Arquivos Brasileiros de Psicologia
ISSN 1809-5267
ARTIGOS
O crédito na publicidade televisiva: supressões, proposições e efeitos subjetivos*
Credit in television advertising: suppressions, propositions and subjective effects
El crédito en la publicidad televisiva: supresiones, proposiciones y efectos subjetivos
Inês HennigenI; Luis Filipe Silveira SchmidtII; Henrique Santos de SouzaIII
IDocente. Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional. Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Porto Alegre. Estado do Rio Grande do Sul. Brasil
IIGraduando. Curso de Psicologia. Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Porto Alegre. Estado do Rio Grande do Sul. Brasil
IIIGraduando. Curso de Psicologia. Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Porto Alegre. Estado do Rio Grande do Sul. Brasil
RESUMO
Apresentamos uma pesquisa sobre a publicidade do crédito que discute seus efeitos na constituição subjetiva, em especial no que concerne às práticas de consumo e endividamento. Analisamos 67 comerciais veiculados na televisão utilizando duas abordagens: adequação ao disposto pelo Código de Defesa do Consumidor e análise do discurso, articulada à semiótica. A maioria das peças pôde ser qualificada como enganosa face às supressões - o que leva a efeitos a partir do desconhecimento. Contudo, estratégias discursivas e semióticas de captura via persuasão, fartamente utilizadas, nos pareceram até mais problemáticas, pois geram efeitos positivos: fazem saber, ser, adotar certas práticas. Diferente do que é enunciado, o crédito não é mero meio, mas um produto. E, como medicações, dependendo da forma e quantidade do seu uso, pode se tornar muito prejudicial. Então, pontuamos a necessidade de regulação específica, atenta à dimensão ética do que é proposto.
Palavras-chave: Publicidade; Crédito; Subjetividade; Dívida.
ABSTRACT
We present a research on credit advertising that discusses its effects on subjective constitution, in particular with regard to consumption and indebtedness practices. We analyzed 67 television commercials using two approaches: regulated adequacy by the Consumer Rights Code; and discourse analysis, associate with semiotic analysis. Most commercials could be qualified as misleading because there were suppressions - which leads to effects caused by unawareness. However, discursive and semiotic strategies to capture by persuasion, broadly used, seemed to us even more problematic because they generate positive effects: they create knowledge and ways of being, and make people adopt certain practices. Different from what is stated, credit is not a mere means, but a product. As medications, depending on form and amount of use, it can become very harmful. Thus, we pointed out the need for a specific regulation, attentive to the ethical dimension of what is proposed.
Keywords: Advertising; Credit; Subjectivity; Debt.
RESUMEN
Se presenta un estudio sobre la publicidad de crédito que discute sus efectos en la constitución subjetiva, en particular con respecto a las prácticas de consumo y endeudamiento. Analizamos 67 anuncios de televisión utilizando dos enfoques: adecuación de las disposiciones por el Código de Defensa del Consumidor y el análisis del discurso, articulado a la semiótica. La mayoría de las piezas las consideramos engañosas dada las supresiones - que conducen a efectos producidos por lo desconocimiento. Sin embargo, las estrategias discursivas y semióticas que capturan por la persuasión, muy utilizadas, nos parecieron aún más problemáticas ya que generan efectos positivos: hacen saber, ser y adoptar ciertas prácticas. Diferente de lo afirmado, el crédito no es simple medio, sino un producto. Y así como los medicamentos, dependiendo de la forma y la cantidad de su uso, puede llegar a ser muy perjudicial. Así, señalamos la necesidad de una regulación específica, atenta a la dimensión ética de lo que se propone.
Palabras clave: Publicidad; Crédito; Subjetividad; Deuda.
Introdução
Este artigo traz discussões sobre uma tecnologia que tem incidido de forma considerável na constituição subjetiva contemporânea, mas que carece de estudos no campo da psicologia. Apresenta uma análise crítica sobre o crédito considerado como operação financeira destinada a pessoas físicas, a partir de uma pesquisa empírica. O objetivo é conhecer e problematizar a difusão dessa operação por meio da publicidade.
Tecnologia econômica e moral (Nietzsche, 1998), o crédito configura-se hoje como um dispositivo ímpar no engendramento das práticas de consumo. Assim como na produção, no seio da atual sociedade de controle, do homem endividado (Lazzarato, 2012). Apesar de o crédito outros modos e condições de vida face ao acesso a bens e serviços, a banalização do mesmo está no cerne de fenômenos assaz problemáticos. Entre os quais o superendividamento, que não deve ser relacionado exclusivamente a consumistas irresponsáveis, sob pena de reforçar estereotipias.
Em consonância com a perspectiva ético-estética em psicologia social (Silva, 2003), concebemos que não existe um sujeito já-dado (possuidor de uma interioridade transcendental), mas um sujeito que se produz incessantemente a partir dos encontros com o outro, com o mundo. Ou, como propõe Foucault (1995; 2000b), engendrado como um efeito da complexa rede discursiva de seu tempo. Nesse sentido, considerar os jogos de saber-poder, que atravessam o tecido social, e as instâncias, que propõem e fazem circular posições e valores, é fundamental para se compreender o que estamos nos tornando e traçar linhas de fuga, abrindo espaços para outras formas de existir.
O consumo perpassa a vida do sujeito contemporâneo de tal maneira que diferentes pensadores partem dele para caracterizar a sociedade. Sociedade de consumo (Baudrillard, 2010), cultura do consumo (Featherstone, 1995), sociedade de consumidores (Bauman, 2008), são nomeações que, já há alguns anos, apontam a posição crucial do consumo. A despeito das especificidades das análises de nossa condição sócio-culturais conduzidas por esses pensadores, que não podem ser tomadas como redundantes, alguns pontos básicos que as atravessam não deixam de ser referidos por quem discute o tema a partir dos seus textos seminais.
Desde o final do século XIX, o consumo está centrado no simbólico, no imaterial (Atem, 2011). Nesse sentido, a profusão de imagens e a centralidade da comunicação são elementos fundamentais para a atualização da cultura do consumo (T. C. Santos, 2012). Ao mesmo tempo, uma vez que a modernidade, ao implodir as afiliações tradicionais, impôs ao indivíduo a tarefa de criar a si mesmo, o consumo se prestou e acabou se consolidando como o lugar por excelência dessa construção (Rocha, 2005).
A publicidade constitui-se como um dos impulsionadores basais da cultura do consumo. Baudrillard (2010) sustenta que os objetos de consumo contemporâneos são produzidos em função de sua morte, ou seja, são pensados em termos de sua descartabilidade, tendo como horizonte a renovação da demanda. A publicidade, então, diz esse autor, "realiza o prodígio de um orçamento considerável gasto com o único fim, não de acrescentar, mas de tirar o valor de uso dos objetos, de diminuir o seu valor/tempo, sujeitando-se ao valor/moda e à renovação acelerada" (Baudrillard, 2010, p. 45). Desse modo, a publicidade constitui um território ímpar para a promoção incessante de produtos e marcas, e representa uma ferramenta vital na produção de desejos de e para consumos (Burrowes, 2005).
A partir de uma sucessão ininterrupta de comerciais de televisão, material de análise deste artigo, produzem-se desejos das mais diversas ordens, supostamente realizáveis através do contínuo fruir - e fluir - dos objetos. Entre eles, o desejo de identificação e, ao mesmo tempo, de diferenciação, desejo de experiências e novidades, desejo de melhor custo-benefício. A publicidade trabalha tecendo uma fantástica rede de significações em torno dos produtos, incitando a todos, indistintamente, a consumir, independente da posse de recursos. Funciona como uma rede que age, precisamente, criando a demanda do consumidor, motor da sociedade de consumo: é "nossa habilidade de 'querer', 'desejar' e ansiar por alguma coisa" (Campbell, 2006, p. 48) que a sustenta.
Poder-se-ia conjecturar que produzir constantemente desejos em um grande público que não tem meios financeiros para satisfazê-los, seria contraproducente, um desperdício. Porém, observa-se cada vez mais, em associação à divulgação publicitária dos vários produtos e serviços, a oferta de alternativas de pagamento, para viabilizar a aquisição desses bens. Cartões de crédito (de bandeiras mundiais ou locais), carnês, financiamento pessoal, cheque especial, dentre outros, apesar de referidos a modos de operação diversos, são ferramentas orientadas pelo mesmo conceito: o crédito.
O crédito potencializa o poder de compra e "opera como catalisador do processo de crescimento econômico" (Martins & Ferraz, 2011, p. 270). No entanto, o que é óbvio, mas não evidente para todos, é que a concessão de crédito não potencializa a renda, o poder de pagamento efetivo. No Brasil, mormente a partir de 2004, observa-se uma expansão sem precedentes da oferta de crédito. Contudo, segundo Porto (2012), a oferta maciça de crédito não se acompanha de uma elevação significativa e global nos rendimentos da população. Dados levantados pelo autor mostram que entre 2004 e 2012, enquanto o volume de transações de crédito pessoal aumentou 500%, a renda média no Brasil só cresceu 30% - o que confere à questão do endividamento novos contornos.
O endividamento das famílias brasileiras tem sido superior aos 60% nos últimos anos (Confederação Nacional do Comércio, 2014). Além disso, o campo do direito, que se depara diuturnamente com o problema, tem trazido à luz o crescimento do superendividamento do consumidor. Descrito como a "impossibilidade global de o devedor pessoa física, consumidor, leigo e de boa-fé, pagar todas as suas dívidas atuais e futuras de consumo" (Marques, 2006, p. 256), que eclode frequentemente associada aos chamados acidentes de vida (doença, perda de emprego, separações, etc.), esse fenômeno se torna preocupante em nosso país. Sendo assim, chama a atenção de pesquisadores de todo o mundo.
As pesquisas sobre o tema apontam uma relação entre o superendividamento e diversas condições de mal-estar psíquico e saúde física dos sujeitos. Observam-se relações sociais e com os filhos afetadas por sentimentos de culpa e vergonha e o uso, comum nesses casos, de expedientes diversionistas para camuflar o problema (Frade & Magalhães, 2006). Igualmente, registram-se ansiedade, depressão, insônia, sentimento de impotência, além de culpa e/ou vergonha, relatados pela grande maioria (Hennigen & Borges, 2014). Nota-se maior incidência de pressão alta em pessoas que possuem dívidas significativas (Sweet, Nandi, Adam, & McDade, 2013). Também, o sobrepeso/obesidade correlaciona-se diretamente com o problema (Münster, Rüger, Ochsmann, Letzel, & Toschke, 2009).
No Brasil, os operadores do direito, como desembargadores, juízes e advogados que atuam neste âmbito, refletem sobre o tema e apontam uma conexão entre o incremento do superendividamento e as estratégias cada vez mais agressivas da publicidade que promove o crédito. Gaulia (2009) afirma que "o crédito tem no marketing um aliado poderoso que alicia e seduz a todos" (p. 104). Cavallazzi (2006) sublinha que as instituições financeiras, ao adotar práticas abusivas na publicidade, acabam se aproveitando da fragilidade de consumidores, mormente os premidos pelos acidentes de vida, para vender seu produto. Por isso, Marques (2010) defende a regulação da publicidade como uma estratégia que poderia contribuir para a prevenção do superendividamento.
No campo legal, o principal suporte para analisar a publicidade é o Código de Defesa do Consumidor (CDC - Brasil, 2010), que, no artigo 37 tipifica e proíbe duas formas de publicidade infringentes: a enganosa, "qualquer modalidade de informação ou comunicação de caráter publicitário, inteira ou parcialmente falsa, ou, por qualquer outro modo, mesmo por omissão, capaz de induzir em erro o consumidor"; e a abusiva, aquela que pode estimular o consumidor a se comportar "de forma prejudicial ou perigosa a sua saúde ou segurança" (Brasil, 2010, p. 28). A publicidade é enganosa por comissão se "o fornecedor afirma algo capaz de induzir o consumidor em erro" ou por omissão se "o anunciante deixa de afirmar algo relevante" (Benjamin, 2009, p. 205) que também induz o consumidor em erro.
A publicidade, campo de práticas significativa para a nossa produção subjetiva por suas estratégias, tecnologias e onipresença no contemporâneo, tem sido objeto de discussão na esfera acadêmica. Contudo são relativamente poucas as pesquisas que se debruçam sobre peças publicitárias de sorte a analisar discursos e estratégias que, conjugados, engendrando efeitos na subjetividade. E são escassas as que se propõem a abordar o crédito. Assim, face à relevância de todas estas questões e entendendo que, para buscar uma aproximação dos efeitos subjetivos da publicidade do crédito e, eventualmente, propor regulações pertinentes, é fundamental conhecer o que nela está sendo veiculado e a partir de quais estratégias, realizamos a pesquisa intitulada Publicidade do crédito: que práticas de consumo e endividamento são incitadas? Seu objetivo foi analisar a produção discursiva da publicidade do crédito visando conhecer seus efeitos no processo de subjetivação no contemporâneo. Rodrigues (2005) aponta a "opção antipositivista" da Análise Institucional que "prefere os efeitos às leis", pois "os efeitos estão invariavelmente ligados à preservação, deliberada ou involuntária, de determinadas condições de efetuação. Efeitos são contingências repetidas ou reforçadas, e não legalidades universais às quais estejamos, sem escapatória, sujeitados" (p. 84). Assim, lançamos mão da expressão efeitos por buscar conhecer e entender como certas condições (no caso, postas pela publicidade do crédito) impactam sobre quem somos hoje, sobre nossas práticas de consumo.
Método
Definimos como publicidade do crédito as diferentes formas empregadas por instituições comerciais ou financeiras, de divulgação de produtos e/ou serviços que fazem alguma referência à concessão de crédito ao consumidor. Assim, o corpus de investigação abrangeu três tipos de materiais: comerciais para televisão, anúncios em jornal e folders/folhetos distribuídos em estabelecimentos que operam com crédito. Duas abordagens analíticas foram empregadas: exame da adequação ou não das peças publicitárias com o que é preconizado pelo CDC sobre enganosidade e abusividade, e análise discursiva (Foucault, 2000a, 2000b), articulada à semiótica (Santaella & Nöth, 2010), no caso dos comerciais, pois esses envolvem imagem, som e movimento.
Neste artigo, trabalhamos a partir de um recorte da citada pesquisa, apresentando resultados concernentes à análise de parte dos materiais: as peças publicitárias veiculadas na televisão. A programação da Rede Globo de Televisão foi gravada em dois períodos (primeira semana de dezembro de 2010 e de março de 2011) e horários diferentes (entre 12h e 14h e entre 20h e 22h); todos os comerciais que atendiam à nossa definição operacional foram extraídos, totalizando 67 peças publicitárias. Optamos por uma rede de televisão aberta - e, na época, com a maior audiência no país - por entender que teríamos uma gama mais ampla de peças publicitárias (não segmentadas, como se verifica na TV a cabo); por outro lado, elegemos horários no entorno da programação jornalística por conjecturar que, por se endereçar a público adulto, seria potencialmente propício para a veiculação do tipo de publicidade que nos interessava. A proposta é focalizar a primeira abordagem analítica, isto é, a adequação das peças publicitárias televisivas ao preconizados pelo CDC. Tal análise, contudo, não se fez desarticulada da análise discursiva e semiótica, pois essas análises ofereceram subsídios para a identificação de uma peça como enganosa ou abusiva. Isto porque, mais do que elementos direta e globalmente desviantes, o que encontramos foram peças publicitárias que, a partir da composição estratégica de elementos discursivos e sígnicos, acabavam burlando alguns aspectos que a legislação estabelece, como apontamos adiante nas análises.
A sistematização do material mostrou-se crucial para a sua análise, tendo em vista seu volume. Para tanto, tomamos como referência a pesquisa de L. H. S. Santos (2002), que analisou material audiovisual igualmente, e o trabalho de Santaella e Nöth (2010) sobre as estratégias semióticas da publicidade. Após assistir o conjunto dos comerciais algumas vezes, elaboramos um quadro com oito colunas, cada qual abarcando um aspecto identificado como relevante. Sete deles eram mais descritivos: anunciante, síntese do comercial, trilha sonora, transcrição do texto falado, transcrição do texto escrito, imagens e elementos sígnicos de destaque, e tipo de publicidade. O oitavo aspecto do quadro era mais analítico e dizia respeito à composição discursiva, às ideias veiculadas no comercial (o quê estava sendo enunciado e como); quando da elaboração desse tópico, marcávamos nas outras colunas os elementos que nos levavam a tais análises/interpretações. Em um trabalho de leitura transversal do quadro foi possível identificar o que chamamos de "rastros dos enunciados" - e suas relações e (in)adequações com o disposto no CDC.
A partir de tal mapeamento da rede enunciativa, certas questões se mostraram salientes no que concernia à produção, ao incitamento publicitário de práticas de consumo e endividamento. Então, para dar sustentação à problematização do que passamos a denominar estratégias de atendimento-tensionamento quanto ao CDC, realizamos uma nova leitura analítica transversal de sorte a identificar peças publicitárias que abarcavam vários pontos pertinentes a essa discussão.
Resultados e Discussões
Não foi nosso objetivo quantificar a incidência de enganosidade e/ou abusividade na publicidade do crédito. Consideramos mais pertinente dar visibilidade e discutir os ditos, recursos e/ou artifícios que, postos intencionalmente ou não, contribuem para uma comunicação publicitária que, de modo mais ou menos direto e pontual, se choca contra o preconizado no CDC. Assim, por um lado, em vez de oferecer informações essenciais claras e precisas, tal publicidade acaba por lançar toda uma trama discursiva e uma névoa sobre o produto crédito, podendo induzir o consumidor ao erro. "É considerado essencial aquele dado que tem o poder de fazer com que o consumidor não materialize o negócio de consumo, caso o conheça" (Benjamin, 2009, p. 209). Por outro lado, ao promover certo tipo de contratação de crédito, estimula no consumidor a adoção de uma posição que poderá vir a ser prejudicial para ele.
A maior parte dos comerciais que analisamos trazia a apresentação de produtos à venda - e do crédito como um meio ou alternativa de pagamento; os demais comerciais promoviam alguma marca já associada ou que buscava se associar à concessão de crédito. Apesar de, muitas vezes, o crédito figurar como uma espécie de protagonista (o parcelamento sendo apresentado como um grande atrativo), as informações sobre sua contratação ficavam esmaecidas, dúbias e/ou eram insuficientes. A exibição do crédito como um meio apresentado como vantajoso faz desaparecer sua condição de produto que também se adquire.
Em certos comerciais verificamos a omissão de informações essenciais, noutros, constatamos a conjugação de algo dito e algo omitido que potencialmente induz ao erro - o que possibilita sua qualificação direta como publicidade enganosa por omissão e por comissão. Contudo, bem mais frequente foi a presença do que denominamos estratégias de atendimento-tensionamento quanto ao CDC, ou seja, estratégias que parecem ser empregadas para contemplar, mas só pro forma, o dever de informação: uso de letras miúdas e/ou apresentação de grandes blocos de informações com ressalvas ou condições específicas por período de tempo exíguo, impedindo a leitura completa, e discrepância entre o que está escrito e o que se diz no comercial. Nesses casos, entre os quais se encontra a grande maioria dos comerciais, entendemos que existe enganosidade, pois, apesar da informação constar, o acesso efetivo ao que estava sendo informado (o que visa garantir o CDC), em condições normais de audiência, ou era parcial ou restava praticamente nulo. Afinal, consumidores não assistem peças publicitárias em modo slow motion ou em telas de cinema - pois só assim talvez acessassem as informação que deveria servir para lhes bem esclarecer sobre os produtos e/ou serviços divulgados.
Benjamin (2009) esclarece que não existe um standard de enganosidade, essa pode ser potencial e não tem a ver, necessariamente, com o conceito de falsidade; se uma publicidade adotar um esquema que faça o consumidor entender mal o que está sendo apresentado, isto é, capaz de induzi-lo ao erro, ela é enganosa. Nesse sentido, "alegações ambíguas, parcialmente verdadeiras ou até literalmente verdadeiras podem ser enganosas; o silêncio - como ausência de informação positiva - pode ser enganoso" (Benjamin, 2009, p. 205). Assim, a publicidade, ao sistematicamente suprimir informações, contribui para a constituição de um sujeito consumidor que desconhece as condições de contratação de crédito, aspecto que guarda semelhança com o que Bragaglia (2013) identifica como enganosidade quanto ao apelo racional ou informativo (p. 119). Trata-se de um aspecto importante, sem dúvida nenhuma. Entretanto, outra questão, a que diz respeito às estratégias de captura via persuasão, nos parece bem mais significativa. Através de toda uma rede discursiva e sígnica, a publicidade do crédito propõe posições, valores, significações para o consumo e para o crédito, como, por exemplo, a ideia de que o parcelamento do pagamento (de toda e qualquer compra) traz, em si, uma vantagem. Enganosidade quanto ao apelo emocional, diria Bragaglia (2013). Preferimos dizer, a partir do que Foucault (1995) coloca sobre a positividade das relações de poder, que aí temos efeitos (pro)positivos sobre os sujeitos consumidores: a publicidade veicula enunciados que fazem saber (em oposição ao desconhecimento apontado acima), ser e adotar certas práticas. Vejamos, a partir de algumas peças do corpus da nossa pesquisa, como tudo isso se articula e opera.
O comercial da Volkswagen começa em um espaço branco onde estão dois carros vermelhos, um da marca e outro com imagem irreconhecível (pelo uso de técnica que aumenta os pixels para este fim). Um homem explica as vantagens de comprar um Volkswagen: na hora de revender, esse teria maior valor, comparado a outras marcas. Após tal introdução narrativa, um rock de fundo inicia a multiplicação de estímulos no vídeo: primeiro um Gol e depois um SpaceFox percorrem um ambiente urbano enquanto o locutor e o texto na tela, ambos com ritmo acelerado, descrevem as condições para aquisição dos modelos. No caso do SpaceFox, o texto escrito, que passa a ocupar a metade direita da tela, traz, em linhas diferentes: SpaceFox 1.6, Linha 2012, COMPLETO1, Com versões (o menor tamanho de letra), por apenas (letra igual à anterior), R$ 46.990 (o maior tamanho de letra e em cor azul que se destaca sobre o fundo preto), TAXA ZERO (o segundo maior tamanho de letra). Durante a locução de parte dessas informações, elas são ampliadas, projetando-se em direção ao espectador - mas não entram na locução "Com versões". No rodapé se lê: Entrada de R$ 28.194 e 18 meses de R$ 1.133.
Em nenhum momento é apresentado o custo total do automóvel, para aquisição se oferece o crédito. Assim, por não trazer informação essencial, pode-se dizer que essa publicidade é enganosa por omissão. Também podemos qualificá-la como enganosa por comissão devido a uma composição de informações que induz o consumidor ao erro. Quando são oferecidos, em destaque, um preço e taxa zero, o espectador é levado a crer que, pagando em parcelas, ao fim das prestações irá pagar o valor total anunciado. Contudo, calculando a partir dos dados fornecidos, temos uma diferença a maior de R$ 1.598, 3,4% sobre o preço anunciado. Pode-se imaginar que essa diferença se refira ao valor relativo à abertura de linha de crédito. Contudo, a lei 8.979 (Brasil, 1995) é bem clara quando diz que, quando da venda à prestação, inclusive em sua publicidade, todos os encargos financeiros devem ser informados. E parece se tratar de omissão corrente nesse setor, pois também a encontramos nos comerciais da Nissan e Renault.
Outro elemento a ser registrado é a discrepância entre o texto falado e o escrito. Enquanto esse último enfatiza certas características do carro e da operação da compra, ofuscando outras a partir da composição de letra/cor/projeção na tela, o falado subtrai totalmente informação pouco interessante à persuasão: o fato de que o preço anunciado só se aplica a determinadas versões do veículo. Artifício empregado igualmente em outras peças publicitárias. Em um comercial da rede Carrefour, anuncia-se uma grande operação de vendas, com "centenas de TV's, Tablets e Notebooks". Na miúda nota de rodapé, contudo, lê-se: 3 unidades por loja. Nesse caso, entendemos que objetiva-se produzir demanda a partir de um imaginário de abundância de produtos - que, no entanto, não guarda correspondência com a oferta real da empresa, servindo apenas para direcionar o consumidor à loja para conferir o "grande evento" anunciado. A ideia de centenas aparelhos pode gerar, no consumidor que não os possui, um sentimento de carência e exclusão, impulsionando-o à loja e à compra, de forma a participar do rol daqueles que usufruem o que tais produtos podem proporcionar.
O que denominamos mote da taxa zero (qualquer referência a juro zero, sem juros ou equivalente), apesar de não estar em destaque no comercial em discussão, é fundamental na sua composição. É ele que permite que se entenda erroneamente o preço anunciado como o único à vista ou a prazo. Importante assinalarmos um aspecto fundamental na produção discursiva da ideia de parcelamento como vantagem, ideia que atravessa a publicidade do crédito e decorre, em geral, do mote da taxa zero. Quando presente, o mote taxa zero parece decretar que nada mais é preciso dizer sobre as condições da operação financeira.
Na trama discursiva da publicidade que visa capturar o consumidor, a pressão do tempo articulada à ideia de oferta ou promoção, no sentido de oportunidade de bom negócio, assume diversas roupagens. No comercial em análise, após um início narrativo que busca convencer que comprar um Volkswagen é um bom negócio até na hora de revender, o ritmo passa a ser rápido e, quando da apresentação do SpaceFox, as expressões "COMPLETO" e "por apenas" são destacadas junto ao mote da taxa zero e do valor. Composição que visa ratificar a ideia de que o consumidor realizará uma compra indubitavelmente vantajosa sob as condições que se apresentam. Isso o incita, impulsiona a não perder a oportunidade. Por fim, certos recursos visuais utilizados podem ser compreendidos como elementos que passam a naturalizar (isto é, reiterar de forma a fazer algo afigurar-se como natural) do que deve, segundo o anunciante, chegar ao consumidor. Através de ferramentas de realce e movimento, as informações destacadas criam, juntamente com o texto falado, planos de leitura. Certos elementos são enfatizados para que a oferta seja considerada imperdível. Se os analisarmos, veremos que não falam do produto sob as mesmas condições (versões do carro e forma de pagamento), são apenas recortes de situações mais vantajosas. Já as informações que poderiam embasar e dar sentido real a tudo o que é anunciado acabam sendo invisibilizadas e/ou colocadas em segundo plano via jogo de elementos semióticos. Elementos esses que assumem relevância maior no comercial que trazemos agora à discussão.
Atravessando e ocupando quase toda a tela, surge rapidamente uma seta vermelha, dentro da qual se lê INVASÃO CASSOL, o que também se escuta. Em um ritmo bem rápido, marcado pela batida musical de fundo, locutor e texto anunciam: GARANTIA DE MENOR PREÇO; A maior operação de vendas do Brasil (garantia e maior operação se ampliam e projetam quando citadas). O locutor diz: aproveite a semana dos eletroportáteis e deixe sua casa pronta para o fim de ano. A grande seta vermelha, que marca a transição dos quadros iniciais, aparece menor quando são anunciados três produtos e a apresentação verbal de seus valores de venda é precedida, respectivamente, pelas palavras somente, apenas e só. Outra seta aponta a expressão Leve agora!, que figura nesses quadros. No quadro seguinte, um leque aberto de cartões de crédito de várias bandeiras aparece enquanto locutor e texto comunicam: "toda a loja em 6 vezes sem juros em todos os cartões". Uma série de imagens de outros produtos passa em ritmo mais acelerado ainda, quase quadro a quadro. O fecho do comercial traz um texto de cinco linhas em letras muito miúdas que fica no ar por três segundos. Nesse comercial, som, ritmo, expressões, recursos visuais são utilizados de maneira incisiva, invadindo o espaço de atenção do consumidor por meio minuto. Quase um motim, como se tivesse havido uma insurreição dos preços baixos, a Cassol passa a ideia de urgência, de tempo se esgotando, de uma oportunidade imperdível para fazer um bom negócio. A seta, signo onipresente que parece querer sintetizar a urgência e uma direção a seguir, transpassa a tela, convoca o consumidor, aponta ofertas, mostra o caminho. Produção de ansiedade, pelo ritmo acelerado, pela casa ser dita deficitária (pois não estaria pronta para o fim de ano) - e indicação de solução: tudo pode ser pago em 6x sem juros em todos os cartões.
A aceleração do tempo tem sido apontada como um vetor da subjetivação no contemporâneo, balizando nossos modos de viver e trabalhar (Frezza, Grisci, & Kessler, 2009) e nos legando a sensação de que ele é insuficiente face ao que "deve" ser feito e "conquistado". Como hoje os parâmetros do que ser e conquistar são, em grande medida, inespecífico e fluído, pode-se dizer que se tem um campo propício para a eclosão de manifestações de angústia (Besset, 2001). Pensamos que a publicidade, ao lançar mão de artifícios como os apontados acima, tem trabalhado na produção de peças que angustiam - de sorte a persuadir o consumidor a adquirir produtos que seriam os aplacadores dessa angústia (mas sempre provisórios, pois logo devem ser descartados e substituídos).
Em função da impossibilidade de leitura do texto que fecha o comercial (traria exceções às condições?), da afirmação de garantia de menor preço (em tudo?), esse comercial pode ser qualificado formalmente como enganoso. Contudo, como enganosidade remete à produção de ideia que leva a crer em algo que pode induzir a erro de julgamento, e abusividade à assunção de comportamento prejudicial, é fundamental estender a problematização focalizando o que é dito sobre condições de pagamento. Para tanto, trazemos à discussão outro comercial de modo a enrobustecer argumentos.
Jovens sorridentes se dirigem a um estúdio de gravação; lá cantarolam uma música cujo refrão é "que tempo bom", o logo das Lojas Renner aparece, no início, como grande marca d'água que atravessa a tela e depois sólido e fixo no canto superior. Alternam-se cenas com as jovens cantando o refrão e outras ornadas com elementos natalinos: uma menina percorre com o dedo as letras da expressão "com muita luz"; um casal manipula quadros na forma das palavras "com" e "amor"; um casal abraça um menino tendo a suas costas um quadro negro escolar onde se lê "com meus pais"; duas adolescentes se abraçam - atrás um muro onde letras coloridas compõem a expressão "com amigas". A cena final fixa o grupo cantando e a frase se completa: "que tempo bom, com 60 pra pagar". Aparece um retângulo rebuscado onde se lê, uma abaixo da outra, as expressões: 1º pgto., 60 (tamanho muito grande), DIAS, NO CARTÃO, RENNER, ATÉ 18/12. Há ali ainda uma nota de rodapé (letras miúdas, 3 segundos no ar, na qual se lê que a condição vale para compras no cartão Renner e o período de abrangência). A locução final diz: Feliz Natal Renner, com 60 dias para começar a pagar.
Esse comercial parece só promover a marca Renner, pois, a princípio, não divulga produtos à venda na rede. Fala sobre um "tempo bom", que seria o do Natal. A partir do uso estratégico da preposição "com", esse tempo bom (com muita luz, amor, etc.) encontra seu fecho, efetivamente se realiza na expressão "com 60 para pagar". Em operação que remete à contiguidade indexical (Santaella e Nöth, 2010), se veicula a ideia de pagamento postergado e parcelado (se lê 1º pgto e se escuta ao final que é para começar a pagar), propiciado pela rede, como algo tão bom quanto os outros aspectos - ou até aquilo que garantiria os outros, haja vista sua posição de epílogo da música e da peça publicitária. Discursividade que mostra o crédito como algo realmente bom, uma vantagem oferecida ao consumidor. Contudo, ter acesso a ele implica comprar com o cartão de crédito da rede, que está sendo vendido associado à promoção da marca. Só que nada é dito sobre condições para tê-lo e usá-lo, para o primeiro e demais pagamentos; além disso, quem não lê o texto desconhece que condição é exclusiva para compras no cartão da rede - aspectos que podem levar a engano.
Nesse comercial, como na grande maioria dos analisados na pesquisa, o crédito não aparece como um produto. E o fato de ser um produto implica certas condições para sua aquisição/uso e, em regra, um custo. Ele é referido como mero meio que propicia a compra de produtos. E assim, não raro, nada é dito sobre as condições para sua contratação. Isso ocorre, em especial, em duas situações: quando o crédito assume a forma de cartão de crédito e/ou quando é lançado o mote da taxa zero. Em ambas as situações parece que quaisquer outras informações são prescindíveis.
No caso do cartão de crédito é como se sua posse e plena ciência sobre o uso nas diferentes modalidades fosse algo de domínio de todos os públicos, e como se não existissem condições variadas conforme seu tipo/bandeira. Naturaliza-se a operação. O cartão de crédito é apresentado como a forma de pagamento daquilo que se compra; poder-se-ia (em tese; até o limite do cartão) adquirir tudo sem necessidade de dinheiro vivo. Institui-se, desse modo, uma prática de consumo - consome-se a despeito da posse imediata de recursos - o que leva a uma prática de endividamento. Dívida(s) que pode(m) ser quitada(s) na primeira fatura. Ou não - o que parece acontecer frequentemente. Segundo pesquisa da Confederação Nacional do Comércio (2014), o cartão de crédito respondeu por quase 75% das dívidas das famílias brasileiras em março de 2014 (percentual que se mantém há algum tempo).
Conjeturamos que o mote da taxa zero contribui consideravelmente para tal quadro. Quando ele figura na publicidade, demais encargos, mesmo existentes, não são referidos, como no comercial da Volkswagen. Contudo, em casos como o do comercial da Cassol, fora o eventual custo do cartão, parece não haver outros encargos. Então, parcelar sem juros seria realmente uma vantagem? Ainda mais em um país como o Brasil, onde se praticam altíssimas taxas de juros se comparadas com as europeias e mesmo latino-americanas (Proteste, 2014)? O mote da taxa zero na publicidade quer justamente levar a crer que parcelar sem juros é sempre vantajoso e, assim, impulsionar ainda mais o consumo.
Ariely (2008) mostra, a partir de uma série de estudos, o quanto somos suscetíveis a fazer negócio quando há menção de custo zero. Isso acontece porque acreditamos que não haverá nenhuma perda, só ganho. Relevante apontar que, muitas vezes, a condição "sem juros" só vale para compras no cartão do próprio estabelecimento, o que incita o consumidor a demandá-lo ou aceitá-lo para obter tal "vantagem". Face à explosão da oferta de cartões de crédito, o resultado é um consumidor que vai comprando, aproveitando "ofertas imperdíveis" até os limites fixados (a partir da renda, mas nunca para o conjunto de cartões que possui). É somente dele a responsabilidade de fazer cálculos. Mas como fazê-los, se há toda uma engrenagem (cultural, publicitária, econômica) que o impulsiona e incita a comprar? Um resultado objetivo é a prática do pagamento do valor mínimo da fatura - que leva a um endividamento cada vez mais difícil de ser contornado, pois nesta operação a taxa de juros cobrada é altíssima, muito superior a outros países (Proteste, 2014).
Segundo Bauman (2010), na ótica de bancos e empresas de cartões de crédito, a ausência de débitos é absolutamente desinteressante, pois é justamente o serviço da dívida que gera os maiores lucros. Ele diz que os credores modernos - "benevolentes" e engenhosos - não querem reaver seu dinheiro na íntegra imediatamente; ao contrário, oferecem mais crédito para que os consumidores possam fazer frente às antigas dívidas e ainda um dinheiro extra para novas aquisições. Para o autor, na ótica desse ramo de negócio, o devedor ideal é quem jamais paga integralmente suas dívidas. Assim, toda uma trama discursiva é tecida pela publicidade de sorte a incitar o consumo do crédito, chegando a enunciados que parecem paradoxais, como o que é dito no comercial da rede Ponto Frio, que passamos a descrever.
Ocupando toda a metade superior da tela está escrito (e se escuta): 14x MAIS ECONOMIA; abaixo, uma faixa com imagens tomadas nas lojas e mais abaixo o nome e logo da marca. A seguir, na mesma montagem, a expressão é substituída por 14X SEM JUROS e se escuta: Ponto Frio em até 14 vezes sem juros. Na sequência, dois produtos são anunciados com preço a vista (notas, em letras miúdas que passam muito rápido, informam que tal condição é válida para compras no cartão da rede). Entre eles, volta a montagem com a expressão 14x SEM JUROS e depois outra equivalente em que se lê: MAIS BARATO; o locutor diz: nada de juros, tudo mais barato. O comercial fecha com a mesma composição imagética e textual do início, com o locutor dizendo: Só o Ponto Frio é 14 vezes mais economia.
Em relação a esse comercial não nos interessa pontuar os aspectos formais que podem qualificá-lo como enganoso, mas problematizar o que ali se enuncia: que a prática de consumir lançando mão do crédito, parcelando valores, é algo muito vantajoso, é uma forma de economizar; que comprar com "nada de juros" torna "tudo mais barato". Mais, essa publicidade, ao fazer escutar, em sequência, "14x mais economia, Ponto Frio em até 14 vezes sem juros" propõe que a economia seria diretamente proporcional ao número de parcelas. O mote da taxa zero é usado para compor o argumento: à atraente ideia de custo zero se somaria ganho adicional: ainda se faria economia. Incentivo à assunção de um endividamento que se prolonga no tempo. Mas dívida que, mesmo paga na íntegra a cada fatura, não iria, de fato, representar economia, pois o consumidor não pagaria menos pelo produto, só não faria pagamento total no ato da compra.
Talvez o que possibilita tal articulação discursiva seja a ideia, muito difundida e já discutida acima, de bom negócio, de oferta imperdível que pressiona a "levar agora". Ela faz crer que se o consumidor aguardar para comprar quando tiver o valor integral, ele perde a "oportunidade" de comprar já e "por menos". Então, só aparente paradoxo da publicidade: ela diminui o valor/tempo dos objetos, decretando sua renovação acelerada (Baudrillard, 2010), pressiona à presentificação do consumo - e projeta em um tempo futuro, quanto mais longo melhor, o pagamento.
Mais consumo agora e um contínuo endividamento, pois esse também acaba renovável de modo acelerado. Práticas que têm consequências importantes: em março de 2014, 20.8% das famílias brasileiras relataram possuir contas em atraso e 7,1% afirmaram não ter condições para pagar (Confederação Nacional do Comércio, 2014). Um percentual significativo da população que, talvez atraído por toda uma discursividade sobre consumo e crédito está constatando que maior poder de consumo, via crédito, não significa, de modo algum, majoração da renda, mas mais dívidas a administrar e/ou quitar. Benjamin (2009) enfatiza que o dever da publicidade de informar bem, de forma a não induzir em erro, se estende a todo consumidor, mesmo "aquele outro que seja ignorante, desinformado e crédulo" (p. 206). E afirma que "para a proteção efetiva do consumidor não é suficiente o mero controle da enganosidade e abusividade da informação. Faz-se necessário que o fornecedor cumpra seu dever de informação positiva" (p. 190).
Nos últimos anos, no Brasil, se processou a bancarização de parcela significativa da população, que passou a ter acesso ao crédito (Gaulia, 2009). Pessoas que, é pertinente conjeturarmos, não dominam as operações financeiras com cartão de crédito. Assim, entendemos que a ausência de informações quando da promoção dessa modalidade de crédito - ainda mais quando associada ao mote da taxa zero - pode, sim, induzir ao erro. E não só para consumidores, em tese, menos instruídos: todos nós somos sensíveis, capturáveis por jogos discursivos que acenam com vantagens. Tal questão é tão crucial que o projeto de lei de reforma do CDC, que tramita no legislativo brasileiro, propõe vedar a oferta publicitária que faça referência a crédito "sem juros", com "taxa zero" ou expressão semelhante. Sua intenção é ser instrumento de prevenção e indicar formas de tratamento de situações de superendividamento. Nesse sentido, também quer proibir publicidade que indica que a concessão de crédito poderá ser realizada sem consulta a serviços de proteção ao crédito (El Kadri, 2013). Segundo esses critérios, o comercial abaixo não poderia ser veiculado.
Um cachorro dorme no centro azul da tela; despertado por uma luz - que desponta no canto da tela emulando raios solares -, levanta e a segue. Aparecem as expressões SERVIDOR PÚBLICO, APOSENTADO e PENSIONISTA, que ocupam quase toda a tela (o cão as fita); o locutor as cita e continua: na Crefisa é assim, você faz o seu empréstimo mesmo se estiver negativado. O animal se desloca e aparecem, a sua frente, as expressões DINHEIRO MESMO NEGATIVADO. Mais um deslocamento e ele se posta diante das expressões SUJEITO À ANÁLISE DE CRÉDITO e CONTRATE COM RESPONSABILIDADE, que são somente expostas, sem narração. Deslizando pelo cenário azul, o cão encontra as expressões DINHEIRO EM 24 HORAS APÓS ANÁLISE. O locutor indica números de telefone para informações e completa: a Crefisa não faz consignado. O logo da Crefisa (que traz uma composição que lembra um pequeno sol) assume o centro da tela. O comercial tem um público-alvo específico: não qualquer servidor público, pensionista ou aposentado, mas aqueles que estão negativados. Isto é, que têm dívidas que não conseguiram quitar e, por isso, figuram nos cadastros de inadimplentes. Consumidores que, a rigor, não deveriam ser incitados a contrair mais dívidas, pois se encontram em uma posição, é pertinente supor, de maior vulnerabilidade.
É abusiva a publicidade que estimula o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança. Cabe, então, questionar: será que mais crédito - mais dívidas - é benéfico ou prejudicial para quem está endividado e inadimplente? Na introdução deste artigo apresentamos pesquisas que mostram efeitos danosos da situação de (super)endividamento na saúde dos sujeitos. Portanto, entendemos que peças publicitárias como essa podem ser qualificadas como abusivas, pois, ao contrário de ser um "sol" que pode iluminar o caminho de quem está negativado, mais crédito não surge como solução - pode ser degrau perigoso para uma queda bem maior. E é refletindo sobre esse lugar de expediente a ser usado para bem encaminhar o desejado que fazemos o enlace final das discussões. O comercial da Paquetá serve precisamente a tal propósito.
Um jovem ator famoso, em ambiente com decoração natalina, se dirige ao espectador: Lembra aquelas cartas que você escrevia pro Papai Noel? Aquelas cartas cheias de pedidos de presente... Agora você precisa mesmo é de um cartão. O rapaz sorri e exibe o cartão da rede Paquetá. Alguns produtos são mostrados, mas sem indicação de preços; durante a exibição dos dois últimos, aparece escrito, ao lado da imagem do cartão: 60 dias para o 1º pagamento (o número 60 é muito grande). Volta o ator, que fala: Então escreva sua cartinha de Natal. Mas, pra garantir, não esqueça do cartão Paquetá.
Na antiga tragédia grega, quando um problema aparentemente insolúvel se colocava em cena, autores como Eurípides usavam um artifício dramático nomeado deus ex machina (Castiajo, 2012). Com o auxílio de uma máquina, surgia no palco a figura de um Deus, que, com seus poderes, resolvia instantaneamente o conflito. Recurso cênico desde muito contestado - Aristóteles (2007) já recomendava: "o desenlace das fábulas deve sair da própria fábula" (p. 23).
A despeito de advertências como essa, tal artifício parece estar sendo atualizado no contemporâneo pela publicidade, que faz do crédito espécie de deus ex machina. No comercial da Paquetá, cartas escritas para Papai Noel devem ser substituídas pelo cartão de crédito: infantilização e magia recobrem a operação financeira. Evidente que mesmo o consumidor mais crédulo não vai mandar sua fatura para a Lapônia. Não se trata desse tipo de indução ao erro que buscamos apontar. Mas sim os efeitos de toda uma discursividade - tecida com imagens, palavras, cores, ritmos, proposições - que faz crer (erroneamente) que, para um dos conflitos mais insolúveis do drama contemporâneo, a saber, a equação (in)disponibilidade de dinheiro versus o que (há que se) consumir, basta chamar à cena o "deus-crédito" que tudo se resolve.
Considerações finais
O consumo no contemporâneo, mesmo quando concernente as mais "espartanas" necessidades, é perpassado por toda uma rede imagética e imaginária, e tornou-se um lugar crucial de constituição subjetiva. Nosso desejo parece, cada vez mais, composto a partir de, e tributário a, objetos de consumo. Então, para traçar alguma resistência hoje, é mister atentar para o engendramento das nossas práticas nesse âmbito, o que remete e implica a problematização da publicidade e do crédito.
Primeiro ponto: o crédito, diferente do que a publicidade nos faz crer, não é um mero meio - jamais uma "solução" assemelhada a um deus ex machina - mas um produto financeiro. Logo, que ao ser ofertado, precisa estar guarnecido das informações necessárias para que o consumidor possa formar um julgamento claro sobre os desdobramentos de sua aquisição/contratação. Assim, poder-se-ia evitar efeitos sobre os sujeitos a partir de supressões, do desconhecimento; as práticas de consumo e endividamento poderiam passar a ser mais alicerçada em dados objetivos claramente explicitados.
Contudo, a racionalidade pode facilmente declinar diante de toda uma trama discursiva articulada que quer persuadir a consumir - por vezes quase a todo custo e parecendo não compromissada como os custos pessoais e sociais que podem advir. Efeitos (pro)positivos da publicidade, os mais potentes se, acompanhando a concepção de Foucault (1995) sobre relações de poder, entendemos que o mais eficaz não é o que se impõe ou se reprime, mas o insidioso, aquilo que faz saber, sentir, pensar, querer, ser, enfim, o que nos conduz em liberdade.
Entendemos que o crédito, de forma assemelhada a produtos como medicamentos e bebidas alcóolicas, precisa ter uma atenção e regulação especial no que tange a sua publicidade, pois, dependendo da forma e/ou quantidade do "uso", pode se tornar muito prejudicial. Assim, além do cumprimento do que já está no CDC (o que não ocorreu na quase totalidade dos comerciais que analisamos), o que figura no projeto de lei acima referido é muito pertinente. Entretanto, é sobre a espécie de "tutela de valores" concernente à noção de abusividade - ou sobre a dimensão ética da publicidade -, que talvez devêssemos avançar. Produzir angústia, por exemplo, é algo interessante? Fazer crer que mais crédito pode "iluminar" a vida de quem está negativado é algo idôneo?
Alguns efeitos danosos decorrentes do (super)endividamento já estão vindo à luz - e não podem ser minimizados ou atribuídos à esfera individual. Contudo, cumpre entender, junto com Lazzarato (2009), que "o sistema dívida/crédito não é apenas um motor econômico, mas também uma técnica para governar as condutas dos indivíduos" (p. 88). Assim, o homem endividado da nossa sociedade de controle é aquele que não só tem dívidas, nas vive em dívida. "São os efeitos do poder da dívida sobre a subjetividade (culpabilidade e responsabilidade) que permitem ao capitalismo desconstruir a ponte entre o presente e o futuro" (Lazzarato, 2009, p. 88). Então, trata-se de colocar em questão o porvir que está sendo tramado.
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Endereço para correspondência:
Inês Hennigen
ineshennigen@gmail.com
Luis Filipe Silveira Schmidt
luisfilipeschmidt@gmail.com
Henrique Santos de Souza
souzahs95@gmail.com
Submetido em: 19/08/2014
Revisto em: 17/11/2015
Aceito em: 20/11/2015
* Texto referido à pesquisa apoiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (FAPERGS).
1 Sempre que assim grafarmos o texto no comercial estava em maiúscula.