Arquivos Brasileiros de Psicologia
ISSN 1809-5267
ARTIGOS
Diferenças e desigualdades em um projeto de educação a distância
Differences and inequalities on a distance education project
Diferencias y desigualdades en un proyecto de educación a distancia
Eliana QuartieroI; Henrique Caetano NardiII
IDocente. Instituto Federal Catarinense (IFC). Videira. Estado de Santa Catarina. Brasil
IIDocente. Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Porto Alegre. Estado do Rio Grande do Sul. Brasil
Endereços para correspondência
RESUMO
Neste artigo propomos discutir como o funcionamento de verdades acerca da diferenciação do humano normatiza e conforma o fazer pedagógico e vai se apresentar como desafio quando buscamos transformar o cotidiano escolar, o qual tem se apresentado como discriminatório e pouco permeável às diferenças. Utilizamos como campo de pesquisa a implantação do curso Gênero e Diversidade na Escola, oferecido pelo Ministério da Educação como formação continuada para professoras/es da rede pública de ensino, o qual tem como objetivo modificar preconceitos e divulgar uma concepção de direitos humanos. Exploramos as naturalizações de verdades que, nesse processo, constroem subjetividades e identidades, demarcam diferenças que servem de base para desigualdades. Percebemos redes de poder relacionadas às formas como compreendemos os processos de escolarização, às posições atribuídas às/aos docentes e às diferentes legitimidades do centro e da periferia como posições de enunciação.
Palavras-chave: Formação continuada de professores; Educação a distância; Políticas públicas; Diversidade sexual; Direitos humanos.
ABSTRACT
In this paper we propose to discuss how the functioning of truths about the human differentiation regulates and conforms the pedagogical actions and will present itself as a challenge as we seek to transform the school routine, which has emerged as discriminatory and not very open to differences. We use as research field the implementation of the course Gender and Diversity in School, hosted by the Ministry of Education as continuing education for teachers of the public school system, which aims to modify prejudices and disseminate a conception of human rights. We explored the naturalization of truths that, in this process, constructs subjectivities and identities, demarcates differences that provide the basis for inequalities. We analyze, in this process, power networks related to the ways we understand the processes of education, the positions assigned to teachers and the different legitimacy of the center and the periphery as positions of enunciation.
Keywords: Continuing teacher education; Distance education; Public policy; Sexual diversity; Human rights.
RESUMEN
En este trabajo nos proponemos analizar cómo el funcionamiento de las verdades sobre la diferenciación del ser humano regula y ajusta a lo pedagógico y se presenta como un desafío al tratar de transformar la rutina de la escuela, que ha surgido como discriminatoria y no muy abierta a las diferencias. Utilizamos la implementación del curso Género y Diversidad en la Escuela, organizado por el Ministerio de Educación como educación continua para los profesores de la escuela pública, que tiene como objetivo modificar prejuicios y difundir una concepción de los derechos humanos. Exploramos la naturalización de verdades que, en este proceso, construyen subjetividades e identidades, demarcan diferencias que sostienen desigualdades. Observamos, en este proceso, redes de poder relacionadas con las formas de entender los procesos de la educación, con los puestos asignados a los profesores y con las diferentes legitimidades del centro y de la periferia como posiciones de enunciación.
Palabras clave: Educación continua de maestros; Educación a distancia; Políticas públicas; Diversidad sexual; Derechos humanos.
Neste artigo apresentamos uma pesquisa que aborda a implantação de uma formação de professoras/es nas temáticas de gênero, sexualidade, orientação sexual e relações étnico-raciais. Propomos discutir como o funcionamento de verdades acerca da diferenciação do humano normatiza e conforma o fazer pedagógico e vai se apresentar como desafio quando buscamos inserir nos processos escolares um fazer alinhado aos direitos humanos.
No Brasil, diversas pesquisas demonstram que o ambiente escolar está repleto de preconceitos (FIPE, 2009; UNESCO, 2004; Venturi & Bokany, 2009) e as relações escolares são atravessadas por situações de violência e desrespeito que convocam uma intervenção. O espaço escolar, considerado como local onde se ensinam desigualdades (Louro, 1999, 2001; Silva, 2000), também é visto como motor de mudanças e tem se configurado como um dos principais focos de intervenção de políticas públicas.
Utilizamos como campo de pesquisa a implantação do curso Gênero e Diversidade na Escola, oferecido pela Universidade aberta do Brasil (UAB). No formato semipresencial, como formação continuada para professoras/es da rede pública de ensino, tem como objetivo modificar preconceitos, condições desiguais e divulgar uma concepção de direitos humanos. Exploraremos aqui as naturalizações de verdades que, nesse processo, vão constituir subjetividades e identidades ao reafirmar diferenças que são transformadas em desigualdades.
Não temos como objetivo realizar uma avaliação dessa formação, mas aprender com essa prática e, por meio de um exercício crítico, buscar a desnaturalização de saberes cristalizados, forjando condições para novos fazeres. Nesse percurso, vamos operar por meio do exercício de problematização, lembrando que Foucault (2004) utiliza esse termo para se referir a um conjunto de práticas que se relacionam ao jogo do verdadeiro e do falso:
[...] um movimento de análise crítica através do qual se busca verificar como foram construídas as diferentes soluções de um problema; mas também como tais diferentes soluções dependem de uma forma específica de problematização. Percebe-se assim que toda solução nova que venha a ser acrescentada às outras depende da problematização atual, modificando apenas determinado postulado ou princípio sobre o qual se apóiam as respostas dadas. (Foucault, 2004, p. 233)
A problematização utilizada como exercício do pensamento permite apontar as verdades instaladas nesse campo específico, considerando suas condições de possibilidade. Segundo a proposta foucaultiana de afastar-se da linearidade histórica, da causalidade, utilizamos a perspectiva genealógica como possibilidade de acompanhar o processo de implantação dessa política pública. Isto, para perceber os jogos de verdades que afetam seu desenvolvimento, e irão afetar os resultados buscados, provocando ou não a adesão das pessoas que a recebem.
Nossa problematização se direciona as formas como diferenças hierarquizadas e distâncias estabelecidas entre humanos se configuram nas práticas desse projeto de formação, considerando que a conquista de relações mais igualitárias implica deslizamentos acerca da identidade dos sujeitos, sua colocação no mundo, questionando a forma como desenvolvemos a atuação docente. Buscamos desenvolver um distanciamento crítico das naturalizações que constituem nossa subjetividade de docentes, seja como professor/a inserido/a na educação fundamental, seja inserido/a no ensino superior, mapeando como estas afetam nossas práticas pedagógicas.
Butler (1998) afirma que nossa ação está conformada pelas possibilidades que são dadas por nosso entorno social e "quando atuamos, atualizamos as regras que atuam sobre nós, talvez de formas novas ou inesperadas, mas de qualquer forma em relação com as normas que nos precedem e nos ultrapassam" (Butler, 2009, p. 333). Nossas ações são simultâneas aos processos de autoconstituição como sujeitos balizados pela norma e, por vezes, quando nos afirmamos como agentes de nossas ações, perdemos de vista o fato de que estamos imersos no processo de nossa fabricação, enredados nas verdades que nos são oferecidas como a-históricas. Nesse sentido, as relações entre diferentes sujeitos não são uma simples busca de consenso ou respeito às diferenças, mas estão fundamentadas em relações de poder/saber. A expressão poder/saber é utilizada num sentido foucaultiano em que poder e saber estão diretamente implicados, ou seja, "não há relação de poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder" (Foucault, 1989, p. 27). Quando nos colocamos na tarefa de produzir outras formas de práticas educativas, necessitamos problematizar fazeres que estão conformados no interior de lógicas que são produtoras de desigualdade.
Em nossas reflexões, buscamos considerar os indivíduos não como identidades essencializadas e fixas. Mas, entendendo que os saberes constituem as subjetividades e há uma positividade dos discursos na história dos sujeitos, constituindo seus corpos: os sujeitos são efeitos discursivos e esses efeitos produzidos no interior de concretas relações sociais, econômicas, institucionais. (Foucault, 1979). Entendemos a construção da subjetividade como efeito de um contexto político no qual se colocam possibilidades à individuação e subjetivação a partir de um conjunto de regras das quais podemos dispor para uma constituição de si.
Um processo normalizador está presente no fazer pedagógico. Este ocorre através de comparações entre os sujeitos e do olhar que se lança para os comportamentos em referência a como deveríamos nos comportar e ser. Os indivíduos são convocados a seguir determinadas normas; educar, em seus termos mais clássicos e práticos tem consistido em ensinar normas de comportamento, de conhecimento, atitudes (Gore, 2000). Pode-se perceber a produtividade do poder (Foucault, 1979) como um preceito fundamental da atividade pedagógica, a forma de conduzir as práticas pedagógicas é moldada no modo como nos percebemos como humanas/os e educadoras/res, como entendemos a função de educar.
As pessoas envolvidas em realizar esse projeto de formação, inserido em uma política pública mais ampla de direitos humanos, encontram-se subjetivadas por relações de poder/saber instituídas em um tempo, lugar e na tensão de uma negociação singular dos sujeitos que vivem esse momento e as verdades aí estabelecidas. Nesse sentido, vamos tomar as práticas pedagógicas como constitutivas da subjetividade, reconhecendo a sua historicidade.
O curso Gênero e Diversidade na Escola
Idealizado pela Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) e efetivado na parceria com o Ministério da Educação (MEC), a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), o British Council e o Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM), o curso Gênero e Diversidade na Escola (GDE) foi pensado como uma ferramenta para contribuir com a construção de uma política educacional voltada para promoção da igualdade de gênero, raça/etnia e orientação sexual, visando atingir todo o Brasil inteiro com a modalidade de educação a distância (EAD).
O projeto GDE é considerado uma ação que contempla reivindicações originárias de movimentos sociais engajados na luta por direitos humanos, apresentando características que nos interessam acompanhar, pensando nos resultados buscados e aqueles que decorrem de sua implementação, assim como na dificuldade para sua concretização. O formato do curso é distinto dos moldes que propostos anteriormente para as formações direcionadas a docentes nessas temáticas, pois propõe trabalhar de forma transversal temas que vinham sendo abordados separadamente. Esse formato surgiu no contexto de debates acerca de uma maior integração das agendas de reivindicações de vários grupos que denunciavam diferentes discriminações e preconceitos, apontando que essas desigualdades não se configuravam separadamente, mas estavam imbricadas: "trabalhar simultaneamente a problemática de gênero, da diversidade sexual e das relações étnico-raciais, ou seja, abordar em conjunto a misoginia, a homofobia e o racismo não é apenas uma proposta absolutamente ousada, mas oportuna e necessária" (Heilborn & Rohden, 2009, p. 13).
Além de agregar esses debates, a formação utiliza a modalidade de ensino a distância, conforme salientou em entrevista, a representante da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) que participou de sua idealização: "O GDE cumpriu seu objetivo: rompendo barreiras geográficas, com a educação a distância, para ir para o interior do interior. É o primeiro curso a distância, no mundo, nessas temáticas e de forma transversal". O GDE foi construído em um momento no qual o Brasil, acompanhando um movimento internacional, estabeleceu a modalidade à distância como uma metodologia adequada para ser utilizada na formação de professores/as da rede pública de ensino. Os financiamentos para a formação docente têm sido direcionados para essas propostas, tanto para a formação inicial como para a continuada. Cabe lembrar que a oferta do curso na modalidade de ensino à distância suscitou questões que antes não estavam presentes em formações presenciais, provocou debates sobre os efeitos na sua aplicação ao atingir públicos que até então não eram atingidos por essas ações. Essa modalidade envolvem outras/os atrizes/atores, pois a dinâmica da educação a distância requer uma rede de pessoas que desempenham funções de suporte ou de docência compartilhada.
Caminhos da pesquisa
A pesquisa desenvolveu-se primeiramente a partir de um levantamento de informações acerca do curso GDE. Com essas informações em mãos foi sendo construída uma tática de pesquisa utilizando o diário de campo contendo relato de viagens e as entrevistas realizadas com pessoas envolvidas na construção e aplicação do curso GDE. O campo de pesquisa foi sendo desenhado por uma exploração dos caminhos do oferecimento do curso, o processo de sua construção pelo CLAM, duas ofertas realizadas pela Universidade Federal de Santa Catarina, em duas cidades onde foi oferecido o curso em Santa Catarina. As duas cidades de Santa Catarina selecionadas para a pesquisa têm as seguintes características: uma está situada a pouco menos de 200 km de Florianópolis, tem uma população em torno de 25.000 habitantes, e na qual se realizou o curso GDE em 2009. A outra cidade, localizada aproximadamente a 300 km da capital, com 7.000 habitantes, na qual se realizou o GDE em 2012. A escolha das cidades teve como critérios: um pequeno número de habitantes, o fato de ser distante da capital e de ser considerada uma cidade pequena, do interior. Ou seja, dados que respondam à justificativa que embasa o projeto: levar o curso a lugares distantes dos centros universitários.
Realizamos, no período de julho de 2012 a julho de 2013, um total de 31 entrevistas semiestruturadas com algumas/ns participantes das equipes: do CLAM, do GDE - UFSC (coordenação, professores/as, tutores/as à distância, tutoras presenciais), coordenação dos pólos da UAB das cidades pesquisadas; e cursistas do GDE da edição de 2009 e de 2012. Através da estratégia genealógica, segundo Foucault, direcionamos o olhar para as verdades que são acessadas pelas pessoas envolvidas: gestores, professores/as, docentes de EAD e cursistas para significar e conduzir suas práticas. Considerando os participantes da pesquisa não como testemunhas de uma história onde buscaríamos fatos ou evidências do que realmente aconteceu, mas considerando seus relatos como sendo proferidos por sujeitos que ocupam determinadas posições de enunciação, onde estão em jogo as verdades disponíveis no local e no momento de sua enunciação (Foucault, 1979). Mesmo entendendo que ocorre nos indivíduos a construção de uma subjetividade singular, que confronta essas realidades e se posiciona frente a redes de sentido, para nossa problematização, ao longo do texto apresentaremos alguns trechos das entrevistas realizadas, mas identificando somente a posição de enunciação. A saber, como professor/a do curso GDE, como tutor/a, como integrante da equipe da UFSC que atuou no GDE, como educadores/as que frequentaram o curso, nomeados cursistas neste texto.
Distâncias/desigualdades
A modalidade de formação à distância utilizada pelo GDE mobiliza uma série de lógicas relacionadas ao entendimento de distâncias geográficas, distâncias culturais e distâncias de formas de viver. A modernidade produziu uma compreensão dos espaços geográficos como separados fisicamente e situados em uma mesma linha histórica, sendo as diferenças espaço-temporais reduzidas a diferenças no tempo de uma mesma história. Propomos refletir sobre desigualdades relacionadas a espaços geográficos indagando como as identidades são construídas a partir das suas inserções nos espaços sociais, mediante o questionamento do local, tal como teorizado por Brah (2006, 2011), Massey (2008), e Kaplan (1996).
Para compreender os processos que implicam nas nomeações e posições de sujeito acerca da distância, buscamos analisar como se estabeleceram as trocas entre o ensino superior/ensino fundamental. Nesse jogo a universidade aparece posicionada como academia e localizada como centro de conhecimento, enquanto as nomeações atribuídas à rede de ensino fundamental, nas cidades em questão, a posicionam como deficiente em relação ao saber e distante/periférica. As cidades onde o GDE foi implantado estão localizadas e entendidas como "longe de tudo", "isoladas", no "interior do interior". Nomeações geográficas recobertas de significados atribuídos por aquelas/es que as percebem como exteriores e diferentes do contexto acadêmico universitário tomado como central: "é outra vida!"
A ideia de centro de conhecimento necessita ser problematizada quando pensamos cursos na modalidade à distância, nos quais o afastamento do centro é particularmente marcado. Essas distâncias se apresentam como diferenças e estão relacionadas a enunciados que localizam os sujeitos como mais próximos ou mais afastados de um modelo de vida desejável. As características atribuídas a formadoras/res e cursistas estavam presas em um circuito dicotômico/oposicional nomeadas pelos binômios: centro/periferia, capital/interior, desinformados/informados. Esses binômios se associam a um projeto da modernidade que propôs um modo de exercício de poder específico, fundado em uma geopolítica que indica que a produção de conhecimento tem um local privilegiado de irradiação. O processo colonial que fez parte desse projeto estabeleceu a ideia de um centro europeu de irradiação da cultura (Castro-Gómez, 2000; Dussel, 2005; Grosfoguel, 2007, 2010; Mignolo, 2008, 2011; Quijano, 2005). Nessa direção, o desenvolvimento do processo educativo se configurou em marcos de desenvolvimento, como um movimento de levar conhecimento onde não há. Assim, seguindo essa lógica, temos a localização de onde há o conhecimento e onde faltam conhecimentos. Esses vetores constituem dinâmicas de poder que definem quais são as instituições e pessoas legitimadas a proferir verdades a serem aprendidas. Aqui vemos essa dinâmica dando suporte a pensar a educação como um movimento que leva a produção intelectual dos centros de conhecimento/pensamento até regiões longínquas, nas quais não há produção de conhecimento, mas uma carência generalizada de informações, de discussões e escolhas, tanto como um cotidiano em que as mudanças são lentas e necessitam de impulsos vindos do exterior. O GDE foi elaborado por pesquisadoras/es e estudiosas/os das áreas abordadas no curso e sua implementação acontece através do oferecimento por universidades, envolvendo grupos de pesquisa que atuam no espaço da academia, com expertise reconhecida, ressaltando uma diferenciação das práticas dos/as professores/as universitários/as e de professores/as do ensino básico. Inserido nessa lógica, percebemos um processo que vai separar o conhecimento teórico do aplicado ou prático, onde as teorias necessitam ser simplificadas ou reduzidas para serem utilizadas nas práticas cotidianas. As experiências do dia a dia estariam separadas do exercício reflexivo, este entendido nos moldes do saber científico, resultando que o/a professor/a que está "na ponta" não é percebido como teórico, não produziria conceitos e teorias, ela/e estaria no lugar de quem aplica.
E daí tu pedes para uma professora de artes que dá aula de educação artística para o ensino fundamental há 18 anos, há 20 anos não lê, não estuda, tá lá ensinando, cores primárias, cores secundárias. E daí tu exige que ela tenha um trabalho acadêmico (Equipe GDE UFSC).
Há um sentido negativo na instrumentalização, vista como fundada na técnica que exclui localizar estas/es professoras/es em uma posição de criatividade e pensamento crítico, que com certeza também faz parte dos fazeres nesses locais, não sendo uma exclusividade dos centros de pesquisa, mesmo que obedeça a outros formatos diferenciados dos fazeres presentes na lógica acadêmica. Aqui está constituída uma distância, uma hierarquia presente no cotidiano dos docentes, na qual se estabelecem lugares distintos e fazeres distintos. Os/as acadêmicos, dentro dessa rede de poder-saber estão situados na condição de falar sobre, estão nas universidades e capitais, os/as professores/as que estão "lá longe" teriam um saber aplicado que se produz no cotidiano da sala de aula, esse saber não tem a mesma legitimidade. Essa localização passa a ser habitada pelas professoras cursistas, cujos relatos são tomados como uma afirmação de que não sabem o que fazer para lidar com as diferenças e necessitam de instruções para tanto.
E eles querem mesmo é o operacional e isso tem que ser muito esclarecido porque, eu sempre digo, a gente não vai dar receita de bolo, aqui não é um curso para se ter um protocolo em caso de discriminação racial, faça isso e isso, muitas vezes é isso que eles buscam, respostas bem objetivas e pragmáticas para situações concretas que eles vivem (Professor/a do GDE).
Ou seja, os/as professores/as universitários/as explicam às professoras das cidades do interior (o longuínquo/periférico) por que a diferença sexual, racial/étnica, de gênero não deveria ser tomada como desigualdade. Mas, ao mesmo tempo, no processo de implementação do curso o saber do dia a dia escolar é tomado de forma desigual (hierarquizado) em relação ao saber da academia. Nesse encontro se produz uma impossibilidade, tanto dos/as docentes universitários/as de propor fazeres que possam levar os/as professores/as da ponta a outros saberes, como as cursistas de legitimarem seus saberes. Sendo assim, eles reivindicam uma instrumentalização, uma construção de manuais. Há necessidade de constituir espaços de formação docente que, além de transmitir os conceitos básicos relacionados aos temas de raça/etnia, gênero e sexualidade, problematizem as práticas e dinâmicas já existentes e atuantes na constituição de subjetividades e fazeres de educadores/as.
Foi difícil quando a gente fala de relação de teoria e prática. Do ponto de vista do ativismo, acho que até os caras conseguiram, [...], envolveram a comunidade toda, foram até a comunidade quilombola, trouxeram os caras, levaram família, levaram não sei o que, a igreja participou, eles fizeram literalmente um circuito pela cidade, foi uma coisa muito interessante. Agora do ponto de vista de uma reflexão teórica mais aprofundada sobre aquilo, não sei... (Professor/a do GDE).
Quanto às/aos cursistas, estes/as estariam buscando com os especialistas manuais de como proceder, habitando o lugar de aplicadoras de teorias, construindo e afirmando um nexo com a falta de reconhecimento de sujeitos produtores de conhecimento. Não são percebidas/os como ativas/os, mas como sujeitos passivos à espera de alguém que leve a solução, num processo específico de produção de conhecimento que demarca e estabelece distâncias.
Percebe-se um esforço em traduzir os debates presentes nos grupos de pesquisa para os/as cursistas, buscando a apropriação e a utilização no cotidiano. Essa dificuldade é entendida, por vezes, como uma falta de tempo para aprofundar os conteúdos. Na aplicação do GDE, como um curso no formato de qualificação, as formas como são conduzidas as correções dos trabalhos, as atribuições de notas e o nível de exigência acerca das tarefas solicitadas às cursistas tendem a assumir um formato universitário, se afastando de uma proposta de reflexão sobre valores, a qual tem por objetivo uma mudança de postura ética. Quanto à reflexão sobre atitudes preconceituosas, o principal objetivo proposto para o curso se desloca e este se direciona para a realização de tarefas acadêmicas, e surgem dúvidas se haveria tempo para as cursistas elaborarem uma reflexão sobre o seu ensinar.
É meio doutrinação, não é formação, bate com martelo na cabeça até entrar, tem vários momentos que é assim [...] não tem argumento, é convencimento, numa ótica bem iluminista também. Numa ótica que: vamos levar uma luz para essa gente. Vamos iluminar a vida dessas pessoas, vamos levar o conhecimento e vamos levar a luz (Tutor/a GDE UFSC).
A equipe do GDE buscou formar as tutoras presenciais para atuar nas cidades do interior apresentando conteúdos do curso e utilizando a dinâmica de trazer para perto, na intenção de proporcionar a vivência do cotidiano de estudos da universidade. Esse grupo participou de encontros com estudiosas/os estrangeiras/os e os relatos de quem implantou o curso apontam para uma grande valorização desses momentos, como uma oportunidade, como um aprendizado por si só, experimentar o ambiente acadêmico, ou seja, de aproximar aqueles/as que atuam "na ponta" de um modelo de docente pesquisador/a. Esses movimentos se inserem em uma lógica binária de espaços móveis e outros cristalizados, aqui entendidos numa relação com o espaço/tempo, ir para a "cidade grande" passa a representar se abrir para as novidades. O modelo cosmopolita tem regrado as vivências e desejos como um ideal e deve ser questionado possibilitando a visualização de regras de exclusão impostas nessa lógica normativa. Argumentos como "vencer as distâncias" apresentam uma percepção do viver distanciado de centros como um viver marcado com uma carência e déficit: "O grande problema da política pública de educação a distância no Brasil é que ela é construída como educação para pobre, ou para locais distantes..." (Professor/a do GDE).
Os argumentos econômicos se colocam, nos relatos, como justificativa e marcam a modalidade de educação a distância (EAD) como uma opção de barateamento da educação. Nessa percepção, a EAD é entendida como um ensino de menor qualidade e de menos valor. Enunciados que se acoplam nas mesmas redes lógicas que constituem os pares centro-periferia, conservador-avançado, estabelecendo o par ensino pobre (menos qualificado) e ensino rico (mais qualificado). As propostas de maior acesso à escolarização, em todos os níveis, são tomadas de formas diferenciadas pelas pessoas que se situam no centro. Nessa direção, foram realizados questionamentos quanto à adequação da metodologia à distância para realizar a formação nesse campo; preocupações quanto à qualidade do ensino oferecido, marcaram essa posição de enunciação. Enquanto que, para as que se situam na periferia (no interior), esse acesso é percebido como mais uma possibilidade a ser experienciada, pois viabiliza a formação no exercício docente, sem afastar-se do seu trabalho: "Para mim foi muito bom ser à distância, que foi a forma de poder participar, porque eu trabalho o dia todo, 8 horas e fora o que a gente leva para fazer em casa" (Cursista).
Equipe e professoras/es, envolvidos no oferecimento do GDE, na sua totalidade, afirmaram que a maior dificuldade quando ao desenvolvimento do curso foi: "elas têm dificuldade com a tecnologia"; "[...] da parte dos cursistas é o moodle e a interação com a plataforma, com certeza, essa falta de capacitação para lidar com o moodle" (equipe GDE UFSC).
As cursistas eram percebidas como tendo muita dificuldade em utilizar o espaço de sala de aula virtual, porém essa dificuldade, relatada como sendo exclusiva das/as cursistas, era partilhada pelos/as professores/as do GDE. Num exercício de problematização, se coloca a questão do por que a situação/experiência era colocada nesses termos, visto que se pode perceber que os/as professores/as do GDE, coordenação e idealizadores/as tinham, também, dificuldades e desconhecimento da dinâmica da EAD. Os relatos, entretanto, reforçavam que a dificuldade era das cursistas. Podemos pensar que estaria aí em ação a oposição: os/as que sabem e os que não sabem. As/os cursistas são colocadas/os na posição de aprendentes, então, estão vazias de conhecimento e vão ser supridas pelas informações, reflexões das/os agentes do GDE, assumindo a forma de uma educação bancária, que centra-se em um acúmulo de conteúdos. Novamente, a diferença se constitui em desigualdade, suscitando a necessidade de outra reflexão, isto é, não buscando somente responder se a modalidade à distância é adequada a essa tarefa, mas pensando como os enunciados sobre as distâncias geográficas e as diferentes atuações docentes (ensino superior/ensino básico) instituem desigualdade e retiram a potência das ações em prol da igualdade. No transcorrer da pesquisa houve vários relatos de cursistas que apontaram como resultado positivo da sua participação no GDE a apropriação do uso da metodologia do ensino à distância e o fato de, a partir dessa primeira experiência, participarem de várias formações nessa modalidade. Na edição de 2012, várias cursistas relataram ter realizado formações e pós-graduações na modalidade à distância, além de vários cursos através da EAD.
Essa constatação e esses relatos não foram suficientes para modificar uma rede de sentidos que atribuem aos locais nos quais vivem as cursistas uma grande distância dos acontecimentos e conhecimentos, reiterando-se assim enunciados que associam valores às cidades do interior como lugares afastados e com uma sociabilidade restrita. O entendimento de que uma conexão por meio da tecnologia poderia colocar as pessoas em contato com o que acontece "lá fora" não se presentificava nas práticas da formação e as relações reproduziram a lógica centro-periferia.
É importante ressaltar que a questão que se coloca é mais ampla do que o acesso ou a dificuldade com a tecnologia, está relacionada aos valores associados à distância. As/os docentes que são alvos da formação valorizam esse acesso, apesar deste estar marcado por enunciados que o relacionam a uma educação hierarquicamente inferior, que a posição enunciativa acadêmica desvaloriza. Ainda, os relatos acerca das maneiras de viver em cidades pequenas são marcados por generalizações e pela essencialização da concepção de lugar.
Uma consequência das lógicas classificatórias é a homogeinização dos sujeitos a partir da geografia que habitam e que os habita, teremos então as/os interioranos/as com viveres mais restritos e seu contraponto urbano, habitado por pessoas que se alinham à diversidade e novidade. Reifica-se assim uma separação de sujeitos e o pressuposto que eles não fazem parte do mesmo universo. As cursistas, nessa perspectiva, estão entrando em contato com as diferenças que estão surgindo em sua cidade e na sua escola e se encontram despreparadas para compreender as singularidades. As pessoas, entendidas como diferentes, são associadas a um movimento do novo, da novidade. Também está presente a ideia de que esse sujeito diverso não pertenceria àquele lugar homogêneo, não seria seu habitat natural. As cursistas relatam experiências do cotidiano escolar que não seguem os enunciados de homogeneização e de exclusão da diferença, uma vez que seus relatos falam da convivência nas pequenas localidades com travestis ou transexuais, por exemplo. Nos relatos marcados pela posição de enunciação acadêmica, essa vivência emergia como da ordem da impossibilidade, isto é, de travestis e transexuais não sobreviveriam em pequenas localidades pela ausência de redes de apoio/suporte para manter-se ali.
Estão presentes enunciados que marcam a identidade de interiorano/a como um sujeito que vive afastado de tudo, articulando-se com enunciados que constroem a educação básica como carente. Esta rede de sentidos produz subjetividades e vai construir estes/as cursistas nas suas maneiras de atuar como docentes, conformando seu trabalho profissional. Eles/as irão demandar de especialistas as soluções que não estão disponíveis para as posições de sujeito que lhes são oferecidas, uma vez que sua falta de legitimidade para construir novas soluções é reiterada por enunciados que fixam as posições centro-periferia e que afirmam que o interior não é um local de produção de conhecimento, mas de demanda de como fazer. Esta demanda sugere que esses/as docentes não têm respostas e não estão qualificados para construí-las. Certamente, há um processo de construção de conhecimento realizado por essas pessoas no seu dia a dia na escola, mas este não é legitimado ou, então, é tomado como da ordem do cotidiano, como um saber inferior.
Pessoas que habitam fora de grandes centros, nessa lógica, são colocadas como em uma fase infantil de desenvolvimento cultural, como não fazendo parte de nosso tempo, mas de outro e anacrônico tempo. Alinhar-se a essa lógica resulta em práticas pedagógicas nas quais o foco é a atualização e a consideração de que as intervenções necessárias seriam da ordem de esclarecer e informar, provocar o progresso para aqueles que estão atrasados:
O que a gente está tentando fazer é transformar estas pessoas em iguais a gente... Tentar impor uma lógica daqui para uma cidade de 7000 habitantes faz parte de um projeto desenvolvimentista, vamos levar o desenvolvimento, vamos fazer com que essas pessoas desejem outra coisa diferente do que elas desejam... (Tutor/a).
As universidades e seus/suas pesquisadores/as foram legitimados/as como portadores/as de um saber adequado aos propósitos das mudanças desejadas para o ambiente escolar. Podemos perceber a legitimidade do saber relacionado à academia, como produtora de saber que, muitas vezes se traduziu no trabalho de campo, como a imposição de um modelo de feminismo, no qual a mulher ideal é independente, culta, urbana, livre das amarras do casamento. Esse movimento pode, tornando-se prescritivo, ao invés de abrir caminhos, restringir o diálogo, fechar portas.
Então a gente foi para Florianópolis, a primeira formação, e lá a gente encontrou todos os professores e a gente teve a primeira aula [...]. A gente estava discutindo e automaticamente eu fui deixada de lado porque eu sou uma pessoa tradicional, eu falei: qual é o problema? Eu sou hetero, sou casada há 25 anos com o mesmo homem, moro com a sogra, tenho um periquito, papagaio e tenho cachorro e aí todo mundo começou a rir. (Tutora presencial)
A concepção de centro/periferia não remete somente a uma posição geográfica, longe das capitais, mas está presa em uma série de classificações que atribuem valores diferenciados a diferentes sujeitos conforme a posição dos mesmos nessa cadeia classificatória. E esse processo produz desigualdades.
Desafios
A maioria dos movimentos sociais, no Brasil e no exterior, usou e ainda usa como estratégia para conquistar direitos, o que Scott (2005) nomeia de paradigma da igualdade e da afirmação das identidades. Ativistas defendem que todas as pessoas devem ter direitos iguais, já que todos/as somos seres humanos, mesmo que diferentes em muitos aspectos, o que justifica a necessidade da reivindicação por direitos específicos, que contemplem as particularidades de cada grupo: "As colegas falam bichona, negão, e eu falo, olha não pode! Eu estudei, isso não pode!" (Cursista)
A disponibilização de novos termos para a designação de identidades possibilita que as pessoas tenham acesso a essas novas identidades. Entretanto, a nomeação identitária é sempre limitada, pois é oriunda da cristalização de um determinado esquadrinhamento de comportamentos e sentidos. Como sinaliza Butler (1998, 2002), manifestações, esforços legislativos ou demandas por políticas públicas, na forma contemporânea do Estado assumem reivindicações em nome de um sujeito identificado pelo Estado como portador de uma identidade específica (mulheres, homossexuais, negros e negras, pessoas trans, indígenas, etc.). No entanto, ela sugere que há necessidade de desnaturalizar a ideia de sujeito político como portador de uma essência previamente dada, reconhecendo o caráter contingente da sua construção e tendo presente que são os próprios processos de esquadrinhamento indentitário que vão constituir estes sujeitos.
Recusar-se a pressupor, isto é, a exigir a noção de sujeitos desde o início, não é o mesmo que negar ou dispensar essa noção totalmente, ao contrário, é perguntar sobre seu processo de construção e pelo significado político e pelas conseqüências de tornar o sujeito como um requisito ou pressuposição da teoria (Butler, 1998, p. 15).
Scott defende que diferenças não são aspectos univocamente estabelecidos e reconhecíveis. A diferença é o resultado da "designação do outro, ela distingue categorias de pessoas a partir de uma norma presumida (muitas vezes não explicitada)" (Scott, 1998, p. 297). Para a autora, deveríamos evitar a armadilha de tomar as diferenças como dadas e, ao contrário, tornar visíveis os processos sociais que as criam.
Costa (2008) afirma que há um ímpeto normalizador na instituição escolar, sublinhando que seria necessário desessencializar as identidades e evidenciar sua historicidade, "problematizar as identidades em sua face construída, produzida nas injunções políticas do poder no interior das sociedades e das culturas" (p. 492). "[...] quando começa a colocar as categorias trans, parece que só se quer achar etiquetas para colar nos outros, sem deslocar de verdade no fundo: por que precisa de uma etiqueta, afinal de contas?" (Tutor/a)
Scott (1998), no texto A Invisibilidade da experiência, questiona a premissa de que retratar a experiência de grupos invisibilizados socialmente seria o processo mais adequado para questionar a estigmatização, o preconceito e os processos de designação do outro como diferente. Segundo Scott, as pesquisas que têm por objetivo relatar e mesmo tornar visível a experiência de algum grupo minoritário tendem a perceber as identidades e as experiências como dadas ao invés de reconstruir e entender os processos sociais que criaram as identidades e as diferenças.
Teve uma formação de sexualidade que chamaram 3 ou 4 travestis para dar depoimento da trajetória nas escolas delas, mas eu tenho um sério receio com esse tipo de atividade, quase estamos colocando um exemplar de pessoa estranha aqui, não de uma pessoa estranha, mas de um nativo, olha como eles existem! E eles falaram da trajetória deles na escola e o que eu devo fazer? Tirar uma foto para mostrar para os meus alunos? Que isso existe? (Tutor/a).
Algumas propostas de intervenção consistem em apresentar às/aos estudantes uma visão superficial das diferenças, apresentando o outro sob a rubrica do curioso e do exótico. Além de não questionar as relações de poder envolvidas na produção da identidade e da diferença, essa estratégia as reforça, ao construir o outro por meio da marca de estranho. Em geral, a simples apresentação desse outro, nessas abordagens, é considerada suficiente. Entretanto, é importante problematizar os processos de categorização que permitem que algumas pessoas sejam alvo de preconceitos. Há necessidade de pensarmos acerca dos termos que constroem as possibilidades para todos/as. E quando colocamos diferença como algo que se distingue do normal, do igual, há a possibilidade de consequências nefastas para o "ensino da igualdade". Igualdade entendida não como homogeneização, mas como possibilidades iguais de viver como agrada (ou é possível) a cada um/a, entendimento que possibilitaria discutir a diferença a partir de outra lógica que não a de uma valoração hierárquica do humano.
Os enunciados que se referem à diferença constituem, produzem e afirmam significados. Uma das dinâmicas de maior instalação/presença no ambiente escolar implica em associar as distâncias à diferença, colocada no outro. Esta marcação da diferença em indivíduos ou grupos retira o seu caráter relacional e permite que as práticas sejam pouco questionadas. Algumas construções de diferença, como o racismo colocam fronteiras fixas e imutáveis entre grupos, os quais vão ser sinalizados como inerentemente diferentes. Outras construções de diferença vão utilizar distintos argumentos de classificação (orientação sexual, religião, geração) que acionam hierarquias por outras vias. Pudemos perceber em campo a utilização de enunciados que defendiam a luta contra os preconceitos, convivendo com o ensino de categorias essencializadas a serem aceitas/respeitadas.
A perspectiva que se interessa em divulgar a existência de sujeitos diversos se mostra ineficiente para construir práticas pedagógicas que realizem um deslocamento da instalação hierarquizada de identidades e diferenças. Apresenta-se a necessidade de problematizar os processos de normalização que nos habilitam de maneira desigual a viver e nos relacionar e nos afastarmos de intervenções que deixam intactos os processos de classificação do humano.
A política tende mais para que eles conheçam o direito, porque nem todos sabem, apesar deles viverem dentro da sociedade e eles se sentem marginalizados e quando eles são ofendidos nem sempre eles se defendem da forma certa, a grande maioria se defende através do tapa, do empurrão, do choro, do grito, não por aquilo que é direito, de correr atrás da justiça, eu tenho direito, eu fui ofendido (Cursista).
Compreender que a vulnerabilidade tem relação com desigualdades sociais, permite entender que existem fatores que não se originam nas pessoas, colocando em questão a lógica que a considera como condição de um determinado grupo. Os enunciados que designam o sujeito vulnerável também produzem efeitos de subjetivação e constroem/afirmam uma demanda por identidades que colem na dita vulnerabilidade. Ou seja, alimentam a máquina estatal que cobra a existência de pessoas bem identificadas que sejam alvo das políticas públicas (NARDI, 2014). Diferentes categorias de pessoas são representadas pelos discursos da diferença obedecendo a posições de valor. Quando tais indivíduos habitam este lugar de vulnerabilidade, seu reconhecimento passa por uma homogeneização das singularidades.
Como a precarização de certos sujeitos está vinculada à persistência e reprodução de certas regulações, podemos pensar que transformar tais situações de desigualdade requer que contribuamos para o desmantelamento ou deslocamento crítico dos marcos normativos que as possibilitam. Assim, se apresenta a tarefa de utilizar nossas ferramentas conceituais para problematizar em que medida essas regras inviabilizam certas vidas, mostrar como se apresentam vários mecanismos sociais, políticos e culturais (inclusive acadêmicos) pelos quais certas vidas são tornadas menos humanas ou não humanas. Não se trata somente de tornar visível e buscar um reconhecimento imediato dessas pessoas, se faz necessário suspender as verdades e saberes que marcam os sujeitos e nos colocam, a todos/as, dentro de uma escala de valor.
Deslizamentos
A proximidade, característica das relações em uma comunidade pequena, propicia outras formas de funcionamento que podem trazer possibilidades de ampliação do debate. Trata-se de perceber a potência desse funcionamento, sem ignorar as dificuldades ali colocadas quanto ao deslocamento de posturas moralistas e preconceituosas. E buscando não aderir aos enunciados supõem uma imensa dificuldade de transformações ou carregam uma visão bucólica do interior na qual seus habitantes seriam ingênuos para analisar o mundo.
"No interior todo mundo se conhece" - essa ideia costuma estar relacionada à afirmações de que haveria uma vigilância maior de comportamentos. Porém, pode ser pensada como facilitadora para as trocas teóricas e não apenas relacionada a uma dinâmica de fofoca e controle. Parecem haver trocas que são possibilitadas pelas redes de convivência que estão disponíveis nessas cidades. Pudemos perceber que a proximidade também produz resultados de disseminação de debates e reverberações das temáticas abordadas no curso: "Tu vai no salão de beleza, surgiu o tema lá, lá ficamos conversando, eu fui falando, todo mundo com o olho arregalado" (Cursita).
Também se percebe um envolvimento coletivo na busca de soluções que se ampliam para além do grupo de colegas, envolvendo familiares e amigos/as. Assim, por exemplo, em uma cidade foi realizado um programa de rádio sobre a experiência do GDE, por iniciativa de um grupo de cursistas. É importante observar que o curso propiciou deslocamentos e reflexões sobre a realidade onde essas profissionais estão inseridas e pudemos perceber, em muitos casos, que estas têm interesse em modificar ambientes de trabalho difíceis e situações de sofrimento tanto para alunos/as como para os/as docentes. Muitas professoras tomam para si a responsabilidade de constituir um ambiente mais igualitário. Porém, para oferecer ferramentas que potencilizem essas ações, necessitamos nos afastar de análises nas quais se atribui a responsabilidade de mudanças às pessoas, aos grupos, como de professoras. Pois, trata-se de um contexto social mais amplo, que extrapola também as iniciativas individuais de pessoas comprometidas com os ideais de direitos humanos. Somos todas/os atravessadas/os por uma série de negociações de poder que implicam embates no cotidiano e que precisam ser conduzidos com/no coletivo.
Considerações Finais
As questões desenvolvidas no texto remetem a problematizar a lógica que constitui o centro e a periferia na formação a distância que serviu de analisador para esta pesquisa. Pensamos ser necessário redesenhar esses modelos explicativos, desmontando formulações dicotômicas como desenvolvimento/atraso, urbano/rural, a partir de novas e complexas formas de conceber as distintas geografias que nos habitam e que habitamos. As hierarquias e suas dinâmicas de diferença/desigualdade se instalam como verdades na constituição de nossas subjetividades e vão balizar o significado que damos às nossas experiências. A pertinência de refletir sobre as verdades que se colocam quanto às concepções de locais e cidades se confirma na dificuldade em trabalhar esses deslocamentos, tanto teóricos como de posições de hierarquia em relação aos saberes acadêmicos (da pesquisa/centrais) e locais (da prática cotidiana/periféricos), por exemplo.
Encontramos uma série de desafios para a tarefa a que essa formação se propunha, isto é, transformar o ambiente escolar instituindo relações mais igualitárias. Nossa análise indica que esse processo foi atravessado por redes de poder relacionadas às formas de escolarização, às posições atribuídas aos docentes e às diferentes legitimidades que são colocadas para os locais de enunciação: de centro ou de periferia. A escola está inserida num projeto de modernidade e desenvolvimento e estes são tomados não apenas como necessários, mas extremamente benéficos para a sociedade. A constituição de mundos, uns avançados e outros a serem educados, faz parte de uma narrativa que perpetua lógicas coloniais e reitera um funcionamento de saber/poder preso às classificações acerca das pessoas, como um mecanismo que espacializa as hierarquias de poder. O entendimento de que o mundo caminha para um desenvolvimento ou para o acesso a uma cultura, dita universal, coloca essa sequência temporal como inevitável, assim, todas/os nos movemos em direção a um progresso, como se esse movimento fosse uma conquista da humanidade, um acesso a todas oportunidades disponíveis no planeta.
Podemos pensar que estão em movimento relações que se estabelecem em torno de uma ideia de escola fixa e cristalizada, firmadas em um molde moderno, com hierarquias bem delineadas. A diferença não deve ser transformada em desigualdade e cabe a nós não legitimarmos sua utilização para demarcar desigualdades. A construção discursiva do outro como desigual, inferiorizado, vai convocar variados sujeitos, em diferentes momentos, para ocupar um lugar de subalternidade. O discurso por igualdade, muitas vezes, se fundamenta em localizar as diferenças, o que resulta em uma essencialização de identidades, reafirmando o par diferença/desigualdade.
A mudança proposta pela formação GDE é uma maneira não prescritiva de abordar o debate, mas verificamos que, na sua implementação, manter esse alinhamento é um exercício exaustivo, pois todas/os nós fomos formadas/os nesse modelo de ensinar e aprender. Essa constatação nos convoca ao desafio constante de evitar, ao propor romper com relações de sujeição no campo da diversidade sexual, de identidade de gênero e étnico-racial, reproduzir outra rede de sujeição que remete à relação centro-periferia, movimento que vai hierarquizar novamente saberes e vidas e produzir desigualdade onde se tem como objetivo relações igualitárias.
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Endereços para correspondência:
Eliana Quartiero
elianaqu@gmail.com
Henrique Caetano Nardi
hcnardi@gmail.com
Submetido em: 08/02/2015
Revisto em: 21/07/2016
Aceito em: 28/09/2016