Arquivos Brasileiros de Psicologia
ISSN 1809-5267
ARTIGOS
Lacan e o Deus-infinito de Pascal: considerações sobre a aposta pascaliana e o início de uma análise
Lacan and the God-infinite of Pascal: considerations about Pascal's wager and the beginning of a psychoanalysis treatment.
Lacan y el Dios-infinito de Pascal: consideraciones sobre la apuesta de Pascal y el inicio de un análisis.
Marcus André VieiraI; Luisa Beatriz Pacheco FerreiraII
IDocente. Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Rio de Janeiro. Estado do Rio de Janeiro. Brasil
IIDoutora. Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Rio de Janeiro. Estado do Rio de Janeiro. Brasil
RESUMO
O artigo tem como objetivo analisar a utilização que Jaques Lacan faz de um ponto específico da obra de Blaise Pascal, relacionado à aposta em um Deus-infinito. Lacan complementa o estudo da aposta pascaliana com uma referência à graça religiosa como momento inaugural de abertura ao infinito. A partir dessas considerações, sustenta-se a hipótese de que a aposta de Pascal pode ser aproximada à operação necessária para o início de uma análise. A aposta de Pascal coloca em jogo o infinito. Com a ajuda do filósofo Alain Badiou, tentaremos demonstrar que Lacan parte da mesma ideia ao considerar que não há abertura ao inconsciente - correlativa ao início de uma análise - sem alguma dimensão de infinitude.
Palavras-chaves: Lacan; Aposta de Pascal; Graça cristã; Alain Badiou; Início de uma análise.
ABSTRACT
The article aims to analyze the use of a certain point in the work of Blaise Pascal, according to Jacques Lacan's, specifically about the wager on a God-infinite. Lacan complements the study of the Pascal's wager referring to the concept of the religious grace as the inaugural moment of opening to the infinite. From these considerations, the supported hypothesis is that Pascal's wager approaches the course necessary to the beginning of the psychoanalysis treatment. Pascal's wager puts infinite at stake. With the help of the philosopher Alain Badiou, we will try to demonstrate that Lacan shares the same idea when he considers that there is no opening to the unconscious - correlative to the beginning of an analysis - without some dimension of infinity.
Keywords: Lacan; Pascal's wager; Christian grace; Alain Badiou; Beginning of psychoanalysis treatment.
RESUMEN
El artículo tiene como objetivo analizar la utilización que Jaques Lacan hace de un punto específico de la obra de Blaise Pascal, relacionada con apostar en un Dios-infinito. Lacan complementa el estudio de la apuesta de Pascal con una referencia a la gracia religiosa como momento inaugural de apertura al infinito. A partir de estas consideraciones se apoya la hipótesis de que la apuesta de Pascal se aproxima a la operación requerida para iniciar un análisis. La apuesta de Pascal pone en juego el infinito. Con la ayuda del filósofo Alain Badiou, trataremos de demostrar que Lacan parte de la misma idea al considerar que no hay apertura al inconsciente - correlativo al comienzo de un análisis- sin alguna dimensión de infinidad.
Palabras clave: Lacan; Apuesta de Pascal; Gracia cristiana; Alain Badiou; Comienzo de um análisis.
Introdução
O ponto de partida deste estudo é a aproximação entre a aposta pascaliana e a operação que instaura o sujeito do inconsciente. Nossa proposta é de que a aposta de Pascal, trabalhada por Lacan (2008a) como abertura ao infinito, seria correlata ao momento de início de uma análise. Buscamos, então, investigar as considerações de Lacan sobre a aposta de Pascal e a experiência da graça (cristã) para, em seguida, compará-las ao processo de início de uma análise.
Optou-se por uma divisão do texto em três momentos principais. Um primeiro momento consiste em mostrar como a aposta pascaliana comporta a noção de uma abertura ao infinito que se apresenta na vida. Num segundo momento, tentamos demonstrar como essa infinitude implica para Lacan na perda de um objeto concreto, que ele destaca no Seminário 16 como objeto a (2008a). Finalmente, num terceiro momento, aproximamos a aposta num Deus-infinito à experiência de abertura do inconsciente, ponto de início de uma análise, no sentido em que esta última também contempla uma ideia de infinitude.
A aposta de Pascal: incerteza da existência divina e abertura ao Deus-infinito
A aposta de Blaise Pascal foi publicada mais recentemente pela Editora Edipro, em 1995. Trata-se, em sua origem, de um papel dobrado em quatro partes encontrado no bolso do filósofo e matemático após sua morte. Seu conteúdo versava sobre uma aposta em torno da prudência lógica em se acreditar ou não na existência de Deus. Segundo ele, caso alguém opte por não acreditar em Deus ao longo de sua vida, o prejuízo constatado no momento de sua morte, com o castigo eterno que lhe aguarda, é infinitamente superior à escolha de uma vida na fé e na crença. Nesse sentido, a decisão óbvia seria acreditar em Deus, apostando em sua existência mesmo sem qualquer comprovação. Eis os termos da aposta:
Se há um Deus, ele é infinitamente incompreensível, de vez que, não tendo nem partes nem limites, nenhuma relação possui conosco: somos, pois, incapazes de conhecer não só o que ele é, como também se ele é. Assim sendo, quem ousará empreender resolver essa questão? […] Examinemos, pois, esse ponto, e digamos Deus é, ou não é. Mas, para que lado penderemos? A razão nada pode determinar ai. Há um caos infinito que nos separa. Na extremidade dessa distância infinita, joga-se cara ou coroa. Que apostareis? Pela razão, não podeis defender nem uma nem outra coisa (Pascal, 1623-1662/1995, pp . 18-19).
Lacan enfatiza a dimensão radical da aposta de Pascal, que ultrapassa a racionalização sobre as vantagens enumeráveis de se acreditar ou não em Deus e se distingue de um mero jogo de azar. Pascal é muito preciso ao escrever que é pelo fato de Deus ser incompreensível para o homem que a aposta se faz necessária. Assim, ela não se resolve no plano da razão, mesmo que seja provida de lógica. Temos, então, uma primeira indicação de que a aposta em jogo não é uma aposta comum.
A aposta de Pascal possui um caráter original: ela se apoia em um fundo de incerteza. Essa incerteza de base é justamente o que impele a aposta, pois é por não saber se Deus realmente existe que se abre essa possibilidade. Na aposta introduzida por Pascal, temos de um lado uma vida com sua finitude e de outro uma vida infinita. É por ser um dos termos infinito que se introduz a referência religiosa. A correlação entre religião e a dimensão de infinito é comumente apresentada por estudiosos da religião. Segundo o psicanalista François Regnault, a religião se sustenta pela ideia de um Deus que não faz um com o homem (Regnault, 1985). A definição de Regnault indica que a crença em um mais além, algo não todo abarcado pela humanidade, seria o traço comum das religiões. Dentro dessa perspectiva, a religião consistiria numa abertura ao infinito, dando a ele o nome de Deus.
Assim, o Deus de Pascal provoca uma abertura ao infinito, porém, o modo como a aposta convoca o infinito é bastante específico de seu pensamento. Para o matemático, a aposta no Deus-infinito surge como uma decisão óbvia. Nos termos de Lacan, podemos entendê-la como uma escolha forçada (Lacan, 2008b).
Lacan, Pascal e a escolha forçada
Para Pascal, a escolha a fazer, entre a existência ou não de Deus, traduz-se numa escolha entre uma vida finita e a possibilidade de uma "infinidade de vidas infinitamente felizes" (Lacan, 2008a, p. 115). Diante do infinito, somos "forçados" a escolher pela existência de Deus. Pode-se escolher o contrário, mas a aposta só pode acontecer como uma escolha forçada, uma vez que diante do infinito qualquer dimensão relativa à vida, finita, torna-se insignificante. Uma vez o infinito convocado, não há mais uma escolha possível no plano da razão na qual pesaríamos duas coisas finitas.
Apesar da ideia de uma escolha forçada nos parecer como referência obrigatória e importante para o entendimento da escolha a ser feita na aposta de Pascal, ela não aparece de forma direta no estudo de Lacan sobre a aposta pascaliana no Seminário 16. Lacan utiliza o termo escolha forçada em um contexto específico de seu ensino, quando se encontra às voltas com a operação de alienação e separação entre o sujeito e o campo do Outroi (dimensão dos significantes). Nesse contexto, Lacan (2008b) procura mostrar que não existe vida sem a linguagem, não há vida sem uma alienação forçada à linguagem. A entrada na linguagem é uma operação que implica na perda do acesso direto ao real, que se mantém como um lugar de fora-do-significado para a alienação do sujeito à linguagem (Lacan, 1997). O exemplo dado por Lacan para falar da escolha forçada consiste numa situação em que nos é demandado escolher entre a bolsa ou a vida. Se se escolhe a bolsa, perde-se a vida, se a vida é escolhida, tem-se uma vida sem a bolsa. Outro exemplo de Lacan é destacado da filosofia de Hegel. A entrada na alienação implicaria em algo de uma escolha forçada entre a liberdade ou a vida. Se escolhemos a liberdade, perdemos a vida, se escolhemos a vida, temos uma vida sem liberdade, de escravidão (Lacan, 2008b, p. 207). Assim, na alienação ao campo do Outro, perde-se algo do ser.
Voltando para a aposta, uma vez que se escolhe - por meio de uma escolha forçada - acreditar em Deus, o infinito é introduzido na vida, mudando radicalmente a dimensão da própria vida.
O modo como a aposta acontece traz a ideia de um infinito que Lacan, apoiando-se nas formulações de Cantor, chamará de infinito atual. Em contraposição ao infinito atual, temos o infinito potencial que conhecemos bem, sendo o infinito dito clássico. Ele é, por exemplo, o infinito dos números inteiros, a ideia de que esses números não se esgotam e de que é sempre possível ir mais além, sem nunca chegar ao final. Deste modo, o infinito (clássico) é uma ideia, mas não uma realidade, por isso ele é "potencial". Agora, porém, podemos ter a ideia de um outro infinito, o infinito atual. São muitos os caminhos usados por Lacan para abordá-lo. Através da matemática, ele afirma que o infinito atual seria relativo às infinitas possibilidades de divisão de um espaço percorrido (Lacan, 1985). Assim, por exemplo, numa sequência de 1 a 2, o infinito atual incidiria entre esses números na medida em que o espaço entre 1 e 2 pode ser dividido ilimitadamente, havendo, portanto, um número infinito de subsegmentos. Assim, num espaço delimitado, o infinito estaria contido dentro dele, porque é possível dividir esses espaços ilimitadamente.
Na religião cristã, esse encontro com o Deus-infinito na vida é descrito como a experiência da graça. O estudo da experiência da graça torna-se então fundamental e complementar à aposta de Pascal.
O infinito atual, a graça
A partir das indicações que recolhemos sobre a aposta de Pascal no seminário de Lacan, foram buscados textos de apoio para nosso estudo sobre a religião que contemplassem essa dimensão de um infinito como acontecimento instaurado dentro da própria vida. Parece-nos que é para tratar desse ponto específico que Lacan se volta para a graça cristã: "o interesse que temos pelo cristianismo no nível da teoria se mede, precisamente, pelo papel conferido à graça" (Lacan, 2008a, p. 121).
Os temas da graça e da aposta de Pascal se aproximam historicamente, uma vez que Pascal, como nos lembra Lacan (2008a), era jansenista, fazendo referência ao movimento de reforma dentro do cristianismo que se centrou sobre os temas da graça e da liberdade. Os jansenistas possuíam a concepção de que a justiça divina independe de qualquer relação de merecimento. A graça divina é considerada por eles como dom, próxima do acaso. Ela nunca poderia ser exclusiva de um povo ou indivíduo escolhido a priori. Além disso, não haveria como buscá-la por meio de algum tipo de esforço ou caminho (Montalban, 1953).
Dentre os apóstolos que falam sobre a graça, São Paulo é aquele que melhor traz sua dimensão de acontecimento inaugural e abertura ao infinito. Alain Badiou, em um livro dedicado ao estudo de São Paulo, demonstra como, entre os apóstolos, ele é o que apresenta a graça na sua radicalidade máxima, situando-a como pura ruptura com o campo da lei e passagem de uma vida finita para infinita. O que está em jogo na graça nos escritos de São Paulo é da ordem de um encontro com um real inominável que nenhuma lei prepara e que nenhuma medida antecipa. Com a ajuda de Alain Badiou, abordaremos o momento descrito como encontro com a graça divina vivido por São Paulo para tentarmos compreender a experiência de uma abertura ao infinito na vida, que aproximamos do infinito atual.
São Paulo e a convocação em Damasco
São Paulo utiliza sua própria experiência para falar do encontro a partir do qual ele se torna apóstolo de Cristo. Até então, Paulo era um judeu ortodoxo engajado na perseguição aos cristãos, os quais considerava como hereges. Antes de se converter, era conhecido como Saulo de Tarso, cidade onde nasceu.
Andando por uma estrada de Jerusalém para Damasco, Paulo tem um encontro com a graça divina que lhe revela a verdade e ele então se converte ao cristianismo. Neste momento de sua vida, ele é chamado para uma missão: "é o 'eu sou' como tal que é convocado no caminho para Damasco por uma intervenção absolutamente casual" (Badiou, 2009, p. 23). Uma voz o convocou pessoalmente e, a partir dali, ele se declara cristão.
Esse acontecimento provoca uma ruptura completa com a lei anterior e a instauração de uma nova vida associada ao nascimento do sujeito cristão. Ao contrário do que ocorreu com outros apóstolos de Cristo, nada o preparou para esse encontro. Após essa experiência, Paulo deixa de perseguir os cristãos e se torna um missionário da causa cristã. Assim, também a mudança de nome indica uma quebra da ligação com a tradição familiar e com algo que o identificava para si e para os outros.
Cabe lembrar que no movimento jansenista, ao qual São Paulo se integrou após sua conversão ao cristianismo, não há nada que leve à graça, ela é da ordem de um dom e não pode ser atingida deliberadamente através de alguma abnegação ou sacrifício.
A partir do momento em que Paulo se encontra com a graça, tornando-se apóstolo, ele é entranhado por uma potência infinita que tem como efeito uma "sublevação da vida" (Badiou, 2009, p. 80). Esse acontecimento da graça abre o caminho de Paulo para caminho infinito da graça, funcionando como uma reatualização da própria ressurreição de Cristo.
Dentro do pensamento de São Paulo, é pelo fato de ter ocorrido a ressurreição de Cristo que é possível a "surreição" de um novo sujeito (cristão). Da mesma forma que, após a morte de Cristo, nada prepararia para a sua ressurreição, também Paulo é retirado do mundo dos mortos relacionado por ele ao "pensamento de carne" (Badiou, 2009, p.80).
A graça liberta Paulo da lei do pensamento da carne, assim como libertou Cristo da morte. Há um constante paralelo entre morte-ressurreição de cristo e o encontro com a graça divina vivida pelo próprio Paulo. O encontro com a graça instaura uma nova vida, já que a vida anterior à graça era uma vida centrada na morte: "A ressurreição é, para Paulo, aquilo a partir do que o centro de gravidade da vida está na vida, pois anteriormente, sendo colocado na Lei, ele organizava a subsunção da vida pela morte" (Badiou, 2009, p. 74).
Essa introdução da vida infinita na vida mortificada regida pelas leis (que ocorre na ressurreição) se traduz como a passagem para uma vida infinita que se revela na possibilidade de romper com o regime da morte. Essa passagem encontra paralelo com a morte de Cristo, já que uma vez tirado do mundo dos mortos na ressurreição, "ele não morre mais" (Badiou, 2009, p. 82).
Lacan da graça, Lacan da transgressão
Essa leitura de São Paulo, estabelecida a partir das indicações de Lacan no Seminário 16, explorada por Alain Badiou, difere daquela de um outro momento na teoria do próprio Lacan.
No Seminário 16, o encontro com a graça aparece como uma operação que liberta da lei. Essa leitura não corresponde à de Lacan no Seminário 7: A ética da psicanálise.
Enquanto que, no Seminário 16, as indicações de Lacan sobre o pensamento de São Paulo estabelecem que a ruptura desencadeada por esse encontro com a graça implica numa ruptura com a lei ou organização anterior, no Seminário 7, Lacan ressalta, por diversas vezes, o nó do pecado com a lei e utiliza São Paulo como uma de suas referências. Segundo Lacan: "Foi preciso que o pecado tivesse tido a Lei para que ele, diz São Paulo, se tivesse tornado - nada diz que ele consegue, mas pôde entrever tornar-se - desmesuradamente pecador" (Lacan, 1997, p. 217). A partir de uma leitura dos escritos de São Paulo, Lacan parte da afirmação de que a instauração da lei produz a possibilidade do pecado (como transgressão à lei). A interdição - produto da lei - aparece como veículo imprescindível para a transgressão, não havendo possibilidade de transgressão sem lei.
Em contrapartida, na perspectiva apontada por Lacan no Seminário 16 e adotada por Alain Badiou sobre São Paulo, o encontro com a graça de Cristo vem em rompimento com a lei e não é dependente dela. A abertura para a vida infinita não é correlata a uma transgressão da lei já que todo o registro da lei, sempre ligado por São Paulo à mortificação, se esboroa no momento em que essa nova vida toma lugar. Assim, a ideia da transgressão como enodada à lei não é aplicável à concepção da graça do Seminário 16, já que, novamente, as elaborações sobre a graça trazem a noção de uma ruptura que instaura uma nova vida (infinita) e não a ideia de que se transgride alguma coisa a partir de outra. Nessa concepção, a nova vida instituída não carregaria dependência com a ordem anterior, como ocorreria no caso da transgressão e da lei.
A graça incalculável
Assim como ocorre na ressurreição de Cristo, o encontro com a graça produz em São Paulo o nascimento de um novo sujeito: a ressurreição passa a contar como acontecimento fundador "zero" e é a partir dela que o novo sujeito pode se contar como 1. Para entender a essência dessa ruptura, é preciso opor - como São Paulo faz - a ordem dada pela lei à outra coisa que toma lugar após o encontro com a graça e que é puro excesso sobre a ordem anterior.
A história de Paulo mostra uma concepção da graça como algo da ordem do incalculável. Ele não busca a graça por algum tipo de caminho religioso, absolutamente nada garantiu ou provocou esse encontro, que se apresenta como um acontecimento na vida de Paulo. Badiou define a noção de acontecimento como algo impossível de ser inserido numa totalidade. Ele se caracteriza por estar sempre em excesso em relação à situação não sendo dedutível dela. A graça é aquilo que sempre está em excesso em relação à lei. É a partir desse incalculável, que é a ressurreição de Cristo, que se pode contar o novo sujeito.
Na dimensão da lei relacionada por Paulo à dimensão da carne, tudo conta. Se fosse tomada nessa dimensão, a graça poderia ser atrelada a um "dever" ligado a um merecimento, por exemplo, pelo número de caridades ou obras realizadas por alguém. O acúmulo de caridades conduziria à graça divina. Enquanto se está no registro da lei, também permanecemos no campo das finitudes, tudo pode ser medido e contado. Por essa relação com a finitude, a lei sempre vai estar associada à morte para São Paulo.
O ponto diferencial dessa perspectiva de São Paulo é que seu encontro com a graça não é antecipável e por isso assume o caráter de acontecimento. Após o encontro com a graça, Paulo não busca nenhum tipo de garantia ou confirmação do fato de ter sido convocado. Ele não vai, por exemplo, em busca dos apóstolos antigos, os que conheceram Cristo, para confirmar a sua vocação. A realidade da ressurreição (tanto de Cristo, como dele próprio) não é tocada nem discutida. Esse acontecimento para Paulo é sem provas e é exatamente nisto que reside sua força: "é a ausência de provas que obriga a fé" (Badiou, 2009, p. 62). Não é apoiando-se na realidade desse chamado que Paulo justifica a sua virada em apóstolo, mas é, sobretudo, pelo fato de ele declarar esse acontecimento em nome próprio e colocá-lo na posição de acontecimento fundador (O). Ele se torna filho desse acontecimento: "Assim tu não és escravo, mas filho, tu és também herdeiro, pela graça de Deus" (Badiou, 2009, p. 71). Para São Paulo, o que garante essa vida na graça parece ser a fidelidade à possibilidade de uma vida nova (morte da morte) aberta pelo acontecimento, que é uma possibilidade inédita, ela mesma dependente de uma graça pertinente ao acontecimento. A palavra de ruptura é o que realmente sustenta a verdade do acontecimento e não qualquer prova da aparição ou visão que ele possa ter tido. Conforme afirma Badiou: "Toda a aposta é que um discurso que configure o real como puro acontecimento possa ter consistência" (Badiou, 2009, p. 70).
A experiência de São Paulo mostra que, no caso da graça, o mais importante não seria esse encontro "em si", mas a nomeação ou não desse encontro (como um acontecimento). É a aposta sem provas de um encontro ou convocação como sendo o acontecimento fundador que provoca a abertura para uma dimensão da graça como superabundância. A "morte da morte" instaura uma nova vida e o devir de um novo sujeito. Há na graça uma renúncia da vida (anterior), que para São Paulo é permeada pela morte. A liberação referente ao ato de declaração do acontecimento se traduziria na liberdade de uma vida desligada da morte; logo, infinita.
Vimos como a aposta de Pascal se dá sobre um fundo de incerteza: é a possibilidade real da inexistência de Deus que sustenta a possibilidade da aposta. Por esse motivo, ela não pode acontecer sem um ato (de fé) por parte do sujeito.
No Seminário 16, Lacan utiliza a referência à graça para enfatizar o desejo do Outro: "...quando se trata de um jogo representado sob a pena de Pascal, como podemos desprezar por um só instante a função da Graça, isto é, do desejo do Outro?" (Lacan, 2008a, p. 145). Podemos perceber que o desejo do Outro, Deus, no exemplo de Pascal, apresenta-se como algo imponderável, no infinito, por isso a escolha é forçada diante da inconsistência desse Outro.
Lacan coloca o Outro em questão, pergunta-se sobre sua existência. A inconsistência do Outro é fundamental na situação e é colocada em questão nessa discussão sobre a aposta. Ela se tornará central nos textos posteriores de Lacan.
Com o que se aposta?
Após buscarmos, na referência à graça cristã, uma maneira de pensar uma entrada do infinito na vida, retornaremos à aposta de Pascal para tratar de um aspecto da aposta ainda não contemplado até aqui. Há uma aposta inicial sobre a existência de Deus; mas, com o que se aposta?
Lacan comenta esse aspecto específico da aposta pascaliana e afirma que aquilo com o que se aposta, o cacife em jogo, é a própria vida. Porém, posta em relação à "infinidade de vidas infinitamente felizes" - asseguradas no caso da existência de Deus, a vida, por sua finitude, ganha o valor de um nada. Aquilo com o que se aposta é a vida, a vida atual que, diante de uma infinidade de vidas infinitamente felizes, conta-se como um nada (Lacan, 2008a). É essa vida anterior (um nada) que precisa ser perdida para a aposta em um Deus-infinito.
A noção de uma perda inicial com a qual se aposta parece ser a principal relevância do recurso de Lacan a Pascal no Seminário 16. Lacan relaciona esse um nada ao objeto a. A entrada do sujeito na linguagem é atrelada à perda desse objeto e o objeto a, conforme Lacan indica nesse seminário, é aquilo que na teoria lacaniana encarna o mais-de-gozar. Há, portanto, um gozo que precisa ser perdido para iniciar a partida: "Por um lado, há uma vida a cujo gozo se renuncia para fazer dela a aposta, exatamente da mesma forma que Pascal assinala, no estudo da regra da partição, que, quando o cacife entra em jogo, está perdido" (Lacan, 2008a, p. 115).
O gozo é um conceito chave na obra de Lacan e foi teorizado como um dos componentes estruturais do funcionamento psíquico. Inicialmente, o termo foi relacionado ao prazer sexual, para então ser pensado como transgressão da lei. Num segundo momento, no qual situamos o Seminário 16, esse gozo foi pensado como objeto a que corresponde ao objeto de gozo decantado da relação do sujeito com o Outro (Vieira, 2008). em um momento posterior, Lacan vai pensá-lo no âmbito de uma teoria da identidade sexual, estabelecendo uma divisão entre gozo fálico e gozo feminino, ou suplementar.
Além da referência à aposta de Pascal, Lacan (2008a) se reporta ao conceito marxista de mais-valia. Assim como a aposta de Pascal, a mais-valia aponta para a dimensão do objeto a como perda de gozo e ao mesmo tempo destaca que esse gozo é extraído, portanto, parte do campo do Outro. A ideia fundamental é de que a reação com o Outro, Outro-Deus ou Outro-capitalismo pressupõe a extração de um objeto que retorna como objeto (a) a ser recuperado. No escopo deste artigo, não estudaremos de forma aprofundada a relação entre objeto a com a aposta e a mais-valia, porém é importante destacarmos que essa a dimensão da perda como extração é fundamental. Para entrar no jogo, é preciso apostar com algo que já está de início perdido. Há uma perda de gozo necessária para iniciar a partida. Algo da própria vida precisa ser extirpado. Assim, o campo do Deus Outro produz um gozo excedente que ao mesmo tempo é aquilo que o sustenta. Esse gozo é chamado por Lacan de objeto a (2008a).
Miller (2005)ii destaca a importância dada por Lacan à aposta de Pascal no Seminário 16. Trata-se de uma tentativa de logificação do objeto a. Na aposta, o prazer pode se inscrever na partida como um significante. O gozo pode ser tributável. Na partida, ele toma o valor de um elemento significante que destacamos como um nada e com o qual se aposta.
Retomando as operações de alienação (e separação) trabalhada por Lacan no Seminário 11, às quais fizemos referência anteriormente, percebemos que diante da alienação ao Outro, a separação implicaria em uma relação com um Outro que não é completo e em que o objeto a é o produto e, ao mesmo tempo, o que evidencia o furo do Outro.
A referência à aposta de Pascal parece atualizar a dimensão da alienação e separação já apresentada por Lacan no Seminário 11, mas introduz algo a mais. A novidade é que o Outro ao qual se aliena não existe a priori. Trata-se, portanto, de uma aposta em que a própria existência de um dos parceiros não é garantida (Lacan, 2008a).
A inconsistência do Outro
Vemos que a referência a Pascal neste momento do ensino de Lacan não é casual. Há em sua teoria um deslocamento sutil de ênfase do Deus cartesiano para o Deus pascaliano, em um momento em que a interrogação sobre a existência do Outro se tornará cada vez mais importante para Lacan.
O Deus de Pascal se diferencia do Deus cartesiano, sobretudo, por não ser tratar de um Deus da construção intelectual. O Outro de Pascal apresenta-se como um Deus da revelação (Guègen, 2008). É também esse Deus que está em jogo na experiência da graça. Essa perspectiva se expressa em uma relação diferente no que concerne o Outro. Enquanto a perspectiva de Descartes busca investigar sobre a prova final da consistência do Outro, fazendo crer num Outro do Outro que garantiria sua existência, a aposta de Pascal apresenta uma outra perspectiva: esse lugar último, garantidor do ser, não existe, ou melhor, nunca existiu. Pierre Guilles Guèguen comenta sobre essas duas versões de Deus - de Descartes e de Pascal - em um artigo intitulado A Gênese do Outro que não existe:
A epistemologia de Pascal é mais complexa, pois, segundo ele, Deus está em qualquer lugar e em lugar nenhum, seu lugar não está designado. O Outro não é somente incompleto como em Descartes, e dependente de uma base suposta. O Outro de Pascal é inconsistente, em todo lugar e em lugar nenhum, ele não existe, é por isto que ele deve ser objeto de aposta. É a aposta que faz existir o Outro e não o saber; é o ato do sujeito, sua crença (Guèguen, 2008).
A revelação da inexistência do campo do Outro não implica sua inviabilidade, mas afirma a responsabilidade do sujeito nessa partida crucial. Na concepção da aposta pascaliana trazida por Lacan, é preciso fabricar o um Outro e, ao mesmo tempo, o furo a partir do qual o sujeito se constitui. Assim como a escolha forçada diz respeito a alienação ou não ao Outro, a aposta de Pascal também se reporta ao Outro. A existência do Outro não é garantida e a aposta acontece sobre o fundo dessa inconsistência.
E o início da análise?
Podemos nos perguntar se o que ocorre numa análise é também da ordem de uma aposta. Ao tomarmos a aposta como convocação pelo real, poderíamos pensar no início de uma análise como uma aposta nos moldes da aposta pascaliana, permitindo o advento de um sujeito (do inconsciente); operação necessária ao começo de uma análise. Tal aproximação não nos parece imprudente uma vez que a justificativa dada por Lacan (2008a) para o trabalho desenvolvido no Seminário 16: De um Outro ao outro é a tentativa de definir o discurso psicanalítico. Estaríamos portanto abordando o tema do discurso psicanalítico, porém na especificidade do início de uma análise.
Cabe destacar que o objetivo do trabalho é de contribuir para a Teoria Psicanalítica e ao mesmo tempo fazê-la dialogar com outros campos teóricos como a Filosofia e a Teologia. Porém, trata-se de uma aproximação cuidadosa, já que se baseia nas referências teóricas utilizadas por Lacan, ainda que utilizadas, no nosso caso, para pensarmos o início de uma análise. Ainda sim, como acontece em todo diálogo com outros campos teóricos, se a aproximação pode contribuir para reflexões e reformulações nos campos estudados, pode também, se usada de forma descontextualizada, servir para reforçar uma ideia deturpada. Em nosso caso, o erro seria, por exemplo, supor que a psicanálise se equivaleria à religião, quando o que estamos tentando destacar consiste em demonstrar a existência de uma lógica presente em uma operação específica da aposta de Pascal, que seria próxima da operação de instauração do Inconsciente no início de uma análise.
Jacques-Alain Miller, ao falar sobre religião por ocasião de seu seminário de 2002-2003, afirma que tanto a psicanálise quanto a religião caem para fora do campo da ciência. Também afirma que ambas se manifestam na lacuna ocupada por uma falha no saber (Miller, 2006). Assim, ainda que de modo distinto, ambas se sustentam pela crença - no caso da psicanálise, sobretudo, na entrada. É preciso apostar no inconsciente para começar e essa aposta costuma assumir a forma de uma crença.
Ao falar da abertura ao inconsciente no Seminário 11, Lacan retoma a expressão de Freud acerca do inconsciente como uma hipótese. O inconsciente se apresenta em uma análise como um não sabido. Ainda no Seminário 11, o inconsciente é definido como se manifestando naquilo que se diferencia da lei. Lacan retoma Freud e seu percurso nos fenômenos de linguagem - como o chiste, o lapso e o sonho - para abordar uma dimensão do inconsciente que não se resume a uma mensagem. Segundo Lacan, Freud busca nesses fenômenos a noção de inconsciente como hiância, um tropeço que só acontece pela via do não-saber:
No sonho, no ato falho, no chiste - o que chama atenção primeiro? É o modo de tropeço pelo qual eles aparecem. [...] Tropeço, desfalecimento, rachadura. Numa frase pronunciada, escrita, alguma coisa se estatela (Lacan, 2008b, p. 32).
O encontro com o inconsciente surge como uma surpresa, já que aparece sempre em descontinuidade no discurso. Lacan retoma o inconsciente freudiano para ressaltar a dimensão de surpresa e a inclusão de um não sabido na vida (Lacan, 2008c). É nesse sentido que a entrada em análise pode ser entendida como uma aposta no inconsciente.
A "surreição" do sujeito do inconsciente em uma análise tem como ponto de partida uma aposta que se faz sobre um fundo de incerteza. O início de uma análise sempre traz à cena a noção do limite do saber e convoca a uma aposta sem garantias no sujeito do inconsciente tanto por parte do analista quanto do analisando.
Um "acontecimento" define o momento de entrada do sujeito em análise. Nesses momentos de surpresa, algo de uma nova lei se instaura e aquilo que era antes perde em sentido. Essa definição se aproxima da ideia do infinito atual, que exploramos anteriormente.
A dimensão da aposta como espécie de escolha forçada, que relacionamos à aposta pascaliana, também estaria presente no início de uma análise. A partir do momento em que se faz parte do jogo e o inconsciente se apresenta em uma análise, estamos comprometidos e é preciso fazer uma aposta. A aposta naquilo que faz furo no saber pode produzir uma mudança do centro de gravidade, instaurar o novo.
Entretanto, essa aposta só poderia ter valor de ato a partir do trabalho do sujeito que o instaura no lugar de acontecimento inaugural. A referência à graça cristã, tal como destacada por Lacan e Badiou, é o que melhor aborda essa dimensão de ruptura necessária ao início de análise. Ela fornece uma dimensão essencial à noção de aposta pascaliana mostrando que o que sustentaria a aposta - agora no inconsciente - não é apenas o aparecimento do sujeito do inconsciente, mas o ato de declaração. A declaração retoma o aparecimento do inconsciente e faz disso o ponto (0) a partir do qual se instaura uma nova contagem, um novo arranjo dos significantes e, por consequência, um novo lugar subjetivo. Para Pascal, trata-se da abertura para uma "infinidade de vidas" e, para São Paulo, uma mudança do centro de gravidade na própria vida que a subleva à categoria de vida infinita. No contexto de uma análise, teríamos uma lógica similar, já que o inconsciente se apresenta como hiância no discurso e essa abertura produz um efeito de infinitização. Algo como um leque que se abriria numa expansão de possibilidades.
Em uma análise, a instauração do sujeito do inconsciente produz essa abertura dos possíveis e por se dar como descontinuidade no saber, a aposta no inconsciente exige, à primeira vista, um ato (de fé) no sentido de uma crença sem provas.
A introdução do objeto a como elemento com o qual se aposta, específica da leitura lacaniana da aposta de Pascal, acrescenta uma novidade a essa crença: para apostar é preciso dar um pedaço de si. Há uma perda de gozo que aparece como condição para entrar no jogo (de uma análise). Essa perda de gozo é produtora do movimento do discurso inconsciente, pois aparece como promessa futura de completude, de um Outro sem faltas. Também é possível pensar que a lógica presente no inconsciente implica necessariamente em efeitos de perda, não havendo relação com o Outro sem perda de gozo.
Na perspectiva aberta pela aposta de Pascal e pela graça, essa aposta no inconsciente não estaria apoiada na tentativa, de cunho cartesiano, de garantir uma consistência última de um Outro. A sustentação da existência do Outro se apoiaria justamente na sua inconsistência de base, e é nisso que reside a força da aposta no inconsciente.
A experiência de análise convida à instauração de um lugar subjetivo no cenário de um Outro inconsistente. É também o que aproximaria a análise do campo das artes e a distanciaria de uma busca investigativa por provas e da pretensão de uma ciência. Se a existência do Outro não é garantida, a aposta se apresenta como novo paradigma.
Considerações finais
Concluímos que a aproximação entre a aposta de Pascal e o início de uma análise é possível e, além disso, ela traz importantes contribuições para a clínica psicanalítica. O processo de início de uma análise implicaria em uma aposta na existência do inconsciente. Tal como o Deus de Pascal, não há garantias de sua existência. A abertura ao inconsciente implica em um ato, uma escolha forçada de fabricação do inconsciente e é dessa suposição que tem início uma análise.
A referência a Pascal (com Lacan) introduz também a perda de gozo, que pode ser deslocada para se pensar o contexto de início de um tratamento psicanalítico. A aposta no inconsciente exige também que o sujeito aposte com parte de si uma parcela de seu gozo. Assim, o início de análise implica a decisão de dar lugar ao Outro e o ato de apostar com esse um nada de gozo; essa operação instaura o Outro e, ao mesmo tempo, uma abertura no campo do Outro, gerando efeitos de infinitização.
Referências
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Endereço para correspondência:
Marcus André Vieira
mav@litura.com.br
Luisa Beatriz Pacheco Ferreira
luisabeatrizfer@gmail.com
Submetido em: 26/08/2015
Revisto em: 29/07/2016
Aceito em: 02/05/2017
i A distinção dos registros Simbólico, Real e Imaginário é fundamental para a compreensão do ensino de Lacan. Lacan (2005) os define como essenciais da realidade humana. Na teoria de Lacan, o simbólico corresponde ao campo do Outro, conjunto dos significantes; o imaginário é o campo das significações cristalizadas; e o real é o campo que estaria para além do simbólico, é o campo do não sentido.
ii Miller, J.-A. (2005). Seminário Iluminações profanas (Comentário do Seminário 16 do Outro ao outro).