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Arquivos Brasileiros de Psicologia

 ISSN 1809-5267

     

 

ARTIGOS

 

Merleau-Ponty e a condição do natural em nós*

 

Merleau-Ponty and the natural condition in us

 

Merleau-Ponty y la condición del natural en nosotros

 

 

Danilo Saretta Verissimo

Docente. Departamento de Psicologia Evolutiva, Social e Escolar. Universidade Estadual Paulista (UNESP). Assis. Estado de São Paulo. Brasil

 

 


RESUMO

Neste artigo, temos como objetivo destacar e analisar determinados momentos da obra de Merleau-Ponty em que se realizam discussões relativas à condição do natural em nós. Centramo-nos, principalmente, na oposição que se pode constatar entre o ponto de vista adotado na obra A estrutura do comportamento, de cunho evolucionista, e a perspectiva adotada na Fenomenologia da percepção, calcada no corpo como expressão. Tratamos, também, dos estudos sobre a prematuração infantil e mencionamos a caracterização do corpo humano nos cursos do filósofo sobre a noção de natureza. Ressaltamos a dimensão expressiva do natural em nós que emerge das formulações merleau-pontianas. Além disso, evidenciamos a importância da psicanálise no tratamento dado por Merleau-Ponty ao problema da corporeidade.

Palavras-chave: Corpo; Fenomenologia; Psicanálise.


ABSTRACT

In this paper, the aim is to highlight and analyze certain moments in the work of Merleau-Ponty when discussions took place about the condition of the natural in us. We mainly focus on the observed opposition between the evolutionist viewpoint adopted in The structure of Behavior and the perspective in the Phenomenology of Perception, based on the body as expression. We also look at studies on infantile prematuration and mention the characterization of the human body in the philosopher's courses on the notion of nature. We underline the expressive dimension of the natural in us, which emerges from Merleau-Ponty's formulations. In addition, we evidence the importance of psychoanalysis in the Merleau-Ponty's treatment of the corporeity problem.

Keywords: Body; Phenomenology; Psychoanalysis.


RESUMEN

En este artículo, la finalidad es destacar y analizar determinados momentos de la obra de Merleau-Ponty en que ocurren discusiones relativas a la condición del natural en nosotros. Nos centramos principalmente en la oposición que se puede constatar entre el punto de vista adoptado en La estructura del comportamiento, de cuño evolucionista, y la perspectiva adoptada en la Fenomenología de la percepción, basada en el cuerpo como expresión. También tratamos de los estudios sobre la prematuridad infantil y mencionamos la caracterización del cuerpo humano en los cursos del filósofo sobre la noción de naturaleza. Destacamos la dimensión expresiva del natural en nosotros que emerge de las formulaciones de Merleau-Ponty. Además, evidenciamos la importancia de la psicoanálisis en el tratamiento de Merleau-Ponty al problema de corporeidad.

Palabras clave: Cuerpo; Fenomenología; Psicoanálisis.


 

 

Introdução

Pode-se atribuir a Merleau-Ponty um exercício contínuo de compreensão da significação do corpo. O ponto de partida de suas pesquisas é um problema corrente na tradição filosófica francesa. Trata-se da antinomia entre sujeito e objeto na variante que especula sobre as relações da alma e do corpo. Como o homem pode ser compreendido simultaneamente como sujeito e objeto (Merleau-Ponty, 2000)? Como tornar pensáveis as relações entre a dimensão pessoal da nossa experiência, inclusive seus aspectos mais intelectualizados, e as suas condições orgânicas?

No rastro desses problemas fundamentais, temos como objetivo destacar e analisar determinados momentos da obra de Merleau-Ponty em que se realizam discussões relativas à condição do natural em nós. Centramo-nos, principalmente, na oposição entre o ponto de vista adotado em A estrutura do comportamento, primeiro livro de Merleau-Ponty (1942/2006), no qual nossa corporeidade é caracterizada a partir do comportamento simbólico, e a perspectiva adotada em seu trabalho seguinte, Fenomenologia da percepção (Merleau-Ponty, 1945), que apresenta a ideia de corpo como expressão da existência. Essa tensão entre seus dois primeiros trabalhos ressalta o esforço do filósofo para corrigir figurações dualistas que surgem em suas conceituações iniciais sobre o corpo. Em seguida, abordamos os estudos sobre a prematuração infantil, presentes nos cursos de Merleau-Ponty na Sorbonne e no Collège de France, e mencionamos a caracterização do corpo humano nos cursos do filósofo sobre a noção de natureza. Do comportamento simbólico ao simbolismo natural, delineado nos últimos cursos, ressalta-se a elaboração teórica do que Bimbenet (2011) chama de "dimensão significativa do natural em nós" (p. 139).

Cumpre salientar que a filosofia de Merleau-Ponty se sobressai pelo recurso às ciências e pela articulação do discurso positivo com o ponto de vista propriamente filosófico. Nesse contexto, privilegiamos, aqui, o debate de Merleau-Ponty com a psicologia, com a neuropsiquiatria e com a psicanálise, evidenciando, inclusive, a importância desta última no tratamento dado pelo filósofo ao problema da corporeidade na confluência de sua inerência vital e da sua intenção simbólica.

 

Em torno do comportamento simbólico

Em A estrutura do comportamento, Merleau-Ponty (1942/2006) instala-se na perspectiva do "espectador estrangeiro", "considerando do exterior o homem que percebe" (Merleau-Ponty, 2000, p. 13). Amparado na psicologia da forma e no estruturalismo organicista de Kurt Goldstein (1934/1983), o filósofo distingue três formas de comportamento no interior da escala zoológica: as formas sincréticas, as formas amovíveis e as formas simbólicas. Nas formas sincréticas, observa-se que o comportamento animal encontra-se "aprisionado no quadro de suas condições naturais" (Merleau-Ponty, 1942/2006, p. 114). Trata-se do comportamento cuja alcunha de instintivo oferece um sentido preciso, referindo-se, sobretudo, aos animais invertebrados. Nas formas amovíveis, encontram-se comportamentos mais integrados, capazes de aderir a relações espaço-temporais que se distanciam do caráter estritamente concreto da atividade instintual, por exemplo, a reação a estímulos condicionados. É o que Merleau-Ponty (1942/2006) chama de "conduta do sinal" (p. 115) e que chega a ser desafiada pelo comportamento ainda mais livre de macacos antropoides, como os chimpanzés. Mas, no "comportamento animal os signos permanecem sempre sinais e jamais se tornam símbolos", afirma o filósofo (Merleau-Ponty, 1942/2006, p. 130). Para os chimpanzés, um mesmo objeto utilizado em circunstâncias diferentes possui o valor de dois objetos distintos e não de dois aspectos de uma mesma coisa. O galho de uma árvore utilizado pelo animal como bastão para alcançar uma banana deixa de figurar como galho. Em outras palavras, o animal não é capaz de variar à vontade os pontos de vista com os quais aborda determinado objeto, que sempre lhe aparecerá investido de um "valor funcional" (Merleau-Ponty, 1942/2006, p.130), apegado à composição do campo no qual se encontra. O comportamento simbólico, ou categorial, próprio do homem, aparece como uma conduta original, com estruturas mais disponíveis, transponíveis de um sentido a outro, que tornam possíveis variações na expressão de um mesmo tema. Com elas, surgem "uma conduta cognitiva e uma conduta livre" (Merleau-Ponty,1942/2006, p. 133), desprendidas da monotonia imposta pelo a priori instintivo, e capazes de exprimir o estímulo por ele mesmo, de abrir-se ao valor próprio das coisas.

Sob o panorama teórico do estruturalismo organicista, Merleau-Ponty (1942/2006) busca definir as estruturas de comportamento fora da alternativa da ordem do em si (pensamento físico) e da ordem do para si (atividade reflexiva). Mesmo a atividade dos organismos mais simples da escala zoológica não pode ser concebida como uma série de processos lineares de tipo causal. Trabalhos de autores como Buytendijk (1928) levam o filósofo a afirmar que o comportamento "[...] torna-se a projeção fora do organismo de uma possibilidade que lhe é interior" (Merleau-Ponty, 1942/2006, p. 136, grifo do autor). Não se trata, todavia, de conceber, por trás do corpo visível, a existência de uma atividade orientada reflexivamente. Até no que diz respeito ao homem, orientado pela crença em um mundo que repousa em si mesmo, os gestos do comportamento revelam não "[...] um ser cuja essência é de conhecer, mas uma certa maneira de tratar o mundo, de 'ser no mundo' ou de 'existir'" (Merleau-Ponty, 1942/2006, p.136).

Outra consequência da adoção do ponto de vista estrutural é a exigência de integração progressiva das ordens física, vital e humana. As estruturas orgânicas não admitem que a sua atividade seja expressa por leis, tal como se passa no estudo das estruturas físicas, inorgânicas, cujo equilíbrio depende de forças heteronômicas, próprias do meio físico. As relações do indivíduo orgânico com o meio são normativas, cada organismo possui sua própria maneira de realizar seu equilíbrio. Merleau-Ponty (1942/2006) comenta:

Dizíamos que os limiares da percepção em um organismo são em número das constantes individuais que exprimem a sua essência. Isso significa que ele próprio mensura a ação das coisas sobre ele e delimita, ele mesmo, seu meio por um processo circular que não possui analogia no mundo físico (p. 161).

Neste outro trecho, é o próprio fenômeno da vida que está em questão:

O fenômeno da vida aparecia, pois, no momento em que um pedaço de extensão, pela disposição de seus movimentos e pela alusão que cada um deles faz a todos os outros, dobrava-se sobre ele mesmo, punha-se a exprimir alguma coisa e a manifestar para fora um ser interior (Merleau-Ponty, 1942/2006, p. 175).

Nessa direção, a consideração da ordem humana revela a aparição de novas estruturas, que não podem ser reduzidas às formas físicas e vitais, posto que as integra de modo original. A atividade humana, caracterizada pelo comportamento simbólico, endereça ao mundo um meio irredutível ao meio físico e ao meio animal. Trata-se de um meio que escapa aos aspectos de vivência imediata, um meio marcado por uma dimensão virtual, que faz contar mesmo os aspectos invisíveis e possíveis das coisas. Merleau-Ponty (1942/2006) associa essa terceira dialética à relação "situação percebida-trabalho" (p. 176). Com efeito, o trabalho humano "[...] projeta entre o homem e os estímulos físico-químicos 'objetos de uso'" (Merleau-Ponty, 1942/2006, p. 175). Merleau-Ponty (1942/2006) escreve: "Esses atos da dialética humana revelam todos a mesma essência: a capacidade de se orientar em relação ao possível, ao mediato, e não em relação a um meio limitado, - aquilo que mais alto chamávamos com Goldstein a atitude categorial" (p. 190).

Ao mesmo tempo em que Merleau-Ponty (1942/2006), apegando-se ao conceito de função simbólica, parece delimitar a possibilidade do que Bimbenet (2011) chama de uma vida plenamente humana, desbiologizada e integrada, encontramos as primeiras investidas do filósofo no campo da psicologia da criança. Nelas, surge uma ambiguidade quanto à caracterização do comportamento humano entre a sua inerência vital e a sua intenção significante, posto que não se esclarece a posição da infância na hierarquia das formas de comportamento. A percepção infantil, que chega a ser comparada à percepção de indivíduos portadores de perturbações neurológicas cuja experiência seria restrita aos aspectos imediatos e concretos do meio (perturbação da atitude categorial ou função simbólica), é, ao mesmo tempo, descrita como pré-figuração daquilo que caracteriza o comportamento humano.

A presença de outros seres humanos e de objetos culturais não explica as estruturas da percepção infantil "como uma causa explica seu efeito", observa Merleau-Ponty (1942/2006, p. 183). Essas estruturas são prefiguradas na consciência da criança, caso contrário os objetos de uso, a presença de outrem e a linguagem não encontrariam nenhum sentido no comportamento infantil. Por outro lado, não se trata de sustentar qualquer espécie de inatismo, comenta o filósofo, pois é inegável a influência social na constituição do sujeito. Além da oposição entre o inato e o adquirido, observa-se, na criança, "[...] a emergência de uma significação indecomponível" (Merleau-Ponty, 1942/2006, p. 185). "É preciso, afirma Merleau-Ponty (1942/2006), que a linguagem ouvida ou esboçada, a aparência de um rosto ou aquela de um objeto de uso sejam imediatamente para a criança o invólucro sonoro, motor ou visual de uma intenção significativa advinda de outrem" (p. 185). No plano filosófico, o que percebemos é Merleau-Ponty contrapor-se tanto à noção empirista de sujeito quanto ao sujeito epistemológico kantiano, portador de uma função de organização lógica e física dos objetos de experiência. O filósofo sustenta o "enigma de uma consciência linguística e de uma consciência de outrem mais ou menos puras" (p. 186) proposto pela psicologia da criança. Esta consciência perceptiva iniciante é apresentada por Merleau-Ponty como uma rede de intenções significativas vividas e anteriores à consciência representativa. Ele afirma:

O desejo poderia se reportar ao objeto desejado, o querer ao objeto querido, o temor ao objeto temido sem que esta referência, mesmo que não deixe de implicar jamais um núcleo cognitivo, se reduza à relação de representação a representado. Os atos do pensamento não seriam os únicos a ter uma significação, a conter neles a presciência daquilo que eles procuram; haveria uma sorte de reconhecimento cego do objeto desejado pelo desejo e do bem pela vontade. É por este meio que outrem pode ser dado à criança como pólo dos seus desejos e de seus temores antes do longo trabalho de interpretação que o deduziria de um universo de representações, - que conjuntos sensoriais confusos podem ser, no entanto, muito precisamente identificados como os pontos de apoio de certas intenções humanas (Merleau-Ponty, 1942/2006, p. 187).

A ambiguidade acerca da descrição do comportamento humano na interface da sua inerência vital e da sua intenção objetiva é reforçada pela análise de Merleau-Ponty (1942/2006) sobre as relações entre as dialéticas humana e vital a partir da psicanálise freudiana. O filósofo parte da crítica ao pensamento biológico-causal que, segundo Politzer (1928/2003), seria pressuposto em formulações freudianas acerca de mecanismos psíquicos tais como os complexos, o recalque e a resistência. Merleau-Ponty (1942/2006) propõe que se considere o desenvolvimento em termos de estrutura. Dessa forma, o processo de estruturação normal implicaria uma profunda reorganização da conduta, de modo que condutas pregressas, infantis, não encontrariam sentido na atitude nova. Fenômenos como o recalque sinalizam, nessa perspectiva, uma integração parcial, ou realizada apenas em aparência, com sistemas relativamente isolados operando. Merleau-Ponty tem o cuidado de anotar que o complexo, adquirido no passado, não possui uma eficácia própria, que o constituiria como uma causa a agir permanentemente no aparelho psíquico. A eficácia do complexo é possível na medida em que revela a persistência de uma organização primitiva da conduta, ou ainda o recuo de estruturas mais complexas para "estruturas mais fáceis" (Merleau-Ponty, 1942/2006, p. 193). O fato é que Merleau-Ponty demonstra operar uma divisão essencial entre o sentido do comportamento integrado, normal, e o comportamento patológico, divisão que não deixa de atingir a ideia de infância. Testemunha, nesse sentido, a seguinte afirmação: "A obra de Freud não é um quadro da existência humana, mas um quadro de anomalias, por mais frequentes que sejam" (Merleau-Ponty, 1942/2006, p. 194). O filósofo menciona a sublimação como derivação de forças biológicas. O processo sublimatório bem sucedido caracterizar-se-ia pela integração das energias vitais em novas estruturas, nas quais aquelas deixariam de contar como forças motrizes do comportamento. Nos casos de insucesso, teríamos homens cuja conduta admitiria explicações calcadas na história da libido, tomada como parte do universo da biologia.

Após a consideração da psicanálise, encontra-se uma passagem em que Merleau-Ponty (1942/2006) reforça o ponto de vista estrutural, que asseguraria a continuidade ontológica entre a vida e o espírito (Toadvine, 2009), não sem antes reafirmar que a originalidade da ordem humana diria respeito ao homem adulto normal.

A relação de cada ordem à ordem superior é aquela do parcial ao total. Um homem normal não é um corpo portador de certos instintos autônomos, unido a uma "vida psicológica" definida por certos processos característicos, - prazer e dor, emoção, associação de idéias, - e encimado por um espírito que estenderia seus atos próprios sobre esta infraestrutura. O advento das ordens superiores, na medida em que se realiza, suprime como autônomas as ordens inferiores e dá aos processos que as constituem uma significação nova. [...] A distinção tão freqüente do psíquico e do somático tem seu lugar em patologia, mas não pode servir ao conhecimento do homem normal, quer dizer, integrado, visto que nele os processos somáticos não se desenrolam isoladamente e são inseridos em um ciclo de ação mais vasto (Merleau-Ponty, 1942/2006, p. 195).

De acordo com Merleau-Ponty (1942/2006), os comportamentos vitais desaparecem na medida em que se reorganizam em novos conjuntos, de modo que não se pode simplesmente falar do corpo e da vida de modo geral, mas do corpo e da vida animal e do corpo e da vida humana. É preciso também que o comportamento integrado seja considerado no quadro de uma oposição funcional e não substancial, sem o que tudo se passa como se funções racionais viessem se unir aos aspectos vitais e psíquicos que sustentariam a atividade humana. "O homem não é um animal racional", assevera Merleau-Ponty (1942/2006, p. 196). Nesse contexto, o filósofo menciona o fato, destacado por Goldstein (1934/1983), de que as disfunções da atitude simbólica atingem todo o espectro comportamental de pacientes com lesões cerebrais, inclusive sua iniciativa sexual. Aqui, a patologia não deixa intacta uma dimensão pretensamente arcaica da experiência humana. No estado patológico, é toda a estrutura do comportamento que se mostra alterada, sem que, com isso, se decaia a níveis simplesmente vitais de atividade.

No centro das considerações de Merleau-Ponty (1942/2006) acerca das formas sincréticas, amovíveis e simbólicas, encontra-se o debate sobre a animalidade e acerca do próprio sentido da atividade vital. Ao ocupar-se da questão da animalidade em A estrutura do comportamento (Merleau-Ponty, 1942/2006), Toadvine (2009) lembra que a fenomenologia cultiva grande interesse pela experiência animal, particularmente pela descrição do comportamento animal em termos de intencionalidade, fundando-o em relações de sentido e não em interações causais. Mas, no interior desse campo de investigações, a fenomenologia se afasta do problema da exceção humana, ou simplesmente o inscreve em outro registro, pergunta Toadvine (2009). Duas célebres narrativas fenomenológicas são recordadas por ele. Primeiro a de Heidegger (2011), em Os conceitos fundamentais da metafísica. Tomando o Dasein como ponto de partida da análise, a vida é descrita como a sua modificação privativa. O animal, cativado pelo mundo auferido pelas suas forças instintivas, seria "pobre de mundo" (Heidegger, 2011, p. 240), no sentido objetivo/abstrato do termo mundo. Com isso, Heidegger teria estabelecido uma fronteira ontológica entre animais e humanos. A outra narrativa refere-se ao último trabalho de Scheler (1928/2008), A situação do homem no cosmos. Para Scheler, o ser humano não pode ser colocado num continuum em relação ao animal de modo que suas diferenças sejam reduzidas a um grau crescente de complexidade. Nem tampouco diferenciado do animal pela adição de certas capacidades cognitivas. As escolhas animais fundam-se nos limites da sua situação vital, enquanto o homem transforma o meio em mundo. Segundo Toadvine (2009), a análise merleau-pontiana da relação entre o animal e o homem, ou entre a vida e o espírito, em A estrutura do comportamento (Merleau-Ponty, 1942/2006), revela ecos de seus predecessores. Por meio da perspectiva estrutural, ela mantém, todavia, uma significativa tensão entre duas tendências opostas: uma arqueológica, "orientada para as origens primordiais da consciência em sua situação perceptiva vivida" (Toadvine, 2009, p. 84), e outra teleológica, voltada para a racionalidade que se revela no desenvolvimento da consciência. Com efeito, Merleau-Ponty (1942/2006) menciona o duplo aspecto da sua análise, "[...] que, ao mesmo tempo, liberava o superior do inferior e 'fundava-o' sobre ele" (p. 199).

Pode-se afirmar que, em A estrutura do comportamento (Merleau-Ponty, 1942/2006), essa tensão ora se mostra como uma sutil conjugação entre continuidade e descontinuidade fundada numa filosofia da noção de forma, ora como um esquema dualista rígido que Bimbenet (2011) atribui a heranças do evolucionismo inglês marcadamente presentes em autores dos quais Merleau-Ponty (1942/2006) se serve. Goldstein (1934/1983) opera a distinção entre comportamentos objetivantes, ou simbólicos, e comportamentos imediatos, concretos. Em casos de lesão do córtex cerebral, o tipo de comportamento que sofre prejuízos é justamente aquele de valor mais elevado, que "representa qualquer coisa de essencial para o ser humano" (Goldstein, 1934/1983, p.389), de modo que se observa, no doente, a acentuação dos automatismos. A leitura de Goldstein (1934/1983) acerca da psicanálise segue na mesma direção. O recalque é descrito como a exclusão de antigas reações na medida em que novas estruturações do organismo têm lugar ao longo do desenvolvimento. A integração defeituosa caracterizar-se-ia, pois, por irrupções daquelas estruturas de reação arcaicas. A referência de Goldstein (1934/1983) são os trabalhos do neurologista inglês Hughlings Jackson, que sustenta a livre ativação de funções subordinadas orgânicas em caso de lesões de regiões mais elevadas da estrutura nervosa (Bimbenet, 2011). De acordo com Forest (2005), Jackson aplica à neuropsicopatologia os preceitos evolucionistas de Herbert Spencer, que estende sua lei do desenvolvimento biológico às funções da vida individual. Para Spencer, as ações reflexas, mais primitivas e de organização mais completa, são subordinadas a ações menos determinadas e mais frágeis, posto que de aparecimento mais recente na evolução biológica (Forest, 2005).

 

O corpo como expressão

A instabilidade dualista de A estrutura do comportamento (Merleau-Ponty, 1942/2006) atinge os problemas da animalidade, da infância e da psicopatologia, fenômenos essenciais para a investigação do entroncamento fundamental da nossa inerência vital e da nossa intenção realista. Sob uma figuração dualista, aqueles fenômenos ficam sujeitos a ser considerados como expressões "de uma vida cega e arcaica" (Bimbenet, 2011, p. 134). Além de não poder ser confundida com a distinção entre corpo e consciência, a distinção entre atitude concreta e atitude simbólica apenas pode ser operada na perspectiva funcional que advém da consideração do comportamento como totalidade a se compreender no ponto de vista do "espectador estrangeiro" (Merleau-Ponty, 2000, p. 13). Na Fenomenologia da percepção, Merleau-Ponty (1945) opera a revisão daquela instabilidade, o que gostaríamos de evidenciar a partir de suas considerações acerca da sexualidade que conjugam aportes da psicopatologia e da psicanálise. No ponto de vista da obra Fenomenologia da percepção (Merleau-Ponty, 1945), que trata da "análise da percepção em nós", de modo a esclarecer "a natureza do sujeito perceptivo" (Merleau-Ponty, 2000, p. 17), a partir da junção das dimensões objetiva e reflexiva a compreensão da psicopatologia como desintegração da consciência e liberação de automatismos passa a ser caracterizada como diagnóstico próprio a uma psicologia intelectualista. Isso porque as análises de Merleau-Ponty (1945) acerca da percepção revelam a natureza "no centro da subjetividade" (p. 398), "no centro da minha vida pessoal" (p. 399), entrelaçada nela.

No capítulo intitulado O corpo como ser sexuado, da Fenomenologia da percepção, Merleau-Ponty (1945) faz referência a Schneider, paciente estudado por Gelb (1933; Gelb & Goldstein, 1918/1950) e Goldstein (1933/1971). Schneider sofrera uma lesão no campo occipital do córtex cerebral, que lhe acarretou perturbações perceptivas, motoras, cognitivas e linguísticas. Para os pesquisadores, o conjunto de disfunções apresentadas pelo paciente revela um diagnóstico fundamental: a perturbação da atitude categorial, ou função simbólica. Sempre que era necessário abandonar a experiência concreta e real para se referir ao possível, ao virtual, ao não imediato, o paciente apresentava comportamentos desorganizados. Schneider era capaz, por exemplo, de bater continência na presença de um oficial, mas falhava na execução do movimento caso fizesse parte de uma simples solicitação do médico, na situação artificial de exame da motricidade. Sua sexualidade também fora atingida. Schneider não procurava espontaneamente o sexo, imagens sexuais não lhe despertavam desejo, o beijo deixou de contar como estímulo sexual. Suas reações sexuais dependiam estritamente de estimulação local. Caso o prelúdio fosse interrompido, o paciente não buscava manter o ciclo sexual. O que se constata é, pois, uma inércia sexual que se vincula mal com a dualidade entre consciência simbólica e automatismos. Se a sexualidade no homem fosse um aparelho reflexo autônomo e se a lesão cerebral liberasse os automatismos, deveríamos observar, por parte do doente, um comportamento sexual acentuado, argumenta Merleau-Ponty. O filósofo comenta:

A patologia põe em evidência, entre o automatismo e a representação, uma zona vital em que se elaboram as possibilidades sexuais do doente [...] É preciso que haja, imanente à vida sexual, uma função que assegure o seu desdobramento, e que a extensão normal da sexualidade repouse sobre as potências internas do sujeito orgânico. É preciso que haja um Eros ou uma Libido que animem um mundo original, deem valor ou significação sexuais aos estímulos exteriores e desenhem para cada sujeito o uso que ele fará de seu corpo objetivo. É a própria estrutura da percepção ou da experiência erótica que está alterada em Schn (Merleau-Ponty, 1945, p. 182).

O que se tem é, pois, que a sexualidade, que não depende da ordem do entendimento, e que por muito tempo figurou como função corporal, revela "uma intencionalidade que segue o movimento geral da existência e que inflete com ela" (Merleau-Ponty, 1945, p. 183). Essa intencionalidade é inseparável de suas "raízes vitais" (Merleau-Ponty, 1945, p. 184).

O enraizamento da intencionalidade no corpo revela-se na releitura da psicanálise freudiana por parte de Merleau-Ponty. Na Fenomenologia da percepção, a psicanálise revela ao filósofo um duplo movimento: por um lado, encontra na sexualidade relações e atitudes que outrora eram tomadas por relações e atitudes atribuídas à ordem da consciência e do ato voluntário. Por outro, em funções antes atreladas à ordem biológica, corporal, evidencia um movimento dialético capaz de "reintegrar a sexualidade ao ser humano" (Merleau-Ponty, 1945, p. 195). Merleau-Ponty (1945) faz a seguinte afirmação:

A sexualidade não é, portanto, um ciclo autônomo. Ela está ligada interiormente a todo ser cognoscente e ativo, esses três setores do comportamento manifestam uma única estrutura típica, eles estão em uma relação de expressão recíproca. Aqui reencontramos as aquisições mais duráveis da psicanálise (p. 184, grifo nosso).

A utilização do termo expressão não é um acaso. Merleau-Ponty identifica um poder de significação no movimento do corpo próprio de unir-se às coisas e a outrem. O filósofo lembra a afirmação de Freud de que todo ato humano possui um sentido, de maneira que a conduta deve ser compreendida e não atrelada à condições mecânicas. Na mesma medida, esse sentido não deve ser confundido com a ordem do conhecimento tético, objetivo, como se o corpo e suas manifestações fossem o invólucro do espírito. Na dinâmica particular à Fenomenologia da percepção, que define o corpo próprio como sujeito das sínteses perceptivas, o corpo e suas funções não constituem um ponto de passagem para a existência pessoal. Esta "retoma e recolhe" a "existência dada e anônima" (Merleau-Ponty, 1945, p. 186) do corpo. É o que Merleau-Ponty busca clarificar pela menção a um caso clínico descrito por Binswanger (1935/1971). Trata-se de uma moça que, impedida por sua mãe de dar prosseguimento a um caso amoroso, passa a apresentar, sucessivamente, os sintomas de perda de apetite e do sono, náuseas e dores estomacais, acesso de soluço e, por fim, afonia, sintoma que já havia se manifestado por ocasião de ocorrências traumáticas que representaram ameaça à vida da paciente. Para Binswanger, o corpo vivido, em oposição ao corpo estudado pela fisiologia médica, é a instância em que se opera a inteligibilidade das perturbações descritas. No caso em apreço, o movimento de negação da realidade imposta pelas relações familiares revela a corporeidade como refúgio angustiante. A presença habitualmente anônima do corpo se mostra, pois, como o único campo possível de expressão. O corpo se torna o "órgão verbal" da revolta, afirma Binswanger (1935/1971, p. 135). E não se trata, alerta o autor, de uma metáfora que buscaria descrever um ato psíquico em termos de expressão corporal. O psiquiatra escreve:

[...] nossa existência abre-se sempre em certas direções significativas (Bedeutungsrichtungen), quer dizer, a ascensão ou a queda, o voo ou o salto, o tornar-se largo ou estreito, pleno ou vazio, claro ou obscuro, tenro ou duro, quente ou frio etc. No nosso caso, no entanto, tratava-se de tomar, aceitar, absorver, ou seja, da "assimilação" e da recusa do sujeito, da resistência, em uma palavra, da "expectoração" (Binswanger, 1935/1971, p. 136, grifos do autor).

Merleau-Ponty retoma essa discussão ao comentar que, se as modalidades de existência são expressas pelo corpo, não é do mesmo modo que se utilizam os números para indicar a disposição das casas em uma rua. No que diz respeito ao corpo, não se trata de um signo a indicar uma significação, mas de um signo habitado por ela. O filósofo refere-se a "[...] uma operação primordial de significação em que o expresso não existe à parte da expressão", a um "sentido encarnado" (Merleau-Ponty, 1945, p. 193), que as antinomias entre corpo e espírito, entre signo e significação, figuram de maneira abstrata.

Cumpre assinalar que a presença anônima do corpo é descrita por Merleau-Ponty (1945) como um "complexo inato" (p. 99). Nosso organismo, recalcado por uma camada de existência pessoal, não deixa de delinear "o movimento da existência" (Merleau-Ponty, 1945, p. 99), de modo que essa vida individual nem ultrapassa a vida orgânica nem é capaz de renunciar a si mesma. Revela-se, aqui, a estrutura temporal do ser no mundo, que acolhe num presente alargado "a totalidade do tempo possível" (Merleau-Ponty, 1945, p. 100), passado ou futuro. Nesse contexto, nossa estrutura orgânica mostra-se como o "passado de todos os passados" (Merleau-Ponty, 1945, p. 100), assumido e nunca transcendido pela vida individual. Merleau-Ponty (1945) expressa-se da seguinte forma:

Do mesmo modo que se fala de um recalque no sentido estrito quando, através do tempo, mantenho um dos mundos momentâneos que atravessei e faço dele a forma de toda a minha vida, - da mesma maneira pode-se dizer que meu organismo, como adesão pré-pessoal à forma geral do mundo, como existência anônima e geral, desempenha, abaixo da minha vida pessoal, o papel de um complexo inato. Ele não existe como uma coisa inerte, ele também esboça o movimento da existência (p. 99, grifo do autor).

Nessas análises, não há ambiguidades a respeito do elo entre natureza e razão. Deixa-se de entrever na dimensão corporal algo de arcaico e passa-se a representar, por meio dela, um poder primordial de significação, fundamento da própria expressão linguística. Essa nova acepção do corpo abrange a condição psicopatológica, que deixa de figurar como involução a condições primitivas do desenvolvimento. A inflexão do "arco intencional" (Merleau-Ponty, 1945, p. 184) que garante a fecundidade da experiência não retira o homem da dimensão expressiva. Essas constatações estão relacionadas ao que Bimbenet (2011) chama de definição positiva da vida biológica do corpo na Fenomenologia da percepção (Merleau-Ponty, 1945), que se reconcilia com o natural em nós e faz dos processos psicopatológicos uma dimensão constitutiva "da nossa existência encarnada" (Bimbenet, 2011, p. 144).

 

Após a Fenomenologia da percepção

As pesquisas de Merleau-Ponty posteriores à Fenomenologia da percepção (Merleau-Ponty, 1945) apresentam uma preocupação constante com os temas da linguagem e da nossa aspiração à verdade objetiva, sempre num contexto de continuidade em relação à nossa encarnação, daí o interesse do filósofo em imprimir um sentido arqueológico aos seus estudos. Trata-se de investigar em que medida a percepção, o movimento, o comportamento infantil e, mesmo a animalidade, pressupõem a função expressiva. Em seus cursos na Sorbonne dedicados à psicologia da criança e realizados entre 1949 e 1952, a experiência sensório-motora infantil é descrita por Merleau-Ponty (2001) justamente como potência expressiva, na medida em que o seu comportamento é marcado pela antecipação.

Ao referir-se às pesquisas de Freud acerca da sexualidade infantil, Merleau-Ponty (2001) define o complexo de Édipo como uma puberdade psicológica. Por meio da identificação com o genitor do mesmo sexo, a criança antecipa relações sexuais que ela desconhece. Para o menino, a presença da mãe como ser sexuado se dá a partir da identificação com o pai. Trata-se de uma sexualidade "difusa" e "anônima" (Merleau-Ponty, 2001, p. 333). O filósofo comenta: "Esta sexualidade é ambígua: um corpo que ainda não é genital é, no entanto, capaz de carregar caracteres sexuais" (Merleau-Ponty, 2001, p. 333).

Algo da mesma ordem estaria em questão no estádio do espelho, tal como descrito por Lacan (1999). O estádio do espelho refere-se ao início da vida infantil. O bebê, cuja experiência é marcada pela descoordenação motora e pela dependência nutricional, ou seja, por uma insuficiência vital, é, contudo, capaz de extasiar-se com sua imagem no espelho. No quadro da prematuração que a caracteriza, da experiência de um corpo despedaçado, a criança identifica-se com a forma "ortopédica da sua totalidade", afirma Lacan (1999, p. 96), o que lhe garante uma identidade alienante, posto que fundada na alteridade da imagem. Lacan refere-se, então, a uma relação com a natureza alterada no homem, haja vista que a "prematuração específica do nascimento no homem" (1999, p. 96) revela-se como condição da projeção da formação do indivíduo, da antecipação imagética do eu. Baseando-se nessas considerações teóricas, Merleau-Ponty (2001) afirma: "A criança se define por uma espécie de avanço tomado pelo sujeito sobre seus meios do momento. O nascimento é caracterizado pela prematuração" (p. 319). E continua: "A criança vive no futuro, mas o adulto pode regredir. A infância jamais termina inteiramente" (p. 319).

Essa afirmação remete-nos ao problema da relação entre as estruturas de comportamento ao longo do desenvolvimento. Merleau-Ponty (2001) volta a afirmar que a conexão entre uma dada conjuntura comportamental individual e aquela que se segue é "relação de integração, uma relação de parte ao todo" (p. 349). As partes, todavia, não sobrevivem como tal. Nenhuma aquisição do passado tem efeito sem ser retomada e modificada pelo seguimento da vida, afirma o filósofo, que menciona a ideia hegeliana de "conservar transformando" (Merleau-Ponty, 2001, p. 350). Em outras palavras, o passado não sobrevive intacto em nós.

De acordo com preceitos apresentados por Zenoni (1998), há de se notar nessas reflexões uma dupla negação do imaginário evolucionista. Contra uma biologia que identifica na criança, principalmente no recém-nascido, esquemas comportamentais partilhados com outros viventes da escala zoológica, e que, pouco a pouco, evoluiriam a formas de comportamento simbólico, Merleau-Ponty (2001) dá relevo, por meio da psicanálise, à criança como ser cuja corporeidade é, desde o início, caracterizada por horizontes temporais alargados, e, portanto, capaz de escapar à concretude espaço-temporal. É o que se pode extrair da seguinte afirmação do filósofo: "[...] Freud não rebaixa o adulto, mas engrandece a criança, o lactente, mostrando que atividades, até então tidas como puramente 'corporais', possuem uma importância psicológica" (Merleau-Ponty, 2001, p. 351). Essa constatação implica outra: desde o início, nossa vida é marcada por um "fator humano" (Merleau-Ponty, 2001, p. 109), expresso no jogo de identificações que se revela ao longo da ontogênese. O segundo gesto de negação do imaginário evolucionista encontra-se, justamente, na ideia de que nos mantemos unidos ao nosso passado sem que ele permaneça configurado como esquemas comportamentais isolados e prontos a ser reativados. Aqui, não se trata mais de níveis de uma mesma estrutura que marcariam os diversos momentos da ontogênese, mas de estruturas que se diferenciam qualitativamente, de modo que a estrutura que se atualiza integra de maneira efetiva as soluções privilegiadas por dialéticas anteriores.

Esses temas são retomados em vários momentos dos cursos de Merleau-Ponty no Collège de France. No curso intitulado O mundo sensível e o mundo da expressão, de 1953, Merleau-Ponty (2011), ao tratar do problema das relações entre o movimento (praxis) e o conhecimento, menciona a "antecipação do superior no inferior e retomada do inferior com mudança de sentido" (Merleau-Ponty, 2011, p. 151, grifo nosso). Em continuidade, anota: "Assim movimento e expressão: emergência no movimento de uma dialética de expressão" (p. 151).

No curso sobre a noção de instituição, proferido em 1954, Merleau-Ponty (2003) aborda o problema da instituição vital e da instituição humana. De maneira geral, o conceito de instituição a que se refere Merleau-Ponty opõe-se à ideia de aquisições rígidas, seja por mecanismos inatos seja por mecanismos fixos de aprendizagem. No caso da vida orgânica, trata-se de mostrar que os organismos não revelam uma "duração irreversível" (Merleau-Ponty, 2003, p. 50), marcada por maturação endógena e por acumulações de esquemas do tipo estímulo-resposta, mas, sim, história e instituição enquanto "referência a sentido" (p. 50), referência a sistemas expressivos originais que emergem da inserção do animal no meio. Referindo-se ao trabalho de Raymond Ruyer (1953), Les nouvelles conceptions de l'instinct, e aos experimentos de Konrad Lorenz (1970) sobre o fenômeno de Prägung, ou imprinting, em animais, Merleau-Ponty constata que, dentro de certos limites relativos às espécies, os eventos aos quais os organismos se expõem são fecundos, quer dizer, suscitam a plasticidade do comportamento animal.

No que diz respeito à instituição humana, Merleau-Ponty retoma o problema da prematuração sexual da criança, discute a passagem à puberdade e desenvolve a relação estabelecida nos cursos da Sorbonne, entre antecipação e regressão. Segundo o filósofo, a diferença fundamental da instituição humana em relação à instituição animal não é a criação de símbolos sociais, mas a "impulsão originária da prematuração" (Merleau-Ponty, 2003, p. 60), que abre registros e que inaugura verdadeiras matrizes simbólicas. Esse é o valor da relação edípica tal como descrita por Freud: o de matriz, ou de esquema, que deverá ser elaborado continuamente ao longo da vida. Para Merleau-Ponty, a psicanálise apresenta o Édipo "como vontade do impossível" (Merleau-Ponty, 2003, p. 56), como sexualidade imaginária, prematura. Trata-se de apresentar o corpo próprio da criança como percebido por meio da identificação com os corpos dos pais. As frustrações e as punições que advém desse jogo de identificações implicam a ruptura da unidade imaginada. Esse é o sentido da castração de que fala Freud: a redução do corpo próprio infantil às suas possibilidades de momento. A fase de latência representaria o "fim de uma pseudo-integração prematura, imaginária" (Merleau-Ponty, 2003, p. 56).

E como conceber o evento formador, a instituição da puberdade? Trata-se da execução natural de um calendário corporal ou de fato psíquico? Merleau-Ponty fala do nexo de um com o outro. No caso da puberdade, "os materiais da conduta são verdadeiramente capazes de receber a forma antecipada: [a] instituição [encontra-se] no cruzamento de uma antecipação e de uma regressão", afirma o autor (Merleau-Ponty, 2003, p. 56). A antecipação do futuro, fator originário da instituição humana, reclama, como seu reverso, a reativação do passado, ou seja, a assunção do que fora antecipado, daí a ideia de transformação que conserva. O Édipo instala um movimento para o futuro que fracassa, posto que estabelece relações prematuras. Na puberdade, retoma-se o Édipo, internalizado como autoridade paterna, e redireciona-se a experiência libidinal em novas histórias amorosas. Mas essas histórias não se fecham jamais, indica Merleau-Ponty, pois elas nunca deixarão de se fundar em amores prematuros e impossíveis. Afinal, a liberdade de outrem sempre ultrapassa nossas possibilidades do momento, configurando novas contradições.

Em seus cursos dedicados ao conceito de natureza, realizados entre 1956 e 1960, Merleau-Ponty (1994) tinha por objeto central de investigação "[...] a aparição do homem e do corpo humano na natureza" (p. 379). O filósofo argumenta que o devir da vida configura-se, para nós, como um fenômeno, ou seja, algo que se mostra para nós e que deve ser concebido a partir da nossa própria vida. Não que se trate de inferir as causas da nossa corporeidade a partir do que somos, o seu pretenso efeito, ou de considerar a vida como objeto para uma consciência. Trata-se, sim, de procurar o nexo entre a natureza em nós e a natureza fora de nós, tomando-se por princípio que "[...] a Natureza fora de nós pode nos ser desvelada pela Natureza que somos" (Merleau-Ponty, 1994, p. 267). Não há espaço aqui para discutir o caráter ontológico dessa empreitada filosófica, que toma a natureza como "camada do Ser total" (Merleau-Ponty, 1994, p. 265). O que nos interessa mais diretamente é o modo como Merleau-Ponty (1994) apreende "[...] a humanidade como uma outra maneira de ser corpo" (p. 269).

Os estudos acerca da animalidade passados em revista pelo filósofo revelam a plasticidade do comportamento animal, de modo que não há como definir o homem como "animalidade (no sentido de mecanismo) + razão", anota o autor (Merleau-Ponty, 1994, p. 269). Segundo Merleau-Ponty (1994), "antes de ser razão a humanidade é uma outra corporeidade" (p. 269). Para o filósofo, isso implica deixar de considerar a relação entre o animal e o homem como "hierarquia simples fundada sobre uma adição" (Merleau-Ponty, 1994, p. 276-277). O autor faz a seguinte anotação:

Estuda-se o homem no seu corpo para vê-lo emergir diferente do animal, mas não por adição de razão, em suma no Ineinander [relação de inerência] com o animal (estranhas antecipações ou caricaturas do homem no animal), por escape e não por superposição - da mesma forma que mais acima a vida apareceu como pontos singulares da Natureza física (Merleau-Ponty, 1994, p. 277).

Em outro trecho de suas notas, Merleau-Ponty (1994) afirma: "Por conseguinte a relação homem-animalidade não é uma relação hierárquica, mas uma relação lateral, uma ultrapassagem que não abole o parentesco" (p. 335).

O corpo humano é, então, caracterizado por Merleau-Ponty (1994) como simbolismo natural, ou tácito. O ideário psicanalítico é, novamente, convocado a expressar o "corpo erótico em relação de intercorporeidade" (Merleau-Ponty, 1994, p. 335). De acordo com o filósofo, autores como Freud, Schilder e Melanie Klein apresentam o corpo humano, desde suas manifestações iniciais, como centro de relações de projeção e de introjeção, de incorporação, de "procura do fora no dentro e do dentro no fora" (p. 380). Para Merleau-Ponty (1994), esses atos de investimento corporal revelam uma "vocação a um absoluto" (p. 348). Restaria investigar como o Logos da linguagem apoia-se neste "Logos do mundo natural" (Merleau-Ponty, 1994, p. 274).

 

Considerações finais

Tivemos como objetivo apresentar e discutir passagens da obra de Merleau-Ponty em que se trata da condição do natural em nós. Nelas, como é próprio à filosofia de Merleau-Ponty, a animação do corpo humano é caracterizada em meio a esforços de articulação entre nossas dimensões natural e reflexiva. Partimos da antinomia presente em A estrutura do comportamento (Merleau-Ponty, 1942/2006) e que se relaciona à adoção, ainda que indiretamente, do ponto de vista evolucionista. Na Fenomenologia da percepção (Merleau-Ponty, 1945), a definição do corpo como expressão da existência rompe com a ideia de integração. Na passagem de uma obra à outra, o sentido dado à experiência infantil e à psicopatologia sofre importantes transformações que são intimamente atreladas ao progresso da leitura de Merleau-Ponty sobre a psicanálise. Green (2008) salienta que, em A estrutura do comportamento, o "inconsciente permanecia o não-integrado" (p. 295). Segundo Honda (2004), se considerarmos que o próprio Freud tomava como princípio a doutrina de Hughlings Jackson (1887), talvez estejamos diante de um pressuposto comum ao psicanalista e ao fenomenólogo. O fato é que, no que diz respeito a Freud, a adesão aos pressupostos evolucionistas, difusos na cultura científica da época em que a psicanálise nasceu, não impediu a delimitação de um campo de descobertas que implicam, justamente, a ruptura em relação ao paradigma evolucionista. Quanto a isso, Zenoni (1998) comenta: "A contribuição da psicanálise [...] não consiste em mostrar o quanto somos dependentes, em nosso comportamento consciente e racional, da componente biológica deste, mas a que ponto a biologia que os condiciona é completamente diferente da biologia animal" (p. 5). De acordo com o autor, esse é o sentido das descobertas de Freud acerca da sexualidade infantil. A prematuração infantil põe em relevo "[...] a estranheza biológica de uma sexualidade que é inassimilável à biologia de uma função animal" (Zenoni, 1998, p. 6).

No que concerne a Merleau-Ponty, vimos que, na Fenomenologia da percepção (Merleau-Ponty, 1945), a oposição entre comportamento concreto e comportamento simbólico é rejeitada em prol do poder de significação do corpo próprio. Suas pesquisas subsequentes caminham num sentido arqueológico, em que o comportamento infantil e a animalidade podem ganhar relevo. Naquilo que diz respeito à consideração do corpo, e com base numa leitura cada vez mais aprofundada da psicanálise, Merleau-Ponty parece orientar-se em direção à mesma latência do campo freudiano. Como exposta por Zenoni (1998), tal latência trata não de considerar uma diferença entre o biológico e o psicológico, como dois níveis em que o mais evoluído deles interagiria com o mais primitivo, mas da diferença entre duas biologias. Se uma delas parece admitir aproximações teóricas em termos de maturação linear, a outra se funda num desejo que perverte a animalidade.

Por fim, o privilégio que demos à leitura de Merleau-Ponty a partir de seus debates com a psicologia, a psicopatologia e a psicanálise, merece uma apreciação. Se o mundo ao qual nos endereçamos não é apenas o território de projeção de nossas possibilidades vitais, mas a totalidade do real vislumbrada a partir do nosso ponto de vista particular, é fato, também, que essa nossa relação inédita com o mundo possui uma história. Iniciativas filosóficas tais como as de Merleau-Ponty visam, justamente, uma arqueologia do corpo e da sua relação com o mundo. Exercício como esse exige a integração de aportes empíricos e filosóficos, posto que se destina à problematização do sujeito em suas dimensões de encarnação e de intenção racional-realista. Merleau-Ponty (1994, 2006b) reposiciona-se frente à postura reflexiva da filosofia. Se, por um lado, a filosofia se opõe à identificação da nossa relação com o mundo a partir de pressupostos materialistas, por outro, consente que o homem seja concebido como pura negatividade, no sentido muitas vezes empregado para se definir filosoficamente a consciência. Daí a importância de uma filosofia da natureza que se disponha a investigar a gênese do negativo, ancorando-o no corpo e na sua relação com o mundo e com os outros. Na obra de Merleau-Ponty, esta filosofia da natureza se constrói apoiada em disciplinas tais como a neuropsiquiatria, a psicanálise, a psicologia da criança, a psicologia animal, a psicologia experimental, e a antropologia. Trata-se, pois, de um duplo movimento voltado a pensar o homem: acolhe-se a filosofia em detrimento da destituição da razão pelo pensamento operatório do materialismo naturalista, e abre-se "a razão aos aportes de diferentes ciências humanas" (Bimbenet, 2011, p. 13), assumindo nosso "status de seres vivos" (p. 13) e situados. O diálogo entre filosofia e ciências humanas revela-se, pois, como "exigência metodológica" (Bimbenet, 2011, p. 11), difícil, necessária, e assumida integralmente por Merleau-Ponty.

 

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Submetido em: 23/11/2012
Revisto em: 13/08/2013
Aceito em: 12/09/2013

 

 

* Artigo referente a pesquisa apoiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).