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Arquivos Brasileiros de Psicologia

 ISSN 1809-5267

     

 

ARTIGOS

 

Nível socioeconômico e funções executivas em crianças/ adolescentes: revisão sistemáticai

 

Socioeconomic status and executive function in children/adolescents: systematic review

 

Nivel socioeconómico y funciones ejecutivas en niños/adolescentes: revisión sistemática

 

 

Juliana Burges SbicigoI; Josiane Lieberknecht Wathier AbaidII; Débora Dalbosco Dell'AglioIII; Jerusa Fumagalli de SallesIV

IDoutoranda. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Porto Alegre. Rio Grande do Sul. Brasil
IIDoutoranda. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Porto Alegre. Rio Grande do Sul. Brasil
IIIDocente. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Porto Alegre. Rio Grande do Sul. Brasil
IVDocente. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Porto Alegre. Rio Grande do Sul. Brasil

Endereços para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo deste estudo foi sistematizar evidências sobre a influência do nível socioeconômico (NSE) no desempenho em tarefas de funções executivas (FE). A busca de artigos foi realizada nas bases ISI Web of Knowledge, Scopus, PsycINFO, Pubmed, Science Direct, EBSCO e BVS-PSI, entre 2000 e 2011. Foram selecionados 19 artigos, com base em critérios pré-estabelecidos. As características metodológicas dos estudos foram analisadas quanto à presença de amostra representativa, critérios de inclusão, controle de confundidores e tamanho de efeito. NSE influenciou o desempenho em FE em 17 estudos, sendo que a magnitude das diferenças entre os grupos de NSE foi geralmente moderada e fraca, de acordo com a função executiva e a idade. Discute-se a relação entre variáveis socioeconômicas e funções executivas na infância/adolescência, assim como a relevância de estudos futuros com rigor metodológico.

Palavras-chave: Funções executivas; Controle executivo; Nível socioeconômico; Neuropsicologia; Cognição.


ABSTRACT

This study aimed to systematize evidences about the socioeconomic status (SES) in the development of executive functions (EF) tasks. The search for articles, from 2000 to 2011, was carried out in the following databases: ISI Web of Knowledge, Scopus, PsycINFO, Pubmed, Science Direct, EBSCOand BVS-PSI. Nineteen articles were selected based on previously established criteria. Methodological characteristics were analyzed concerning the presence of a representative sample, inclusion criteria, control of confounding factors and size effect. SES influenced the development of EF in 17 studies, and the magnitude of differences among groups related to SES generally varied between moderated and weak according to the executive function and age. The relationship between socioeconomic variables and executive functions in childhood/adolescence is discussed, as well as the relevance of future studies with methodological rigor.

Keywords: Executive functions; Executive control; Socioeconomic status; Neuropsychology; Cognition.


RESUMEN

El objetivo de este estudio fue sistematizar las evidencias sobre la influencia del nivel socioeconómico (NSE) en el desempeño de tareas de funciones ejecutivas (FE). La búsqueda de artículos se llevó a cabo en las bases ISI Web of Knowledge, Scopus, PsycINFO, Pubmed, Science Direct, EBSCO y BVS-PSI entre el 2000 y el 2011. Se seleccionaron 19 artículos con base en criterios preestablecidos. Se analizaron las características metodológicas de los estudios para detectar la presencia de la muestra representativa, criterios de inclusión, control de factores de confusión y tamaño del efecto. NSE influenció el desempeño en FE en 17 estudios, siendo que la magnitud de las diferencias entre los grupos de acuerdo con NSE varió entre moderada y débil de acuerdo con la función ejecutiva y la edad. Se discute la relación entre las variables socioeconómicas y funciones ejecutivas en la infancia/adolescencia, así como la relevancia de futuros estudios con rigor metodológico.

Palabras-clave: Funciones ejecutivas; Control ejecutivo; Nivel socioeconómico; Neuropsicología; Cognición.


 

 

A influência do nível socioeconômico (NSE) no desenvolvimento das funções neuropsicológicas vem sendo objeto de estudo da Neurociência Cognitiva, sendo um dos focos de interesse a pesquisa acerca de tal influência nas funções executivas (FE) (Hackman, Farah, & Meaney, 2010). As FE se desenvolvem progressivamente durante a infância até o final da adolescência, coincidindo com a maturação do lobo frontal e com a expansão das conexões com outras áreas do cérebro, tendo sido sugerido que o pico final de seu desenvolvimento ocorre entre 16 e 19 anos (Anderson, 2002). Uma vez que as FE atingem a maturação neurobiológica mais tarde, elas são consideradas mais sujeitas à influência de fatores ambientais (Hackman & Farah, 2009). Evidências de que o desempenho neuropsicológico é modificado por mecanismos epigenéticos, que indicam a forte influência da experiência sobre a expressão do gene e traços cognitivos fenotípicos (Graff & Mansuy, 2008), e achados acerca da plasticidade cerebral em resposta a uma série de experiências (Pascual-Leone, Amedi, Fregni, & Merabet, 2005) fundamentam a hipótese de que o NSE é um fator contextual que influencia o funcionamento executivo (Hackman et al., 2010).

NSE é comumente avaliado através de indicadores como escolaridade, ocupação e renda familiar ou por uma combinação destes (Braveman et al., 2005). No caso de crianças e adolescentes, ele é mensurado através da renda e escolaridade dos pais, que podem afetar o desenvolvimento neuropsicológico, independentemente do NSE alcançado posteriormente na vida (Goodman et al., 2001). Os mecanismos que subjazem aos efeitos do NSE sobre o funcionamento executivo ainda não são claros; entretanto, evidências sugerem envolvimento de fatores pré-natais (ex.: estresse, uso de drogas durante a gestação), nutrição, cuidado parental, estresse, tipo e qualidade da estimulação cognitiva no ambiente familiar, entre outros (Hackman et al., 2010).

FE é uma expressão ampla que abrange um conjunto de habilidades cognitivas de alta ordem responsável pela coordenação de respostas adaptativas diante de situações novas e/ou complexas (Chan, Shum, Toulopoulou, & Chen, 2008). Essas habilidades permitem a formulação de metas, planejamento de estratégias e de solução de problemas, realização de planos dirigidos a metas e execução efetiva (Royall et al., 2002). Apesar das controvérsias quanto à definição das habilidades que integram as FE (ver Jurado & Rosselli, 2007), as habilidades frequentemente postuladas são: planejamento, controle inibitório, componente executivo central da memória de trabalho, flexibilidade cognitiva, fluência verbal (Chan et al., 2008; Diamond, 2006) e a tomada de decisão sobre eventos que têm consequências emocionais significativas (ex.: recompensas significativas versus perdas) (Kerr & Zelazo, 2004).

Há evidências (Blair, Zelazo, & Greenberg, 2005; Gilbert & Burgess, 2008) de que as habilidades pertencentes às FE são distintas, porém relacionadas, o que apoia modelos teóricos sustentando que várias habilidades estão envolvidas em diversas atividades, ainda que possam ser observadas separadamente (Stuss & Alexander, 2002). Nessa perspectiva, tem sido sugerida uma distinção entre FE e controle executivo, na qual FE seria um sistema complexo responsável por vários processos cognitivos diferentes para realizar uma tarefa, enquanto controle executivo seria responsável pela coordenação desses processos (Royall et al., 2002).

De acordo com Hackman e Farah (2009) e Hackman et al. (2010), NSE exerce efeito no desenvolvimento das habilidades executivas de controle inibitório e memória de trabalho (executivo central), porém a conclusão é baseada em um número pequeno de estudos. Além disso, não há conhecimento sobre se a condição socioeconômica também influencia outras habilidades executivas. O presente estudo consiste em uma revisão sistemática de pesquisas neuropsicológicas que avaliaram a influência do NSE nas FE. A revisão inclui uma análise de aspectos metodológicos dos estudos (amostra, instrumentos, critérios de inclusão, controle de confundidores, tamanho de efeito), a fim de discutir criticamente os resultados, principalmente a magnitude da associação entre as variáveis em questão. Portanto, o objetivo foi sistematizar evidências sobre a influência do NSE no desempenho em tarefas de FE, considerando características metodológicas dos estudos.

 

Método

A pesquisa e a análise do material bibliográfico foram conduzidas em quatro etapas. Na primeira etapa, foram selecionadas as bases de dados eletrónicas (período entre 2000 e 2011): Web of Science, Scopus, Pubmed, EBSCO, PsycINFO, Science Direct e BVS-PSI. Com exceção da base PsycINFO, foram utilizados nas buscas termos extraídos do Medicai Subject Headings (MeSH)/Descritores em Ciências da Saúde (DeCS), a partir do qual foi gerada a combinação dos termos: "executive function" and "socioeconomic status"/ "executive function" and "family income"/ "executive control" and "socioeconomic status" / "executive control" and "family income". Foram ainda acrescentados pelas autoras termos que fazem menção à escolaridade dos pais, gerando as combinações: "executive function" and "parent education" / "executive function" and "parental education" / "executive function" and "maternal education" / "executive control" and "parent education" / "executive control" and "parental education" / "executive control" and "maternal education". Na base PsycINFO foram utilizados os descritores obtidos no Thesaurus, gerando a combinação dos termos: "executive function" and "socioeconomic status" / "executive function" and "family socioeconomic level" / "executive function" and "parent educational background"/ "executive control" and "socioeconomic status"/ "executive control" and "family socioeconomic level" / "executive control" and "parent educational background". Nas buscas, considerou-se a opção "todos os campos", não sendo realizado qualquer tipo de seleção por título ou autor, por exemplo.

Na segunda etapa, estabeleceram-se os critérios de inclusão: a) artigo empírico escrito em língua inglesa, espanhola ou portuguesa; b) amostra não clínica; c) responde ao objetivo desta revisão, comparando/considerando o desempenho de indivíduos com diferentes NSEs; d) utiliza instrumentos ou tarefas experimentais que indicam avaliar FE e/ou seus componentes; e e) disponibiliza o texto completo. Na terceira etapa, artigos potencialmente relevantes dentro desses critérios foram pré-selecionados, com base no título e no resumo. Posteriormente, foi realizada uma análise minuciosa, na íntegra, dos artigos pré-selecionados por duas pesquisadoras, de forma independente, para definir o número final de estudos a serem revisados, que atenderam aos critérios de inclusão. A tabulação foi realizada de acordo com ano de publicação, título, autores, tipo de delineamento (transversal/longitudinal), objetivos, caracterização dos participantes, presença de critérios de inclusão/exclusão, FE investigadas, instrumentos utilizados, aspecto do NSE avaliado (ex.: escolaridade dos pais, renda familiar) e principais resultados envolvendo variáveis socioeconômicas e FE. Para cada estudo/artigo, os dados foram extraídos independentemente pelas duas pesquisadoras. Discrepâncias foram resolvidas por consenso.

Na quarta etapa, foram descritos a frequência das publicações ao longo dos anos e os instrumentos utilizados para avaliar NSE e FE. Além disso, foram analisadas as características metodológicas dos estudos quanto à presença de: a) amostra representativa, ou seja, que utilizou algum procedimento de randomização; b) critérios de inclusão/exclusão no estudo (ex.: exclusão de condições neurológicas e psiquiátricas, déficit intelectual); c) controle ou manipulação das variáveis confundidoras sexo e/ou idade na análise da associação entre FE e NSE; e d) cálculo de tamanho do efeito.

 

Resultados e discussão

De 120 publicações encontradas nas buscas, 20 artigos foram selecionados a partir das bases de dados. Os motivos de exclusão, o número final de artigos incluídos, assim como a combinação de termos que localizaram os artigos selecionados são apresentados na Figura 1 (etapas 1 a 3). Os resultados são discutidos em três partes (etapa 4): I) frequência de publicações ao longo dos anos; II) instrumentos para a avaliação do NSE e das FE; e III) características metodológicas dos estudos quanto à presença de amostra representativa, critérios de inclusão/exclusão, controle das variáveis sexo e/ou idade nas análises e tamanho de efeito nos resultados.

Os estudos estão descritos na Tabela 1. A influência do NSE nas FE foi verificada em crianças (n = 17), em crianças e adolescentes (n=3), e em adultos (n = 1), totalizando 20 artigos. Destes, o único estudo com adultos foi excluído da presente revisão, uma vez que não haveria dados comparativos, resultando em um total de 19 artigos. Os artigos foram oriundos da América do Norte (9), América do Sul (3), Reino Unido (3), Asia (1), Europa (2) e África (1). A maioria possui delineamento transversal (n=15), o que não permitiu evidenciar o aspecto desenvolvimental das FE. Somente em quatro artigos os autores puderam formular hipóteses ou identificar preditores a respeito da evolução do desenvolvimento neuropsicológico associado ao NSE ao longo do tempo (Bernier, Carlson, Bordeleau, & Carrier, 2010; Hughes, Ensor, Wilson, & Graham, 2010; Hughes & Ensor, 2007; Matte-Gagné & Bernier, 2011). Foram encontradas diferenças no desempenho em FE conforme o NSE em 17 dos 19 estudos.

A Tabela 2 apresenta a caracterização das pesquisas conforme critérios metodológicos estabelecidos nessa revisão.

I - Frequência de publicações no período analisado

Em relação à frequência de publicações durante o período analisado, foi possível visualizar a importância que o contexto econômico vem tomando no estudo das FE a partir de 2009, com maior número de publicações em 2010 e 2011 (Figura 2). É possível que o maior interesse pelo tema seja o reflexo da expansão, nos últimos anos, do campo da Neuropsicologia Transcultural (Manly, 2008), que supõe que o desempenho neuropsicológico pode ser diretamente influenciado por fatores ecológicos (Vygotsky, Luria, & Leontiev, 1994), pelos anos de educação e pelo status socioeconômico (Hackman et al., 2010).

 

 

II - Instrumentos de avaliação do NSE e das FE

Avaliação do NSE

Os indicadores de NSE avaliados nos estudos foram principalmente escolaridade dos pais/escolaridade materna (n = 17), renda familiar (n = 13) e ocupação parental (n=7), de forma isolada ou combinada em índices. A renda familiar foi avaliada diretamente pelo valor da remuneração mensal ou pelas necessidades de renda da família, que é calculada pela divisão do valor da renda familiar pelo limiar de pobreza oficial do respectivo país para o tamanho da família. Alguns estudos também se basearam em critérios do governo para definir NSE, tal como a classificação nacional de escolas em nível de pobreza da Argentina (Musso, 2010), classificação do NSE das escolas conforme o Ministério da Educação também da Argentina (Arán-Filippetti, 2011) e critérios de elegibilidade da assistência pública à saúde dos Estados Unidos (Wiebe et al., 2011). Em cinco pesquisas, foram utilizadas escalas de classificação social internacional para definir ou complementar a definição do NSE. Uma delas é a Escala de Graffar Modificada (Méndez-Castellano & Méndez, 1994), que avalia profissão do chefe de família, escolaridade materna, principal fonte de renda familiar e condições de moradia (Arán-Filippetti, 2011). Outra escala é a Hollingshead Occupational Status Scale (Hollingshead, 1975), que avalia escolaridade e status ocupacional (Farah et al., 2006; Noble, McCandliss, & Farah, 2007; Noble, Norman, & Farah, 2005; Sarsour et al., 2011).

Em nove estudos, as medidas de NSE foram padronizadas em escore z para geração de um índice composto de NSE (Bernier et al., 2010; Fernald, Weber, Galasso, & Ratsifandrihamanana, 2011; Hughes & Ensor, 2005, 2007; Matte-Gagné & Bernier, 2011; Noble et al., 2007; Sarsour et al., 2011). Dois índices foram constituídos por escolaridade dos pais e renda familiar (Bernier et al., 2010; Matte-Gagné & Bernier, 2011), e dois índices foram de desvantagem social (Hughes & Ensor, 2005, 2007), compostos por sete questões (ex.: "família reside em casa do governo", "chefe de família não possui qualificações educacionais"). Outros índices foram constituídos por renda, riqueza familiar e ocupação dos pais (Sarsour et al., 2011), utilizando bens duráveis e vários aspectos das condições de moradia, resultando em um índice de riqueza da família (Fernald et al., 2011). Em outro estudo (Rhoades, Greenberg, Lanza, & Blair, 2011), não foi utilizado propriamente um índice de NSE, mas foram estabelecidos perfis de risco ecológico a partir de vários indicadores de risco e demográficos das mães, como renda familiar, status marital, escolaridade, problemas de humor, fumo pré-natal, tamanho da família, entre outros.

Em algumas pesquisas, a escolaridade dos pais foi o melhor preditor de FE, especialmente de fluência verbal (Arán-Filippetti, 2011; Ardila, Rosseli, Matute, & Guajardo, 2005; Noble et al., 2005). Por outro lado, o índice de riqueza familiar utilizado por Fernald et al. (2011) foi melhor preditor de memória de trabalho e memória para frases que a escolaridade materna. Por sua vez, a escolaridade materna foi melhor preditora de atenção sustentada no mesmo estudo. Nas demais pesquisas, os indicadores econômicos foram combinados em índices, o que dificultou a verificação de quais exerceram maior influência. Como é possível que os indicadores de NSE exerçam efeitos diferenciais nas FE, sugere-se o emprego de múltiplas informações socioeconômicas, no mínimo renda familiar, escolaridade materna e ocupação dos pais.

Avaliação das FE

Os componentes das FE frequentemente avaliados foram controle inibitório (n=13), memória de trabalho (n=13), flexibilidade cognitiva (n=6), planejamento (n=6), fluência verbal (n=4) e processamento da recompensa/tomada de decisão (n=5). Para avaliar controle inibitório, foram utilizadas tarefas do paradigma de Stroop desenvolvidas para crianças pequenas (Baby Stroop, Big-little Stroop, Day/Night Stroop, Number Stroop, Shape Stroop), sendo que as outras tarefas de controle inibitório foram diversificadas (ex.: Whisper Task, Shape School, etc.). Memória de trabalho foi avaliada principalmente por subtestes de baterias de avaliação da inteligência, como span de dígitos ou o paradigma two back (Stanford Binet Intelligence Scales e Wechsler Intelligence Scale for Children), e por outras tarefas de memória de trabalho (Spatial Working Memory, Hide the Pots, Spin the Pots), entre outros instrumentos para crianças pré-escolares101.

Flexibilidade cognitiva e planejamento foram frequentemente avaliados pelas tarefas Torre de Londres e de Hanói (Tower of London e Tower of Hanoi) e por tarefas similares ao teste Wisconsin de Classificação de Cartas (Carding Sorting, Dimensional Change Card Sort, False alarms), entre outras. Medidas de fluência consistiram em diferentes provas que avaliam a habilidade com critérios semânticos e fonológicos/ortográficos, nas formas verbal, gráfica e visuomotora (ex.: Semantic Fluency, Phonemic Fluency, Design Fluency). Finalmente, os componentes tomada de decisão e processamento da recompensa foram avaliados pelas tarefas de atraso na gratificação (Delay of Gratification, Delay Task) e aprendizagem reversa (Reversal Learning). Alguns estudos empregaram medidas isoladas de FE (ex.: tarefa Baby Stroop), enquanto outros utilizaram escores compostos de um dado componente (ex.: controle inibitório) ou do funcionamento executivo geral (ex.: FE global).

A partir dessa descrição, observou-se que as tarefas para avaliar FE foram bastante diversificadas, havendo maior consenso no que se refere à avaliação do controle inibitório, na qual predominaram tarefas nos paradigmas de Stroop e Go/no go. Nessa última tarefa, a associação com o NSE não foi consensual, pois o desempenho foi maior em crianças de NSE mais alto no estudo de Noble et al. (2005), mas não houve diferenças nos estudos de Farah et al. (2006) e de Noble et al. (2007). Em relação à memória de trabalho, observou-se que as tarefas Spatial Working Memory da CANTAB, Two-back, Digit Backward e Working Memory da ESB5, utilizadas nos estudos em que a diferença entre grupos de NSE foi maior (Farah et al., 2006; Fernald et al., 2011; Sarsour et al., 2011), podem ser mais sensíveis à influência socioeconômica.

 

III - Características metodológicas dos estudos

Amostra, critérios de inclusão/exclusão e controle de idade/sexo

A partir da Tabela 2, observa-se que somente duas pesquisas foram realizadas com amostras representativas, enquanto as demais não empregaram procedimentos de randomização. Do total de 19 estudos, 11 relataram critérios de exclusão. Os critérios mais frequentes foram presença de história neurológica, problemas psiquiátricos, transtornos do desenvolvimento, retardo mental, dificuldades de aprendizagem e uso regular de psicotrópicos pela mãe. Critérios menos frequentes foram presença de baixo QI, baixo peso ao nascer, incapacidade física e uso de drogas pela mãe durante a gravidez. Excluir participantes com transtornos é considerada uma estratégia útil para fortalecer as inferências sobre os efeitos do NSE na cognição. Entretanto, essa prática pode prejudicar a validade externa ao reduzir a variabilidade, já que altas taxas de prevalência de transtornos são maiores em populações com menor NSE (Hughes & Ensor, 2005). Nessa revisão, os dois estudos que não encontraram diferenças em FE por grupos de NSE utilizaram critérios de exclusão, como presença de dificuldades intelectuais (QI), de aprendizagem, entre outros. Os demais estudos que também utilizaram critérios de exclusão encontraram, em geral, diferenças fracas entre os grupos. Por outro lado, efeitos moderados em algumas tarefas puderam ser observados tanto em estudos que adotaram quanto naqueles que não adotaram critérios. Como exemplo, a pesquisa de Fernald et al. (2011) identificou diferenças moderadas no desempenho em FE por NSE, mas não foram delimitados critérios de exclusão, o que pode indicar vieses nos resultados, como efeitos de variáveis não conhecidas. Portanto, a delimitação de critérios de exclusão pode exercer influência nos resultados e deve ser um aspecto justificado pelos pesquisadores nos artigos.

Outro cuidado metodológico para estudos (quase) experimentais e correlacionais é o controle de variáveis confundidoras nas análises dos dados. Quanto ao controle de variáveis confundidoras, 15 estudos consideraram sexo e idade na análise da relação entre NSE e FE, evitando interpretar como variações do ambiente as alterações que poderiam ser influenciadas pela idade ou sexo.

Tamanho do efeito das diferenças em FE por NSE

Houve diferença no desempenho em FE de acordo com o NSE em 17 estudos. Desse total, 13 relataram o tamanho do efeito. Para melhor comparação entre os resultados, os tamanhos do efeito serão relatados em d de Cohen (Cohen, 1988), de modo que outras estimativas ( η p2, R2, r) foram convertidas em d quando necessário. A interpretação da magnitude do efeito foi realizada conforme Cohen (1988) e Murphy e Myors (2004): d (pequeno = 0,20; moderado = 0,50, grande = 0,80). Os resultados dos estudos (Tabela 2) são apresentados e discutidos a seguir.

Nos estudos de Hughes e Ensor (2005, 2007), crianças com NSE mais elevado apresentaram maiores escores em um composto de FE (flexibilidade cognitiva, planejamento e memória de trabalho) aos dois anos (Hughes & Ensor, 2005, d=0,20), entre dois e três anos (d=0,44), entre dois e quatro anos (d=0,40), mas não entre três e quatro anos (Hughes & Ensor, 2007). Outros estudos também apontaram essa diferença na faixa de dois a três anos (Bernier et al., 2010, d=0,54; Matte-Gagné et al., 2011, d=0,90; Rhoades et al., 2011, crianças brancas, d=0,30, crianças afro-americanas, d=0,40) e aos cinco anos (Noble et al., 2005, d=0,70). Por outro lado, essa diferença não foi encontrada em um estudo com crianças entre dois e seis anos (Wiebe, Espy, & Charak, 2008). Esses resultados sugerem diferenças variando geralmente entre fracas e moderadas no desempenho em FE por NSE (Bernier et al., 2010; Hughes & Ensor, 2005, 2007; Matte-Gagné et al., 2011). Os estudos seguintes estão agrupados por componentes de FE analisados.

Controle inibitório

O desempenho em medidas compostas de controle inibitório foi maior na condição de NSE mais elevado, com magnitude da diferença moderada em estudos com crianças escolares (Noble et al., 2007, d=0,60; Sarsour et al., 2011; d=0,60). Entretanto, os resultados foram controversos quanto ao desempenho na tarefa Go/no go computadorizada. Isso porque crianças pré-escolares de NSE mais alto apresentaram escore maior (Noble et al., 2005, d=0,56), enquanto não houve diferenças nessa tarefa entre crianças de primeira série (Noble et al., 2007) e entre crianças de 11 anos (Farah et al., 2006). Seria esperado o oposto, já que a tendência é que a capacidade de controle inibitório se desenvolva mais tarde e as diferenças por NSE se acentuem com a idade. Os achados mistos sugerem que a tarefa Go/no go pode não ser sensível o bastante para captar os efeitos socioeconômicos no controle inibitório. Na tarefa Spatial Conflict Inhibitory Control Task a diferença foi pequena em pré-escolares (Rhoades et al., 2011, d=0,30).

Memória de trabalho

Foi identificado que maiores escores em memória de trabalho ocorreram na condição de NSE mais alto em crianças a partir de três anos, com tamanho de efeito moderado (Farah et al., 2006, d=0,50; Fernald et al., 2011, d=0,61; Noble et al., 2007, d=0,51; Sarsour et al., 2011, d=0,60). Fernald et al. (2011) avaliaram, além de memória de trabalho, memória para frases (d=0,59) e atenção sustentada (d=0,18). Ainda foi observado que a média da diferença nos escores de memória de trabalho, memória para frases e atenção sustentada dobrou entre três e seis anos, mas houve maior diferença aos seis anos em atenção sustentada (Fernald et al., 2011). Com relação aos estudos com crianças até três anos, aquelas com maior NSE tiveram desempenho melhor em medidas compostas de memória de trabalho, mas o tamanho do efeito foi pequeno (Bernier et al., 2010, d=0,40; Rhoades et al., 2011, d=0,30). Em Noble et al. (2005), não houve diferença na avaliação de memória de trabalho espacial em pré-escolares, ao contrário do que ocorreu em Farah et al. (2006) nessa medida em crianças mais velhas.

De modo geral, os resultados sugerem que as diferenças por NSE em memória de trabalho são maiores a partir dos três anos (Farah et al. 2006; Fernald et al., 2011; Noble et al., 2007; Sarsour et al., 2011). Além disso, é possível que as tarefas Spatial Working Memory da CANTAB, Two-back, Digit Backward e Working Memory da ESB5, utilizadas nos estudos que apresentaram maior tamanho de efeito (Farah et al., 2006; Fernald et al., 2011; Noble et al., 2007), sejam mais sensíveis à influência do NSE em crianças escolares. Isso porque tais instrumentos consistem em tarefas complexas de memória de trabalho com contribuição do executivo central, diferentemente de tarefas simples como span de dígitos direto.

Flexibilidade cognitiva e planejamento

Maior desempenho em tarefas de planejamento, flexibilidade cognitiva/flexibilidade da atenção (Ardila et al., 2005; Noble et al., 2005; Rhoades et al., 2011) também foi observado em crianças de famílias com maior NSE, especificamente nas tarefas False Alarms (Noble et al., 2005, d=0,58), Carding Sorting e Pyramid of Mexico (Ardila et al., 2005, d=0,30). Rhoades et al. (2011) observaram que crianças brancas (d=0,30) e afro-americanas (d=0,20) com NSE mais elevado obtiveram melhor resultado em tarefas de flexibilidade cognitiva aos três anos. Em Sarsour et al. (2011), a magnitude da diferença do desempenho de crianças com maior NSE, em relação aos pares com menor NSE, foi alta no Trail Making Test (d=1,12).

Considerando os resultados, foram obtidas diferenças altas (Sarsour et al., 2011), moderadas (Noble et al., 2005) e fracas (Ardila et al., 2005; Rhoades et al., 2011) no desempenho em tarefas de flexibilidade cognitiva e planejamento, com melhor desempenho em crianças com maior NSE. Não foram encontradas diferenças entre grupos de NSE na bateria de FE Behavioural Assessment of the Dysexecutive Syndrome for Children (Engel-Yeger, Josman, & Rosenblum, 2009).

Fluência verbal fonêmica (FVF) e semântica (FVS) e não verbal

No que se refere às medidas de fluência, há evidências de que o NSE, mais especificamente a escolaridade dos pais, influencia o desempenho em fluência verbal em crianças e adolescentes (Arán-Filippetti, 2011; Ardila et al., 2005; Hurks et al., 2010). Crianças de pais com maior nível de escolaridade apresentaram desempenho superior em fluência verbal semântica - FVS (d=0,40) e fluência gráfica não semântica (d=0,20), mas não em fluência verbal fonêmica (Ardila et al., 2005). Os estudos de Arán-Filippetti (2011) e de Hurks et al. (2010) também verificaram efeitos do NSE na fluência verbal fonêmica e semântica, contudo esse efeito foi diferente durante o tempo de resposta de um minuto. No estudo de Arán-Filippetti (2011), a associação entre NSE e tempo de resposta (d=0,40) revelou que crianças de NSE mais alto apresentaram maior facilidade em produzir palavras na tarefa de fluência verbal fonológica (FVF) a partir dos 16 segundos, sendo que o mesmo ocorreu a partir dos 31 segundos na tarefa de fluência verbal semântica (FVS). Por outro lado, Hurks et al. (2010), no estudo sobre fluência verbal semântica (FVS), identificaram que, independentemente da idade, crianças de cuidadores com maior escolaridade produziram mais palavras durante os dois primeiros blocos de 15 segundos (1-15s, d=0,30; 16-30s, d=0,30), ainda que essa diferença tenha desaparecido a partir de 30 segundos (31-45s, d=0,20; 46-60s, d=>0,001). Assim, os estudos de Arán-Filippetti (2011) e de Hurks et al. (2010) forneceram evidências contrárias no que se refere à influência do NSE na FVS, pois no estudo de Hurks et al. (2010) essa ocorreu sobre os processos cognitivos automáticos presentes nos primeiros 30 segundos, enquanto no estudo de Arán-Filippetti (2011) sobre os processos controlados envolvendo maior esforço, controle e atenção a partir dos 31 segundos de início da tarefa. Outra controvérsia nos estudos foi uma diferença com tendência moderada em FVF em Arán-Filippetti et al. (2011), o mesmo ocorrendo no estudo de Ardila et al. (2005), porém em FVS, enquanto em Hurks et al. (2010) a diferença em FVS apresentou tendência fraca.

Processamento da recompensa/tomada de decisão

Houve diferença em processamento da recompensa/tomada de decisão por grupos de NSE em dois (Bernier et al., 2010; Matte-Gagné & Bernier, 2011) dos cinco estudos que avaliaram essa capacidade, com melhor desempenho de crianças com NSE mais elevado. A magnitude da diferença foi fraca (d=0,20) aos 26 meses (Bernier et al., 2010) e moderada (d=0,70) aos três anos (Matte-Gagné & Bernier, 2011). A tarefa Delay of Gratification, utilizada nesses dois estudos, parece ser mais sensível às variações por NSE. Nos três estudos restantes, não foram encontradas diferenças em crianças de várias idades (Farah et al., 2006; Noble et al., 2005; Noble et al., 2007).

 

Considerações finais

O objetivo deste estudo foi revisar, de forma sistemática, evidências sobre a influência do NSE no desempenho em medidas de FE, considerando algumas características metodológicas dos estudos. Como esperado, a maioria (n=17) das pesquisas sugere que um NSE mais elevado exerce influência positiva no desempenho em medidas de funcionamento executivo, enquanto condições socioeconômicas menos favoráveis estão associadas a mais dificuldades nessas medidas. A análise de algumas características metodológicas dos estudos indicou que, em geral, não foram utilizadas amostras representativas, o que não permite generalizar os achados. Observou-se ainda que alguns estudos utilizaram amostras pequenas (ex.: Farah et al., 2006; Noble et al., 2005; Matte-Gagné & Bernier, 2011), o que implica baixo poder estatístico e, consequentemente, a possibilidade de viés nos resultados. Alguns estudos não incluíram simultaneamente critérios de inclusão/exclusão, controle de sexo e idade e o tamanho de efeito. Sugere-se que os critérios metodológicos convencionados neste estudo sejam considerados em pesquisas futuras sobre o tema.

Observou-se que a influência do NSE foi geralmente fraca ou moderada em estudos utilizando medidas compostas de FE em crianças de até cinco anos (Bernier et al., 2010; Hughes & Ensor, 2005, 2007; Noble et al., 2005), contudo essa influência não ocorreu em outros estudos com crianças na mesma faixa etária (Hughes & Ensor, 2007 [3-4 anos]; Wiebe et al., 2008). Esse resultado sugere que as tarefas de avaliação de FE em crianças pequenas ainda precisam ser aprimoradas, pois nessa idade as crianças estão no início do desenvolvimento dessas funções (Grantham-McGregor et al., 2007). Quanto aos componentes executivos, há indícios de que a influência do NSE é moderada em memória de trabalho em crianças a partir dos três anos (Farah et al., 2006; Fernald et al., 2011; Noble et al., 2007), assim como em controle inibitório quando são utilizadas medidas compostas dessa função em crianças mais velhas (Noble et al., 2007; Sarsour et al., 2011). Entretanto, os resultados são mistos na tarefa Go/no go, uma vez que não foi encontrado efeito em crianças mais velhas (Farah et al., 2006; Noble et al., 2007) como nas medidas compostas (Noble et al., 2007; Sarsour et al., 2011), sugerindo que talvez essa tarefa não seja sensível à influência de variáveis económicas. Quanto à flexibilidade cognitiva e planejamento, os achados não foram consensuais em razão de efeitos altos (Sarsour et al., 2011), moderados (Noble et al., 2005), fracos (Ardila et al., 2005; Rhoades et al., 2011) e inexistentes (Engel-Yeger et al., 2009). Ainda, não houve um padrão de efeitos do NSE observado em estudos com crianças mais velhas ou mais jovens. Os resultados também foram mistos em processamento da recompensa/tomada de decisão, com influências fraca (Bernier et al., 2010), moderada (Matte-Gagné & Bernier, 2011) e inexistente (Farah et al., 2006; Noble et al., 2005, Noble et al., 2007), neste último caso tanto em estudos com crianças pequenas quanto com mais velhas. Finalmente, reside a controvérsia em fluência verbal (Arán-Filippetti et al., 2011; Ardila et al., 2005; Hurks et al., 2010) sobre se o nível educacional dos pais exerce efeito na fluência verbal fonológica e/ou na fluência verbal semântica em processos automáticos (primeiros 30 segundos da tarefas) e/ou estratégicos (demais tempos da tarefa), o que deverá ser investigado em pesquisas futuras.

Os resultados controversos podem ser explicados, em parte, pelos diferentes métodos utilizados nos estudos, o que dificulta a comparação direta dos resultados. Além dos aspectos metodológicos analisados nesta revisão, destaca-se ainda que algumas pesquisas utilizaram diferentes covariantes nas análises (ex.: linguagem, status parental). É importante notar que, em geral, os estudos compararam crianças de NSE médio e baixo ou estabeleceram diferentes condições econômicas em amostras de comunidades rurais ou em desvantagem social, ou seja, não foi contrastado o desempenho de crianças de baixo e alto NSE. Logo, maior NSE não significou NSE alto. É possível que estudos que investiguem esse contraste possam identificar uma influência ainda maior dos aspectos socioeconômicos. Por outro lado, mesmo quando grupos de NSE não diferem no desempenho comportamental neuropsicológico, tem sido possível detectar diferenças relacionadas ao NSE no grau em que sistemas neurais específicos são recrutados durante a realização de tarefas executivas (p.ex.: Stevens, Lauinger, & Neville, 2009).

O estudo da relação entre NSE e funções cognitivas é recente e encontra-se em fase de expansão (Hackman et al., 2010). Isso justifica, em parte, o número relativamente pequeno de pesquisas encontradas no domínio das FE. As evidências revisadas indicam que mesmo em crianças pequenas - que ainda não ingressaram no ensino formal -é possível identificar a influência de variáveis socioeconômicas em diferentes habilidades executivas. Mas como tal influência ocorre? Existem alguns mecanismos candidatos a explicar como o NSE interfere no neurodesenvolvimento, dentre os quais são destacados na literatura fatores prénatais, cuidado parental e estimulação cognitiva (Bohnert & Breslau, 2008; Schlotz & Phillips, 2009). Gestantes com baixo NSE têm maior probabilidade de apresentar altos níveis de estresse, taxas de infecção e nutrição precária durante a gestação, condições que aumentam os níveis plasmáticos de fator de liberação de corticotropina (CRF) e os glicocorticoides, tanto na mãe como no feto (Meaney, Szyf, & Seckl, 2007; Seckl, 2008), o que pode restringir o crescimento fetal e desencadear a prematuridade (Meaney et al., 2007; Seckl, 2008; Spencer, Bambang, Logans, & Gill, 1999). O aumento de glicocorticoides na gravidez tem sido associado a desatenção, baixo QI e, consequentemente, menor desempenho acadêmico (p. ex.: Bohnert & Breslau, 2008; Schlotz, & Phillips, 2009; Yeh et al., 2004).

Quanto aos cuidados parentais no período pós-natal, baixo NSE está associado a estresse, irritabilidade, ansiedade e depressão nos pais, o que tende a diminuir o cuidado e envolvimento com os filhos. Os pais tornam-se menos sensíveis às necessidades da criança, e há também reduzida comunicação verbal (Belsky & Jaffee, 2006; Grolnick, Gurland, DeCourcey, & Jacob, 2002), que é associada ao progresso da linguagem infantil (Noble et al., 2005; Noble et al., 2007). Recentemente, foi identificado que a responsividade parental e o companheirismo familiar são mediadores da associação do NSE com memória de trabalho e controle inibitório na infância (Sarsour et al., 2011). Assim, o contexto socioeconômico parece influenciar a qualidade do cuidado parental, que, por sua vez, deve influenciar a atividade de sistemas neurais que regulam a cognição nos bebês através da regulação epigenética da expressão gênica (Hackman et al., 2010).

NSE também influencia o nível de estimulação cognitiva no ambiente familiar, de modo que, por exemplo, livros e diferentes recursos literários, computadores, viagens e comunicação parental provavelmente estão menos disponíveis em famílias com menor NSE. Como exemplo, um estudo longitudinal mostrou que o nível de estimulação cognitiva na infância inicial foi preditor de habilidades de linguagem em adolescentes de baixo NSE, independentemente da qualidade do cuidado parental (Farah et al., 2006), o que também deve ser investigado em outras funções cognitivas. Nenhum dos fatores (pré-natais, cuidado parental e estimulação cognitiva) explica isoladamente a atuação do NSE sobre o neurodesenvolvimento, sendo possível que exista uma interação desses fatores e que alguns deles afetem mais especificamente algumas funções cognitivas do que outras, o que ainda precisa ser investigado.

O NSE não é um construto consensual, tendo sido observadas várias formas de mensurá-lo. Como diferentes indicadores são capazes de influenciar determinadas FE, sugere-se o uso de índices que contemplem, no mínimo, escolaridade, profissão dos pais e renda familiar. Com base nos resultados desta revisão é indicado que, na construção e validação de instrumentos para avaliação de FE em crianças e adolescentes, seja levada em consideração a condição socioeconômica. Jovens de NSE mais baixo podem ser prejudicados pela pouca familiaridade com os estímulos dos instrumentos (Noble et al., 2007), de modo que a avaliação do domínio executivo deve exigir a análise de variáveis contextuais. Isso visando ao adequado estabelecimento de normas e elaboração de materiais de testagem que atendam às especificidades da população à qual são direcionados.

Esta revisão analisou estudos que investigaram a associação do NSE com habilidades pertencentes ao construto de FE e que, portanto, utilizaram o termo FE ou controle executivo na descrição da pesquisa. Em razão disso, não foram realizadas buscas por habilidades específicas (p. ex.: controle inibitório), o que pode ser uma potencial limitação. A partir dos 19 artigos analisados, foi verificado que os pesquisadores consideraram como pertencentes ao construto de FE as habilidades de memória de trabalho, controle inibitório, flexibilidade cognitiva/planejamento, fluência verbal e processamento da recompensa/tomada de decisão. Sugere-se a utilização de diferentes tarefas para avaliar cada função, uma vez que apenas uma pode ser insuficiente para avaliar dimensões importantes do construto e/ou ser insensível para captar diferenças ambientais. Há poucas pesquisas avaliando a influência socioeconômica em cada habilidade executiva, de modo que novas evidências deverão permitir conclusões mais consistentes acerca dos achados mistos, principalmente em flexibilidade cognitiva/planejamento, fluência verbal e processamento da recompensa. Além disso, a influência moderada do NSE em memória de trabalho e controle inibitório em crianças mais velhas deve ser replicada em novas investigações. Ainda, é importante clarificar o papel do NSE em subcomponentes como memória de trabalho espacial, já que os resultados foram controversos (Farah et al., 2006; Noble et al., 2005).

Finalmente, é necessário que estudos futuros busquem utilizar critérios de seleção amostral, de participação (ou justificar a não utilização de critérios de inclusão), controle de confundidores relevantes e cálculo do tamanho de efeito, além de maior contraste entre classes econômicas. Sugere-se o controle das variáveis QI e escolaridade das crianças, pois também podem interferir nos resultados. Estima-se que essas investigações lancem luz sobre as contribuições de fatores do ambiente nas FE em faixas de idade específicas na infância e adolescência. Adicionalmente, é importante investigar a influência de características das relações familiares (ex.: responsividade parental), pois elas têm o potencial de mediar a associação entre NSE e funcionamento executivo (Sarsour et al., 2011). Investigações longitudinais também são incentivadas a fim de fortalecer as conclusões acerca da associação entre essas variáveis durante o neurodesenvolvimento, como no estudo de Hughes e Ensor (2007), que analisou o desempenho executivo de crianças de dois a quatro anos. O desenvolvimento desse campo de investigação, não apenas analisando o papel do NSE em FE, como também em outras funções cognitivas, poderá servir de base para a implementação de políticas públicas direcionadas aos aspectos socioeconômicos, tais como estimulação cognitiva nos ambientes familiar e escolar.

 

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Endereços para correspondência:
Juliana Burges Sbicigo
julianasbicigo@gmail.com

Josiane Lieberknecht Wathier Abaid
josianelieb@yahoo.com.br

Débora Dalbosco Dell'Aglio
dalbosco@cpovo.net

Jerusa Fumagalli de Salles
jerusafs@yahoo.com.br

Submetido em: 17/10/2012
Revisto em: 13/03/2013
Aceito em: 14/03/2013

 

 

i Este artigo refere-se à pesquisa desenvolvida pelas duas primeiras autoras, orientadas pelas duas últimas, a partir da proposta da disciplina "Prática e Produção Científica em Psicologia", do Programa de Pós Graduação em Psicologia da UFRGS.