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Arquivos Brasileiros de Psicologia

 ISSN 1809-5267

     

 

ARTIGOS

 

Humor mórbido: defesa e tradução do horror na Shoah

 

Black humor: defense and translation of horror in the Shoah

 

Humor mórbido: defensa y traducción del horror en Shoah

 

 

Fúlvio César CasemiroI; Viviana Carola Velasco MartinezII

IPsicólogo. Centro de Atenção Psicossocial III (CAPS-III). Prefeitura Municipal de Maringá. Maringá. Estado do Paraná. Brasil
IIDocente. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade Estadual de Maringá (UEM). Maringá. Estado do Paraná. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Analisamos o humor mórbido produzido pelas vítimas dos campos de concentração nazistas, durante a catástrofe social que foi a Shoah, do ponto de vista da defesa, proposta por Freud, com o engrandecimento do ego, a preservação da integridade narcísica do ego, e como forma ímpar de extrair prazer da própria dor. E do ponto de vista da tradução psíquica do sexual, a partir da Teoria da Sedução Generalizada de J. Laplanche. Trata-se tanto da tradução do excesso transmitido pelo algoz, violência extrema, como da retradução do próprio polimórfico perverso reativado nas vítimas. Discutimos o paradoxo que se instala, pois, se por um lado o humor mórbido teria uma função defensiva e tradutiva do excesso para quem o produz e para quem ri dele, por outro, pode representar um ato de agressão e revitimização de quem se ri.

Palavras-chave: Psicanálise; Humor mórbido; Teoria da sedução generalizada; Shoah; Trauma.


ABSTRACT

We analyze the black humor produced by the victims of the Nazi concentration camps during the social catastrophe that was the Shoah, from the point of view of the defense, proposed by Freud, with the enlargement of the ego, preserving his narcissistic integrity, and as an odd way to extract pleasure from pain itself. Also from the point of view of psychic translation of the sexual, with the Theory of Generalized Seduction of J. Laplanche. This concerns both the translation of excess transmitted by the executioner, extreme violence, as well as the retranslation of polymorphic perverse reactivated in the victims themselves. We discuss the paradox that is installed because if on one hand the black Humor would have a defensive and translational function of the excess to those who produce and who laughs with that, on the other hand, may represent an act of aggression and victimization of those who are laughed at.

Keywords: Psychoanalysis; Black humor; Generalized Theory of Seduction; Shoah; Trauma.


RESUMEN

Analizamos el humor mórbido producido por las víctimas de los campos de concentración nazis, durante la catástrofe social que fue Shoah, desde el punto de vista de la defensa, propuesto por Freud, con el engrandecimento del ego, la preservación de la integridad narcisista del ego, y como forma impar de extraer placer del propio dolor. Y desde el punto de vista de la traducción psíquica de lo sexual, a partir de la Teoría de la Seducción Generalizada de J. Laplanche.. Se trata tanto de la traducción del exceso transmitido por el verdugo, violencia extrema, como de la retraducción del propio polimórfico perverso reactivado en las víctimas. Discutimos la paradoja que se instala, pues, si por un lado el humor mórbido tendría una función defensiva y traductora del exceso para quien lo produce y para quien se ríe con eso, por otro, puede representar un acto de agresión y revictimización de quien se ríe.

Palabras clave: Psicoanálisis; Humor mórbido; Teoría de la Seducción Generalizada; Shoah; Trauma


 

 

Introdução

Como parte integrante de pesquisa maior sobre o trauma e a neurose traumática depois de Freud, este artigo discute o humor mórbido produzido nos campos de concentração nazista - os Lager - durante a Shoah1.

Pareceria estranho falar de humor e, ainda, mórbido, num contexto onde as vítimas do nazismo tiveram que enfrentar atos de extrema violência, humilhações, doenças, privações e destituição da sua subjetividade. Mas a grandeza da sua alma encontrou no humor, inclusive no humor mórbido, um recurso psíquico defensivo fundamental para poder lutar pela sobrevivência aí onde a realidade colocava à prova a esperança e a própria fé, principalmente quando se considerava, segundo Lipman (1991, p. 5), que "Deus, se não estivesse morto, estava quieto ou impotente".

É este tipo de humor que nos interessa, e o denominamos "mórbido"2, precisamente porque foi produzido em torno da desgraça extrema das próprias vítimas, fazendo-as rir de si mesmas, aliviando um pouco o sofrimento, mas também as vitimando duplamente, quando ria-se delas mesmo que considerassem que não havia do que rir, ao contrário, tal humor intensificava a sua tragédia. É um tipo de humor que surpreende por seu sentido paradoxal, de promover o riso e o prazer numa situação de horror, o que ainda hoje nos causa constrangimento.

Por outro lado, também nos interessa o humor mórbido na sua potencialidade em termos de tradução do horror, tradução do excesso, do polimórfico perverso reativado nas vítimas e daquele veiculado pelo outro - o algoz -, o que podemos denominar, com Laplanche (1992a), de enigmático, numa relação profundamente assimétrica.

Levi (1988/1947), que inaugura a literatura de testemunho com seu impressionante livro "É isto um homem?", refere-se ao humor mórbido em Auschwitz. Quando chegava um novo prisioneiro, mandavam-no falar em alemão com "o mais feroz dos Kapos3 para perguntar [...] se é verdade que seu Comando é o Kartoffelschäl Kommando (Comando de descascar batatas), e se é possível alistar-se nele" (p. 26), resultando em repreensão, mas também num deleite sádico dos veteranos.

Lipman (1991), filho de sobreviventes, reuniu ditos e canções humorísticos produzidos durante e após a Guerra. Em seu livro "Rindo no inferno: o uso do humor durante o Holocausto", encontramos mais exemplos: "Dois judeus estão para entrar na câmara de gás em Auschwitz. Um deles se vira para o guarda da SS para fazer um último pedido, um copo d'água. 'Shah, Moshe', diz seu amigo. 'Não cause problemas'" (p. 193).

Em "Humor como mecanismo de defesa", Ostrower (2000) fornece muitos exemplos e os veremos ao longo deste artigo: "Os alemães entraram em Varsóvia e em todos os lugares que iam diziam: 'judeus fora, alemães dentro'. É assim como chegamos ao cemitério judaico..." (p. 6).

Por outro lado, os descendentes diretos dos sobreviventes - segunda geração ou 2G - encontraram motivos para fazer humor mórbido em torno da Shoah, provocando muita polêmica. Na peça de teatro itinerante nos Estados Unidos, "Levando a Shoah pela estrada", encenada em 1999 por Lipkin e Waldoks (cit. por Oster, 1999), transformaram em humor o difícil legado emocional deixado pelos pais. Diante da crítica de um sobrevivente: "Diversão! [...] Você está fazendo diversão do nosso sofrimento?" (p. 3), Lipkin responde: "Não estamos tirando sarro do que você passou. Estamos tirando sarro do que estamos passando agora" (p. 3).

Filler (cit. por Oster, 1999), no seu show "Soque-me no estômago", adotou desde paródias mais leves até o humor mórbido: "Boa noite, senhoras e genocídios" e: "A última vez que vi tantos judeus juntos eles estavam nus!" (p. 1). Também Fox (cit. por Oster, 1999), outra escritora da 2G, conta algumas piadas que costumava dizer quando era criança: "Por que Hitler se suicidou? Por causa da conta do gás" (p. 3).

Em "Do que a gente fala quando fala de Anne Franck", Englander (2013) transforma em humor mórbido o reencontro de dois jovens casais de judeus, da 2G, que transformam em um jogo angustiante a ideia de um segundo Holocausto, se perguntando quem dos seus conhecidos os esconderia, e quem os entregaria. Uma das mulheres é levada a concluir que o seu próprio marido não a esconderia.

Porém, Rosenbaum (cit. por Oster, 1999), também da 2G, faz uma crítica contundente contra esse tipo de humor:

Eu só não acho que o massacre sistemático de 6 milhões de pessoas seja engraçado [...] os impactos psicológicos, as disfunções provocadas, a cicatriz - essa ideia de que a atrocidade de Auschwitz era tão grande que não poderia ser anulada em uma geração. Isso vive, produz, se transporta. Isso tem vida própria e é vivido através das crianças (p. 4).

Um exemplo relativamente recente, ocorrido no Brasil, mostra ainda o impacto dessa discussão. Gentili (cit. por Koshermap Brasil, 2011), humorista brasileiro, decidiu fazer uma piada sobre o posicionamento contrário dos moradores - em grande parte judeus - do bairro Higienópolis, em São Paulo, à construção de um metrô pela prefeitura: "Entendo os velhos de Higienópolis temerem o metrô. A última vez que chegaram perto de um vagão foram parar em Auschwitz!!!" (§3). A indignação foi imediata.

É que fazer humor mórbido sobre a Shoah é sempre um tema delicado, controverso, que toca em feridas ainda abertas para muitos, transmitidas de pais para filhos. Não é isso o que o expectador da peça de Lipkin e Waldocks denuncia? A dimensão intergeracional desse evento traumático indica que ainda algo vaga repetidamente por gerações. Uma mensagem enigmática, diria Laplanche (1992a), que demanda uma tradução, o enigma do morto, daqueles que não podem mais se manifestar. "Somente morreram os bons...", diz Levi e talvez seu suicídio, assim como o de tantos outros, como afirmam Rodrigues e Martínez (2014), fosse a tradução possível diante do peso de tantos mortos no cenário macabro do Lager.

O humor mórbido, então, nos coloca diante de uma questão ético-moral. Podemos rir nas situações de catástrofes sociais? Se sim, quem tem o direito de rir? Aqueles que as vivenciaram diretamente ou também aqueles que foram espectadores mais distantes? E ainda, o que separa o efeito de alívio frente ao excesso - a defesa - de um ato de agressão com potencial de atualizar o traumático, quando de quem se ri é também uma vítima? Essas são questões importantes, já que a Shoah ultrapassa o âmbito particular, diz respeito, diz respeito à humanidade. Contudo, é necessário, para avançar, considerar que o humor mórbido é produzido aí onde há desespero:

[...] o humor negro é o humor anti-social, humor contra a sociedade. Ao mesmo tempo, lhe damos um destaque por causa do vínculo especial que parece manter com a condição humana em si: é o que expressa a fórmula de Chavée. Em um mundo sem Deus, sem moral, sem alto nem baixo, humor negro é a "delicadeza do desespero", a ferramenta pela qual o homem "lapida" a consciência de sua própria nulidade (Moran, & Gendrel, 2007).

É o mundo do Lager... o Anus mundi (Levi, 2004, cit. por Rodrigues, 2013), o reino do polimórfico perverso.

 

Humor, humor patibular, humor mórbido: defesa (e satisfação)

Embora Freud (1905/1989; 1927/1990) diferencie as peculiaridades do chiste, o cômico, a ironia e o humor, agrupamos todas essas modalidades sob o termo humor. Não só porque o material levantado não nos oferece detalhes dessa produção, em relação a quem se dirige, por exemplo, ou ao número de participantes no instante da produção etc., mas porque a condensação em torno de um único termo permite considerar o humor tanto como satisfação sexual - que Freud (1905/1989) atribui aos chistes, à ironia e ao cômico -, como defesa, através do engrandecimento narcísico do ego frente ao trauma (1927/1990). Além disso, o humor encontra na comicidade, ou mesmo na ironia, uma forma de expressão. Há um parentesco essencial, diz Freud (1905/1989), entre o humor, o chiste e o cômico.

Contudo, e diferentemente das outras manifestações, o humor tem a peculiaridade de centralizar-se em torno de uma única pessoa que adota a atitude humorística e uma segunda, como expectadora, que usufrui desse humor, ou pode ter uma pessoa que não participa no processo humorístico, mas uma segunda a faz objeto dessa produção (Freud, 1927/1990). No primeiro caso, ri-se de si próprio e faz o outro rir, no segundo, ri-se às custas do outro.

De qualquer maneira, a essência do humor é substituir os afetos penosos, decorrentes de alguma circunstância, por saídas bem-humoradas, evitando precisamente as exteriorizações de tais afetos, tanto da parte de quem produz o humor, como daquele que o escuta, que é poupado de sentir, nesse caso, compaixão ou pena, resultando numa economia psíquica (Freud, 1927/1990).

O humor mórbido, que aqui nos interessa, denominado por Freud (1905/1989) Galgenhumor ou humor patibular, fornece maiores detalhes de como o psiquismo pode recorrer à pilhéria para lidar com a dor. O exemplo do condenado à forca é ilustrativo: "um criminoso, levado à forca numa segunda-feira, comentou: 'Bem, a semana está começando otimamente!'" (1905, p. 216-17; 1927, p. 157). E a afirmação do autor:

Este é efetivamente um chiste, já que o comentário é bem adequado em si mesmo, mas por outro lado está deslocado de uma maneira absurda, já que para o próprio sujeito não haveria eventos ulteriores naquela semana. Mas o humor está envolvido na confecção de tal chiste - isto é, ao desrespeitar o que distingue o início dessa semana de todas as outras, ao negar a distinção que podia originar-se, motiva emoções bastante especiais. [...] Deve-se admitir que há algo, como uma grandeza de alma, que se oculta nessa blague (humorada), uma tenacidade com que o homem se agarra a seu habitual, recusando tudo que possa destruí-lo e levá-lo ao desespero. Essa espécie de grandeza do humor aparece inequivocamente em casos onde nossa admiração não é inibida pelas circunstâncias da pessoa humorística (Freud, 1905/1989, p. 217).

Ora, a ideia do patíbulo nos leva a pensar, além dos afetos penosos, na própria ideia de morte, ou mesmo de aniquilamento do ego e é essa a vivência no Lager, um patíbulo para as vítimas e ao qual muitas sobreviveram - livrando-se da loucura inclusive - porque puderam rir.

Mas o humor não se restringe a um aspecto econômico. A superioridade e exaltação do ego é justamente a tônica do artigo "O humor", no qual Freud (1927/1990) afirma que, diante de uma realidade penosa, o humor oferece o triunfo do ego e do princípio de prazer, uma defesa sofisticada contra o excesso.

Isto é muito interessante, pois a produção do humor, para Freud, é a mais elevada operação defensiva onde não se produz o recalcamento, pois a representação se mantém enlaçada ao afeto penoso, e é precisamente daí que se obtém prazer, mediante a descarga (1905/1989, p. 221). Por outro lado, é uma forma do eu rejeitar a exigência da realidade, para impor o princípio de prazer, sem que isso signifique, apesar das características regressivas, narcísicas, uma psicopatologia (1927/1990, p. 159). Nisso radicaria a sofisticação do humor enquanto defesa e satisfação, motivo pelo qual Freud o relaciona a uma das operações psíquicas mais elevadas e apreciadas pelos pensadores (1905/1989).

Como os chistes e o cômico, o humor tem algo de liberador a seu respeito, mas tem também qualquer coisa de grandeza e elevação, que faltam às outras duas maneiras de obter prazer da atividade intelectual. Essa grandeza reside claramente no triunfo do narcisismo, na afirmação vitoriosa da invulnerabilidade do ego. O ego se recusa a ser afligido pelas provocações da realidade, a permitir que seja compelido a sofrer. Insiste em que não pode ser afetado pelos traumas do mundo externo; demonstra, na verdade, que esses traumas para ele não passam de ocasiões para obter prazer. Esse último aspecto constitui um elemento inteiramente essencial do humor (1927/1990, p. 158, grifos nossos).

Note-se que, diferentemente do foco no aspecto econômico do primeiro trabalho, é neste texto que Freud (1927/1990) relaciona o trauma ao humor. E perceber que podemos obter prazer em torno da própria desgraça e da alheia nos coloca em conflito. Talvez seja por isso que, juntamente às qualidades do humor, o humor mórbido apareça como o caso mais grosseiro de humor (1927/1990), o que não deixa de ser uma solução de compromisso do próprio Freud.

Mas em que consiste a atitude humorística, se pergunta o autor (1927/1990), e nos leva à relação com o infantil, já mencionada em 1905, quando afirma que somente na vida infantil houve afetos penosos dos quais o adulto pode rir. E ri por tê-los achado grandes demais naquela época, assim como o humorista ri de seus afetos dolorosos atuais. É dessa maneira que o humorista ganha superioridade, se pondo no papel do adulto, continua Freud (1927/1990), se identificando com o pai e reduzindo os outros a crianças. Mas, ao mesmo tempo, ao tomar a si próprio como objeto de humor toma-se também como criança, desempenhando, assim, o papel do pai e o da criança.

O que aparece aí é uma "exaltação do ego, que o deslocamento humorístico testemunha, e cuja tradução inegavelmente seria: 'Sou grande demais (grandioso) para ser atingido por essas coisas'" (1905/1989, p. 221).

E, para que o ego triunfe diante do que lhe ameaça, é necessário que a ênfase psíquica seja retirada do eu e deslocada para o superego, investindo-o de libido (Freud, 1927/1990).

Isto nos leva mais uma vez para o pai e a criança, considerando que o supereu, como herdeiro da instância parental, é convocado para consolar o eu. Assim, reduzido à criança, numa relação violentamente assimétrica, o prisioneiro só pode contar com todo seu potencial adulto.

Nessa nova distribuição de energia, continua Freud (1927/1990), o superego inflado pode modificar as reações do ego e, no lugar de sofrimento, produzir humor, com o objetivo de rejeitar a realidade e servir a uma ilusão. Uma proteção do superego que age através do humor e "Quer dizer: 'Olhem! Aqui está o mundo que parece tão perigoso! Não passa de um jogo de crianças, digno apenas de que sobre ele se faça uma pilhéria!'" (p. 162).

Vejamos alguns exemplos retirados de Ostrower (2000):

Dois judeus se reúnem em Varsóvia e um deles está comendo sabão perfumado, o outro pergunta: "Moshe, por que você está comendo sabão com tal perfume?" Ele responde: "Se eles me transformarem em sabão, eu poderei ter um cheiro agradável" (Ostrower, 2000, p. 4).

E, ainda:

Nós também não tínhamos nenhum sabão em Plashow, quem está falando de sabão? Nós costumávamos dizer: "Espere, espere até chegarmos em Auschwitz, eles vão fazer sabão de nós". Em Plashow, eu te digo, nós já sabíamos sobre Auschwitz, e eles costumavam dizer: "Sim, espere que lá teremos sabões, eles têm uma fábrica de sabão personalizada" (Ostrower, 2000, p. 5).

É que por trás desse humor aparece uma realidade medonha. O testemunho de Abraham Ben Abraham (cit. por Suenaga, 2005), pseudônimo do escritor polonês Henry Nekrycz, ilustra bem os fatos:

O crematório não parava de funcionar. Acabamos nos acostumando com o cheiro de carne queimada. Um dia, um prisioneiro antigo nos contou algo realmente chocante: a gordura humana saía do crematório através de uma canalização especial e era transformada em sabão numa fábrica situada ao lado do edifício. Chamava-se R. I. F Rein Juduen Fet, que quer dizer "gordura pura dos judeus" (s/p).

Então, como não transmutar o monstruoso em humor? Ainda decorrente da gordura queimando, durante a cremação dos judeus, mais humor é produzido:

Caras, comam e verão que tipo de fogo produziremos. Sim, comam; e que chama! Por quê? Se estivermos gordos ajudaremos a queimar os Muselmanns [...], porque produziremos uma chama e vamos ajudar. Entendeu? (Ostrower, 2000, p. 4).

Mas é preciso explicar. Em primeiro lugar, dissemos, refere-se ao assassinato e à cremação dos prisioneiros no Lager, e à utilização da sua gordura, segundo as testemunhas, para fazer sabão. Mas os corpos também alimentavam o fogo para a cremação. Daí, podemos supor, que o cheiro de morte nesses lugares, junto com as precárias condições de higiene tornavam um pedaço de sabão, um sabão perfumado, um objeto muito valioso, tornavam um judeu valioso...

Em segundo lugar, o sentido humorístico de oferecer os próprios corpos, cuja gordura poderia ajudar a queimar os Muselmanns, é cheio de significado. Trata-se, antes de tudo, da constatação de se estar vivo, embora nunca se soubesse até quando, em oposição aos chamados Muselmanns. Embora o termo Muselmann signifique muçulmano em ídiche, era o nome atribuído, em Auschwitz, aos que desistiram de toda esperança. Assim os descreve dramaticamente Levi (1988/1947):

[...] já se apagou neles a centelha divina, já estão tão vazios, que nem podem realmente sofrer. Hesita-se em chamá-los vivos; hesita-se em chamar "morte" à sua morte, que eles já nem temem, porque estão esgotados demais para poder compreendê-la. [...] se eu pudesse concentrar numa imagem todo o mal do nosso tempo, escolheria essa imagem que me é familiar: um homem macilento, cabisbaixo, de ombros curvados, em cujo rosto, em cujo olhar, não se possa ler o menor pensamento (p. 91).

Em terceiro lugar, falar em engordar onde havia desnutrição e fome extrema, é negar a realidade a favor da superioridade egoica. Outro exemplo:

Eu estou falando sobre Plashow, no final de 1943, eles construíram o acampamento ao longo de um cemitério antigo. Muitas coisas horríveis estavam acontecendo lá. Quando estávamos reunidos debaixo de uma chuva, batendo nossos pés para vencer o frio, acontecia frequentemente que um osso projetava-se para fora. Nós dizíamos: "Este é o seu avô, este é seu tio". Nós não sabíamos sobre qual túmulo estávamos pisando. Era também uma espécie de humor negro (Ostrower, 2000, p. 5).

Nega-se o assassinato, e a morte, assim banalizada, não causa mais espanto. Outro dito sobre a da passagem dos prisioneiros pelas câmaras de gás e pela cremação diz: "Entrar pelo portão é sair pela chaminé" (Ostrower, 2000, p. 4). Contudo, algo semelhante também é mencionado por Ben Abraham (cit. por Suenaga, 2005), mas vindo da boca de um dos carrascos: "Vocês sabem onde estão, seus filhos da puta? Vocês estão em Auschwitz. Daqui só se sai pela chaminé!" (s/p). Sem dúvida que o tom do dito muda radicalmente quando seu autor é a própria vítima e lhe serve para aplacar a angústia - humor mórbido -, ou quando é dito como ameaça sádica pelo algoz, humor mortífero...

Os cortes de cabelo coletivos no Lager, que revelam a intensa objetalização e destituição da privacidade e subjetividade das vítimas, são também objeto de humor:

Nós fomos para o chuveiro e, depois, para fora dele. Foi tudo tão rápido [...] E depois que cortei meu cabelo... de repente vi algumas amigas que conhecia há muito tempo. Você não poderia reconhecê-las, então eu comecei a rir. Eu não sei. Muitas choravam. Elas choraram depois de perder os longos cabelos e então eu comecei a rir, e elas me perguntaram "O quê? Você está fora de si? Do que você está rindo?" Eu disse: "Isso eu nunca tive antes, um penteado de graça? Nunca em toda a minha vida", sim é isso que eu disse "um penteado de graça? Isso eu nunca tive antes". E eu ainda me lembro, elas me olharam como se eu fosse louca. Eu comecei a questioná-las: "quem fez seu cabelo?" (Ostrower, 2000, p. 4).

Eis aqui o triunfo ou engrandecimento do ego, satisfação sexual e a criação de uma ilusão que produz o afastamento da realidade traumática, o que promove o riso - ri-se de si mesma e das outras -, como uma ação defensiva desesperada frente à condição de extrema vulnerabilidade. Mas dizer em tom humorístico que nunca ganhou um penteado de graça e, ainda, perguntar corriqueiramente "Quem fez seu cabelo?" às outras prisioneiras, só pode ser explicado por elas pela loucura, por estar fora de si, recalcando, possivelmente, o prazer que não pode ser compartilhado.

Em 1938, premido por intenso sofrimento e preocupação com sua família, Freud coloca na prática essa mesma função do humor. Ele mesmo, judeu, vivendo sob ameaça e pouco antes de partir para o exílio, assinou declaração para a Gestapo, que indicava não ter sido maltratado, acrescentando por conta própria e em tom humorístico: "De todo coração, posso recomendar a Gestapo a todos" (Jones, 1981, p. 246). Poucos tiveram a mesma sorte...

 

Humor mórbido como tradução do excesso de alteridade: a sedução

Consideramos que tais mecanismos discutidos por Freud, triunfo do ego, criação de uma ilusão sobre a realidade traumática e satisfação sexual, estariam do lado do que Laplanche (1992a) chama de tradução psíquica, a partir da Teoria da Sedução Generalizada (TSG), que é a metábole ou elaboração da mensagem sexual do outro, traumática por excelência, transmitida nas relações assimétricas. Afinal, o que Freud nomeia de inconsciente, o recalcado, o pulsional, Laplanche (1992a) dirá que são restos não traduzidos das mensagens sexuais do outro, o que nos permite, assim, abordar a dimensão da alteridade. Pouco discutida por Freud, Laplanche (1992a) a destaca a partir das teorias freudianas da sedução e da fantasia, ora com o pai abusador, ora com a mãe sedutora, para rediscutir o trauma psíquico como determinante da constituição do psiquismo e das psicopatologias.

Para Laplanche (1992a), o psiquismo se consolida em torno de uma relação assimétrica entre um adulto e uma criança, marcada pela passividade e dependência desta última em relação a quem a cuida, isto é, o adulto, mais especificamente a mãe ou quem a represente. O adulto, junto às suas ações de cuidado dirigidas à criança, transmitirá mensagens, inconscientes para si mesmo, da sua sexualidade infantil excitada pela presença do infans. Trata-se de significantes verbais, mas também não verbais - um sorriso, o tom de voz, um olhar, um gesto de cólera -, comunicados ao exercer os cuidados autoconservativos focalizados nas zonas erógenas do corpo da criança.

Esta é a sedução do adulto, continua o autor, que representa um excesso, um enigma excitante a ser decifrado - traduzido - pela criança cuidada. E é generalizada, pois em qualquer cultura e tempo teremos, necessariamente, uma criança que deverá ser cuidada por um adulto, um adulto com sua sexualidade recalcada. Tal situação de encontro assimétrico entre o adulto e a criança, Laplanche (1992a) vai chamar de situação originária ou Situação Antropológica Fundamental (SAF), precisamente por ser fundante do aparelho psíquico na base de uma relação traumática por excelência.

Mas como poderá a criança traduzir a mensagem enigmática do outro se não se tem um inconsciente consolidado? O autor considera que, concomitante à sedução, o adulto também fornece elementos de tradução, isto é, dados organizadores do sexual, vindos da cultura, e que possibilitam uma primeira tradução, como defesa, embora muito precária. Isto é, preparam o espaço psíquico onde as primeiras representações serão recalcadas e inscritas constituindo "o núcleo primordial de um id" (1992b, p. 67). São os restos não traduzidos que serão recalcados, fundando assim a tópica freudiana, e constituindo o que Laplanche (1992a) chama de objetos fontes da pulsão. Estes últimos exercerão uma pressão constante na vida psíquica do indivíduo impelindo-o, ao longo da sua vida, ao trabalho de tradução e retradução das mensagens enigmáticas. Fundado o inconsciente, o indivíduo passará a ter defesas mais sofisticadas que o farão sair do desamparo diante da sexualidade do outro e da sua própria.

Quanto à tradução do enigmático, afirma Laplanche (1992a), seu êxito dependerá da forma de transmissão e inscrição da mensagem, seja implantada ou intrometida. A primeira refere-se a uma comunicação mais organizada ou neurótica, cotidiana, agindo sobre toda a superfície corporal da criança - é aqui que entram em cena os elementos de tradução. Quanto à segunda, Laplanche (1996; 1999) a considera como uma variante violenta da primeira, a mensagem implantada, transmitida oral e analmente, sem qualquer elaboração prévia de quem a transmite. Esta última, sem qualquer possibilidade de tradução e recalque habitará um outro inconsciente que Laplanche (2003) chama de encravado e ficará à espera de uma possibilidade tradutiva.

Essas considerações permitem analisar o papel da sexualidade do outro sobre a vítima na Shoah, uma relação evidentemente assimétrica, marcada pelo excesso de alteridade, que nos leva diretamente aos domínios do traumático.

Para Carvalho (2012), nas situações traumáticas, catástrofes naturais e humanas, como genocídios, entre outras, é justamente o equilíbrio narcísico do ego que se encontra em risco, pois há nessas situações uma "ruptura do tecido de representações que até então sustentavam o Eu" (p. 493), ou seja, uma quebra nos investimentos libidinais do ego sobre os seus objetos. Essa ruptura tornaria o ego vulnerável não apenas ao mundo externo, que o confronta com uma realidade excessiva, como é a mensagem sexual do outro, o algoz, mas, também, internamente, pela liberação das pulsões parciais polimórfico-perversas do próprio sujeito, antes contidas pelo recalcamento, mas que se torna potencialmente, e après-coup4, nova fonte traumática.

Diante do traumático, continua Carvalho (2012), o ego efetuaria um "recolhimento narcísico" (p. 493), que é uma tentativa desesperada de recuperar suas ligações com os objetos, e mesmo de suas próprias fronteiras contra as duas fontes de excitação citadas. Trata-se do retorno narcísico de libido para o ego, tanto na neurose como na psicose, de Freud (1914, cit. por Carvalho, 2012), mas, também, no caso da psicose especificamente, a possibilidade de tal retração radical da libido na esfera do ego ser uma "tentativa desesperada para demarcar novamente um certo território" (Laplanche, cit. por Carvalho, 2012, p. 492) perdido diante do excesso. Este é o terrível destino dos Muselmanner, os mortos-vivos a que já nos referimos.

Levi (1988) descreve o Lager como "umbral da casa dos mortos" (p. 29), lugar de fome, doenças, e de uma tal gratuidade na violência pelos nazistas que, se não resultou na morte física das vítimas, levou muitos à morte psíquica, ao aniquilamento do ego, pelas humilhações e destituição de tudo o que era particular e pessoal, como objetos, nome, desejos e, sobretudo, dignidade.

As convenções sociais de respeito e limites estavam abolidas, o que parece ter permitido a presença e circulação de elementos mais e menos explícitos da sexualidade polimorfo-perversa na relação do algoz com a vítima, mas também entre as vítimas.

Ora, isto nos indica que as relações assimétricas se multiplicam, não só temos a dos nazis com seus prisioneiros, mas temos também uma assimetria entre os prisioneiros baseada em status, idade, conhecimento, malandragem, maior resiliência, amizades influentes etc., de tal maneira que cada indivíduo podia estar duplamente submetido. Foi aí, onde não havia mais nada a perder, que o humor mórbido tinha seus protagonistas e, também, suas vítimas.

Estamos, de modo geral, diante da sexualidade pré-genital, parcial e parcializante dos "Três Ensaios" (Freud, cit. por Laplanche, 2001), a própria pulsão sexual de morte, para Laplanche (2001), uma excitação desligada de representações.

Rodrigues (2013) considera que o epíteto utilizado por Levi, Anus mundi, vimos, é o que melhor descreve essa realidade. Aspectos da sexualidade anal compareciam, por exemplo, sob a forma de controle minucioso exercido sobre o corpo das vítimas, em termos de horários rigorosos, levando muitos, e com frequência, a defecarem e urinarem nas próprias roupas. Quando não havia latrinas disponíveis, muitos precisavam utilizar o mesmo recipiente em que era oferecida a alimentação - uma porção de sopa líquida -, ou mesmo para o próprio banho quando havia água. Esta espécie de continuidade ou de fusão entre o anal e oral também se expressa na possibilidade constante de se perder a ração diária quando se demorava muito nas latrinas.

Para Bettelheim (1985), os guardas tinham um gozo sádico e voyeurista em controlar o ato da defecação dos prisioneiros, mas estes também tinham sua cota de prazer ao utilizar as latrinas - um lugar para raro e breve descanso, perturbado constantemente pelos xingamentos dos outros prisioneiros, premidos pelas necessidades.

A exacerbação do anal também estava no rigor dos guardas sobre determinadas tarefas que as vítimas tinham de cumprir sob risco de espancamento, como arrumar as camas de palha de modo reto, manter os botões dos uniformes sempre íntegros, ou manter limpos os sapatos de madeira que utilizavam - paradoxo absurdo, já que a exigência de limpeza contrastava com inúmeras doenças, como tifo, disenteria, infecções decorrentes precisamente das condições sanitárias precárias. Os palavrões também eram frequentes, como "cu" e "merda", e ressaltam esse aspecto da sexualidade anal (Rodrigues, 2013).

Mas ali, onde reinava o caos e a morte, o pulsional disruptivo e intromissivo, e pelo fato do recolhimento narcísico não ser radical, mas suficiente para desmentir a realidade penosa, mantendo o ego íntegro nas suas ligações libidinais, foi possível efetuar a tradução. Ela permitiu sair do âmbito puramente traumático, sobretudo porque, mesmo em tal situação de assimetria entre os prisioneiros e os algozes, tratava-se de adultos, com um inconsciente constituído e, portanto, capazes de defesas: entre elas, a produção do humor.

A tradução, diz Laplanche (1988), ocorre num processo de:

substituição significante ou metábole, com suas diferentes modalidades: segundo prevaleça o vínculo de contiguidade (metonímia) ou de semelhança (metáfora): segundo seja "esquecedora", "recalcante" ou "integrante"; segundo permaneça isolada ou se cristalize, tome consistência com outras metáboles naquilo que chamamos "simbolização (p. 121).

Vejamos o humor produzido:

A latrina tinha um nome "RTA - Radio Tuches (nádegas em iídiche) Agency", lá você poderia saber de todas as notícias. Agência é uma palavra internacional. [...] [lá] não havia vergonha de estarmos sentados, em fileira, contando piadas, tudo naquela latrina... Você sabe, a partir do momento em que entramos no campo em 13 de março 1943, até 02 de maio 1945, não tivemos nenhuma possibilidade de privacidade. Tomando banho uns na frente dos outros, indo ao banheiro em público, estávamos sempre um do lado do outro. Nós sentávamos lá, conversávamos e nos contávamos tudo. Eu também brincava dizendo que o nosso Café Auschwitz Birkenau estava na latrina. Tudo acontecia lá: troca de informações, fofocas, escambo, tudo (Ostrower, 2000, p. 6).

Contudo, mesmo que nas latrinas houvesse uma falta total de privacidade e de destituição das convenções sociais civilizadas, foram transformadas num local privilegiado de troca de informações e de piadas, de humanidade enfim. A Agência Rádio Nádegas e o Café Auschwitz Birkenau - o que também denota a continuidade entre o oral e o anal - são o resultado da tradução do excesso e que ajudou a viver dando uma forma mais organizada, a melhor possível, ao polimórfico perverso. Uma agência de rádio e um café seria uma espécie de vestimenta e pudor para a sua nudez e necessidades vitais, onde civilizadamente as pessoas podem existir. Um oásis no meio da merda.

Vemos, desta maneira, que o humor mórbido é a própria metábole tradutiva, a simbolização psíquica, pois é uma construção simbólica, verbalizável, dotada de metáforas. Isso pode também ser ilustrado com esta homofonia: "A mãe está alimentando seu filho e ele pergunta: 'Mamãe, quem são as piores pessoas no mundo?' Ela responde: 'SS Mein Kind' (SS minha criança). Muitas vezes quando alguém dava comida a um outro dizia 'Ess Ess Mein Kind' (coma, coma minha criança)" (Ostrower, 2000, p. 7). Expliquemos. No alemão, a letra S tem exatamente a mesma pronúncia que o verbo comer - essen -, mas conjugado na segunda pessoa do imperativo afirmativo, assim, come, come minha criança - ess ess mein Kind - tem exatamente a mesma sonoridade que SS minha criança - SS mein Kind. O uso de trocadilhos é precisamente uma das peculiaridades do chiste a que Freud (1905/1989) se refere quando discute as técnicas do chiste.

Outro exemplo da tradução, no humor produzido logo na chegada dos prisioneiros no Lager, cujo destino incerto já é por si terrível nesses tempos de guerra:

Toda essa situação, eles nos empurraram para aqueles trens. Éramos como gado, era algo terrível dentro do trem. Quando tínhamos acabado de chegar em Auschwitz, todo mundo correu para a janela, para ver algo, mas não era possível. A janela, uma pequena janela, tinha persianas. Eu também queria ver onde estávamos. Então, uma amiga perguntou "o que você está tentando ver, se não se pode ver bem?" Eu disse: "como não tenho bilhete, eu simplesmente quero ver quando o condutor estiver vindo" (Ostrower, 2000, p. 3).

Sem dúvida temos nesse humor, humor mórbido, toda a defesa em ação, de engrandecimento do ego, mas também de tradução do horror, substituindo, embora temporariamente, com outra expectativa menos real e terrorífica o que viria a acontecer em seguida. Ora, substituir o carrasco por um simples condutor, é momentaneamente tranquilizador, o que certamente ajudara a suportar o impacto.

O mesmo vale quando o corte de cabelo forçado, das prisioneiras, vimos, se transforma para uma delas num "penteado de graça". Tentativa admirável de dominar, de traduzir a violência vivida, fantasiando um ganho e rindo da situação, pois tudo acontece rápido demais - a violência com que o outro se apodera do corpo da vítima -, deixando sempre no ar uma ameaça de destruição.

Graças a isso, muitos puderam sobreviver ao horror e, mais, testemunhar também em nome dos mortos: "[...] Arbeit macht frei in Krematorium Drei" (O trabalho liberta no crematório no três) é puro humor mórbido, sua rima no alemão denuncia tanto o cinismo dos nazistas, pois os prisioneiros trabalhavam até a morte, como denuncia também a morte de milhares de pessoas, existindo para isso mais de um crematório. Um desenho acompanhava este dito, no qual a fumaça expelida pelos crematórios tomava formas humanas (Ostrower, 2000, p. 4), uma homenagem silenciosa aos mortos.

 

Conclusões: rir da própria desgraça..., mas da alheia também - umas palavras para o sadomasoquismo

"Qual é a diferença entre um pão e um judeu? Um pedaço de pão não grita quando você o coloca no forno" (Fox, cit. por Oster, 1999, p. 3).

A produção do humor mórbido nos campos de concentração, entre outras produções artísticas e lúdicas, mais e menos agressivas, indica que, mesmo sob condições de extrema violência e frente ao próprio sofrimento, o ser humano procura com afinco a sua preservação egoica.

Vimos que as condições extremas do Lager favoreceram a expressão do polimórfico perverso do algoz, mas também das vítimas, de tal maneira que não seria difícil destacar o sadomasoquismo em torno da produção do humor mórbido, deduzi-lo, por exemplo, do tom irônico com que a vítima toma a si própria e a sua dor como objeto de pilhéria, escárnio, assim como o faz com a dor alheia, para a obtenção de prazer como sinal de vida, de saúde mental no meio do horror.

Trata-se, por um lado, de uma solução, em termos da própria economia sexual, em que a pulsão pode abandonar seu objeto e tomar o próprio eu como objeto de satisfação, como no masoquismo. (Freud, 1915/1990), isto é, a obtenção de prazer no sofrimento imposta pela excitação sexual (Freud, 1924/1990, p. 167). E, por outro, do sadismo dirigido à outra vítima intensificando o sofrimento - a literatura está cheia de exemplos do sadismo dos prisioneiros, muitos deles ocupando uma função atribuída pelos nazistas. Contudo, não pretendemos sentar os judeus nos bancos dos réus porque riam de si e das outras vítimas. Consideramos apenas que, diante da impossibilidade de se fugir ou de atacar verbal e fisicamente seus verdugos - mas em fraca identificação com eles -, teriam deslocado o sadismo para si, na forma de masoquismo, e para a outra vítima, ainda na forma de masoquismo, pois os pares se constituíram como um duplo, precisamente pela vulnerabilidade em que também se encontravam, submissas vivendo e testemunhando a dor. Transformadas em crianças, diria Freud, é necessário que um adulto tome conta delas, o pai, o autor do humor. Assim, o humor mórbido faria parte das pequenas vinganças possíveis diante do sofrimento e, ainda, proporcionaria alívio psíquico.

O que nos parece importante aí é a manutenção das vias de satisfação sexual, em meio à violência da Shoah, em meio ao horror, sobretudo porque, nesse contexto, o que poderia ficar numa fantasia masoquista mais inconsciente, por exemplo, "ser amordaçado, amarrado, dolorosamente espancado, açoitado, de alguma maneira maltratado, forçado à obediência incondicional, sujado e aviltado" (Freud, 1924/1900, p. 168), adquire materialidade através da posição radicalmente passiva em que os prisioneiros foram colocados pelo sadismo do algoz. Nessa situação, podemos afirmar com Freud, o indivíduo presume que cometeu um crime, ou tem a certeza dele, do que decorre, provavelmente, toda a culpa que acompanhou os sobreviventes e à qual muitos responderam com o suicídio. Uma resposta ética ou culpa pelo excesso de alteridade? (Rodrigues, & Martinez, 2014).

Talvez o humor mórbido, para muitos, tenha sido a prova que restava ainda de se sentir vivo e ter esperanças, pois o princípio de prazer, e com ele a capacidade do ego de realizar suas ligações libidinais, pode ter auxiliado a traduzir o estado disruptivo forçado pela sedução.

Por outro lado, e de grande importância, é que, para Laplanche (1993), o masoquismo originário é a própria condição da criança na SAF, condição essa que é de passividade frente à sexualidade do outro adulto.

A dor, elemento intrínseco ao masoquismo - e de onde se extrai o prazer no humor mórbido -, é sugerida por Laplanche (1993) como um excedente de mensagem traumatizante, que emana do outro adulto e que inicialmente "é de origem externa e depois proveniente deste outro interno que é a fantasia recalcada." (p. 172). A dor psíquica seria também a própria pulsão, o objeto fonte que se encontra "'cravado' no envoltório do eu como a farpa o está na pele" (p. 170). Assim, produzir humor mórbido a partir da própria dor e a do outro é também traduzir a mensagem sexual do algoz, que seria destrutiva se não houvesse possibilidades tradutivas e recalcadoras.

Para Andrade (2011, p. 56-57), "[...] o masoquismo consiste numa resposta (tradução) narcísica e defensiva, complementar e diametralmente oposta ao enigma lançado por um adulto cujas mensagens sexuais inconscientes revelaram traços predominantemente sádicos, no contexto da sedução inerente à relação criança-adulto".

O masoquismo, portanto, é uma resposta narcísica e defensiva ante a sexualidade do outro, essencialmente sádica no Lager. E embora Andrade (2011) destaque nesse caso a relação adulto-infans, pela profunda assimetria, ela é semelhante à relação do algoz com sua vítima na Shoah, pela passividade imposta diante da transmissão do sexual traumatizante que exigiu uma tradução.

Assim, voltar o sadismo para si próprio, ou para o duplo, isto é poder rir de si no meio do horror, e para fazer os outros também rirem, não só significa a satisfação sexual dessa moção agressiva da vítima e uma tradução possível da mensagem sexual do outro, apesar da violência incomensurável, mas significa, também, uma tradução coletiva.

De certa forma, todas as vítimas tentaram de alguma maneira fazer o trabalho de tradução da excitação, obviamente não só com a produção de humor mórbido, mas também com outras ações, muitas delas francamente humanitárias, funcionando como o comutador faltante na relação com o algoz. Para Bleichmar (1994), é justamente na relação com outro que algum movimento de ligação pode ocorrer diante das mensagens por intromissão. Tanto na relação da mãe com o bebê, por seus cuidados, contenção e carinhos, como também na situação analítica dentro do setting, o outro pode fazer, às vezes, a função de duplo comutador: ao mesmo tempo em que lança enigmas, ele também auxilia no próprio processo tradutivo, oferecendo novos códigos de tradução.

Só no grupo, portanto, - mesmo aí onde o outro é tomado como um duplo, ou graças a isso -, e unidos por laços de identificação e transferência, é que as vítimas podem ter encontrado um recolhimento narcísico conjunto, e uma ilusão compartilhada que lhes poupou o sofrimento, mas também lhes deu algum sentido possível para o horror. Assim, o humor mórbido produzido em torno da terrível experiência nos campos de concentração revela parte das vicissitudes sofridas pelas vítimas e revela, ainda, uma espécie de testemunho do trágico na simplicidade do cotidiano. O traumático, dessa forma, foi lançado num palco de fantasia/ilusão, uma área potencial para efetuar ligações psíquicas que, de outro modo, não estariam disponíveis. Trata-se, talvez, do único caminho para sobreviver no Anus mundi.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Fúlvio César Casemiro
fulvio_cesar@yahoo.com.br

Viviana Carola Velasco Martinez
vcvmartinez@hotmail.com

Submetido em: 04/04/2016
Revisto em: 22/09/2017
Aceito em: 27/10/2017

 

 

1 Palavra em hebraico cujo significado é "catástrofe", substitui a palavra Holocausto, que significa sacrifício voluntário em submissão à vontade divina (Danzinger, 2007).
2 O termo original encontrado no material consultado é Black Humor, contudo, e devido à conotação racista desse termo, adotamos o termo humor mórbido, precisamente para evitar conotações dessa natureza, apenas mantemos o termo negro nas citações. Autores como Moran e Gendrel (2007) consideram que o adjetivo negro deveria ser substituído por politicamente incorreto, assim, tratar-se-ia de um humor politicamente incorreto.
3 Kapo é uma palavra alemã, derivada do italiano, que significa chefe. Designa aos prisioneiros que ocupavam cargos de supervisores no Lager (Levi, 2004, cit. por Rodrigues, 2013).
4 Termo utilizado de modo capital por Laplanche (1992a; 2001; 2003; 2006), para explicar o processo tradutivo. Este último se inspira no modelo de trauma em dois tempos de Freud. O primeiro tempo da tradução seria o da inscrição da mensagem e uma primeira tradução, precária, falha, mas possível graças ao auxílio dos elementos de tradução, o que irá fundar o inconsciente, com os restos não traduzidos - objetos fontes da pulsão. Será no segundo tempo da tradução - no aprés-coup -, afirma Laplanche (1988) que a criança será capaz de identificar o sexual como tal, produzindo novos recalcamentos - recalcamento secundário - e novas traduções, metabolizando, assim, o excesso: "Somente o recalcamento secundário, correlativo do Édipo e do complexo de castração vem selar a constituição do inconsciente" (p. 121).

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