Arquivos Brasileiros de Psicologia
ISSN 1809-5267
ARTIGOS
Análise existencial: uma psicologia de inspiração kierkegaardiana
Existential analysis: a psychology inspired by Kierkegaard
Análisis existencial: una psicología inspirada en Kierkegaard
Ana Maria Lopez Calvo de FeijooI; Myriam Moreira ProtasioII
IDocente. Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social. Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. Brasil
IIDoutoranda. Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. Brasil
RESUMO
Este artigo tem como objetivo buscar na análise existencial desenvolvida por Sören Kierkegaard, em algumas de suas obras, os elementos que fundamentam uma psicologia existencial. Acreditamos que a filosofia da existência, tal como desenvolvida pelo filósofo, fornece elementos não só para uma crítica ao modo experimental como a psicologia se constituía em seu tempo, mas também para a elaboração de uma psicologia que considere a existência concreta, ou seja, que resgate o sensível na existência. O projeto de vida desse pensador dinamarquês, conforme ele mesmo confessou, voltou-se muito mais para mobilizar cada homem em particular, no sentido de que este se desse conta de que vivia na ilusão, do que propriamente para elaborar uma filosofia contemplativa ou um sistema. Finalizamos a proposta concluindo que assim como Kierkegaard se preocupava com a perda do homem em relação a si próprio o psicólogo clínico existencial tem como tarefa manter esse alerta com relação àquele que o procura tomado pela angústia e pelo desespero diante do caráter inconstante da existência. E nisso consiste a análise existencial como uma proposta para a clínica psicológica.
Palavras-chave: Psicologia clínica; Sören Kierkegaard; Existência; Comunicação indireta.
ABSTRACT
This article aims to find elements of existential psychology in the thinking of Sören Kierkegaard. We believe that existential philosophy, as developed by the Danish philosopher, can provide elements not only for a critique of the experimental way in which psychology was formed in his time, but also as an elaboration of psychology that considers concrete existence, in other words, that resurrects the sensitive in existence. The life´s project of this Danish thinker, as he himself confessed, was centered much more on the mobilization of each man, in the sense that each one should realize that life was an illusion, rather than to prepare a contemplative philosophy or a system. In the same way that Kierkegaard was concerned with the loss of man in relation to himself, the task of the clinician of existential psychology is to maintain this warning with regard to those who seek them out, gripped by anguish and by despair when faced with the inconstant character of existence. Existential analysis as a proposal for clinical psychology consists in this.
Keywords: Clinical psychology; Sören Kierkegaard; Existence; Indirect communication.
RESUMEN
Este artículo tiene como objetivo encontrar en análisis existencial desarrollado por Sören Kierkegaard, en algunas de sus obras, los elementos que subyacen en una psicología existencial. Consideramos que la filosofía de la existencia, tal y como fue desarrollada por el filósofo, no sólo proporciona elementos para una crítica de la manera como la psicología experimental fue fundada en su tiempo, sino también proporciona la elaboración de una psicología que considere la existencia concreta, es decir, el rencuentro de la existencia sensible. El proyecto de vida del pensador danés, como el mismo ha confesado, fue dirigido a la movilización de cada hombre en particular, de forma que el mismo percibiera que vivía en la ilusión, y no para elaborar una filosofía propiamente contemplativa o un sistema. Finalizamos la propuesta concluyendo que así como Kierkegaard se preocupaba con la pérdida del hombre en si mismo, la tarea del psicólogo clínico existencial es mantener esta advertencia al que lo busca invadido por la angustia y la desesperación advenida del carácter cambiante de la existencia. Sobre esta base radica el análisis existencial como una propuesta para la psicología clínica.
Palabras-clave: Psicología clínica; Sören Kierkegaard; Existencia; Comunicación indirecta.
Rumo à psicologia da existência
Nortear uma psicologia a partir da filosofia da existência de Kierkegaard tem como objetivo principal elaborar uma proposta diferente da psicologia científica e, assim, afastar-se da concepção de homem como objeto passível de ser explicado em suas propriedades essenciais, abandonando a ideia de um psiquismo que se constitui como uma espécie de substância e que, como tal, possui propriedades e mecanismos que dão a conhecer o seu funcionamento, deixando de tomar o eu como algo encapsulado, como um interior que se exterioriza. Na perspectiva de uma psicologia da existência, o homem é tomado como abertura em devir, portanto, como um existente que não é passível de ser definido, pois sua existência encontra-se indefinida e, constituindo-se como paradoxo, sempre em jogo no seu próprio existir.
Kierkegaard dedicou sua vida a pensar a questão da existência humana, tendo sido considerado o filósofo da existência por excelência. Suas obras fazem uma reflexão sobre os campos de várias disciplinas nas quais o homem constitui interesse fundamental: teologia, filosofia, psicologia, política. A postura do filósofo pode ser resumida como de questionamento e crítica em relação ao conhecimento vigente, construído com base no movimento científico que vinha crescendo desde o Renascimento e que ganha maior força no Século das Luzes (século XVIII).
Tanto a filosofia como a ciência, que daí se desenvolve, defendiam a necessária evolução do homem de forma que a lei racional, baseada na autonomia moral e no progresso, seriam elementos fundamentais em uma sociedade. Elas defendiam que só assim o homem teria liberdade. Essa ideia atinge seu ápice no Iluminismo, o qual, na Revolução Francesa, apresenta como palavras de ordem "Liberdade, Igualdade e Fraternidade".
O filósofo dinamarquês, já em meados do século XIX, fazia uma crítica à psicologia tal como vinha se estabelecendo naquela época. Essa psicologia se estruturava a partir dos referenciais da ciência, quais sejam: exigência de neutralidade por parte do investigador e necessidade de limitação de uma substância material como objeto de investigação. Para a psicologia contemporânea a Kierkegaard, essa substância era a consciência, definida como um feixe de sensações. Para a ciência, também, a verdade implicava uma correspondência do pensamento com a realidade, portanto, a representação consistia em uma exigência básica para a formulação de teorias, sistemas e postulados.
Em todas as suas obras Kierkegaard se opõe, radicalmente, ao modo pelo qual a filosofia moderna se estrutura. Nela, a verdade constitui-se na subjetividade egoica, fundamento de toda objetividade, a partir da inversão da noção tradicional de adequação. Não é mais o sujeito que se adequa ao objeto, mas o objeto que precisa, desde o princípio, se adequar ao modo de conhecimento do sujeito. Para Kierkegaard algo foi esquecido na modernidade, o caráter sensível da existência, ou seja, a presença viva do existente nesse processo, tornando impossível tal adequação (Protasio & Feijoo, 2011). Kierkegaard não aceita, tampouco, a proposta cartesiana que toma a dúvida como ponto inicial de todo conhecimento, afirmando que esse modo de construção é inconsistente, uma vez que remete à consciência, e esta possui uma natureza contraditória.
O filósofo dinamarquês afasta-se da explicação metafísica do homem ao afirmar que a existência (eksistenstsen) assume, num prisma humano, um estar-aí (vaere til) que se identifica com o sujeito (subjekt), com o indivíduo como tal, alcançando a singularidade (enkelten). Surge, assim, uma oposição radical à ideia de tomar o homem como objeto. Assim, o homem é sempre o indivíduo existente, nunca uma ideia. Mas, o existente humano não é equiparável aos seres não pensantes. Muitas vezes, Kierkegaard refere-se a isso ironicamente formulando algo como "existir como tal não é ser no sentido que uma batata é". Uma batata jamais poderá interrogar-se sobre si mesma. A existência, com isso, não pode ser abarcada de forma abstrata.
Para esse filósofo da existência, a realidade não pode ser alcançada pelo puro ato do pensamento, identificada com nitidez no existir. Segundo Kierkegaard, é a paixão que possibilita o ingresso no âmbito da realidade. A existência também resgata o doloroso e escorregadio devir da realidade. Afirma Le Blanc: "Para Kierkegaard, convencido da especificidade da consciência e da inalienabilidade da individualidade do homem, da existência concreta de escolhas reais, essa maneira de colocar as coisas - o homem como marionete - é inaceitável" (Le Blanc, 2003, p. 65). A explicação do filósofo da abstração, compilada em um sistema, é substituída pelo filósofo da existência pela compreensão, que se constitui na relação do homem com o homem.
Como os fatos históricos não ocorrem por necessidade, nem em um determinismo linear nem mesmo em um determinismo probabilístico, deve-se considerar a contingência, o imediato. Daí tornar-se impossível dissociar o fato do significado. A filosofia de Kierkegaard esclarece que os acontecimentos podem ser compreendidos em termos do seu significado revelador, e não apenas em termos daquilo que se pode apreender pelos sentidos ou pela percepção sensível, afastando-se assim do realismo. Por outro lado, também se afasta do idealismo vigente em sua época. Kierkegaard aponta para as máximas do pensamento idealista, realista e romântico: o infinito da razão, o infinito da sensação e o infinito da ironia (Kierkegaard, 1844/2001). A razão vai ganhando uma força infinita que habita, domina e constitui o mundo. No infinito da razão, ou na razão absoluta, as ideias evoluem de uma determinação a outra, podendo ser deduzidas e seguindo necessariamente a ideia anterior, sem recurso à experiência. O princípio objetivo, que dera início às considerações racionais, vai sendo abandonado, dando lugar às construções sistemáticas de múltiplos fundamentos, cada vez mais distanciados do real.
No infinito da sensação dá-se a expressão de uma liberdade sem fronteiras, sem determinação, sem normas e alcançada por meio de atividades humanas próximas aos sentimentos, tal como vem ocorrendo há algum tempo na arte e na religião. O fundamento é, aqui, a liberdade de experimentar novas e melhores formas de exercitar o sensual, regidas todas pelo interesse. O homem segue deixando-se levar pelas sensações e pelos desejos, optando por ampliar aquilo que considera como sendo sua liberdade de existir, de criar e de exprimir-se sem fronteiras, abandonando, para isso, todo e qualquer referencial.
No infinito da ironia, tudo que diz respeito a referenciais é criticado, o que instaura uma atitude que se ergue acima do mundo, ao largo do mundo. E, assim não chega a fazer uma escolha ou a assumir uma posição, permanecendo na idealidade, distante da existência real. Nessa posição importa a capacidade de criticar, de desenvolver um olhar abstrato sobre a realidade, de forma a encontrar elementos para mostrar suas contradições, seus preconceitos, ressaltando as restrições como modos de tolher um existir pleno.
Pode-se concluir que, para Kierkegaard, o argumento das filosofias sistêmicas começa com um legado de épocas anteriores contra o qual a razão se inflama, consumindo-o sem nos fornecer nenhuma dimensão concreta em troca. A razão, encarregada de apresentar a saída para todos os problemas humanos, produz mais e mais caminhos e teorias, todos conflitantes, em meio aos quais os próprios rigores racionais vão se perdendo. O filósofo dinamarquês, pensador melancólico e engajado em sua época, olhará com desconfiança para essa grande promessa iluminista. Desenvolvendo um olhar apurado para os acontecimentos de seu momento histórico, inconformado com a facilidade com que os modos de pensar e existir, que fundaram sua geração, vão sendo descartados. O filósofo da existência construirá um conjunto de obras por meio das quais pretenderá espelhar os acontecimentos que estão em curso, com a intenção de tornar o homem consciente da distância que existe entre as ideias desenvolvidas, cada vez mais abrangentes, e a vida real e cotidiana de cada um.
É esse percurso realizado por Kierkegaard para estabelecer sua filosofia, que nos guiará com relação ao estabelecimento da psicologia existencial. Para traçar essa psicologia precisamos, por um lado, nos afastar das psicologias que tomam o eu, o ego e a consciência como a essência da vida psíquica e, por outro, daquelas que valorizam a experiência. Tal como Kierkegaard, o que interessa a uma psicologia existencial é a existência, como espaço no qual a vida acontece.
Para alcançar a existência no seu espaço de constituição, Kierkegaard produzirá, então, num subconjunto de obras identificadas por ele mesmo como obras estéticas, e assinadas por pseudônimos, com outro modo de pensar, considerar e agir. Seu propósito era de que o leitor, acompanhando a trama desenvolvida, pudesse ver a si mesmo no seu espaço existencial e dar-se conta da distância existente entre as sedutoras ideias em curso e a existência real e concreta, vivida na repetição cotidiana. É no livro O conceito de angústia, publicado sob o pseudônimo de Vigilius Haufnienses no ano de 1844, que Kierkegaard propõe uma investigação acerca das delimitações de três ramos da ciência: a dogmática, a ética e a psicologia. Parte da consideração da exigência do próprio movimento científico de que cada problema tenha um lugar bem definido, assim como uma finalidade e limites próprios. Explica-nos aí que a dogmática desconsidera a realidade, o imediato, a existência concreta que muda a todo instante. Ela parte, segundo ele, das pressuposições acerca desse concreto e, pela lógica, constrói as explicações que vão se constituir em sistemas metafísicos, os quais obedecem ao princípio da não contradição. Dada a dificuldade de consenso quanto a esse ponto de partida, uma vez que o real é algo movediço, surge uma grande confusão gerada pela diversidade de dogmas iniciais (pressuposições), os quais são citados e seguidos como detentores da verdade.
Quanto à ética, ciência ideal, ela quer introduzir o ideal no real, na existência concreta, sendo uma ciência disciplinadora que tem seus fundamentos em noções de certo e errado, cujos ditames são repressivos, mas não criam coisa alguma. A ética cai de seu idealismo quando engloba o remorso e assume a sua dificuldade de transformar o homem. Nesse ponto, a ética encontra seu limite, dando espaço para a dogmática, com seus sistemas explicativos e, consequentemente, com a diversidade de compreensões.
Haufniensis (Kierkegaard, 1844/2010) afirma, ainda, que a psicologia de sua época também tomará o real como objeto de estudo, ocupando-se em observá-lo, em desenhar-lhe o contorno e em descrevê-lo, oferecendo elementos para a dogmática, ou seja, para que sistemas explicativos sejam construídos. Sua crítica dar-se-á no sentido da ilusão de abarcar toda a existência nesses sistemas explicativos e na distância guardada entre o sistema e a existência concreta. Considerará, ainda nessa introdução, o que chama de atmosfera própria a cada uma dessas disciplinas. A atmosfera própria à ética é a atmosfera disciplinadora, tendo como fim o ideal. O fundamento da ética é prescrever regras e modos de agir como construtores de uma forma certa de ser e agir. Toda ética implica a possibilidade prática da virtude. Inicialmente, a ética apontava para as dificuldades do homem de alcançar o ideal, segundo seu ponto de vista. Posteriormente, ela ocupa o lugar de uma ciência moral que orienta e prescreve (Kierkegaard, 1844/2010).
Na psicologia, a atmosfera transforma-se numa espécie de tenacidade de observador, correspondendo a uma curiosidade desapaixonada, uma atitude de explorador que desenha os contornos do real assustando-se com seu próprio desenho. À psicologia restaria: postar-se como ciência natural, neutra, insensível quanto aos resultados de suas experiências e interferências, assumindo o lugar de observadora; pautar-se pela metafísica, construindo seu conhecimento a partir de premissas ideais e abstratas inferidas a partir da existência concreta; pautar-se pela seriedade, ou seja, considerar a existência pelo viés da ética da existência concreta (Kierkegaard, 1844/2010).
Propõe, então, o autor, que à psicologia não cabe o real em si, ou seja, a ação do homem, que é algo movediço, mas sua possibilidade. A possibilidade é o elemento do qual, a todo o momento, sem cessar, nasce a ação do homem em liberdade. A liberdade é, portanto, constitutiva da existência humana e implica a impossibilidade da não escolha e a inevitabilidade de viver as consequências das escolhas tomadas. O lugar da psicologia é o lugar da angústia, da indecisão, onde o homem em liberdade opta por determinado modo de existir em detrimento de outro. A psicologia existencial se apropriará da proposta do filósofo da existência acerca da angústia e da liberdade, em todos os seus desdobramentos. Com relação à noção de eu, consciência, comportamento, qual será a posição assumida pela perspectiva existencial em psicologia, já que não cabe mais tomar a existência com uma estrutura que jaz em uma interioridade?
Ao partir da ideia de que o homem se constitui como movimento e de que, portanto, jamais pode ser plenamente apreendido por um sistema, Kierkegaard propõe um eu que, em si próprio, consiste em um paradoxo. O existir humano implica a impossibilidade de construção científica do psiquismo humano. O homem pode ser pensado, jamais teorizado, jamais transformado em tema de uma investigação explicativa e categorial. E é assim que Kierkegaard irá proceder na construção de sua psicologia. Pensar em uma psicologia inspirada em Kierkegaard consiste, antes de tudo, em acreditar que a tensão do existir jamais será resolvida. O eu é o próprio horizonte do desespero e a angústia é paralela ao devir. A tentativa de escapar da tensão, do desespero e da angústia implica justamente a queda, na qual o homem se encontra na maioria das vezes, pois conjuga diferentes modos de tentar escapar de sua situação de vulnerabilidade. Para Kierkegaard (1859/1986), o homem vive normalmente na ilusão, acreditando ser o que em ato não é. Seguem daí as determinações do impessoal, tornando-se uma "ovelha no rebanho"; mergulha profundamente em si próprio e se esquece do mundo; perde-se no seu imaginário, não retornando ao real. Vive em posições psicológicas de não liberdade (Kierkegaard, 1844/2010), acreditando que não escolhe, pois são as circunstâncias que sempre escolhem por ele.
E é tomando as condições de indeterminação, angústia e liberdade, que abrem o homem às possibilidades e consequentes situações de ter de decidir, que ocorre a análise existencial como uma perspectiva clínica. Aquele que, na maioria das vezes, busca um acompanhamento psicológico, esqueceu-se de sua condição de angústia e liberdade e, assim, toma-se como não livre. Na clínica, vamos então deixar que o outro tome para si sua liberdade, não colaborando para que volte a esconder de si mesmo sua condição. Essa temática pode ser encontrada em O conceito de angústia (1844/2010), em que Haufniensis considera que o objeto da psicologia é a angústia, sentimento de ambiguidade que antecede toda escolha, toda possibilidade. Diz ele que, para a psicologia, a natureza humana contém a possibilidade de escolher mal ou bem em liberdade, podendo sempre advir a culpa e o arrependimento. O arrependimento e a culpa são, para Kierkegaard, os sentimentos próprios daquele que estabelece uma relação de seriedade com a realidade, responsabilizando-se por sua escolha e pelas consequências dessa escolha. Kierkegaard refere-se à psicologia afirmando que cabe a essa área de estudo não a análise do conteúdo do pecado, mas a descrição da possibilidade de pecar, inerente ao existir humano, já que a esse é dada a possibilidade de escolha. Logo, a angústia constitui o possível da liberdade, daí o homem poder reconhecer-se a partir dela, certo de sua finitude e conhecedor de suas ilusões.
A angústia constitui-se como sentimento inerente ao existente diante daquilo que sempre se abre, ou seja, diante das possibilidades históricas que se apresentam para cada um em sua existência concreta. Constituir-se como angústia está ligado a uma ética da existência, que envolve a ideia de um responsabilizar-se por suas escolhas. A angústia seria a via de acesso à consciência de sua situação. Conscientizar-se de sua situação permite uma atitude séria diante de nossa própria existência. A interioridade em Kierkegaard refere-se, por sua vez, à compreensão. Quanto mais concreto é o conteúdo da consciência, mais concreta se faz a compreensão; e se a compreensão faltar à consciência tem-se o fenômeno de não liberdade. É na angústia, então, que o homem se mobiliza no sentido de se apropriar de sua condição de liberdade. E o conteúdo mais concreto de que a consciência pode dispor é a consciência de si, que se encontra no próprio homem. Essa consciência do eu não fica resumida a uma simples contemplação, nem que seja naquele homem mais rico em palavras ou no mais forte na descrição. Essa consciência plena de si ninguém jamais conseguiu alcançar, pois em devir não se alcança a consciência de um eu puro, apenas a de um eu concreto, em abertura e, portanto, inalcançável.
A angústia que interessa à psicologia constitui-se a partir da possibilidade do pecado - e não na condição de pecado. O conteúdo do pecado importa à moral, à ética, à dogmática. A possibilidade de pecar importa ao psicólogo. O homem vive na intranquilidade pela possibilidade da escolha. O pecado original traz a opção, a liberdade, a consciência da culpabilidade que se traduz como angústia. O pecado de Adão não revela nada mais nada menos do que a escolha, do que o poder escolher. E toda escolha traz uma consequência, tornando-se cada homem responsável pela consequência que a sua escolha trouxer. Daí surge a angústia diante do real estabelecido e do futuro. Nessa perspectiva, a questão do psicólogo é acompanhar essa atmosfera da angústia, espaço em que se dá o salto, o movimento que o indivíduo faz a cada escolha, e que não se constitui nunca num contínuo, uma vez que não vai se dando em um somatório. A escolha é um salto e, portanto, o ontem não importa tanto para que o hoje se estabeleça, uma vez que a existência constitui-se em movimento e o homem, a qualquer momento, pode dar um salto. E esse salto implica descontinuidade.
Em nossa compreensão, Kierkegaard, ao tratar da apropriação das escolhas de cada um, falará sempre em estado, ou seja, em um modo de ser e estar que se insere historicamente num momento dado, mas que guarda a tensão que impulsiona para o momento subsequente, um momento em que esse estado pode se transformar até mesmo no seu oposto. Assim, o homem, distante de si mesmo, estaria sempre sendo tentado pela aproximação a si, e vice-versa. Ou seja, apropriar-se de si mesmo consiste numa atitude de seriedade para com suas escolhas. Sempre ocorre, contudo, a tentação para sair desse estado, para assumir, por exemplo, uma atitude mais relaxada e despreocupada com as consequências, deixando-se levar pela preguiça ou pelo adiamento. Estando distanciado de si mesmo, escravizando-se aos apelos do mundo, e descansando cotidianamente na não responsabilidade, o homem é tentado a assumir-se na seriedade, e o elemento dessa tentação seria a culpa e o arrependimento. Mas, o elemento da tentação pode também se mascarar em remorso ou autopiedade, adiando a assunção séria da responsabilidade (Kierkegaard, 1844/2010).
O que o filósofo propõe para a psicologia é que a ética não é exterior ao homem, uma abstração, mas é própria da existência, que se dá sempre com o outro, o próximo, e vincula-se na relação com o outro pela angústia. Kierkegaard pensa a relação do homem com a angústia em termos de maior ou menor consciência e liberdade, afirmando que quanto maior a consciência de sua situação existencial, maior é a liberdade. No entanto, o homem vive na ambiguidade: ao ansiar pela maior liberdade de seguir por si mesmo, ele é tentado a seguir os ditames do mundo e a prosseguir sua existência como mais uma ovelha no rebanho.
Propõe o autor dinamarquês que o psicólogo, para investigar uma existência, deve observar a si mesmo e buscar compreender um grupo de pessoas, para que descubra os vários estados de alma possíveis: psicologia como exame tipológico radical. De forma didática, ele descreve alguns estados da alma, ou posições psicológicas de não liberdade, considerando cada um pela ótica da maior ou menor consciência de si ou da maior ou menor capacidade de refletir e ganhar compreensão. Para Kierkegaard, ao ganhar interioridade, o homem ganha transparência, mostrando-se de maneira plena para si próprio, para os outros homens e, em última instância, para a sua inevitável testemunha, que é Deus, como aquilo que de fato é. Transparecer para si próprio liga-se à compreensão kierkegaardiana de que o homem vive na ilusão de ser o que de fato não é. Quanto maior o desconhecimento de si, menor a transparência.
Um estado de alma em que falta liberdade é denominado por Kierkegaard de "hermetismo", que significa a não comunicação com o outro ou consigo próprio. O que esconde parece-lhe tão atroz que não revela nem a si mesmo. A retomada da liberdade está, para o hermético, atrelada à revelação (Kierkegaard, 1844/2010). Outro estado de alma é descrito a partir da relação entre corpo, alma e espírito. Nele também a ausência de comunicação verbal e a falta de interioridade se deixam transparecer como uma angústia que se manifesta por queixas corporais ou por um humor excitado, irritadiço, um nervosismo à flor da pele ou, ainda, pela hipocondria. Kierkegaard nomeia esse estado como "perda somatopsíquica da liberdade". A angústia se mostra como acometimento do qual não se tem notícia. A liberdade está perdida nesse desconhecimento ou na indiferença pela maior consciência e retomada da liberdade, ou seja, pela apropriação séria de seu destino. Para esse queixoso, a liberdade pode ser reconquistada na maior consciência de sua situação real em oposição a uma relação de temor ou repulsa em relação ao real (Kierkegaard, 1844/2010).
Kierkegaard refere-se, ainda, ao que chama de "perda pneumática da liberdade". Nesse caso, há a comunicação sem, no entanto, a consciência e apropriação de si, o que significa que esse homem compreende-se como vítima das circunstâncias, deixando-se ser jogado de lado a lado de acordo com as situações. A perda pneumática da liberdade ocorre nos campo intelectual, do sentimento e do cotidiano (Kierkegaard, 1844/2010).
No campo intelectual, a comunicação se dá a partir de verdades abstratas, mostrando-se por meio de intelectualizações e da busca de provas que possam fundamentar uma certeza. Essa abstração carece de interioridade e, consequentemente, de liberdade. A não liberdade aparece na crença em verdades inquestionáveis e passíveis de comprovação.
No campo do sentimento, a comunicação mostra-se ambígua: ou uma ação passiva ou uma passividade ativa, que sempre começa na meditação. Ganhar consciência de si é uma atividade, e essa atividade se mostra como interioridade que, se não está em consonância com a consciência, se expressa pela angústia de ganhar essa consciência. Aqui, justificar-se pelas circunstâncias ou pelo temor das consequências fundamenta o modo de agir, que se mostrará numa ação que aparece em dissonância com os sentimentos ou mesmo com as auto expectativas.
Kierkegaard cita alguns exemplos dessa perda pneumática da liberdade: uma paralisia covarde e preguiçosa, que se agarra a si mesma, ou uma rigidez que, orgulhosa de sua posição, deixa-se levar pela arrogância. Falta, nesse caso, coragem para acreditar em si mesmo; uma indiferença que escolhe não demonstrar o escândalo diante da realidade, ou uma hipocrisia que, assumindo uma atitude falaciosa com a realidade, não assume abertamente sua posição, faltando ousadia para enfrentar o real. Ainda na tentativa de resguardar seu orgulho, uma não ousadia de mostrar-se, agindo covardemente como alguém que pode no mínimo abster-se de qualquer risco, mostra-se altivo e, assim, não sofre a dor de qualquer derrota, demonstrando falta de coragem para entender seu próprio orgulho (Kierkegaard, 1844/2010).
No campo do cotidiano, essa perda de liberdade mostra-se como hábito, onde há repetição sem originalidade e ilusão de finitude. As situações descritas em muito correspondem àquelas que aparecem na clínica psicológica, denominadas hoje compulsões, pânico, fobias, entre outras. Para Kierkegaard, esse estado de coisas descreve fundamentalmente a situação do homem moderno. O homem da atualidade abstém-se de compreender o eterno e o infinito de suas possibilidades de forma concreta, temendo a inquietação própria da situação de abertura e a interioridade perturbada que é sua real situação. Essa negação pode mostrar-se como escravidão ao instante, como razão acalmada (abstração), como trabalheira contínua, como entusiasmo pelos acontecimentos, por enfeites poéticos da imaginação que mantêm o homem ocupado com sua própria imaginação ou, ainda, imaginando a eternidade de forma metafísica, de forma que a eternidade se transmuta em recordação e em preocupação com as coisas temporais. Kierkegaard, assim como uma clínica existencial, propõe, por fim, que a angústia seja compreendida como escola que convoca o homem para que se deixe educar por ela, aprendendo a conhecer os possíveis da liberdade e a reconhecer-se em sua finitude (Kierkegaard, 1844/2010). A liberdade é encontrada na construção da existência singular, que se abstém do hábito e arrisca uma atitude séria perante a realidade, abrindo-se ao infinito de suas possibilidades.
O homem, na angústia, é constituído pelas possibilidades, ou seja, pelo devir, por sua situação de abertura. Tende-se, a partir dela, a ter fé nos possíveis, considerando-os como sorte, como possibilidade de bem-estar. Mas, aos poucos se pode ir deixando essas ilusões e atentando para a realidade da escola dos possíveis, os horrores, a destruição, os perigos... Mobilizado pela angústia, o homem, prosseguindo seu caminho, pode enfrentar sem desvios e de forma honesta com ele mesmo esses horrores, abstendo-se de se esconder nas possibilidades de êxito. Convivendo com a angústia de forma a não ser abatido por ela, o homem pode reconhecer que a finitude explica apenas parte das coisas, dentre elas aprender a "descansar na providência" (Kierkegaard, 1844/1968, p.163). Descansar na providência é reconhecer os limites de atuação no finito, ganhando transparência em relação a si mesmo ao considerar o devir em suas possibilidades infinitas. Eis aquilo a que se destina a clínica existencial.
Em A doença mortal (1849/2008) Kierkegaard, com o pseudônimo de Anticlimacus, reflete acerca do que é o homem. Conclui que o homem se constitui pelo desespero, o que significa que, muito mais que dizer simplesmente que ele é um ser racional ou que o que o distingue dos demais é a linguagem, o homem se mostra como sendo, justamente, aquele que desespera. É no desesperar, como tentativas fracassadas de síntese, como luta para conquistar fechamentos, determinações, enfim, um lugar seguro, que o homem difere dos animais ou de qualquer outro ente da natureza.
Então, o que é o homem? É o próprio desesperar, é constituir-se como uma relação que precisa se relacionar com o conjunto da relação que se é, de forma que o eu se constitui no paradoxo do finito e do infinito, dos necessários e dos possíveis, do eterno e do temporal. Trata-se de uma energia viva, autodeterminante, que em abertura ambígua e indeterminada, em total ausência de sínteses, no ato de existir, constrói a verdade de sua existência. Dessa forma, Kierkegaard afasta-se da perspectiva da psicologia de sua época, que tratava da psique do homem como um de seus elementos e que a pensava, portanto, como constituída por uma substância com propriedades e mecanismos passíveis de se darem a conhecer e, consequentemente, marcadas pela pressuposição da possibilidade de alcançar um sistema explicativo, que podia ser formulado de maneira consistente em uma teoria.
A constituição do eu, na ambiguidade e na indeterminação que lhe são próprias, se dá de vários modos, formando-se como desespero na tentativa de se estagnar, seja no finito, no infinito, nos necessários, nos possíveis ou, ainda, no eterno e no temporal. Fracassa, pois, ao tentar livrar-se do desespero, torna-se o maior dos desesperados (Kierkegaard, 1849/2008). Desesperando-se do infinito por carência de finito, o eu pode se perder no infinito por ausência de finito. O eu é aqui um eu imaginário, um eu da sua invenção. O imaginário transporta esse homem ao infinito, afastando-o de si mesmo. A imaginação é o agente da infinitização, já que, pela imaginação, ele se torna infinito. A existência é imaginária, o sentimento é insensibilidade. O conhecimento torna-se monstruoso, porque se encerra em si próprio. Assim, ele se desvia do regresso a si próprio. Se o homem se perde na imaginação e, sem um vínculo que o prenda ao real, vive o delírio, a fantasia. Por outro lado, se o eu também se perde quando em queda no finito por ausência de infinito, prende-se ao real, em uma ação repetitiva e sem espaço para a imaginação (Kierkegaard, 1849/2008).
No desespero da necessidade e das possibilidades, o eu constitui-se como necessário pelas normas sociais, a cultura em que vive, a história da cultura, a própria história individual. O homem vive nas necessidades que o limitam e nas possibilidades que o ilimitam. Conclui-se que a vivência da dialética da necessidade e da possibilidade é a vivência da liberdade. Ou seja, a liberdade é limitada pelas necessidades e ilimitada pelas possibilidades. Diante das necessidades, que se constituem pelo corpo, tempo, contexto, há também os possíveis, que são dados a escolher. E é esse movimento de possíveis e necessários que se constitui como liberdade.
O homem que não estabelece o movimento necessidade-possibilidade, ficando aprisionado ao necessário, paralisa naquilo que o social lhe ordena, naquilo que as normas determinam, nunca aventando possibilidades diversas. Ou seja, com medo do risco, o eu se perde no necessário e não se lança aos possíveis. Mas se o homem se prende aos possíveis, esquecendo-se do necessário, ele é nada mais nada menos do que uma ilusão, porque nada se realiza no campo dos possíveis (Kierkegaard, 1849/2008).
Na dialética do eterno e do temporal, têm-se as vivências do tempo. Se o homem se perde no eterno, acredita que para si tudo é possível, esquece sua temporalidade. Kierkegaard diz que quando o homem vive a religião egocentrada ele se crê eterno. Na eternidade como loucura, acredita-se que se é especial e não se morre. Mas, na vivência do temporal, com carência do eterno, no seu extremo, também se tem a sensação de morte iminente. E, na tentativa de evitar a iminência dessa morte, esse homem se impede de qualquer possibilidade, atrela-se à vida sem arriscar, por medo de que a morte logo virá. Para evitá-la, luta para que nada lhe ocorra, a fim de postergar a sua morte.
A consciência como elemento que traduz o saber de si mesmo, o saber de sua condição de existente e, portanto, vulnerável, apreensivo e ambíguo, pode, segundo Anticlimacus, se dar de dois modos: no desespero inconsciente de ter um eu, no qual o homem tenta ignorar a sua condição de existente, e na consciência de ter um eu, em que o homem reconhece a sua condição de desesperado. Porém, ainda nessa condição pode se desesperar por querer ser si-próprio ou se desesperar por não querer ser si-próprio. Kierkegaard descreve o desespero sob a categoria da consciência: o desespero pela consciência de ter um eu e o desespero pela consciência de não ter um eu (ou o desespero da posse inconsciente de um eu). No desespero inconsciente de ter um eu, o homem pode se colocar como vítima do mundo, bem como numa posição alheia à sua condição. Como vítima, tudo que lhe ocorre ou que deixa de ocorrer acontece, porque teve sorte no mundo ou azar; nesse caso, foi "o mundo" que o presenteou ou não. Não reconhecendo o seu eu livre, fazedor, coloca o seu eu como joguete do mundo. Não reconhece sua ação, colocando a responsabilidade por tudo que lhe sucede no externo (Kierkegaard, 1849/2008).
Desesperar-se, por outro lado, constitui-se também como possibilidade de perder a consciência do eu. Aquele que se desespera, ao ignorar que tem um eu e ao dar a impressão de estar bem, ou seja, ao acreditar na ignorância de que de certo modo está garantido, vive a não consciência de ter um eu. No entanto, esse projeto fracassa, pois o eu se constitui como a angústia e desespero, e quando a ilusão vacila, o desespero e a angústia surgem. Por outro lado, temos o desespero consciente de ter um eu, o desespero-desafio, no qual o homem luta desesperadamente para ser o eu da sua invenção - desespero de ser si próprio. E o desespero de não ser si próprio, quando o eu se desespera para ser algo diferente do que é em ação. No desespero de ser si próprio, o eu se relaciona consigo mesmo e se esquece do mundo. Então, constitui-se o eu da sua criação, sem relação alguma com o mundo. Isola-se do mundo. No desespero de não ser si próprio, o eu é aquilo que o mundo diz que deve ser.
O tempo todo o eu se constitui na consciência de ter um eu e na tarefa de tornar-se o eu que é, movimento de ir ao mundo e de retornar a si próprio. E aí é que está o grande perigo: é muito fácil se perder no mundo, como é muito fácil se perder em si mesmo. Como o eu se constitui na relação que estabelece consigo próprio e na relação que estabelece com o mundo, o eu é si próprio e é relação com o mundo. O eu se constitui nessa duplicidade, indo e vindo. Indo ao mundo e vindo a si. A tentativa de estagnar esse movimento é que constitui a queda. Em uma proposta de psicoterapia a partir da constituição do eu, tal como proposta por Kierkegaard, precisaríamos tentar ajudar aquele que vem em busca de um encaminhamento para a sua existência a retomar o movimento de constituição de seu próprio existir. A questão está em como proceder para restabelecer o movimento da existência.
Análise existencial e o método da comunicação indireta
Em uma análise existencial com base na filosofia da existência de Kierkegaard, tomamos o homem como abertura dinâmica que, pelo seu caráter de indeterminação, constitui-se sempre em angústia e em desespero. Esse homem, ao decair de si mesmo e buscar refúgio nas determinações do impessoal, nega o seu estado de liberdade e aplaca sua angústia ao tomar-se como algo definido e determinado. Ele vive na ilusão de que é uma síntese pronta e acabada e assim nada tem a temer. É desse modo, na maioria das vezes, que aquele que busca a psicoterapia se encontra.
Para procedermos a uma análise existencial buscamos as referências em Kierkegaard, conforme ele mesmo esclarece em Ponto de vista explicativo da minha obra como escritor (1859/1996). Dizia o filósofo que pretendia estabelecer uma comunicação indireta com o leitor, de forma que este pudesse apropriar-se de sua singularidade, aspecto fundamental para que o indivíduo possa se dizer cristão. Aquele que se diz cristão e que não se apropria do que há de mais singular em si ilude-se, diz-se cristão quando em ato não o é (Cuervos, 2011; Rossati, 2011).
O filósofo dinamarquês reconhece que outros métodos de comunicação já haviam sido experimentados pelos homens de seu tempo, com o objetivo de admoestação. No púlpito, por meio de um alarme dirigido a muitos cristãos, mas pela abstração dessa forma de comunicação, acabava por não atingir de fato as pessoas com as quais queria se comunicar. Na figura de um revoltado, com grande alarido coloca-se contra um e outro, contra quase todo mundo, assim esperando destruir a ilusão. Nas duas situações o ouvinte ou ignora o que ouviu ou, se sensibilizado pela palavra, escapa vagarosamente e, buscando alguns conceitos e justificativas, reorganiza-se tranquilamente na ilusão. Kierkegaard argumenta, então, que uma ilusão nunca é dissipada diretamente: ela só pode ser destruída radicalmente de uma maneira indireta. Isso vai, por sua vez, completamente ao encontro de sua estratégia, que consistia em primeiramente dirigir-se ao não cristão como um cristão: "Deixando à vítima a ilusão de seu cristianismo, apanhar pelas costas o que está na ilusão" (Kierkegaard, 1859/1996, p. 39).
O filósofo da existência reconhecia que, para atingir o homem singular de forma a provocá-lo a ganhar transparência em relação a sua própria situação, era preciso realizar uma tarefa árdua, a qual exigia astúcia. Para tanto, organiza um método para comunicar-se, ao qual denominou método da comunicação indireta, esclarecendo que usou de ironia, de metáforas, de disfarces, de acolhimento, para assim poder desembaraçar o leitor dos laços da ilusão. Oscar Cuervos assinala que o próprio Kierkegaard refere-se à sua estratégia de comunicação indireta como uma necessidade, uma vez que o que ele tinha para comunicar "não é um saber que se possa transmitir de forma direta, mas algo que só se pode compreender de um modo oblíquo, de modo que o leitor tenha que tomar uma decisão sobre seu sentido" (Cuervos, 2010, p. 18). Pretendia resgatar, com isso, o indivíduo singular perdido na multidão. Acreditava nesse resgate por saber que onde há a multidão há o indivíduo e, ainda que se singularizar seja uma possibilidade de todos os indivíduos, é no geral que o singular ganha força.
A ironia, como modo de comunicação indireta, é um elemento facilitador para a mobilização de alguns, mas Kierkegaard adverte que ela pode dar-se descuidadamente, sem que o irônico se comprometa com as consequências de seu tom (Rosseti, 2011). A pertinência da ironia consiste em que se tenha domínio daquilo que se quer mobilizar, uma vez que a ironia introduz no leitor ou no ouvinte uma atitude de suspensão e de suspeição que abre caminho para a ação. "Quando o indivíduo está corretamente orientado, e ele o está quando a ironia foi limitada, é então que a ironia adquire sua justa significação, sua verdadeira validade" (Kierkegaard, 1841/1991, p.277). Para acolher o leitor, faz-se necessário o exercício da paciência, deve-se começar de onde está o outro, certo de que ajudar não é dominar, mas servir. O outro precisa encontrar um ouvinte atento e bem disposto, e quem não é disso capaz ilude-se na pretensão de ser útil a alguém. Conclui o filósofo que todo auxílio verdadeiro começa com uma atitude de humildade.
Para atrair o homem perdido na multidão, é necessário, em outras palavras, dispor de um conhecimento sobre em que consistem as demandas da multidão. Deve-se ser capaz de descrever o mundo com todos os seus encantos e com o tom de paixão daquele que se deixa levar pela multidão. Deve-se buscar mostrar-se petulante para o ouvinte jovial, triste para o melancólico, espiritual se o mesmo gosta de belas palavras, mas sem esquecer que esse ajudante, na tarefa de ajudar, deve manter-se num exercício permanente de reflexão e apropriação da sua singularidade, de modo a não se deixar perder também na multidão. Na comunicação indireta por meio de disfarces, faz-se necessário o desprendimento em relação à opinião que se tem a respeito das coisas, sem esquecer que, ao se colocar na posição do outro, tem-se a intenção de desfazer sua ilusão, e nisso reside a diferenciação entre ajudante e ajudado.
Kierkegaard ainda propõe um estilo metafórico na comunicação, estilo no qual se fala de algo sem anunciar do que se vai tratar, deixando que o outro julgue por si mesmo; assim, pode esse homem dar-se conta ou não de sua ilusão. Adverte que não se pode obrigar o outro a estar atento, mas que se pode fazer algo por ele, torná-lo atento. Tornar atento é provocar no outro o elemento reflexivo. O contraponto dialético restaura o movimento e mobiliza o outro no sentido do auto reconhecimento. Kierkegaard pretendia buscar na cristandade o verdadeiro cristão. Tornar o outro cristão, ou consciente de sua situação, depende de muitas circunstâncias e, sobretudo, da vontade do outro. Não se pode recorrer ao poder, deve-se combater com a força da impotência, e obrigar desse modo o outro a prestar atenção. Ele cita o sacrifício de Jesus como um consentimento que obrigou os homens a tornarem-se atentos. Diz: "Não se pode predizer o resultado, mas a atenção está forçosamente despertada. A tática consiste em organizar-se a todo o momento e acerca de cada ponto, considerando que há a combater uma ilusão" (Kierkegaard, 1859/1996, p. 46).
A comunicação indireta, utilizada por Kierkegaard para que o outro se dê conta da situação em que se encontra, é a mesma que iremos colocar em prática em uma análise existencial, tal como desenvolvida por Feijoo (2010), no que denominou de "mandamentos do psicoterapeuta existencial" ou "princípios de uma relação de ajuda". A autora entende que para estabelecer uma relação psicoterapêutica libertadora, ou seja, que entregue o outro a si mesmo, de modo que ele decida e assuma a autoria de sua decisão, faz-se imprescindível não atuar de modo direto, pois dessa forma o outro só oporá resistência e mais e mais se arraigará a suas ilusões.
Após esclarecer como fazer para se proceder a uma análise existencial, cabe ainda a pergunta: o que diferencia uma comunicação em geral daquela que cabe ao psicoterapeuta? Kierkegaard denomina ajudante àquele que estabelece uma relação de ajuda, todo aquele que tem uma proposta de se aproximar do outro de forma metafórica, a fim de que o outro, em sua liberdade, julgue por si mesmo as suas escolhas. E apresenta, por meio de personagens, os diferentes tipos de ajuda e as suas consequências. Na clínica psicológica existencial, vamos tomar essas referências para apontar em que consiste a postura do analista existencial.
Considerações sobre "o ajudante"
Em algumas de suas obras, Kierkegaard inclui a figura daquele que aconselha. Em In vino veritas: la repetición (1843/1976), refere-se a um conselheiro que ele mesmo denomina de Conselheiro Esteta, que orienta o outro no sentido de dizer-lhe o que e como deve proceder perante uma situação conflituosa. Acredita que aquilo que valeu em sua própria história de vida também é válido para a vida do outro. Portanto, crê fielmente na repetição da experiência de vida. Nisso consiste a crença daquele que assume referenciais estéticos na tomada de decisões de sua vida: "o que é bom para mim é bom para você também". Da mesma forma, muitas teorias presumem que se a teoria diz que é assim que deve ser assim você deve fazer. Dessa forma, a teoria pressupõe que o abstrato dá conta do real. Aquilo que é da ordem do geral se aplica a qualquer singular. Nessa direção, o singular sempre perde lugar e voz para o plural. O resultado do aconselhamento descrito nessa obra constitui um fracasso. O aconselhado, muito mobilizado pelas diretrizes que lhe são apontadas, revolta-se com o conselheiro, afasta-se e permanece em silêncio.
Em outra obra, Ou...Ou...(1843/2007), Kierkegaard, sob o pseudônimo "A", desenvolve o diálogo entre um jovem, no qual predominam critérios estéticos de escolhas, e um juiz, o Juiz Wilhelm, que pretende ajudar o jovem a decidir-se pelo casamento, o que para Kierkegaard consiste em uma escolha ética. Daí denominarmos esse conselheiro de ético, pois pretende orientar o jovem no sentido de que ele se dê conta de que seus critérios de escolha e decisão estão equivocados. Especificamente na parte em que a obra recebe a denominação de "O matrimônio", o Juiz Wilhelm pretende convencer o jovem de que o casamento, mesmo sendo uma escolha que implica compromissos éticos, mantém o seu caráter estético. Para tanto, tenta admoestar o jovem, respaldando essa verdade na sua própria experiência de casamento. O que importa ao Juiz Wilhelm, contudo, não é jamais o estético como tal, mas sempre apenas o estético como submetido à regularidade da vida cotidiana. Na esfera do religioso, o conselheiro mantém-se em silêncio. E quando aquele que quer ajuda lhe pede respostas, este lhe envia metáforas. O solicitante lê, ouve, vê a mensagem e decide por si mesmo. É o que acontece ao jovem que, tomado pela angústia e pelo desespero que são próprios da indecisão, ao entrar em contato com a história de Jó, decide-se por si mesmo, a partir de sua própria interpretação, a cumprir com o compromisso anteriormente assumido.
Kierkegaard explica em Ponto de vista explicativo da minha obra como escritor (1859/1996) que a intenção de toda sua obra está ligada ao propósito de ser cristão. Considera que seus contemporâneos viviam a ilusão de serem cristãos quando, de fato, não o eram e que, portanto, importava pensar num método de comunicação que os alcançasse no lugar em que estavam, na ilusão, para, então, introduzir o elemento reflexivo, ou seja, para mobilizá-los no sentido de se tornarem conscientes de sua ilusão. Considera que, ao ganhar consciência de que está vivendo uma ilusão, esse homem podia saltar, ou seja, experimentar outros modos de existir ou, no mínimo, desfazer o autoengano de se pensar sendo o que em ato não é. Ele entendia que vários métodos já haviam sido experimentados, mas que, por atacarem a ilusão de forma direta, acabavam sempre ou bem por fortalecer a ilusão, ou bem por ajudar o homem a desenvolver uma indiferença em relação à sua própria situação. Ao se chegar ao iludido, fingindo compartilhar de sua ilusão, Kierkegaard pretendia inserir o elemento reflexivo, provocar o homem no sentido de ver-se a si mesmo e julgar-se a si mesmo. Ele desenvolveu, com isso, seu método indireto, que implicava chegar aos homens de forma sutil, compartilhando com eles de sua ilusão, parecendo até acreditar nelas, para então ir se retirando devagar, deixando o homem só com a consciência de que vivia uma grande ilusão.
Para esse que queria ajudar, o que importava era a tarefa, requerida a cada homem individualmente, de tornar-se o que é: singularidade, "vida interior que se reflete, ou reflexão em que a vida se interioriza, ou sair, primeiro, de uma ilusão" (Kierkegaard, 1859/1996,p.50). Para Kierkegaard, o maior perigo para o homem é perder-se de si mesmo, iludir-se é perder-se de si mesmo. No contexto desse perigo, portanto, surge como que por si mesma a figura do instrutor, daquele que se instala na reflexão, assume uma posição negativa, não se afirma como tendo essa ou aquela posição, nem tampouco recorre a revelações. Esse instrutor, no propósito de ajudar o outro a tomar consciência da posição que ocupa, a ganhar interioridade acerca de si mesmo, conserva-se sempre na retaguarda, deixando o outro livre para si mesmo.
Como já foi dito, aquele que quer ajudar deve começar de forma humilde, encontrando o outro onde este se encontra, habitando o mundo do outro, compreendendo aquilo que o outro compreende. Mas esse ajudante não pode esquecer-se da "adição". Kierkegaard designa com esse termo o diferencial que existe entre o ajudante e o ajudado. O ajudante carrega consigo o caráter edificante, de pretender ser um instrumento de reflexão para o ajudado. Dirige-se ao indivíduo em oposição ao público, ao geral. Quer encontrar esse homem singular em meio ao todo mundo, ao impróprio e, introduzindo a reflexão, conclamá-lo a assumir uma obrigação para consigo próprio e para com o eterno, conclamando-o a julgar por si mesmo e a transparecer para si mesmo tal qual existe.
Transparecer-se a si mesmo, julgar por si mesmo, eis a tarefa singular. O ajudante quer espelhar o outro. Para tanto, usa instrumentos como a ironia e a metáfora. Dessa forma, deixa que o outro veja a si mesmo, julgue por si mesmo e decida. Para Kierkegaard, o homem cristão, o homem singular, este que cada um de nós pode ser, é o homem solitário diante de si mesmo, diante de seus contemporâneos e diante de Deus. Ser cristão é existir de forma transparente, ou seja, transparecer a si mesmo, conhecer a si mesmo diante de si, do público e do transcendente.
E o que é a singularidade? É a relação consciente e séria do homem consigo próprio e com o eterno, uma relação regida pela coragem de assumir uma posição na existência. Assumir uma posição implica arriscar-se para sair de uma posição instável como joguete do mundo, implica suportar a estabilidade irracional que é considerar a verdade que é para si mesmo, considerar o que funda o si próprio em meio ao todo mundo e ao geral. E é necessário aqui capacidade e paciência para deliberar. E o que é perder-se a si mesmo? É, tendo a oportunidade de olhar para si mesmo, de conquistar transparência em relação a si mesmo, olhando sua imagem no espelho, não se enxergar adequadamente como criatura e perseverar na ilusão de ser criador de si próprio ou de ser algo que não precisa de nenhuma criação, uma coisa dada.
Para Kierkegaard, o meio necessário para que o homem ganhe a si mesmo e venha a preservar-se é a paciência. A angústia acorda o homem para o distanciamento de si mesmo, mas é a paciência que o ajuda a averiguar aquilo que é necessário preservar. E é em paciência que esse homem pode perseverar na deliberação. E é ao se preservar a si mesmo em paciência que ele ajuda a si mesmo e ainda pode ajudar a um outro. A profundidade da paciência, além disso, "consiste em descobrir o perigo; e a saúde da paciência consiste em não fazer muito barulho, mas séria e calmamente socorrer um homem" (Kierkegaard,1844/2001, p. 21).
Seguindo as trilhas delineadas por Kierkegaard, tomamos os elementos de uma psicologia existencial como a angústia e o desespero, dada a situação de indeterminação, incompletude e vulnerabilidade em que o homem sempre se encontra. Acreditamos que a inquietação do homem consiste em tentar escapar dessa situação, e nisso consiste a sua ilusão, ou seja, acreditar na sua determinação e consequente completude e invulnerabilidade dada pela sua natureza, seja corpórea, seja psíquica, seja divina. O analista existencial pacientemente identifica a ilusão do cliente, acompanha-o em sua saga e ajuda-o a perseverar na luta contra o inimigo, ajuda-o a compreender que o perigo tem algo em comum consigo mesmo e que pode muito bem ser ele mesmo o seu próprio inimigo. Sustenta a inquietação do cliente, de forma a que esse homem, cada homem, fortaleça-se, aprenda com sua própria experiência e assuma seriamente a tarefa que lhe é requerida, que é requerida individualmente a cada homem, a tarefa de ser ele mesmo. Por fim, a análise existencial em psicologia, inspirada na filosofia da existência, tem como proposta retirar-se da máxima do conheça-te a ti mesmo para assumir a posição do eleja-se a si mesmo.
Referências
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Endereço para correspondência:
Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo
ana.maria.feijoo@gmail.com
Myriam Moreira Protasio
myprotasio@yahoo.com.br
Submetido em: 30/07/2011
Revisto em: 13/12/2011
Aceito em: 19/12/2011