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Arquivos Brasileiros de Psicologia

 ISSN 1809-5267

     

 

SEÇÃO ABERTA

 

Emilio Mira y López: uma ciência para além da academia

 

 

Ana Maria Jacó-VilelaI; Igor Teo RodriguesII

IDocente do Programa de Pós-graduação em Psicologia Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), onde coordena o Laboratório de Pesquisas em História da Psicologia “Clio-Psyché”, tem pós-doutorado em História e Historiografia da Psicologia na Universidade Autônoma de Barcelona (2004), coordena a Rede Iberoamericana de Pesquisadores em História da Psicologia, Presidente Eleita da Divisão 18 (History of Psychology) da International Association of Applied Psychology (IAAP), é Membro do Conselho Editorial da ABP
IIAluno do Curso de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), insere-se Laboratório de pesquisas “Clio-Psyché” desde 2011,é Bolsista de Iniciação Científica do CNPq

 

 

A aplicação da ciência deve servir "ao benefício do maior número possível de pessoas, a fim de aliviar suas penas"

Mira y López (1988, p. 9)

No dia 16 de fevereiro de 2014, completaram-se 50 anos do falecimento de Emilio Mira y López. Como a história - de nosso país, de nossa disciplina - não é precisamente nosso ponto de maior interesse, de modo geral desconhecemos completamente a contribuição que este personagem trouxe, não só à psicologia mundial - o reconhecido texto de recenseamento dos principais psicólogos do mundo, de Annin, Boring e Watson, indica Mira y López entre eles (Annin, Boring, & Watson, 1968) -, mas, no caso que aqui nos interessa de perto, à psicologia brasileira. O objetivo deste texto é, pois, compor uma narrativa sobre Emilio Mira, desde sua trajetória na Espanha, seu famoso périplo no exílio, até seus últimos anos no Brasil. Para isso, utilizaremos entrevistas, fontes documentais e textos já clássicos sobre o personagem e sua obra, como os de Kirchner (1975), Miralles Adel (1979), Pigem Serra (1996), Rosas (1995), Silva e Rosas (1997).

Percorrendo esses últimos trabalhos, que tratam da "vida e obra" de Mira, notamos que sua biografia pode ser sintetizada em cinco grandes características: o personagem de dois mundos, o psiquiatra, o homem brilhante e carismático, o socialista exilado, o psicólogo ou psicotécnico. Exploraremos rapidamente cada uma delas para, então, nos dedicarmos ao objetivo deste texto.

 

Mira, personagem de dois mundos

Esta expressão, título de um vídeo realizado por Helio Carpintero e Enrique Lafuente (1995), é um jogo biográfico unindo seu nascimento, em Santiago de Cuba (1896), filho de pais espanhóis, o pai sendo Rafael Mira Merino, médico militar, especializado em medicina tropical e subinspector de Saúde do Exército Espanhol em Cuba, e a mãe Emilia López García; sua ida para a Espanha, em função da independência daquela antiga colônia espanhola (1898), onde viveu até seus 43 anos; e seu retorno à América Latina, por causa da perda republicana na Guerra Civil Espanhola (1939). Após a Guerra Civil, passou por França, Inglaterra, Estados Unidos, Cuba, Argentina e Uruguai, antes de fixar-se no Rio de Janeiro (1947), até sua morte em 1964. Essa situação de eterno migrante e de contínuo viajante, com presença em numerosos congressos internacionais e oferta de cursos em diversos países, durante toda sua vida profissional, é uma marca da história e da personalidade de Mira e, como tal, está retratada em suas biografias.

 

Mira, psiquiatra em sua Barcelona adotiva

Quando voltou de Cuba, a família de Mira se fixou por pouco tempo na Galícia e logo se mudou para Barcelona. Foi nessa cidade que Mira desenvolveu seus estudos, concluiu o curso de Medicina e construiu sua vida profissional, na etapa espanhola de sua vida. Em 1918 foi médico assistente de clínica no Hospital Clínico de Barcelona. Obteve seu doutorado na Universidade Complutense de Madrid, com a tese Las correlaciones somáticas del trabajo mental, em 1922. Todos os seus cursos e títulos foram obtidos com louvor. Na tese, parte das investigações de Mosso, Binet e Bickel, visando demonstrar que os fenômenos psíquicos não só são acompanhados de transformações neurais no sistema nervoso central - correlação que a fisiologia do século XIX já havia descoberto -, mas também que há uma correlação positiva entre processos psíquicos e atividade dos sistemas vasculares e vegetativos (Miralles Adel, 1979).

Recém-formado, Mira e Dª. Pilar Campins contraem matrimônio em 1919. O casal tem três filhas: Pilar, Emilia e Montserrat. Esposa e filhas o acompanharam, posteriormente, ao exílio na França e na Argentina. Montserrat, que vive em Barcelona, é responsável por um manifesto nos cem anos de seu nascimento (1996), solicitando o reconhecimento de seu trabalho. É também a criadora de uma página na web à qual sempre recorremos (Mira, 2009).

Tornou-se médico do dispensário de enfermidades mentais de Barcelona e, em 1924, foi efetivado após concurso como psiquiatra da Assistência Municipal. Em 1926, tornou-se médico da Seção de Psiquiatria do Asilo do Parque de Barcelona e participou da criação da Associação de Neuropsiquiatras. Em 1930, tornou-se membro do Comitê Internacional de Higiene Mental e, em 1932, médico consultor do Instituto Mental Pedro Mata, de Reus.

A coroação dessa carreira ocorreu em 1933, quando foi nomeado catedrático de Psiquiatria da Universidade de Barcelona. Ensinava na Clínica Psiquiátrica Municipal de Urgências. Havia um modelo didático: na primeira hora, breve apresentação de um enfermo, seguida de exposição de Mira; na segunda hora, histórias clínicas; na terceira, discussão de casos. Enviava alunos à casa do enfermo para investigar os fatores familiares e sociais (Miralles Adel, 1979; Pigem Serra, 1996). Também em 1933, tornou-se diretor do Instituto Psiquiátrico de Sant Boi (Sección de Mujeres) e assumiu um empreendimento privado, junto com Jerônimo de Moragas: a Clínica Psiquiátrica Infantil La Sageta.

O ano de 1934 surgiu com novos cargos e funções: presidente da Sociedade Catalã de Psiquiatria e Neurologia, vice-presidente da Associação Espanhola de Neuropsiquiatras, membro do Conselho Superior Psiquiátrico de Madrid. Dirigiu até 1937 a Revista Catalana de Neurologia i Psiquiatria. Em 1935, tornou-se presidente da Liga Espanhola de Higiene Mental e diretor do Instituto Psiquiátrico Feminino de Sant Boi. E, em 1936, criou o Preventorio de Psiquiatria Municipal.

Pode causar estranheza seu envolvimento com a Higiene Mental. Entretanto, é importante recordar que esse movimento, criado por Clifford Beers, com o aval de Adolph Meyer e William James, tinha, em sua primeira versão, o objetivo de "proteger a saúde do público em geral" (Antunes & Barbosa, 2002, p. 103). Essa ideia, naqueles idos de 1930, mais que soar como ameaça totalitária, parecia, a um socialista convicto como Mira e muitos outros - no Brasil, por exemplo, tivemos a participação de Ulisses Pernambucano e Manoel Bomfim na Liga Brasileira de Higiene Mental (Jacó-Vilela, 2014) -, a proposição de uma preocupação com a coletividade.

Com a Guerra Civil, decorrência do movimento conservador contra o governo republicano, tornou-se chefe dos Serviços Psiquiátricos do Exército Republicano na Catalunha, trabalhando na seção de pilotos e recrutas. Tosquelles1, seu aluno na Faculdade de Medicina da Universidade de Barcelona, trabalhava com ele (Ruiz, Athayde, Nogueira Filho, Zambroni-de-Souza, & Athayde, 2013). No mesmo ano, é nomeado, pelo governo republicano, diretor da Escola Profissional de Mulheres, criada para possibilitar a substituição dos homens mobilizados.

Interessante é que muitos autores (Miralles Adel, 1979), ao dissertarem sobre a abordagem teórica de Mira, a enfocam em sua face psiquiátrica. E qual é essa abordagem? Ela implica, a nosso ver, algumas características: a) a relevância do papel da ciência na melhoria das condições da vida cotidiana, visto a ciência poder ser subdividida em "ciência pura" e "ciência aplicada"; b) o evolucionismo como marca principal dessa ciência; c) a unidade psicofísica do ser humano. Essas características estarão pesentes em toda a sua obra, bem como em suas escolhas e orientações ao longo da vida.

 

Mira, um socialista exilado

Esta é uma das facetas da trajetória de Mira que se transformou em um verdadeiro clichê: membro da Unió Socialista de Catalunya, foi redator de seu jornal, atuou profissionalmente em clínicas populares, esteve do lado socialista durante a Guerra Civil Espanhola, atuando não só no Exército Republicano como em funções que lhe foram destinadas pelo governo republicano, como visto acima. Além disso, manteve tal posição em sua atuação na psicotécnica, como veremos adiante. Seu autoexílio, como o de muitos outros, só ocorreu após a vitória de Franco na Guerra Civil Espanhola, quando iniciou seu périplo de imigrante por vários países - aos 43 anos de idade -, até se fixar no Brasil, já então com 51 anos.

Com a derrota do Exército Republicano, Mira enviou sua família para a França e administrou a evacuação dos pacientes que estavam sob seu cuidado, antes de também exilar-se na França. Foi acolhido em um campo de concentração, aberto para receber os exilados expanhóis, até ser liberado por Henri Pierón (1881-1964), o então grande nome da psicologia francesa. Obteve passaportes cubanos, para ele e sua família, que lhes foram enviados por seus amigos socialistas de Cuba (Rosas, 1995).

Uma vertente do pensamento que louva essa faceta diz, ainda, que Mira não obteve a revalidação de seu título de médico no Brasil em razão de sua posição política, embora o Brasil da época fosse uma democracia e o diretor do Instituto de Psiquiatria da então Universidade do Brasil, Maurício de Medeiros (1885-1966), fosse simpatizante do Partido Comunista. Entretanto, como revela Dª Alice Galland de Mira, em entrevista (Galland de Mira, 2010), quando teve ciência das diferentes dificuldades para atingir esse objetivo - cursar todas as disciplinar do curso de Medicina que não constavam no seu histórico escolar da Universidade de Barcelona e que faziam parte do currículo pleno do curso de Medicina das universidades brasileiras -, Mira desistiu de solicitar a revalidação. Isso deveria impedi-lo de exercer a clínica, o que não ocorreu: realizava atendimentos psicoterápicos em casa, como consta no vídeo realizado pelo Conselho Federal de Psicologia (Rosas, 2001).

Ou seja, há toda uma aura socialista e, quase que consequentemente, de um ser perseguido que faz parte dessa imagem de Mira. Nesse sentido, mesmo acusações de que Mira teria criado um método de tortura, encabeçadas pelo psiquiatra Ramón Sarró durante o regime franquista, e espalhadas não só na Espanha, mas em outros países, como a Itália, através de Agostinho Gemelli e Mario Ponzo, são mais uma comprovação do sucesso de Emilio Mira e da necessidade fascista de denegrir sua imagem naquele momento. Todavia, foi necessária a morte de Franco e o encerramento de mais esse período negro da história espanhola para que houvesse um novo reconhecimento da contribuição de Mira à psiquiatria espanhola, encabeçado por Joan Obiols (1919-1980), e que é detalhado, por exemplo, na tese de Iruela (1988).

 

Mira: inteligência, produtividade, carisma

O sucesso de Mira parece anunciado desde cedo pelos prêmios estudantis que recebeu, como descrito acima. Além disso, a ocupação de tantos cargos, ainda quando jovem médico, bem como sua vasta publicação - Rosas (1995) cita 28 livros -, pareciam atestar uma capacidade intelectual que lhe conferia um lugar especial nos meios acadêmico e intelectual da época (Iruela, 1988; Miralles Adel, 1979).

Mira iniciou sua carreira literária por motivos financeiros, como tradutor de obras da psiquiatria alemã. Foi quando começou a se interessar pela questão da unidade funcional psicossomática do ser humano. Fez traduções também, do inglês e do francês, de diferentes livros de psiquiatria para o espanhol, além de ter sido o primeiro a traduzir Freud para esse idioma. Tudo isso visava, naquele momento, somente lhe assegurar a sobrevivência (Miralles Adel, 1979).

De maneira geral, os autores citados veem um corte em sua produção - a efetiva, a que trata de lançar novos alicerces intelectuais, situou-se na fase espanhola. Na fase intermédia houve uma grande obra, Psiquiatria na Guerra (Mira y López, 1944), fruto de sua experiência na Guerra Civil Espanhola. Na fase brasileira, todavia, a sua produção é, basicamente, recompilação da produção anterior, muitas vezes somente tradução para o português, já que sua editora na América Latina torna-se a argentina Kapelusz, de propriedade de exilados espanhóis (Klappenbach, 2001, 2007). No Brasil, sua única obra original, publicada post-mortem, é Psicologia e Futebol (Mira y López & Ribeiro da Silva, 1964), em coautoria com Athayde Ribeiro. Não colocamos aqui a relação de suas obras publicadas, tanto por sua quantidade e variedade (livros, com várias traduções e edições; artigos em periódicos científicos de diferentes países; artigos em jornais; entrevistas), mas indicamos ao leitor a revista Arquivos Brasileiros de Psicotécnica, que, graças aos esforços da Fundação Getúlio Vargas, em vista da comemoração de seus 70 anos de existência, também em 2014, está totalmente digitalizada. O volume 16, números 2 e 3, da referida revista (Arquivos Brasileiros de Psicotécnica, 1964) é totalmente dedicado à memória de Emilio Mira.

Por outro lado, a capacidade de Mira de fazer amigos, adeptos, discípulos, era reconhecida por todos. Assim, mantinha correspondência com grandes nomes da psicologia europeia e americana, o que lhe foi muito útil na fase de exílio. O já citado Henri Pieron procurou auxiliá-lo na França, conseguindo-lhe uma bolsa. Também obteve uma bolsa como Research Fellow da Society for Protection of Science and Learning, ocasião em que terminou a elaboração do Psicodiagnóstico Miocinético (PMK), no Maudsley Hospital de Londres, fazendo a primeira comunicação oficial sobre o teste, em 12 de outubro de 1939, à Royal Society of Medicine. Por meio de George Miller (1920-2012)2, um dos pioneiros nos estudos em psicolinguística, obteve convite para conferências nos Estados Unidos em 1940.

Como dito, a família seguiu para a Argentina, onde foi encontrá-la depois dessas conferências e de outras em Cuba. Quem o indicou para vir fazer suas primeiras conferências no Brasil foi Helena Antipoff (1892-1974), que o conhecera junto a Claparède, nos tempos dos Congressos Internacionais na Europa, e sobre quem falaremos adiante.

Em sua fase brasileira, surgiu ao seu redor, no período áureo de consolidação da psicologia, uma categoria especial, as "miranetes" ou "miragirls"3, moças concluintes da Escola Normal ou, mesmo, formadas em Pedagogia, Letras ou Filosofia que, interessadas em Psicologia, se dedicavam, com afinco, aos cursos e conferências que Mira oferecia a partir do ISOP.

 

Mira, o psicólogo

Paralelamente ao seu trabalho como psiquiatra em Barcelona, Mira tornou-se em 1919, após concurso, o encarregado da seção de Psicometria do Instituto de Orientação Profissional, seção que logo foi denominada Laboratório Psicotécnico. Como tudo em que tocava, qual Midas intelectual da modernidade, essa vertente de sua atuação profissional se traduziu em sucesso. Em 1920, Edouard Claparède (1873-1940) havia convocado, a partir do Institut Jean Jacques Rousseau, em Genebra, a realização da Primeira Conferência Internacional de Psicotécnica, presidida por Henri Pieron. Nessa ocasião, foi fundada a Associação Internacional de Psicotécnica. Mira conseguiu que a II Conferência Internacional de Psicotécnica fosse realizada em Barcelona, sob a presidência de Claparède, e foi presidente da VI, ainda em Barcelona, em 1930.

A Escola de Psicotécnica de Barcelona passou a ter reconhecimento internacional, o que significou, antes de tudo, reconhecimento ao trabalho realizado por Mira. Entretanto, como o Mira socialista se coaduna com o Mira psicotécnico? Não haveria contradição entre esses dois pontos? E, se havia, como Mira, o homem, conciliava essas duas facetas de sua vida, a ideológica e a profissional?

Segundo Pigem Serra (1996), quando Mira iniciou suas tarefas no Laboratório de Psicotécnica, a questão era se o Instituto faria orientação ou seleção profissional, visto que em muitos países onde a seleção havia sido implantada houve violentos protestos do operariado, pois se considerava que muitos operários ficariam sem trabalho. Mira dizia, no entanto, que se pode considerar a seleção de maneira positiva, pois, em vez de detectar quem não serve para ocupar um lugar, assinalaria quem serve mais para desempenhar tal trabalho, e também quem serve mais para outras funções. Assim, não haveria oposição entre seleção e orientação, não se criavam injustiças. O Instituto decidiu dedicar-se fundamentalmente à orientação, sem deixar a possibilidade de fazer alguma seleção sempre que a necessidade o aconselhasse (Pigem Serra, 1996, p. 5). Mira deixava claro, também, que a psicotécnica era uma aplicação da sua compreensão do ser humano como uma unidade psicofísica.

Da mesma forma que na psiquiatria, Mira rapidamente assumiu cargos também na área da psicotécnica. Assim, em 1926, já o encontramos como diretor do Institut de Orientación Profesional, que se tornou a Sección de Orientación y Selección Profesional de la Escuela del Trabajo de la Diputación de Barcelona. Com a proclamação da República, em 1931, a Seção se autonomizou, transformando-se no Institut Psicotècnic de la Generalitat.

Ainda na seara da Psicologia, Mira ministrou cursos de Psicologia Jurídica em 1931, o que lhe propiciou publicar o livro Psicología Jurídica (Mira y López, 2011) no ano seguinte. Ministrou também cursos de Psicologia Experimental e foi presidente do 11º Congresso Internacional de Psicologia, que ocorreu em Copenhagen, em 1932.

Em seu caminho da Espanha até o Brasil, psiquiatria e psicologia se mesclam, continuaram sendo atividades complementares, como o foram na Espanha. No Brasil, contudo, Mira se restringiu formalmente à psicotécnica.

É sobre sua trajetória no Brasil que dedicamos o restante deste texto.

 

Chegando ao Brasil...

Mira se estabeleceu com sua família na Argentina em 1940. Parecia uma boa escolha, um país de língua espanhola, conhecido por suas referências europeias, e onde muitos espanhóis já se encontravam exilados. Tornou-se psiquiatra consultor do sanatório particular La Chapelle. Em 1941, foi convidado para dar cursos no Chile. Publicou, em 1942, o Manual de Psicoterapia (Mira y López, 1967). Retornou aos Estados Unidos também em 1942 e, durante quase todo o ano, ministrou conferências em diferentes universidades, sendo nomeado Fellow da American Psychiatric Association.

Seu principal trabalho na Argentina ocorreu em 1943, quando foi nomeado diretor dos Serviços Psiquiátricos e de Higiene Mental da Província de Santa Fé, o que lhe possibilitou fundar e dirigir o Hospital Psiquiátrico da cidade, posteriormente nomeado Mira y Lopez. Perdeu o posto por suas ideias políticas (Rossi, Falcone, & Ibarra, 2014).

Chegou, então, o tempo de mais uma mudança. Em 1944, Mira migrou para o Uruguai, contratado pelo Ministério de Educação desse país, para criar e dirigir o Instituto de Orientação Profissional de Montevidéu. Dirigiu o Laboratório de Psicopedagogia Sebastián Morey Otero, onde inicou a aplicação sistemática do PMK em escolares. É nessa ocasião que conhece Alice Galland, enfermeira sanitarista, com formação na Suíça. Mira se divorciou de Dª Pilar, que retornou à Espanha com as três filhas, e começou uma nova vida com Alice Galland.

Essa foi uma nova vida que se iniciou aos poucos, a partir de 1945, quando, por indicação de Helena Antipoff, foi convidado para fazer conferências em várias cidades do Brasil. Antipoff foi uma psicóloga russa que estudou em Paris com Binet, voltou à Rússia depois da Revolução de 1917, mas se afastou posteriormente, indo para Genebra. Lá, como assistente de Claparède, conheceu Mira y López. Na década de 1920, quando o governo de Minas Gerais, em seu projeto de reforma educacional, solicitou a Claparède a indicação de psicólogo que pudesse dirigir o Laboratório de Psicologia da Escola de Aperfeiçoamento de Professores em Minas Gerais, Antipoff foi indicada. Vindo para o Brasil em 1929, aqui permaneceu até seu falecimento, em 1974, tornando-se importante personagem da história da psicologia, notadamente a educacional e a do cuidado com o excepcional (Campos, 2001).

Mas, voltando a Mira, ao vir para o Brasil, ministrou conferências em várias cidades e a convite de diversas instituições (DASP, USP) em 1945; com o sucesso destas, retornou em 1946 e, finalmente, foi convidado para organizar e dirigir o Instituto de Seleção e Orientação Profissional (ISOP) da Fundação Getúlio Vargas, epopeia iniciada em agosto de 1947 (Rosas, 1995; Silva e Rosas, 1997). Mira se fixou no Rio de Janeiro com sua esposa, Dª Alice. Os quatro filhos dessa união (Nuria, Rafael, Emilio Carlos - falecido com poucos meses de vida - e Emilio Rafael) nasceram nessa cidade.

Ainda que estabelecido no Brasil, Mira não abandonou sua trajetória internacional. Segundo Emilio Rafael, em comentário pessoal, isso se devia ao baixo salário que lhe pagava o ISOP. Mas acreditamos que se devia também ao fato de ter continuado a receber muitos convites. Sua rotina nos anos seguintes é a de ir a universidades de diferentes países, ministrar cursos e receber títulos. Assim, ministra cursos na Guatemala, México, Cuba e Venezuela, em 1948, recebendo títulos nas universidades desses países. Nos anos de 1954 e 1956, torna-se professor convidado - recebendo títulos - de diferentes universidades cubanas. Em 1955, é conferencista e presidente da Seção de Psicologia Experimental da Unesco, para ministrar cursos no Departamento de Psicologia da Faculdade de Humanidades da Universidade Nacional de La Plata, na Argentina. Reorganiza o Departamento de Psicologia da Universidade de Venezuela, em 1958, e dois anos mais tarde é convidado especial do Instituto Cubano de Amizade dos Povos. É professor convidado em Córdoba, na Argentina, em 1960. A Universidade de Quito o convida como professor de Psicologia, em 1962, e é nomeado professor honorário de sua Faculdade de Filosofia e Letras.

Continuou também sua participação em congressos internacionais, como os de Psicotécnica, como se observa em Berna (1949), Paris (1953) e, depois que o nome destes se torna o atual - Congresso Internacional de Psicologia Aplicada, International Congress of Applied Psychology -, em Londres (1955), onde é o delegado do Brasil, e em Roma (1958). Participa também de outros congressos, como os Internacionais e Latino-Americanos de Psiquiatria.

Finalmente, tem importante participação nos Congressos Internacionais de Psicologia, inclusive no XIII, ocorrido em 1951, que criou a International Union of Psychological Science (IUPsyS)4 e em cuja assembleia esteve presente, junto com Helena Antipoff, representando o Brasil (Rosenzweig, Holtzman, Sabourin, Bélanger, 2000). Ao vermos o extenso número de participações internacionais de Mira, devemos considerar ainda as dificuldades existentes naquela época para a realização de viagens cobrindo grandes distâncias, o que causa mais admiração e espanto pela sua assiduidade a esses eventos.

Sua presença no I Congresso Interamericano de Psicologia, realizado na República Dominicana, em 1951, é relevante, visto que, segundo as atas desse evento (Atas do I Congresso de Psicologia, 1953), foi citado seis vezes pelos conferencistas, entre eles Werner Wolff, o primeiro-vice-presidente da entidade. Os brasileiros presentes nesse congresso foram Henrique Roxo, psiquiatra, autor da primeira tese em psicologia experimental publicada no Brasil (Roxo, 1900), e Emilio Mira. Certamente sua participação contribuiu para que, em 1955, fosse o vice-presidente para a Região Atlântica da Sociedade Interamericana de Psicologia (SIP), e, quatro anos após, o VI Congresso Interamericano de Psicologia ocorresse no Rio de Janeiro e Mira fosse seu secretário-geral. É de mister importância apontar que esse foi o primeiro congresso internacional de psicologia sediado no Brasil.

 

No Brasil

O epicentro das atividades de Mira no Brasil foi o ISOP (1949), mas não ficaram restritas a ele. Foi convidado para ministrar muitos cursos, como, por exemplo, para os Ministérios do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, provavelmente em decorrência de seus trabalhos voltados para a Psicologia Militar.

Também foi convidado para organizar e supervisionar o Serviço de Orientação Profissional da Secretaria de Educação do Estado de Minas Gerais, sendo ainda contratado para organizar, junto com Helena Antipoff, o Departamento Nacional da Criança (DNCr). O DNCr era responsável pela coordenação, em âmbito federal, das atividades voltadas à maternidade, infância e juventude, no contexto do Ministério da Educação e Saúde. Sua criação, em 1940, está vinculada à preocupação do governo do Estado Novo com a educação e assistência à criança e à juventude, como forma de garantir o futuro da nação (Degani-Carneiro & Jacó-Vilela, 2012).

Seu grande foco de atuação, sem dúvida, residiu no Intituto de Seleção e Orientação Profissional (ISOP), órgão autônomo da Fundação Getúlio Vargas, esta última uma instituição que tinha como objetivos a documentação, o estudo e a pesquisa no domínio da racionalização do trabalho (Silva & Rosas, 1997).

Emilio Mira y López criou no ISOP a perspectiva de articulação do trabalho científico com os problemas cotidianos e com ações práticas para a sua solução. Assim, o trabalho do ISOP fazia parte dos assuntos dos jornais da época, como o treinamento dos funcionários da rede ferroviária após um grande desastre de trens. Era requisitado para entrevistas sobre diversos assuntos psicossociais, sobre os quais publicou artigos nos principais jornais brasileiros e argentinos. Conhecemos esse material pelo trabalho sem fim de Dª Alice Mira, que guardou todas as notícias sobre Emilio Mira, sem dúvida uma concretização do que Keller (1991) diz sobre relações entre gênero e ciência - como, muitas vezes, a relação de mulheres com a ciência ocorre em decorrência do amor. No caso específico, em entrevista, Dª Alice, enfermeira sanitarista, afirma ter chegado à psicologia "por amor" (Galland de Mira, 2008).

Os técnicos do ISOP, dois anos após sua fundação, criaram a Associação Brasileira de Psicotécnica, em 1949. Esta, por sua vez, iniciou, no mesmo ano, a publicação da revista Arquivos Brasileiros de Psicotécnica, cujo redator-chefe era Emilio Mira. A Arquivos5 é a primeira revista totalmente voltada para temas da Psicologia e de grande circulação no Brasil. É, assim, o veículo de divulgação dos assuntos psicológicos que mais interessavam tanto à parcela do empresariado nascente quanto à sociedade em geral - principalmente a classe média -, que se via frequentemente envolvida em discussões sobre o comportamento dos criminosos, crianças (delinquentes ou excepcionais) ou, mesmo, sobre a qualificação de trabalhadores. A publicação destaca-se, ainda, como a principal divulgadora dos eventos de Psicologia acontecidos no Brasil e no exterior.

É nos Arquivos que a Associação Brasileira de Psicotécnica publica seu anteprojeto de regulamentação da profissão de psicólogo e dos cursos de Psicologia, em 1954, dando início a uma grande mobilização nacional sobre o tema.

ISOP, Arquivos e Associação Brasileira de Psicotécnica formam, pois, um todo coeso que corresponde às necessidades daquele momento do país: iniciando-se na industrialização, necessitando de técnicos - o psicotécnico ou psicologista - capazes de lidar com as implicações do "fator humano" na racionalidade do novo modo de produção. A escolha e a capacitação técnicas são vistas como um aspecto indissociável da melhoria na qualidade do trabalho. Cursos de extensão, de formação de psicotécnicos, processos de orientação e de seleção, entrevistas e artigos nos jornais, criação de subsedes do ISOP em outros Estados brasileiros, tudo isso faz, em pouco mais de dez anos, muito mais pela institucionalização da psicologia e da profissão do psicólogo do que as cátedras fizeram em suas décadas de existência.

O PMK - Psicodiagnóstico Miocinético - tornou-se o grande teste brasileiro nesse momento. Teve sua padronização e validação realizadas pela equipe do ISOP, sob a supervisão de Dª Alice Mira. Transformando-se em instrumento de seleção de pessoal, foi a ferramenta preferencial para a seleção de motoristas, maquinistas, e, quando se criaram as clínicas psicológicas do Departamento de Trânsito, na década de 1970, foi o centro de seu funcionamento. É interessante comparar essa apropriação do PMK no Brasil com sua utilização por Mira no Uruguai (com escolares, conforme relatamos anteriormente) e com a que ocorreu na Argentina, onde, segundo Falcone & Rossi (2014), esse teste foi utilizado na clínica.

A psicotécnica representava, para Mira, uma aplicação de sua compreensão do ser humano como uma unidade psicofísica. Para ele, a personalidade deveria ser estudada à luz dos componentes fisiológicos e psíquicos e definida pela integração de todos os sistemas estruturais e funcionais do indivíduo em um momento dado, sendo a intencionalidade a característica fundamental do psíquico. O indivíduo como unidade resultaria da integração em si mesmo do psicológico e do biológico em cada instante da vida. A unidade da resposta adaptativa decorreria tanto por ser resultado de uma integração de processos como por sua intencionalidade. O teste PMK representa, pois, a concretização psicotécnica de sua teoria psicofísica (Miralles Adel, 1979).

No entendimento de Mira y López, todos os movimentos executados, voluntariamente ou involuntariamente, possuem uma significação de acordo com a direção em que são realizados. Já a linguagem verbal, eficiente para comunicar pensamentos e sentimentos entre os homens, não é confiável, pela possibilidade da mentira. Sua experiência com o axietereômetro (aparelho construído por ele durante a Guerra Civil Espanhola e destinado a medir a percepção cinestésica no espaço para avaliar candidatos ao manejo de instrumento de voo - considerado um antecessor do PMK) lhe dizia que traços fundamentais da personalidade levam o indivíduo a realizar com facilidade certos movimentos, em detrimento dos movimentos opostos (Miralles Adel, 1979). Se, em seu caminho no exílio, psiquiatria e psicologia continuaram sendo atividades complementares, no Brasil Mira se restringiu formalmente à psicotécnica.

No Brasil, recém-saído de um governo fascista e ingressando em um surto industrial chamado substituição de importações, a perspectiva socialista de Mira não despertava muito interesse, mas as possibilidades abertas por suas novas técnicas psicológicas, sim. Buscou, pois, implantar suas ideias de outras formas, via o ensino de uma prática profissional que fortalecesse o projeto, em que acreditava, da psicotécnica como aplicação da ciência visando diminuir o sofrimento humano.

Assim, é confrontado pelos acadêmicos enclausurados nas suas cátedras na Universidade do Brasil, seguros em suas discussões teórico-filosóficas. A ideia de uma ciência que vai às ruas, que está nos jornais, que busca solução para os problemas que afligem a população, está fora do enquadre para os acadêmicos de sua época. Para eles, só existe ciência "pura" ou charlatanismo, como muito bem descreve o Parecer 403/62 do Conselho Federal de Educação (Brasil, 1962), ao cuidar do currículo mínimo do curso de Psicologia. A prática, a aplicação, não tem sentido nem prioridade em um espaço voltado para si mesmo.

Mira é, então, afastado dos espaços acadêmicos, em que gozava de prestígio na Espanha. Parece-nos, principalmente, que os amedrontava, como o demonstra o epíteto depreciativo citado na Nota 3 deste artigo, que mais uma vez demonstra as relações de gênero presentes naquele momento. Por outro lado, e não à toa, os psicólogos que estavam construindo novas práticas nos espaços profissionais que se abriam a partir dos anos de 1950 - clínicas psicológicas, serviço de orientação infanto-juvenil - aglutinaram-se em torno do ISOP e de suas filiais. Novas portas lhes eram abertas, principalmente no tocante ao contato com o que se fazia no exterior, que passaram a conhecer através dos congressos e dos autores publicados nos Arquivos.

Como emerge e se institucionaliza uma nova profissão? No caso específico do Brasil, a profissão de psicólogo e seu reconhecimento social não surgiram em nenhuma instituição acadêmica, mas, sim, decorreram do trabalho de muitos profissionais anônimos e de algumas figuras - Emílio Mira, entre elas - que tiveram como objetivo "vulgarizar" e "popularizar" a Psicologia, para que fosse acessível a um número cada vez maior de pessoas. Isso permitiu uma absorção generalizada da Psicologia e criou as condições possíveis, pela apropriação que a população e a mídia fizeram, para a discussão e a consequente regulamentação legal da profissão e dos cursos.

 

Referências

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1 É de Francesc Tosquelles, que se tornará posteriormente um dos importantes nomes da Psicologia Institucional, a mais tocante homenagem póstuma a Mira, em evento do Departamento de Psicologia da Universidade de Barcelona dedicado ao seu primeiro catedrático, realizado logo após a morte de Franco e publicado no primeiro número do Boletim do referido Departamento (Tosquelles, 1973).
2 Parte da correspondência trocada entre Miller e Mira encontra-se nos arquivos de George Miller no Center for the History of Psychology (University of Akron).
3 Segundo Eliezer Schneider (citado por Mancebo, 1997), estes termos foram cunhados por Nilton Campos, catedrático de Psicologia da Faculdade de Filosofia da Universidade do Brasil, para se referir, de forma depreciativa, ao sucesso que o trabalho de Mira y López alcançava, em contrapartida à obscuridade social das cátedras
4 Com relação à IUPsyS, o Brasil foi signatário desta associação de 1951 até a década de 1990, quando foi excluído por falta de pagamento. A iniciativa de diferentes pessoas e o interesse da diretoria da IUPsyS fez com que o país voltasse a ser filiado a IUPsyS, através de um consórcio composto por quatro associações (Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia, Anpepp; Sociedade Brasileira de Psicologia, SBP; Associaçãoa Brasileira de Psicologia Social, Abrapso; Sociedade Brasileira de Psicologia Organizacional e do Trabalho, SBPot) em 2012.
5 A revista mudou seu nome em 1969 para Arquivos Brasileiros de Psicologia Aplicada e, em 1979, para Arquivos Brasileiros de Psicologia. Até 1990, esteve sob a responsabilidade da Fundação Getúlio Vargas, o que possibilitou que todos os números, de 1949 a 1990, encontrem-se agora digitalizadas e disponíveis na biblioteca digital daquela instituição.

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