Arquivos Brasileiros de Psicologia
ISSN 1809-5267
ARTIGOS
Bachelard e Freud: fenomenotécnica e psicanálise1
Bachelard and Freud: phenomenotechnique and psychoanalysis
Bachelard y Freud: fenomenotécnica y psicoanálisis
Nathalia SissonI; Monah WinogradII
IMestre. Programa de Pósgraduação em Psicologia Clínica. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUCRio). Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. Brasil
IIDocente. Programa de Pósgraduação em Psicologia Clínica. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUCRio). Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. Brasil
Endereços para correspondência
RESUMO
Assim como em Freud, a delineação de Bachelard do que constitui uma Ciência parte da ideia de que qualquer teoria, para ser científica, deve estar atrelada a e depende de uma técnica específica que possibilite a emergência e a aproximação de um objeto. Todo objeto científico existe somente quando em ligação estreita com uma técnica que o fabrica e que torna factível e legítimo seu descobrimento posterior, além de garantir a coerência interna das doutrinas científicas. Esse objeto a ser conhecido tem seus limites definidos pelo procedimento que o tornou possível. Este artigo pretende investigar como Bachelard torna inteligível a posição de Freud e a esclarece quanto à relação que teriam a técnica e a teoria psicanalíticas. Analisamos o conceito de fenomenotécnica, cunhado por Bachelard, e sua relação com a racionalidade científica, para depois considerar os textos freudianos sobre a produção de conhecimento científico na Psicanálise e verificar em que pontos existe uma aproximação do pensamento desses dois autores.
Palavras-chave: Bachelard; Freud; Epistemologia; Psicanálise; Fenomenotécnica.
ABSTRACT
As it is in Freud's thought, the Bachelard's delineation of what constitutes a Science begins with the idea that, to be scientific, any theory must be tied to and dependent on a specific technique that enables the emergence and an the approaching of an object. A scientific object exists only when in close conjunction with a technique that produces it, makes feasible and legitimate its later discovery and ensure the internal consistency of scientific doctrines. The object to be known has its limits defined by the procedure that made it possible. This article aims to investigate how Bachelard makes intelligible the position of Freud and clarifies the relationship between the psychoanalytic technique and theory. We analyze the concept of phenomenotechnique coined by Bachelard, and its relationship to scientific rationality, then we consider the Freudian texts on the production of scientific knowledge in psychoanalysis and check the points where an approximation of the thought of these two authors can be made.
Keywords: Bachelard; Freud; Epistemology; Psychoanalisis; Phenomenotechnique.
RESUMEN
Como en Freud, la delineación de Bachelard, de lo que constituye una Ciencia, parte de la idea de que cualquier teoría, para ser científica, debe "vincularse a" y depende de una técnica específica que permita el surgimiento y la aproximación de un objeto. Todo objeto científico existe solo cuando está en estrecha relación con una técnica que lo produce y que hace posible y legítimo su descubrimiento posterior, además de asegurar la coherencia interna de las doctrinas científicas. Este objeto por conocer tiene sus límites definidos por el procedimiento que lo hizo posible. Este artículo pretende investigar cómo Bachelard hace inteligible la posición de Freud y aclara la posición de Freud con relación a la técnica y a la teoría psicoanalítica. Analizamos el concepto de fenomenotécnica, acuñado por Bachelard, y su relación con la racionalidad científica, para entonces considerar los textos freudianos sobre la producción de conocimiento científico en el Psicoanálisis y verificar en qué puntos existe una aproximación del pensamiento de estos dos autores.
Palabras-clave: Bachelard; Freud; Epistemología; Psicoanálisis; Fenomenotécnica.
A reflexão a respeito de como a Psicanálise produz conhecimento sobre o psiquismo humano e seus processos envolve necessariamente uma discussão concernente à relação entre psicanálise e ciência. Essa problemática foi abordada pelo próprio Freud em diferentes trabalhos e em diferentes momentos, nos quais defendeu não apenas a coerência de sua teoria, mas também e sobretudo sua pertinência e legitimidade científicas (Freud, 1914/2006i, 1933/2006m, 1940/2006p). Com isso, ele inaugurou um campo (de batalha) no qual a qualificação dos postulados freudianos é debatida tendo em vista a definição do território ao qual a psicanálise pertenceria: o da ciência ou o dos saberes não científicos. Embora de suma importância, não é nosso propósito mapear essa discussão, mas, sim, abordar o encontro alegre que se dá nesse campo entre Freud e Bachelard, destacando certas convergências entre suas ideias. De saída, lembremos que Freud abominava o misticismo (Freud, 1933/2006m) e que Bachelard também era radicalmente contra tudo o que lembrasse o que ele chamava de primitivismo do espírito pré-científico (Bachelard, 1951/1991, 1938/2005). Para ambos, conhecer é um bem que só pode ser alcançado através do domínio da técnica correta e de sua associação com o pensamento: só assim a ciência pode conhecer e formular novos objetos e, portanto, progredir (Bachelard, 1940/1978a; Freud, 1933/2006m, 1940/2006p).
Uma das preocupações de Freud foi apresentar sua concepção de como a ciência funciona. Seu argumento era serem as técnicas de uma ciência e sua articulação com uma racionalidade específica determinantes para que um saber fosse considerado científico (Freud, 1914/2006h, 1914/2006i, 1933/2006m), embora ele não tenha explicitado de que modo aconteceria a transição entre a técnica e a racionalidade ou entre a técnica e a teoria. É bem verdade que, nos artigos técnicos escritos por Freud entre 1911 e 1915 (e mesmo em textos anteriores), há uma tentativa de descrição das medidas técnicas - como a exigência da associação livre e da atenção flutuante, o uso do divã, a neutralidade do analista - que devem ser respeitadas pelos psicanalistas para que a clínica possa resultar em uma teoria verificável e para que esta teoria tenha efeitos terapêuticos (Freud, 1904/2006a, 1911/2006e, 1912/2006f, 1913/2006g, 1914/2006h, 1915/2006j). Porém, também é verdade que, na medida em que a teoria freudiana foi se modificando, houve reformulações da técnica, ainda que seu aspecto geral tenha se mantido (Freud, 1937/2006n, 1937/2006o e 1940/2006p). De qualquer modo, como veremos a seguir, para o metapsicólogo, a técnica constitui o preceito básico a partir do qual as doutrinas científicas podem se erigir e ser estabilizadas.
Já Bachelard (1938/2005) preocupouse em realizar o que ele chamou de psicanálise do conhecimento. Sua filosofia pretendeu demarcar a cisão entre o conhecimento comum e o conhecimento científico, estabelecendo como método de trabalho da descoberta científica a polêmica e o eterno questionamento do saber adquirido, com o objetivo de aprofundarse na busca de erros. A epistemologia, por seu turno, existiria para (e teria como função primordial) prevenir contra e auxiliar os cientistas na falta de domínio da realidade - que seria o grande empecilho ao avanço da ciência. Designada, "(...) devido às suas descobertas revolucionárias, como uma liquidação de um passado" (Bachelard, 1951/1991, p. 69), a ciência, em sua própria essência, não seria nunca causa de regressão do saber. Ao contrário, ela se orientaria sempre em direção a um progresso manifesto, e sua história, em razão disso, seria sempre positiva e sempre na direção de um aumento de saber, de modo a tornar a compreensão cada vez mais melhorada: "A temporalidade da ciência é um crescimento do número das verdades, um aprofundamento da coerência das verdades. A história das ciências é a narrativa deste crescimento, deste aprofundamento" (Bachelard, 1951/1991, p. 72). O conceito bachelardiano de verdade ficará claro quando investigarmos as ideias de tecnociência e de fenomenotécnica ou tecnofenômeno.
De todo modo, assim como em Freud, a delineação de Bachelard do que constitui uma ciência parte da ideia de que toda teoria, para ser científica, deve estar atrelada a e depende de uma técnica específica que possibilite a emergência e a aproximação de um objeto (Bachelard, 1938/2005, 1951/1991; Freud, 1933/2006m, 1940/2006p). Todo objeto científico existe somente quando em ligação estreita com uma técnica que o fabrica e que torna factível e legítimo seu descobrimento posterior, além de garantir a coerência interna das doutrinas científicas. Esse objeto a ser conhecido tem seus limites definidos pelo procedimento que o tornou possível. Podemos dizer, então, que Bachelard torna inteligível a posição de Freud e a esclarece quanto à relação que teriam a técnica e a teoria psicanalíticas.
Bachelard e a fenomenotécnica
Bachelard (1940/1978a) deixou bastante claro que, para a empresa científica ser possível, é necessário estabelecer normas para sua produção, bem como construir uma racionalidade adequada à sua prática e uma postura ideal do pensamento que a acompanhe. Nas suas palavras,
(…) a verdade científica é uma predição, ou melhor, uma predicação. Chamamos os espíritos à convergência anunciando a novidade científica, transmitindo ao mesmo tempo a uma só vez um pensamento e uma experiência, ligando o pensamento e a experiência numa verificação: o mundo científico é portanto nossa verificação. Acima do sujeito, além do objeto imediato, a ciência moderna funda-se no projeto. No pensamento científico, a mediação do objeto pelo sujeito toma sempre a forma de projeto (Bachelard, 1940/1978a, p. 96, grifos nossos).
Contudo, para esse projeto ser bem sucedido, para haver o encontro do sujeito com o fato científico - que não se confunde com o objeto imediato encontrado na Natureza -, o devir da ciência deve ser regulado por um estatuto rigoroso: foi ao desenvolvimento deste estatuto que ele dedicou sua obra. Na célebre obra A formação do espírito científico (1938/2005), o epistemólogo propôs que somente a partir da atividade científica haveria a necessidade e a possibilidade de se definir um objeto, ou seja, de fazer corresponder um conceito a um fenômeno através da união estreita da experiência e da razão. Mas essa união só seria possível pela incorporação das condições de aplicação de um conceito no próprio sentido do conceito, para que se possa chegar a novas variações e provas experimentais de um fenômeno. Ou seja, a existência de um evento depende totalmente do emprego de recursos técnicos específicos e referentes àquele acontecimento, sem os quais o fenômeno (ou o conceito) não existe. As condições de aplicação passariam, então, a ser parte integrante e fundamental da teoria. Em outras palavras, Bachelard nos diz que
Na experiência, [o espírito] procura ocasiões para complicar o conceito, para aplicá-lo, apesar da resistência deste conceito, para realizar as condições de aplicação que a realidade não reúne. É então que se percebe que a ciência constrói seus objetos, que nunca ela os encontra prontos. A fenomenotécnica prolonga a fenomenologia. Um conceito torna-se científico na proporção em que se torna técnico, em que está acompanhado de uma técnica de realização (Bachelard, 1938/2005, p. 77, grifos nossos).
Então, o cientista moderno esforçarseia para limitar seu campo experimental, a fim de definir um fenômeno sobre o qual buscará suas variações. Esse aspecto do procedimento científico diferiria do pensamento pré-científico porque este, além de não limitar seu objeto, apressar-se-ia em generalizar as conclusões de uma experiência a vários outros domínios. E como o ideal de limitação já teria se difundido e se tornado hegemônico, a objetividade do conhecimento seria determinada pela coerência e exatidão dos atributos do conceito. Daí a afirmação de que "(...) o conhecimento a que falta precisão, ou melhor, o conhecimento que não é apresentado juntamente às condições de sua determinação precisa, não é conhecimento científico" (Bachelard, 1938/2005, p. 90). Mas, se o grande trunfo científico da filosofia de Bachelard é o conceito, este só pode ser criado e desenvolvido a partir do que o francês chamou de fenomenotécnica, traço distintivo de uma tecnociência. Lembremos que, para Bachelard (1938/2005), toda ciência é necessariamente uma tecnociência e todo real é uma realização (e não algo presente na natureza): os fatos científicos são produtos da técnica, e não objetos encontrados na realidade de apreensão imediata.
Já o conceito de fenomenotécnica foi elaborado por Bachelard durante as décadas de 1920 e 1930, em seus primeiros escritos epistemológicos, tais como Essai sur la connaissance approchée (1928/1986), O novo espírito científico (1934/1978b) e A formação do espírito científico (1938/2005). Apesar de não ser uma das ideias mais comentadas de Bachelard (como é o caso do corte epistemológico), a fenomenotécnica pode ser apresentada como um dos conceitos organizadores de toda a sua epistemologia histórica, como Dominique Lecourt (2006) a define. Pois, ainda que, na perspectiva do processo científico, a filosofia de Bachelard se assemelhe a uma "praxeologia do conhecimento científico" (Rheinberger, 2005, p. 315), muito da dinâmica das ciências ascende ao primeiro plano quando nos aproximamos de seus objetos considerandoos como tecnofenômenos.
A problemática em torno dessa ideia de Bachelard envolve a relação entre ciência e tecnologia - ou entre Ciência e técnica - e revela como ambas as dimensões estão presentes e dependem uma da outra na invenção (construção) dos objetos científicos. Ora, o conceito de fenomenotécnica supõe
(...) a concepção da tecnologia não como um subproduto eventual da atividade científica, como um produto derivativo através do qual a ciência se manifesta na sociedade, mas como constitutiva do próprio modus operandi científico contemporâneo. Na medida em que o modo de ação tecnológico está engajado no cerne do empreendimento científico, o próprio objeto tecnológico adquire uma função epistêmica (Rheinberger, 2005, p. 315).
Em outras palavras, a técnica é parte fundamental da prática científica e sua condição de possibilidade: é somente desta associação entre o espírito científico e a técnica que os fenômenos científicos podem ser, não descobertos, mas criados, inventados ou construídos. De modo que, a partir de Bachelard, a atividade científica seria entendida como o preparo conceitual de fenômenos tecnicamente constituídos. Nas palavras do epistemólogo,
(...) é a realização do racional na experiência física que teremos de destacar. Esta realização que corresponde a um realismo técnico parecenos um dos traços distintivos do espírito científico contemporâneo, bem diferente sob este aspecto do espírito científico dos últimos séculos, bem distante particularmente do agnosticismo positivista ou das tolerâncias pragmáticas, e sem relação, enfim, com o realismo filosófico tradicional (Bachelard, 1940/1978a, p. 104).
A consequência dessas afirmações foi que aquilo que tendia a ser percebido ou entendido como um fato revelouse como o resultado de todo um circuito constitutivo, ao mesmo tempo material e racional, humano e não humano (Latour, 2000). Com efeito, os tecnofenômenos são entidades teoricamente investidas, pois o saber científico não deriva dos sentidos ou do que se pode ver claramente e sem intermediários, mas depende inteiramente do aspecto técnico posto em jogo para que se reúnam todas as condições necessárias para o progresso do conhecimento. Os fatos são sempre produto de um trabalho científico e da solidariedade entre método e experiência: é necessário o método de conhecimento para alcançar o objeto a ser conhecido (Bachelard, 1934/1978b). Nas palavras de Bachelard, "a verdadeira ordem da Natureza é a ordem que nós colocamos tecnicamente na Natureza" (Bachelard, 1934/1978b, p. 155).
Os procedimentos de invenção e de colocação dessa ordem na natureza são, por sua vez, entendidos como multifatoriais. Na medida em que o objeto científico é resultado desses procedimentos, ele se encontra inserido e depende dos recursos técnicos que possibilitaram sua existência. Como a construção desse circuito do qual o fato científico depende acontece de maneira dialética, torna-se impossível também afirmar ou definir um ponto de início de todo o processo, tanto do lado racional quanto do lado fenomênico dos eventos (Rheinberger, 2005). Em um belo parágrafo, Bachelard resume o que ele pensa a respeito da empresa científica:
Entre o fenômeno científico e o númeno científico, já não se tem mais uma dialética distante e ociosa, mas um movimento alternativo que, após algumas retificações dos projetos, tende sempre a uma realização efetiva do númeno. A verdadeira fenomenologia científica é portanto essencialmente uma fenomenotécnica. Ela reforça o que transparece por trás do que aparece. Ela se instrui pelo que constrói. A razão taumatúrgica traça seus quadros segundo o esquema de seus milagres. A ciência suscita um mundo, não mais por uma impulsão mágica imanente à realidade, e sim por uma impulsão racional, imanente ao espírito. Depois de ter formado, nos primeiros esforços do espírito científico, uma razão à imagem do mundo, a atividade espiritual da ciência moderna empenhase em construir um mundo à imagem da razão. A atividade científica realiza, em toda a força do termo, conjuntos racionais (Bachelard, 1940/1978a, p. 107).
Mas Bachelard (1940/1978a) entende que, para ser possível a construção de um conceito e, consequentemente, de um conhecimento, deve ocorrer uma ruptura entre o conhecimento comum e vulgar e o conhecimento científico, estabelecendose uma fronteira entre um antes e um depois da racionalidade científica - um corte epistemológico. A racionalidade précientífica ainda não se encontra modificada pelo "materialismo técnico", ou seja, pela noção de uma realidade que depende da ação do racionalismo e da técnica que dá materialidade ao fenômeno (Rheinberger, 2005). E, se o pensamento précientífico está associado à noção de doxa, a ciência se erige contra o obstáculo constituído pela opinião (Stengers, 2002) e expresso pelas oposições e pelas resistências direcionadas ao conhecimento científico. Para enfrentá-las, o espírito científico rigoroso deve realizar constantemente uma severa autocrítica, a fim de evitar erros, através do que Bachelard chamou de uma eterna psicanálise do conhecimento objetivo. Deve-se esclarecer que o termo "psicanálise" é utilizado aqui com o sentido de depuração e exame rigoroso dos equívocos possíveis do espírito, com a ambiciosa meta de se alcançar uma perfeição da objetividade.
Trocando em miúdos, a experiência científica vai de encontro à experiência comum e a contradiz, pois o pensamento científico baseia-se não no real, mas no artificial, na abstração que permite uma crítica racional do experimento e que se origina daquilo que o encontro do espírito científico com a técnica possibilita. O acúmulo de verdades acontece, assim, através de um movimento contra um conhecimento anterior e necessariamente mal estabelecido, por não dispor de elementos metodológicos adequados e cujo destino é ser ultrapassado e destruído. Porém, para que esse saber anterior seja destituído de valor, deve-se recorrer sempre à crítica. Por consequência, em Bachelard, essa crítica é uma constante no desenvolvimento do conhecimento científico, o qual pensa sua evolução em termos de superação de obstáculos inerentes ao ato de conhecer. Dentre os obstáculos para a ciência, destacase a opinião, na medida em que ela impede o conhecimento dos objetos ao designálos pela utilidade e tomá-los como fatos. O conhecimento científico, ao contrário, é construído. Ele nunca é dado, nunca é um fato, é sempre a resposta a uma pergunta necessariamente formulada a partir de problemas imbuídos de um sentido.
Vê-se como o esforço da racionalidade técnica transforma a experiência comum em experiência científica, pois, ao não se satisfazer com o que confirma seu saber, o espírito científico questiona a experiência e a dialetiza, buscando variações (e não a eterna repetição do mesmo):
Precisar, retificar, diversificar são tipos de pensamento dinâmico que fogem da certeza e da unidade e que encontram, nos sistemas homogêneos, mais obstáculos do que estímulo. Em resumo, o homem movido pelo espírito científico deseja saber, mas para imediatamente melhor questionar (Bachelard, 1938/2005, p. 21).
O pensamento próprio da ciência deve, pois, encontrar-se sempre em um estado de mobilização, ser dinâmico e ter uma postura aberta para poder dialetizar todas as variáveis experimentais. Como a crítica não pode intervir direta nem explicitamente na primeira experiência, esta não pode constituir-se como base de conhecimento verdadeiro, mas somente como obstáculo. A primeira experiência é informação advinda diretamente e sem qualquer mediação da natureza, grande inimiga do progresso do conhecimento: "O espírito científico deve formarse contra a Natureza, contra o que é, em nós e fora de nós, o impulso e a informação da Natureza, contra o arrebatamento natural, contra o fato colorido e corriqueiro" (Bachelard, 1938/2005, p. 29).
Apontamos acima que, para Bachelard (1940/1978a), essas funções da crítica só podem ser cumpridas se forem detectados os obstáculos epistemológicos através da realização de uma "regulação cognitivo-afetiva indispensável ao progresso do espírito científico" (Bachelard, 1938/2005, p. 24). Ou seja, o pensamento deve se afastar do conhecimento sensível para que possa se mobilizar e questionar as experiências. E esse afastamento só ocorre na ciência instrumentada, que consegue, por isso mesmo, transcender a "ciência da observação natural" (Bachelard, 1934/1978b, p. 20). Para o autor, há uma ruptura fundamental entre a observação e a experimentação, já que a primeira é sempre um obstáculo inicial, impregnada de imagens difusas e criadora da ilusão de que sua descrição já é compreensão. Daí, nesse primeiro momento, o pensamento dever abandonar o empirismo imediato e adotar um sistema que permita uma aproximação metódica do objeto, que, para Bachelard (1934/1978b), passa pela utilização de instrumentos e técnicas pensados e construídos em função desse objeto. O sentido do problema, contudo, não pode ser perdido jamais, pois é ele que fundamenta uma experiência fecunda e que a conecta à teoria.
Lembremos que, no campo epistemológico, a partir do século XVII, o empirismo imediato, do qual nos falou Bachelard (1934/1978b), esteve em oposição ao racionalismo, que contesta que os dados sensoriais sejam a fonte principal ou original do conhecimento. Para Bachelard (1938/2005), entre o conhecimento comum e o científico, a ruptura é tão clara ao ponto de eles não poderem ter a mesma filosofia como base: se, por um lado, o empirismo conviria ao conhecimento comum, por outro lado e ao contrário, o conhecimento científico seria solidário com o racionalismo. E mais: pela atividade científica, o racionalismo conheceria uma atividade dialética que lhe prescreveria uma extensão constante de seus métodos na busca (construção) das verdades e na superação dos obstáculos (dogmas ideológicos que sustentam ou legitimam o discurso científico). Para superá-los, é preciso que o racionalismo seja aplicado, que a ciência seja trabalhada pela inteligência e se oponha ao puro formalismo, ao convencionalismo e ao idealismo absoluto, bem como ao positivismo, ao pragmatismo e ao empirismo.
Para tanto, para que a conexão entre a experiência, o sentido do problema e a teoria seja possível, ao invés de buscar uma variedade de fenômenos (como fazia o pensamento pré-científico), a postura científica deve provocar a variação do fenômeno, pois o conceito será mais bem definido se forem objetivadas suas variáveis e testada sua sensibilidade, através de procedimentos técnicos previamente concebidos. Assim, o fenômeno é mais bem compreendido, e o objeto bem demarcado pode ser cercado com um rigor crescente pelo conhecimento. Porém, esse processo só pode acontecer se o produto da definição (o conceito) for artificial, distante da Natureza e de um empirismo evidente e colado nas imagens, sempre intangíveis: somente ao se debruçar sobre um conceito construído, o espírito científico pode examinar seus aspectos essenciais e orientar o exame para as variações possíveis e as abstrações matemáticas que garantem o valor de verdade do conhecimento científico. Eis a tarefa do espírito científico: extrair o abstrato do concreto, purificar tudo o que se encontra na realidade antes de esta realidade ser confrontada com os dispositivos técnicos que funcionam como um "conjunto de regras que presidem à sua purificação" (Bachelard, 1934/1978b, p. 37).
Para que tal tarefa possa ser cumprida, é necessário o recurso constante de construção racional bem explícita, juntamente ao equacionamento racional da experiência determinado pela formulação de um problema. Nas palavras de Bachelard:
É preciso então reavivar a crítica e pôr o conhecimento em contato com as condições que lhe deram origem, voltar continuamente a esse 'estado nascente' que é o estado de vigor psíquico, ao momento em que a resposta saiu do problema. Para que, de fato, se possa falar de racionalização da experiência, não basta que se encontre uma razão para um fato. A razão é uma atividade psicológica essencialmente politrópica: procura revirar os problemas, variá-los, ligar uns aos outros, fazê-los proliferar. Para ser racionalizada, a experiência precisa ser inserida num jogo de razões múltiplas (Bachelard, 1938/2005, p. 51).
A definição do contexto e do objeto científico através de uma racionalidade tecnicamente fundamentada faz com que também a função do cientista fique mais bem delineada, permitindo que ele estabeleça uma distância entre sua vida sentimental e sua vida científica. A mentalidade pré-científica é que mistura observador e objeto e tem uma dificuldade enorme de romper com a concretude do fenômeno e a intuição do observador, poluindo assim o primeiro conhecimento com afetos e, consequentemente, com erros. Mas, assim como os afetos levam as primeiras observações ao erro, outras posturas do espírito também prejudicam a evolução da ciência, ao provocarem uma suspensão da experiência. Por isso, "(...) a psicanálise do conhecimento objetivo deve examinar com cuidado todas as seduções de facilidade. Só com esta condição podese chegar a uma teoria da abstração científica verdadeiramente sadia e dinâmica" (Bachelard, 1938/2005, p. 69).
A questão da técnica e de sua ligação com os fenômenos ou fatos científicos encontrase presente ao longo de todo o pensamento de Bachelard. No início, através da delimitação do conceito de fenomenotécnica e de tecnociência. Posteriormente, através da explicitação de como esta fenomenotécnica se torna fundamental para que um corte epistemológico ocorra. E, também, de como o espírito científico, para ser capaz de romper com o senso comum, deve ser auxiliado por instrumentos e por uma racionalidade que os inclua.
Sobre o auxílio dos instrumentos e de uma racionalidade específica, nos anos 1930, outro autor importante e, em certa medida, acorde às propostas de Bachelard, Alexandre Koyré (1939/2001), fez uma observação impactante:
A experiência, no sentido da experiência bruta (…) não tem nenhum papel, a não ser o de obstáculo, no nascimento da ciência clássica (…). Quanto à experimentação - interrogação metódica da natureza - ela pressupõe a linguagem na qual ela formula as suas questões e um vocabulário que permita interpretar as respostas. Ora, se é em uma linguagem matemática que (…) a ciência clássica interroga a natureza, esta linguagem ou, mais exatamente, a decisão de empregála (…) não poderia, por sua vez, ser ditada pela experiência que ela iria condicionar (p. 13).
Com essas palavras, Koyré (1939/2001) pretendia demonstrar que o nascimento da ciência moderna não teria decorrido da construção de instrumentos capazes de aumentar o poder de observação, mas de uma transformação no próprio modo de pensar. Ou seja, o que teria determinado o surgimento da ciência moderna não teria sido uma nova atitude diante da natureza, nem o abandono da contemplação em favor da ação ou a introdução de um novo método (o método experimental). O fator determinante teria sido uma ruptura teórico-filosófica com o aristotelismo dominante: os postulados de uma nova ontologia platonizante e antiaristotélica teriam sido as verdadeiras condições de possibilidade de uma ciência físico-matemática (Koyré, 1966/1991). Portanto, a natureza teria passado a ser concebida como um codex, ou seja, como uma escritura matematicamente interpretada: os fenômenos teriam perdido sua apresentação imediata, exigindo uma análise formal. Como vimos, o próprio Bachelard (1938/2005) definiu o conceito de obstáculo epistemológico através da análise do pensamento científico em seus aspectos psicológicos e culturais: para o cientista, o empirismo nunca poderia gozar de uma neutralidade no conhecimento do objeto, posto que apenas o senso comum já seria o suficiente para influenciar o que seria a busca da verdade científica. Assim, o novo espírito científico (a ciência moderna) suporia, além do rompimento com o senso comum, uma abordagem racional, dialética e permeada pelo método das ciências matemáticas. Isso porque, para Bachelard (1938/2005), o reconhecimento dos objetos está situado em um nível de sofisticação diverso de sua simples manipulação inicial, já que supõe a construção, pela inteligência, de um tecido de relações que ultrapassa as constantes percebidas e lhes dá sentido. Por isso, o racionalismo bachelardiano é um racionalismo da ruptura: é preciso que o sujeito rompa consigo mesmo, se libere dos assujeitamentos aos conhecimentos comuns admitidos sem reflexão.
Mas, se Bachelard tinha como uma de suas questões principais o estabelecimento da fronteira entre o que é científico e o que é não científico - propondo os conceitos de fenomenotécnica e de tecnociência -, Freud tinha uma preocupação mais específica, embora relacionada à questão do epistemólogo: garantir à Psicanálise um lugar no quadro das disciplinas científicas. O inventor da psicanálise nunca desistiu da ideia de que fazia ciência da natureza (Naturwissenschaft), devido ao modo pelo qual se utilizava de uma técnica específica para realizar a pesquisa de seu objeto, o Inconsciente (Freud, 1914/2006i, 1923/2006l, 1933/2006m, 1940/2006p).
A psicanálise é uma ciência da natureza (Naturwissenschaft)?
A afinidade entre a proposta de Bachelard e a de Koyré é notória. Para Koyré (1991), "a história não opera através de saltos bruscos; e as divisões nítidas em períodos e épocas só existem nos manuais escolares" (p. 15). Ora, Bachelard tinha tese semelhante: o velho sobreviveria no novo, pois na mente existiriam forças psíquicas que, tal como sombras ou assombrações, atuariam no conhecimento científico. Assim é que se poderia encontrar, ainda que de modo latente, o século XVIII em produções muito posteriores - idéia, aliás, bastante próxima da constatação freudiana de que a criança sobrevive no adulto ou de que as fases do desenvolvimento psíquico permanecem intactas no Inconsciente.
Nos textos em que discutiu claramente a posição da psicanálise no quadro das ciências (Freud, 1914/2006i, 1915/2006k e 1933/2006m), o metapsicólogo revelou sua concepção sobre a produção de saber na Ciência, articulandoa a sua metodologia de investigação dos processos psíquicos, cujo valor considerava inestimável (Freud, 1940/2006p). Para ele, a prova de cientificidade da psicanálise era justamente esse procedimento de investigação. Também em sua conhecida definição de psicanálise, escrita para uma enciclopédia em 1923, Freud não deixou dúvidas quanto à psicanálise ser uma ciência, nem quanto ao papel fundamental da técnica nas descobertas psicanalíticas:
Psicanálise é o nome: 1) de um procedimento que serve para indagar sobre processos anímicos dificilmente acessíveis por outras vias; 2) de um método de tratamento de perturbações neuróticas, fundado sobre esta indagação, e 3) de uma série de intelecções psicológicas, alcançadas por este caminho, que pouco a pouco se foi constituindo em uma nova disciplina científica (Freud, 1923/2006l, p. 231, grifo nosso).
Esse trecho define a psicanálise como sendo simultaneamente teoria, técnica e tratamento e mostra que tanto os ganhos terapêuticos quanto o valor dos conteúdos científicos dependem da técnica aplicada. É interessante notar que, ao longo desse artigo, Freud (1923/2006l) preocupouse em enumerar as mudanças técnicas que sua disciplina sofreu desde sua inauguração, como a mudança do método catártico para a psicoanálise, a "regra técnica fundamental" (Freud, 1923/2006l, p. 234), a associação livre, a interpretação dos sonhos e dos atos falhos. Só depois de dar conta desses aspectos, Freud (1923/2006l) começou a esclarecer os aspectos teóricos de sua disciplina científica, para posteriormente delinear suas aplicações, terminando com uma declaração a respeito da pertença da psicanálise à ciência:
a psicanálise não é um sistema como os filosóficos, que partem de alguns conceitos básicos definidos com precisão e procuram englobar com eles todo o universo, após o qual não resta espaço para novas descobertas e melhores intelecções. Mas sim adere aos feitos de seu campo de trabalho, procura resolver os problemas imediatos da observação, segue tateando na experiência, sempre inacabada e sempre disposta a corrigir ou variar suas doutrinas. Igual à química ou a física, suporta que seus conceitos máximos não sejam claros, que suas premissas sejam provisórias, e espera do trabalho futuro sua melhor precisão (Freud, 1923/2006l, p. 249).
No entanto, se o que Freud pensava sobre o estatuto científico da psicanálise pode e deve ser objeto de questionamentos e problematizações, é importante considerar que sua visão sobre a produção científica começou a ser construída enquanto ele próprio se encontrava imerso em um ambiente no qual as ciências naturais eram predominantes. Se nos lembrarmos de sua trajetória, veremos que sua educação formal de médico e pesquisador deu-se em meio às pesquisas acadêmico-científicas do fim do século XIX. Sua formação continuou no Laboratório de Fisiologia da Universidade de Viena, onde desenvolveu pesquisas experimentalmente controladas, o que certamente fez com que ganhasse bastante intimidade com os procedimentos investigativos da produção científica de sua época (Gay, 1989). Além disso, é preciso compreender também o contexto alemão da época para que se possam apreender os tipos de ciência em vigor em seu ambiente cultural e científico. Apesar de Freud não fazer nenhuma referência direta às discussões vigentes sobre as definições de ciência, no final do século XIX e início do XX ocorria um debate na Alemanha conhecido como "a querela dos métodos". Nele, a questão central eram as condições de possibilidade do conhecimento tanto nas ciências da natureza quanto nas recémsurgidas ciências do espírito.
Considerava-se haver basicamente dois tipos de objeto para o saber: os naturais e os históricos ou culturais. Entre um e outro, entre o natural e o humano, haveria uma diferença ontológica que exigiria o emprego de métodos diversos em seu estudo (Mezan, 2007; Dilthey, 1883/2010). O método das ciências da natureza baseavase, assim, na explicação (erklären) e tinha como meta a explicação dos fenômenos através do modelo investigativo da física de Galileu e Newton, enquanto as ciências do espírito tinham como fundamento a interpretação e a compreensão (verstehen), buscando entender os acontecimentos através da hermenêutica (Dilthey, 1883/2010). Nas ciências da natureza, um indivíduo ou grupo de indivíduos era tomado como exemplo de toda sua categoria, por possuir a capacidade de englobar em si toda a classe de seres à qual pertence: o indivíduo, aqui, encontrase inteiramente identificado com a totalidade de sua espécie. Era preciso apreender, consequentemente, o que haveria de universal no espécime, e não o que ele poderia apresentar como singular ou individual. Ora, para que essa exploração fosse possível, a Natureza precisava ser entendida como dotada de constância confiável para dar a garantia de que o experimento repetido fosse igual ao anterior.
Tudo muda nas ciências dos espíritos, pois a investigação sobre o domínio propriamente humano revela a inadequação dos procedimentos das ciências da natureza: cada objeto apresenta individualidade própria irredutível a uma classe no sentido atribuído ao termo pela ciência da natureza (Mezan, 2007). Para dar conta da singularidade de um indivíduo ou grupo, como as civilizações, as obras de arte, os sistemas políticos e econômicos, dentre outros, parecia ser necessário interpretálos para compreendêlos (verstehen), ou seja, penetrar em seu sentido, "(...) transcrever o individual sem dissolvêlo em qualquer mediação conceitual" (Assoun, 1983, p. 47). E o método para realizar tal empreendimento era a hermenêutica, a qual permitiria a compreensão profunda dos fenômenos, ao invés de sua explicação (Dilthey, 1883/2010). Contudo, se a ciência da natureza atinhase aos juízos de realidade, as ciências do espírito acabavam fazendo uso de juízos de valor (Assoun, 1983): suas interpretações apresentavam preconceitos ideológicos em suas análises e refletiam o eurocentrismo da época, chegando mesmo a revelar a xenofobia de nações em relação a outras (Mezan, 2007).
Assoun (1983) argumenta que Freud defendia ser a psicanálise uma ciência da natureza por estar inscrito em uma tradição científica que não admitia a possibilidade de se fazer outro tipo de ciência que não esta: Freud "(...) não conhece outra forma de ciência" (Assoun, 1983, p. 48). Para o metapsicólogo, a cientificidade só poderia advir da adoção das normas e procedimentos propostos pela ciência da natureza, os quais garantiriam a reflexão neutra e racional sobre os dados coletados durante a observação atenta e cuidadosa, tendo em vista uma maior precisão dos conceitos. Ora, o método proposto pelas ciências do espírito tinha não a observação, mas valores a priori como base do conhecimento, o que anularia toda possibilidade de exercício da racionalidade científica. Daí Freud conceber a atividade do cientista/psicanalista como um árduo trabalho de obtenção de dados e lapidação dos conceitos, através da colaboração contínua e constante entre a observação e a teorização, seguindo os procedimentos da Ciência da Natureza.
Justamente para especificar a relação que existiria entre essa observação e a formulação de uma teoria posterior, Freud afirmava ser absolutamente necessário haver contextos, perguntas e ideias prévias que orientem a observação. Esta, por consequência, nunca seria pura, pois a própria descrição do material obtido já seria influenciada por ideias abstratas. Somente num segundo momento, uma aproximação organizadora desse material poderia ocorrer (Freud, 1915/2006j; Bachelard, 1938/2005). Ou seja, nesse primeiro passo para a definição de seu objeto, a atividade científica necessita que haja um sentido para o problema proposto, conforme a noção de Bachelard. É esse sentido que, ao associarse com uma técnica, tornará possível a formatação de uma racionalidade científica (Bachelard, 1938/2005). Tal ponto de vista freudiano pode ser encontrado no início famoso de seu artigo As pulsões e suas vicissitudes, de 1915. Escreve ele:
O verdadeiro início da atividade científica consiste na descrição de fenômenos que são em seguida agrupados, ordenados, e correlacionados entre si. Além disso, é inevitável que, já ao descrever o material, apliquemos sobre ele algumas ideias abstratas obtidas não só a partir de novas experiências, mas também oriundas de outras fontes. Tais ideias iniciais - os futuros conceitos básicos da ciência - se tornam ainda mais indispensáveis quando mais tarde se trabalha sobre os dados observados. No princípio, as ideias devem conter certo grau de indefinição, e ainda não é possível pensar em uma delimitação clara de seu conteúdo. Enquanto elas permanecem neste estado, podemos concordar sobre seu significado remetendonos repetidamente ao material experiência a partir do qual elas aparentemente foram derivadas; contudo, na realidade, este material já estava subordinado a elas. Em rigor, estas ideias possuem o caráter de convenções. Entretanto, é preciso que não tenham sido escolhidas arbitrariamente, e sim determinadas pelas relações significativas que mantêm com o material empírico (Freud 1915/2006j, p. 145).
O argumento que Freud utilizou para justificar sua posição recaía também sobre critérios metodológicos, da mesma maneira que os debates em curso entre as ciências naturais e as do espírito e que a epistemologia de Bachelard: haveria uma etapa anterior à observação e à experimentação, na qual participariam ideias abstratas que teriam sua origem nas mais variadas fontes - em termos bachelardianos, o sentido do problema para o qual a racionalidade científica busca resposta apresentase em um período inicial da construção do conceito. São essas ideias (o sentido do problema) que, mesmo sem uma delimitação ou definição clara, guiarão as observações, as descrições dos fenômenos e as conclusões posteriores, por mais que pareça que estas últimas tenham surgido do material advindo da experiência. Nenhuma observação pode ser pura, dependendo sempre de alguma referência que permita a interpretação, o trabalho sobre o material empírico e mesmo a coleta deste material. Nesse modo de pensar, a pesquisa seria o instrumento principal e seria entendida como "(…) a elaboração intelectual de observações cuidadosamente escolhidas" (Freud, 1933/2006m, p. 156).
Segundo Freud (1923/2006l) e Bachelard (1938/2005), a metodologia psicanalítica teria como função principal realizar essa mediação entre o sentido do problema, os dados coletados a partir daí e sua organização posterior, ou seja, a criação de uma racionalidade e uma teoria específicas. Somente assim poderse-ia construir um conhecimento, já que para Freud a ciência exigiria a separação das ilusões e dos aspectos emocionais, não podendo contar com outras fontes de conhecimento, como a intuição, a revelação ou a adivinhação (Freud, 1933/2006m). À ciência caberia o papel de crítica constante, apresentando sempre objeções e refutações e sustentando o ceticismo frente aos conteúdos que surgem. Isso permitiria que ela permanecesse em mudança e em atualização incessantes, resultando no aperfeiçoamento de seus fundamentos. Nas palavras de Freud, "(...) enquanto não compreendermos nada não conseguiremos nada tampouco" (1910/2006b, p. 133). Além disso, "(...) todo progresso de nosso saber significa um aumento de poder para nossa terapia" (1910/2006b, p. 133). Para Freud, portanto, a eficácia terapêutica da psicanálise era dependente do volume e da qualidade dos conhecimentos acumulados e, eventualmente, transformados em função do sentido do problema, dos dados coletados e de sua organização incessante. Isso é particularmente evidente quando se observa a relação entre a sistemática da teoria e o campo da clínica: a partir da ocorrência de sintomas contemporâneos à sua época (neuroses de guerra, agorafobia e, mesmo, a neurose obsessiva), a clínica impôs à metapsicologia revisões importantíssimas, como, por exemplo, a célebre reformulação da teoria das pulsões em 1920.
No entanto, o conhecimento sobre o inconsciente - objeto psicanalítico por excelência
- só seria possível sob observância dos procedimentos técnicos. Sabese que a técnica psicanalítica sofreu modificações desde a parceria de Freud com Breuer, passando pela utilização da hipnose e do método catártico, até se estabilizar minimamente com a criação e a utilização de novos dispositivos que permitiram uma aproximação do Inconsciente. Criouse, assim, a regra da associação livre, a escuta flutuante, o uso do divã, a interpretação dos sonhos, a transferência e a resistência - todos também instrumentos teóricos que possibilitam o trabalho e a pesquisa psicanalíticos. Portanto, essa técnica, como Freud afirma nas Cinco conferencias sobre psicoanálisis (1910/2006c), não apenas não era evidente, como tinha como objetivo garantir o acesso ao inconsciente, tanto para o paciente quanto para o analista, além de poupar esforços ao segundo (1910/2006d). Como Freud escreveu nos seus artigos sobre a técnica, a união da associação livre com a atenção flutuante garantiria a escuta e a apreensão correta do Inconsciente do paciente (1912/2006f). Ou seja, estes dois artifícios técnicos - a regra fundamental e a escuta flutuante - permitiriam a mediação entre as ideias anteriores que fornecem o sentido do problema e os dados advindos da observação clínica. Somente assim poderia ser realizado o estudo das ocorrências convocadas na associação livre, dos sonhos, atos falhos e sintomáticos e sua posterior associação a um conceito (Freud, 1912/2006f; 1913/2006g e 1940/2006p).
Considerações finais
Vê-se que a ideia de ciência e do modo pelo qual ela é capaz de produzir um conhecimento do mundo está, para Freud, estreitamente vinculada ao desenvolvimento rigoroso de pesquisa, à metodologia própria de cada ciência e às técnicas de que elas dispõem para alcançar uma correspondência com a realidade exterior, recorrendo sempre à observação. Então, pode-se afirmar que, para alcançar novos conteúdos que auxiliem o entendimento, o procedimento da psicanálise faz uso de "(...) métodos técnicos de preencher as lacunas existentes nos fenômenos de nossa consciência" (Freud, 1940/2006p, p. 226). Ele ainda afirma que "(...) fazemos uso destes métodos exatamente como um físico faz uso de sua experiência. Desta maneira, inferimos certo número de processos que são em si mesmos 'incognoscíveis' e os interpolamos naqueles que são conscientes para nós" (Freud, 1940/2006p, p. 226). E, assim como a física, a psicanálise modifica a técnica quando o sentido dos problemas e os dados coletados pela experiência o exigem, como atestam as reformulações empreendidas pelo próprio Freud (sobretudo a partir dos anos 1920, com a introdução da pulsão de morte) e os diversos avanços pós-freudianos, como, por exemplo, a técnica ativa de Ferenczi, o tempo lógico de Lacan, a clínica do traumático e dos casoslimite, para citar apenas alguns.
Seja como for, para Freud, a psicanálise possui métodos técnicos específicos a sua prática que desempenham a mesma função que a experiência na física. A psicanálise conta com a sua técnica, com a formação de conceitos e com a formulação de hipóteses, o que, em suma, lhe confere a capacidade de elaborar novos conhecimentos (científicos, por que não?) acerca do funcionamento do psiquismo humano. Esse compromisso fundamental entre teoria, técnica e uma nova racionalidade científica, tomado como traço essencial da produção científica, pode ser encontrado em toda uma linhagem de pensadores da ciência a partir de Bachelard (além dos trabalhos do próprio Freud). É exatamente essa argumentação que dá sentido à busca de elementos teóricos em sua filosofia, para a qual os fenômenos observados pelas ciências em geral não podem ser pensados de maneira dissociada da técnica que os torna possíveis. Tal raciocínio, como vimos, aproximase bastante da posição freudiana a respeito da capacidade legitima da psicanálise de produzir um conhecimento científico acerca da vida anímica, através de seus procedimentos técnicos, como atesta sua divisão interna entre o universal do conceito e o particular da clínica.
Não é à toa, portanto, que, após a constituição da IPA, em 1910 (Mijolla, 2005), Freud tenha dedicado mais tempo e trabalho para definir com clareza, em artigos e conferências, os preceitos e fundamentos de seu procedimento - todos, evidentemente, passíveis de discussão e revisão quando os problemas assim o exigissem. Isso está claro na série de artigos sobre a técnica, entre 1911 e 1915, e em algumas comunicações anteriores, tais como as cinco conferências (1910/2006d), a abertura do 2o Congresso Internacional de Psicanálise (também em 1910) e o artigo sobre perspectivas futuras da terapia psicanalítica (1910/2006b). Era preciso que a técnica estivesse relativamente bem delineada e estabelecida como intermediária fundamental entre uma contextualização das questões psicanalíticas e uma teoria que tanto a definiria como seria definida por ela. Só assim o progresso e o posterior acúmulo de conhecimento da psicanálise estariam garantidos, podendo, então, ser aberto com segurança o campo para a descrição e revisão metapsicológicas sistemáticas do modelo de psiquismo, realizadas após 1915 - exatamente o ano do último dos classicamente chamados artigos sobre a técnica. Evidentemente, afirmar a necessidade de a técnica estar relativamente bem delineada e estabelecida não significa desprezar as discussões sobre e as revisões da técnica, desenvolvidas a partir de 1920, com a elaboração da teoria da pulsão de morte. Mas, como afirmamos anteriormente, ainda que tenha havido reformulações importantes da técnica, seu aspecto geral se manteve, pois, para Freud, a técnica era o preceito básico a partir do qual as doutrinas científicas podem se erigir e ser estabilizadas. Assim como na ciência, também na psicanálise os objetos de conhecimento existem somente a partir da técnica que os fabrica - fenomenotécnica e tecnociência.
Referências
Assoun, P. L. (1983). Introdução à Epistemologia Freudiana. Rio de Janeiro: Imago Editora. [ Links ]
Bachelard, G. (1978a). A filosofia do não. São Paulo: Abril Cultural Os pensadores. (Originalmente publicado em 1940). [ Links ]
Bachelard, G. (1978b). O novo espírito cientifico. São Paulo: Abril Cultural Os pensadores. (Originalmente publicado em 1934). [ Links ]
Bachelard, G. (1986). Essai sur la connaissance approchée. Paris: Vrin. (Originalmente publicado em 1928). [ Links ]
Bachelard, G. (1991). A actualidade da história das ciências. In M. M. Carrilho (Org.), Epistemologia: Posições e Críticas (pp. 6788). Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian. (Originalmente publicado em 1951). [ Links ]
Bachelard, G. (2005). A formação do espírito cientifico. Rio de Janeiro: Contraponto. (Originalmente publicado em 1938). [ Links ]
Dilthey, W. (2010). Introdução às ciências humanas. Rio de Janeiro: Forense Universitária. (Originalmente publicado em 1883). [ Links ]
Freud, S. (2006a). Él método psicoanalítico de Freud (Obras Completas de Sigmund Freud, vol. 7). Buenos Aires: Amorrortu Editores. (Originalmente publicado em 1904). [ Links ]
Freud, S. (2006b). Las perspectivas futuras de la terapia psicoanalítica (Obras Completas de Sigmund Freud, vol. 11). Buenos Aires: Amorrortu Editores. (Originalmente publicado em 1910). [ Links ]
Freud, S. (2006c). Cinco conferencias sobre psicoanálisis (Obras Completas de Sigmund Freud, vol. 11). Buenos Aires: Amorrortu Editores. (Originalmente publicado em 1910). [ Links ]
Freud, S. (2006d). Sobre él psicoanalisis 'silvestre' (Obras Completas de Sigmund Freud, vol. 11). Buenos Aires: Amorrortu Editores. (Originalmente publicado em 1910). [ Links ]
Freud, S. (2006e). El uso de la interpretación de los sueños en el psicoanálisis (Obras Completas de Sigmund Freud, vol. 12). Buenos Aires: Amorrortu Editores. (Originalmente publicado em 1911). [ Links ]
Freud, S. (2006f). Sobre la dinámica de la transferencia (Obras Completas de Sigmund Freud, vol. 12). Buenos Aires: Amorrortu Editores. (Originalmente publicado em 1912). [ Links ]
Freud, S. (2006g). Sobre la iniciación del tratamiento (Obras Completas de Sigmund Freud, vol. 12). Buenos Aires: Amorrortu Editores. (Originalmente publicado em 1913). [ Links ]
Freud, S. (2006h). Recordar, repetir y reelaborar (Obras Completas de Sigmund Freud, vol. 12). Buenos Aires: Amorrortu Editores. (Originalmente publicado em 1914). [ Links ]
Freud, S. (2006i). Introducción del narcisismo (Obras Completas de Sigmund Freud, vol. 14). Buenos Aires: Amorrortu Editores. (Originalmente publicado em 1914). [ Links ]
Freud, S. (2006j). Pulsiones y destinos de pulsión (Obras Completas de Sigmund Freud, vol. 14). Buenos Aires: Amorrortu Editores. (Originalmente publicado em 1915). [ Links ]
Freud, S. (2006k). Puntualizaciones sobre el amor de transferencia (Obras Completas de Sigmund Freud, vol. 14). Buenos Aires: Amorrortu Editores. (Originalmente publicado em 1915). [ Links ]
Freud, S. (2006l). Dos artículos de enciclopedia: 'Psicoanálisis' y 'Teoría de la libido' (Obras Completas de Sigmund Freud, vol. 18). Buenos Aires: Amorrortu Editores. (Originalmente publicado em 1923). [ Links ]
Freud, S. (2006m). 35a Conferencia: En torno de una cosmovisión (Obras Completas de Sigmund Freud, vol. 22). Buenos Aires: Amorrortu Editores. (Originalmente publicado em 1933). [ Links ]
Freud, S. (2006n) Análisis terminable e interminable (Obras Completas de Sigmund Freud, vol. 23). Buenos Aires: Amorrortu Editores. (Originalmente publicado em 1937). [ Links ]
Freud, S. (2006o). Construcciones en el análisis (Obras Completas de Sigmund Freud, vol. 23). Buenos Aires: Amorrortu Editores. (Originalmente publicado em 1937). [ Links ]
Freud, S. (2006p). Esquema del psicoanálisis (Obras Completas de Sigmund Freud, vol. 23). Buenos Aires: Amorrortu Editores. (Originalmente publicado em 1940). [ Links ]
Gay, P. (1989). Freud, uma vida para nosso tempo. São Paulo: Companhia das Letras. [ Links ]
Koyré, A. (2001). Études galiléennes. Paris: Hermann. (Originalmente publicado em 1939). [ Links ]
Koyré, A. (1991). Estudos de história do pensamento científico. Rio de Janeiro: Ed. Forense universitária. (Originalmente publicado em 1966). [ Links ]
Latour, B. (2000). Ciência em Ação: Como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São Paulo: Editora Unesp. [ Links ]
Lecourt, D. (2006). La philosophie des sciences. Paris: PUF. [ Links ]
Mezan, R. (2007). Que tipo de ciência é, afinal, a Psicanálise?. Natureza Humana, 9(2),319-359. [ Links ]
Mijolla, A. (2005). Dicionário internacional da psicanálise. Rio de Janeiro: Imago Editora. [ Links ]
Rheinberger, H.J. (2005). Gastón Bachelard and the notion of 'Phenomenotechnique'. Perspectives on Science, 13(3), 313-328. [ Links ]
Stengers, I. (2002). A invenção das ciências modernas. São Paulo: Editora 34. [ Links ]
Endereços para correspondência
Monah Winograd
winograd@uol.com.br
Nathalia Sisson
nathalia.sisson@gmail.com
Submetido em: 20/05/2012
Revisto em: 02/11/2012
Aceito em: 13/11/2012
1 Apoio FAPERJ e CNPq.