
Na segunda parte do “Projeto para uma psicologia científica” (1895a), Freud explicita que a etiologia da neurose ocorre em dois tempos. O primeiro se refere à cena de sedução, em geral passiva, a qual não é entendida pela criança, já que esta ainda não tem acesso à sexualidade; o segundo diz respeito à época da irrupção da sexualidade na puberdade, quando a primeira cena pode finalmente ser entendida. O aparecimento do conceito de fantasia em 1897 ainda corrobora com a ideia, apresentada no Projeto, de que na infância não haveria sexualidade. Dessa forma, podemos observar que a fantasia e a teoria da sedução coabitaram o construto teórico da psicanálise.
No período de re-elaboração da teoria da sedução, quando também propõe o conceito de realidade psíquica, dois conceitos fundamentais somam-se à fantasia para dar a esta uma autonomia em face da cena traumática. Um desses conceitos é formulado pouco tempo depois, quando questões são abertas na teoria da sedução: trata-se do complexo de Édipo. Freud (1897/1970) chega a essa formulação através de sua autoanálise. Nela verifica que, também no seu caso, “(...) a paixão pela mãe e o ciúme do pai (...) são constitutivos” (p.316). Passa, então, a considerar esse evento como universal na infância, o que destitui o fator acidental da hipótese de sedução. Nesse período, começa a ficar insustentável a ideia de que a sexualidade incidiria apenas na puberdade. Assim, a teoria da sexualidade infantil começa a se insinuar no pensamento freudiano: “Devemos supor que, na infância, a liberação da sexualidade ainda não é tão localizada como o é posteriormente, de modo que as zonas (e talvez também toda a superfície do corpo) que depois são abandonadas também provocam algo análogo à liberação posterior da sexualidade” (FREUD, 1897/1970, p.319).
Segundo Marco Antonio Coutinho Jorge (2005, p.3), Freud se ocupa do conceito de fantasia durante um período que vai de 1907 a 1911, o qual pode ser denominado de “período áureo da fantasia”. Nesses textos, Freud (1908/1970) afirma que: “As forças motivadoras das fantasias são os desejos insatisfeitos, e toda fantasia é a realização de um desejo, uma correção da realidade insatisfatória” (p.152). Tal como nas primeiras elaborações, as fantasias aparecem como estruturas reparadoras de uma realidade insatisfatória: passam a proteger o sujeito não de uma realidade externa, mas de uma realidade interna.
De acordo com Laplanche e Pontalis (1985): “Se a fantasia se revela como um campo autônomo (...) deixa intacta a questão de sua própria origem (...)” (p.45). Essa afirmação nos mostra que o abandono do fator acidental cria desequilíbrios teóricos, tal como o de situar a origem da fantasia. Freud (1914b/1970), confrontado com essa mesma questão, recorre ao fator constitucional afirmando que: “a disposição e a experiência estão aqui ligadas numa unidade etiológica indissolúvel, pois a disposição exagera impressões (...) de modo a transformá-las em traumas” (p.28).
Ao trabalhar o romance do escritor alemão Wilhelm Jensen Gradiva: uma fantasia pompeiana (1903/1987), Freud (1907/1970) pode oferecer novos contornos para a relação entre fantasia e transferência. Vamos retomar brevemente a história de Jensen. Norbert Hanold é um jovem arqueólogo “que não se interessava por mu¬lheres vivas” (FREUD, 1907/1970, p.52). Em seus estudos devotava particular aten¬ção a figuras femininas feitas de mármore ou bronze, vindo a se interessar especial¬mente por um alto-relevo que denominou Gradiva. O seu encontro com Gradiva (o relevo) desencadeou um conjunto de fantasias que o faziam crer que aquela mulher havia vivido em Pompeia, por ocasião do soterramento vulcânico daquela cidade (ano 79 d.C.). Na tentativa de reencontrá-la, segue para a Itália.
Na infância, Hanold mantinha amizade com uma menina de nome Zoe Bertgang. Essa convivência forneceu a base do interesse posterior do jovem pelos pés e pelo andar das mulheres. Zoe, graciosamente, costumava andar apoiando-se nas pontas dos dedos, deixando os pés numa posição quase perpendicular ao chão, posição reproduzida na peça encontrada pelo arqueólogo. A figura feminina em mármore parecia-lhe atual e viva: era como se seu autor tivesse reproduzido sobre a peça uma visão captada das ruas. Partindo dessa ideia, Hanold confere àquela escultura características que justificam sua origem e contemporaneidade. A ideia de que Gradiva possui aquele andar substitui o seu reconhecimento de que aquele andar pertence a uma mulher da época presente – Zoe Bertgang. “Por trás da impressão de que a escultura era viva e da fantasia de que o modelo era grego, estava a sua lembrança do nome Zoe, que significa ‘vida’ em grego” (FREUD, 1907/1970, p.57). Assim, mais adiante pontua Freud: “(...) existe uma perfeita analogia entre o soterramento de Pompeia – que fez desaparecer, mas ao mesmo tempo preservou o passado – e a repressão, de que ele tinha conhecimento através do que poderíamos chamar de percepção endopsíquica” (p.57).
Ao mesmo tempo em que a fantasia permite esse estado de conciliação entre passado e presente, é também causa de estranhamento. Freud, seguindo esse raciocínio, valoriza os efeitos de convicção produzidos em Hanold por ocasião de um sonho sobre a origem de Gradiva e as relações mantidas pelo par (IDEM, p.60-63). As imagens oníricas e a conotação afetiva reproduzidas deram ao jovem a certeza de que não só Gradiva vivera em Pompeia, mas também Hanold estivera lá na ocasião. Ao despertar desse sonho, o rapaz interpretou os ruídos da cidade como restos da cena vivida em 79 d.C., fato que conferia realidade (e atualidade) às imagens oníricas.
Na proposição freudiana a noção de realidade confunde-se, muitas vezes, com a de atualidade. Sua teoria sobre as fantasias é definitiva na adoção dessa perspectiva: “O trabalho anímico se liga a uma impressão atual, a uma ocasião do presente que foi capaz de despertar os grandes desejos da pessoa; desde aí se remonta a recordação de uma vivência anterior, infantil na maioria das vezes, em que aquele desejo se cumpria, e então cria uma situação referida ao futuro” (FREUD, 1908/1970, p.130). Portanto, é um equívoco dizer que não existe indicação de realidade no inconsciente; o que não existe é a possibilidade de estabelecer um critério de distinção entre verdade e ficção segundo uma lógica da consciência.
Serge Cottet (1990) lança a hipótese de que, uma vez que não se pode dissociar verdade e ficção, se devem tomar “verdade e realidade psíquica como homogêneas; a verdade é definida como o limite do que o aparelho psíquico pode tolerar” (p.102). Nas palavras de Freud (1937/1970): “(...) se a percepção da realidade objetiva traz desprazer, ela – ou seja, a percepção – tem que ser sacrificada” (p.239). Dessa forma, apesar da assepsia que a censura tenta promover, obrigando o inconsciente a sair mais uma vez do terreno conquistado, a presença da inquietante estranheza já se estabeleceu por ocasião do reconhecimento. Assim, a percepção é efeito de uma interpretação já realizada, conduzida pelo saber inconsciente e re-conhecida a posteriori. Tais considerações seguem na mesma direção do enunciado de Freud de 1897, no qual as fantasias são tomadas como produtos de “percepções que só podem ser compreendidas subsequentemente” (FREUD apud MASSON, 1986, p.237). Uma experiência de déjà vu, por exemplo, seria a confirmação de que existe uma anterioridade lógica das fantasias inconscientes – do desejo – em relação à percepção. Algo se antecipa como atualidade, tendo, no entanto, sua origem no passado. Por esse motivo, a tentativa de conciliação realizada na fantasia nunca é satisfatória para o eu-realidade.
No artigo “Sobre as lembranças encobridoras” Freud (1899) fala-nos, pela primeira vez, de uma lembrança primária que encobre as posteriores. A representação desse tipo de “recordação encobridora” não é o mais corrente no pensamento freudiano, sendo mais mencionado um tipo de “recordação posterior que serve como tela protetora de um acontecimento primário” (p.294). No entanto, é a partir de uma apreciação acerca da lembrança encobridora que a anterioridade de uma via interpretativa apresenta-se na obra freudiana. Podemos observar, todavia, que uma tal recordação, a fantasia inconsciente, vela a realidade, mas, contudo, de forma parcial, nas palavras de Freud (1889): “a fantasia não se recobre então por completo com a cena da infância, só se apresenta em alguns pontos dela” (p.312). Há algo que escapa no objeto e o que escapa está do lado da pulsão, sendo esta ao mesmo tempo força e exigência de simbolização.
O eu está sempre atrasado em relação aos efeitos deixados pelo rastro pulsional por ser, em si mesmo, efeito do investimento pulsional nos traços mnêmicos. Em suma, o eu consiste, a princípio, no resultado a posteriori do investimento de tais traços, sendo a transferência (aqui tomada na vertente do deslocamento de intensidade de uma representação a outra) um dos seus recursos para organizar o campo da simbolização, garantindo-lhe uma posição de mobilidade. Com a perda do objeto de satisfação, resta ao eu inscrever psiquicamente essa demanda pela via da representação, definindo-se desde já que a ordenação do campo simbólico depende de um intérprete. Dessa forma, a pulsão adquire um representante e mantém a sua figuração afetiva.
Birman (1993) propõe que se afaste do discurso freudiano sobre o amor uma perspectiva pedagógica e moral. Opta assim por falar da paixão, da relação que ela estabelece com a ruptura e da descontinuidade imposta pela pulsão de morte. O autor destaca os paradoxos da paixão na sua relação com Tanatos:
“A dificuldade que impõe a situação analítica é justamente a de conviver com o paradoxo, ou seja, abrir as fendas do ego para a irrupção da paixão e deixá-la falar de maneira interminável, sem satisfazê-la, pois a sua retomada pelo sujeito no plano discursivo implica que este deva dar inevitavelmente um destino à paixão despertada pela transferência. Com isso, a psicanálise devolve ao sujeito o encargo de conviver integralmente com sua paixão, com todos os riscos subjacentes, isto é, com seu fascínio e seus impasses” (p.87).
Retomemos a história de Jensen. O jovem arqueólogo, após algumas dificuldades no seu percurso, chega a Pompeia, onde descobre uma moça com aspectos semelhantes aos da escultura. Ao sol do meio-dia, hora dos mortos, Hanold vai ao encontro desta que representa, no seu delírio, a re-encarnação da antiga Gradiva. Percebendo o estado em que o rapaz se encontra, a jovem, num primeiro momento, aceita o papel que lhe é destinado. Dessa posição, ela vai oferecendo elementos que produzem rupturas nas continuidades estabelecidas por Hanold entre a situação do passado e a atual. Ao final, o objeto é destruído na fantasia, Gradiva retorna ao mundo dos mortos e Hanold encontra-se livre de seu delírio, em estado de disposição para o amor (o que coincide com a sua capacidade de reconhecer na moça traços de semelhanças com a menina de sua infância).
Em sua interpretação final do romance, Freud faz uma analogia entre o percurso de Hanold na sua busca por Gradiva e os caminhos possíveis de um sujeito em análise, como “modelo de cura pelo amor” (1907/1970, p.92). “Se no termo amor combinamos todos os diversos componentes da pulsão sexual” (IDEM), Gradiva representa a figura do analista, suporte da fantasia de Hanold, o analisando. Estabelece três semelhanças a fim de justificar sua analogia, quais sejam: em ambos tratar-se-ia de tornar consciente o que foi recalcado, fazer coincidir esclarecimento e cura, e, principalmente, “a paixão que ressurge, seja ódio ou amor, invariavelmente escolhe como objeto a figura do médico” (IDEM). Este, para Freud, é o ponto-limite para as semelhanças, posto que, ao contrário de Gradiva, o analista não deve corresponder ao amor tornado consciente, regra retomada por ele alguns anos depois nos ditos textos técnicos. A figura de Zoe-Gradiva representa na narrativa de Jensen sua mais refinada expressão: o veículo de retorno do recalcado é o mesmo que o originou. Nesse sentido, mesmo quando faz intervir o acaso, “a fuga é o instrumento mais seguro para se cair prisioneiro daquilo que se deseja evitar” (IDEM, p.49).
Também no romance, é a partir da presença do sexual que se estabelece a possibilidade de reconhecimento. O relevo antigo despertara o erotismo de Hanold, mas só como atuais essas lembranças podiam adquirir operacionalidade. Ou, nas palavras de Freud, “foi uma antiguidade que arrancou nosso arqueólogo do seu afastamento do amor, advertindo-o a pagar a dívida que desde o nascimento pesa sobre nós” (IDEM, p.56). Nesse momento, a questão do amor é central na problematização freudiana, a ponto de Freud declarar: “Todo tratamento analítico é uma tentativa de libertar amor reprimido que, na conciliação de um sintoma, encontrara escoamento insuficiente” (FREUD, 1907/1970, p.92).
Retornemos às características dos objetos eleitos pelos personagens. No conto de Jensen, a escultura é uma cópia de gesso do original de bronze descoberto em Roma. Quando encarnada por Gradiva, deveria aparecer somente ao meio-dia, hora dos mortos, quando “despertavam e começavam a conversar na língua muda dos fantasmas” (JENSEN, 1903/1987, p.42). Em vez de rosas da primavera, Gradiva recebe um ramo de asfódelos, conhecidas como flores fúnebres ou do esquecimento. Suas primeiras aparições são silenciosas e fugidias, aspecto que coloca o leitor numa atmosfera de incerteza quanto à sua natureza real ou fantasmática. Assim, Gradiva encena a morte ao mesmo tempo em que é tomada por Hanold como objeto de amor. Na fantasia, o objeto do desejo e o objeto do amor coincidem. A abordagem desse objeto é, primariamente, estética.
As cenas iniciais são desprovidas de diálogo e marcadas pelo silêncio. Gradiva possui uma beleza glacial; é uma bela adormecida, cujos encantos foram congelados pelos anos. Tais qualidades vão transformando-a num ser simultaneamente morto e vivo, instaurando uma atmosfera de estranheza. Essa atmosfera de inquietante estranheza, a um só tempo de reconhecimento e recobrimento, foi descrita por Freud em 1919/1970. O objeto-causa da estranheza produz, simultaneamente, sentimentos de familiaridade e incerteza. A lógica operada se baseia na dúvida quanto aos poderes do objeto, que, do ponto de vista do sujeito em questão, pode passar ao mundo dos vivos a qualquer momento, instaurando, dessa forma, a angústia. Segundo Freud, a atribuição de tais poderes aos objetos é resquício do funcionamento de uma crença onipotente, de origem infantil (FREUD, 1919/1970, p.291-2). A angústia é um sinal que o sujeito emite quando se vê na iminência de ocupar o lugar de objeto; ou seja, ela é, portanto, efeito da transitividade sujeito/objeto. Freud anuncia aqui as ideias que irá desenvolver no ano seguinte (1920/1970), quando utiliza o jogo do fort-da para ilustrar a tentativa da criança em dominar a cena transitiva e o jogo pulsional, colocando-se em posição ativa.
O contorno alegórico de Gradiva leva-nos também ao encontro de um texto de Freud escrito em 1913: O tema dos três escrínios. A ideia central desenvolvida ali é de que a relação do homem com o tempo se constrói a partir da relação com a morte, a terceira e última das suas escolhas (as outras duas são referentes à mãe e à esposa). É interessante observar o prenúncio do raciocínio empreendido por ele em Além do princípio do prazer (1920).
Em 1913, Freud apresenta sua tese inventariando, nos contos de fadas e na literatura de Shakespeare, os objetos/personagens que encenam e são causa dessas escolhas. Em O Mercador de Veneza, um homem deve escolher um entre três escrínios – ouro, prata e chumbo – postos à sua frente. Apenas em um deles encontra-se o retrato da moça com quem deverá se casar, caso obtenha sucesso. Ele escolhe o escrínio de chumbo, o menos valioso dos três, mas essa humildade lhe confere o direito de desposar a bela Portia. Para Freud, a escolha desse terceiro elemento representa a reconciliação do sujeito com a ideia da morte. Essas personagens, como alegorias da morte, devem se ocultar e aderir ao silêncio.
Acompanhando o estudo sobre as deidades gregas, ele descobre que a Deusa da Morte é também a do Amor. O raciocínio apresentado em suas observações sobre os sonhos (FREUD, 1900/1970, p.339; 1940/1970, p.195) – em que um mesmo elemento pode representar contrários – é estendido a essa situação. Dessa forma, tanto a substituição pelo oposto quanto a escolha são indicativos de um reconhecimento intelectual da morte, “a escolha se coloca no lugar da necessidade, do destino (...) faz-se uma escolha onde, na realidade, há uma obediência a uma compulsão” (FREUD, 1913/1970, p.377). Essa transformação da morte em amor é "uma transformação prenhe de desejo” (IDEM, p.379). Contudo, o “mito original não é tão completamente deformado que traços dele não apareçam e revelem sua presença” (FREUD, 1913/1970, p.377). É essa a direção tomada por França (1990) quando afirma: “(...) o que fascina na estranheza é o vir a reconhecer a representação estranhamente familiar daquilo de que somos feitos, é o reconhecer na força da morte a representação narcísica primária. É essa a duplicidade: a força de anulação igual à força de ressurreição, o lugar perdido onde se renasce” (p.86).
O raciocínio derivado do texto “Os três escrínios” pode ser conduzir à cena analítica. “A beleza é a última barreira de acesso à coisa última, à coisa mortal” (1960-1961, p.15), diz-nos Lacan sobre a transferência no seu seminário sobre os fundamentos da psicanálise.
Pontalis (1991) dedica um comovente ensaio, intitulado A moça, a Gradiva, aos tempos idílicos em que Freud, com a cumplicidade de Jung, trouxe a mocinha para a psicanálise. Nas suas palavras: “Dir-se-ia que a Gradiva se pôs a trilhar suas pegadas e que, prontamente, a ciência trabalhosa adquiriu a graça e a leveza de uma mocinha maliciosa e repleta de um único saber que a psicanálise gostaria de aspirar: o saber amoroso” (PONTALIS, 1991, p.164). No seu estudo biográfico de 1925, Freud refere-se ao próprio trabalho com certo desdém. Pontalis (1991) atribui o fato aos seus rancores para com Jung e Jensen – este último porque não se rendera às investidas da interpretação freudiana – e, principalmente, à evidência de que “a análise já não era um tratamento amoroso: o ódio, a violência e a morte a povoavam; a repetição do mesmo passara a ser sofrimento, mais do que re-encontro aprazível do doce paraíso dos amores infantis” (1991, p.171). Assim, conclui:
“(...) a psicanálise já não se parecia, nem nos traços nem no jeito, com uma mocinha. E eis que se reconheceu, como se se aproximasse no outono da vida de sua ancestral distante, no rosto inquietante e essencialmente discordante da feiticeira. Se havia perdido seu encanto, a Gradiva, por sua vez, soubera conservar o dela. Mesmo que as pedras deixassem de nos falar, ainda assim ela continuaria a ser para nós aquela que avança, a que desperta, a que dá vida ao inanimado” (p.171).
Manter o paradoxo das relações entre o amor e a verdade, a paixão e a morte foi o caminho trilhado por Freud nos passos de Gradiva. Freud, a partir do texto de Jensen, delineia outra interface na relação entre fantasia e o trabalho de elaboração analítica. Assim, podemos observar, a partir de Gradiva, que o amor transferencial é ao mesmo tempo condição de deslocamento e velamento do objeto causa de desejo. A presença de Gradiva, que Freud faz coincidir com a figura do analista, é, como nos diz Lacan (1964/1985), manifestação do inconsciente, que precisa ser entendido a partir de um movimento de abertura e fechamento. Podemos dizer que a transferência, na sua relação com a repetição e a recordação, não está associada apenas a um material do “campo psíquico”, mas também atualiza uma dimensão que escapa às associações do analisando e às interpretações do analista (FREUD, 1914a/1970, p.155). O que leva Lacan (1964) a estabelecer uma diferença no que diz respeito aos termos aludidos por Freud no título do texto de 1914, a saber, recordar, repetir e elaborar, em dois campos, o da rememoração e o da repetição, que não são comutativos.
Referências
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Karla Patricia Holanda Martins
E-mail:karlamartins@unifor.br
Débora Passos de Oliveira
E-mail:deboraoliveira@edu.unifor.br
Recebido em: 19/07/2010
Aprovado em: 01/11/2010
Revisado em: 08/09/2010