Arquivos Brasileiros de Psicologia
ISSN 1809-5267
ARTIGOS
Ensino da psicologia em cursos de medicina no Brasil
Teaching psychology in medicine courses in Brazil
Enseñanza de la psicología en cursos de medicina en Brasil
Mônica Ramos DaltroI; Maiara Lourenço Souza de JesusII; Ligia Marques Vilas BôasIII; Marilda CastelarIV
IPrograma de Doutorado em Medicina e Saúde Humana da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública (EBMSP). Salvador. Estado da Bahia. Brasil
IIGraduanda do Curso de Psicologia da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública (EBMSP). Salvador. Estado da Bahia. Brasil
IIIAssessora Pedagógica da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública (EBMSP). Salvador. Estado da Bahia. Brasil
IVPrograma de Mestrado em Tecnologias em Saúde da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública (EBMSP). Salvador. Estado da Bahia. Brasil
RESUMO
A psicologia está presente nos cursos médicos brasileiros desde o início do século XIX. Estudo investiga configurações e contribuições da psicologia na formação médica brasileira, a partir da análise das ementas disponíveis publicamente em sites de instituições de ensino superior. Estudo de análise documental e abordagem qualitativa. Resultados indicam que os conteúdos de psicologia estão colocados como secundários; referidos em ementas de disciplinas com carga horária reduzida ou pulverizados como subtema. Revela uma psicologia comprometida com a ideia de psiquismo individual, de transtornos mentais que não alcançam as proposições das Diretrizes Nacionais para a formação do profissional de saúde que articulam a psicologia ao ideário da promoção da saúde.
Palavras-chave: Ensino; Psicologia médica; Psicologia; Formação médica.
ABSTRACT
Psychology has been present in Brazilian medical courses since the nineteenth century. This study investigates how psychology is presented in the medical education, based on the analysis of the curricula available publicly on websites of higher education institutions. This is a documentary analysis with a qualitative approach. The results indicate that the contents of psychology are placed as secondary; referred to in syllabus with reduced working hours or sprayed as subtopics. It reveals a psychology committed to the idea of individual psychism, of mental disorders that do not reach the propositions of the National Guidelines for the training of health professionals that articulate psychology to the idea of promoting health.
Keywords: Teaching; Medical psychology; Psychology; Medical training.
RESUMEN
La psicología está presente en los cursos médicos brasileños desde el inicio del siglo XIX. El estudio investiga configuraciones y contribuciones de la psicología en la formación médica brasileña, a partir del análisis de los menús disponibles públicamente en sitios de instituciones de enseñanza superior. Estudio de análisis documental y enfoque cualitativo. Los resultados indican que los contenidos de psicología se colocan como secundarios; que se refiere en los menús de asignaturas con carga horaria reducida o pulverizadas como subtema. Revela una psicología comprometida con la idea de psiquismo individual, de trastornos mentales que no alcanzan las proposiciones de las Directrices Nacionales para la formación del profesional de salud que articulan la psicología al ideario de la promoción de la salud.
Palabras clave: Enseñanza; Psicología médica; Psicología; Formación médica.
Introdução
A psicologia enquanto campo que se enraíza em um universo simbólico de sentidos estrutura-se como ciência, profissão e como disciplina acadêmica segundo a American Psychological Association (APA). Envolve distintas dimensões teóricas, campos de prática e de intervenção. Este estudo focaliza a psicologia-disciplina e suas especificidades no âmbito da formação médica.
Os paradigmas dominantes na construção do conhecimento sobre saúde que têm circulado no âmbito da academia brasileira estão marcadamente definidos pela racionalidade biomédica construída a partir da modernidade. De forma hegemônica, nos contextos de formação acadêmica em saúde, os discursos ainda atribuem à saúde o sentido da ausência de doença (Luz, 1988). Dessa forma o trabalho educacional volta-se à preparação de profissionais para atuarem no modelo assistencial e hospitalocêntrico, de natureza liberal e priorizando a técnica e a tecnologia. Esta perspectiva fragiliza, de forma geral, os processos de atenção à saúde pública, seja na desvalorização de práticas voltadas à prevenção e promoção da saúde e da qualidade de vida, seja nos modelos desumanizados de assistência no Brasil (Ceccim, & Feuerwerker, 2004).
A psicologia, enquanto disciplina, constitui-se na mesma modelagem do discurso biomédico. Está presente nos cursos de graduação médica brasileira, desde o início do século XIX. Nesse momento histórico, o Brasil era um país agrário, de organização conservadora, machista, escravagista, religioso e defensor da superioridade da raça branca. O ensino da psicologia, por sua vez, colocava-se a serviço desta ideologia dominante, que, revestida pelo discurso da nova ciência, de abordagem positivista, reproduzia os conhecimentos originários da Europa e dos Estados Unidos e investia na formação de profissionais aptos a higienizar as cidades, os corpos e as mentes (Vilela, 2012).
A partir da década de 1960, a psicologia é incluída oficialmente como disciplina no currículo médico, decorrente do fortalecimento do modelo de análise médica de causalidade circular, que pôs em evidência a concepção multifatorial sobre a doença e a Medicina Psicossomática (Botega, 1994; Jeammet, Reynaud, & Consoli, 2000).
Enquanto no Brasil a Psicologia Médica vem sendo configurada, até a atualidade, como disciplina e afirmada como o campo de conhecimento responsável por tutorear a transmissão da psicologia no âmbito da graduação médica, nos EUA, o psicólogo médico é, segundo o site da Academia Americana de Psicologia Médica (Academy of Medical Psychology, 2018), um profissional apto a aplicar teorias psicológicas, achados psicológicos científicos e técnicas de psicoterapia com vistas a melhorar a saúde física e psicológica de pacientes. Depois de qualificado com um doutorado, desenvolve habilidades refinadas em psicologia clínica, psicologia da saúde, medicina comportamental, psicofarmacologia e ciências médicas e são treinados para os cuidados nos níveis de atenção à saúde primária, ambulatorial e hospitalar e contexto multidisciplinar ou não, além de estar apto para capacitar equipe de saúde.
Apesar de a cultura biomédica ocupar um lugar hegemônico, as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) para os cursos de medicina, publicadas em 2001 pelo Ministério da Educação (MEC) e atualizadas em 23 de abril de 2014, orientam que as escolas médicas invistam no desenvolvimento de novos desenhos formativos, que integrem de maneira sistêmica os conhecimentos, habilidades e atitudes. Nessa proposta, os campos de prática são apresentados numa perspectiva mais ampla definidos a partir da Atenção, Gestão e Educação em Saúde (Resolução Nº 3, 2014). Neste contexto, a psicologia segue afirmada como conteúdo essencial e referida como um campo que compreende a dimensão humana a ser integrada às dimensões biológicas, sociais e ambientais; inclui conteúdos essenciais à formação médica e promove a construção de competências relacionadas à capacidade de reflexão, à compreensão ética e humanística, especialmente no âmbito da relação médico-paciente (Resolução Nº 3, 2014). A perspectiva apresentada associa a psicologia à concepção ampliada em saúde, baseada numa racionalidade que não aparta mente-corpo, integrada a uma dimensão sócio histórica. Assim, para responder às demandas propostas pelas DCNs, no âmbito da formação médica, a psicologia deveria estar comprometida com um trabalho educativo voltado a formação de profissionais generalistas e humanistas, com perfil crítico e reflexivo, preparados para a atuação no âmbito da saúde, em diferentes níveis de atenção (Vilas Bôas, Daltro, Garcia, & Menezes, 2017).
Faz-se necessário conhecer se a psicologia ensinada no âmbito da formação médica corresponde ao que está indicado nas DCNs, discutir as possibilidades de contribuição da psicologia para a formação médica brasileira e caracterizar o campo da psicologia médica. Optou-se, neste artigo, por analisar como a psicologia está proposta nas ementas das disciplinas de curso de medicina. Uma ementa é parte importante de um Projeto Pedagógico; consiste em uma descrição discursiva que apresenta a proposta e os fundamentos da disciplina ou do componente curricular (Vilas Bôas et al., 2017). Conhecer as configurações e contribuições da psicologia na formação médica no Brasil, a partir da análise das ementas disponíveis publicamente em sites de instituições de ensino superior, e analisar os resultados, discutindo como a psicologia tem contribuído com uma formação médica.
Método
Este estudo trata de uma análise documental de dados primários de abordagem qualitativa. No campo da pesquisa social e educacional, a análise documental não pretende refletir a realidade da experiência educacional, mas serve como testemunho de registros e intenções em determinado momento histórico. Para realizá-la foi necessário identificar a natureza do documento e discutir o contexto no qual foram produzidos, atestar a confiabilidade do texto, delimitar sua lógica interna e analisar o conjunto dos dados (Poupart, 2014).
A pesquisa envolveu todas as 258 escolas brasileiras de medicina registradas no site Escolas Médicas do Brasil (2018) no momento da coleta. Entretanto os dados foram coletados a partir da leitura de todas as ementas de cursos de medicina publicadas nos sites das próprias instituições de ensino no período de abril de 2015 a fevereiro de 2016. Foram incluídas na análise todas as ementas de disciplinas incluíam conteúdos referentes à psicologia médica. Nessa etapa da pesquisa foi identificada uma amostra de 89 ementas de 44 escolas médicas brasileiras, numeradas por ordem alfabética para possibilitar o manejo dos dados. O material foi analisado a partir da Análise de Conteúdo Temática (Minayo, 2010). Dois domínios analíticos foram identificados: Saúde Mental e Psicologia Médica. Cada um destes revelou categorias que permitiram discutir sobre qual psicologia tem sido apresentada nos documentos oficiais educacionais no âmbito da graduação em medicina.
Resultados e discussão
A amostra estudada envolveu 44 instituições, correspondendo a 17,0% do conjunto de escolas médicas do país, e contempla as cinco regiões brasileiras, sendo cinco da região Norte (11% da amostra); 10 da Nordeste (23%); três da Centro-Oeste (7%); 16 da Sudeste (36%) e 10 da Sul (23%), em proporções semelhantes à distribuição do conjunto de escolas no Brasil. A proporção entre escolas públicas em número de 30 e de privadas, no total de 14 estudadas, não corresponde à realidade nacional, na medida em que o percentual de escolas privadas é superior às públicas (54% contra 46%), segundo informa o site Escolas Médicas do Brasil (2018).
Do total de escolas estudadas, 21, correspondendo a 47,8%, oferecem apenas uma disciplina ao longo do curso, cuja ementa evidenciava a psicologia como conteúdo teórico em seu currículo. Em nove, foram encontradas duas disciplinas e em outras 14, igual a 31,8%, três ou quatro disciplinas. No conjunto do material estudado, a carga horária média das disciplinas era de 40 horas semestrais. A partir desse dado, pode-se supor que os conteúdos referentes à psicologia ocupam um lugar de pouca expressão na formação médica. O que contraria as proposições das DCNs (Resolução Nº 3, 2014), que afirmam este campo de conhecimento essencial à formação médica.
No conjunto das ementas foram identificados dois grandes Domínios de análise temática: Saúde Mental e Psicologia Médica. De cada um destes domínios emergiram categorias de análise apresentadas a seguir:
• Domínio Categorial 1. Saúde Mental. Subcategoria: Psiquiatria e Teorias Clássicas.
• Domínio Categorial 2. Psicologia Médica. Subcategorias: Relação Médico-Paciente; Campo de Conhecimento; Políticas Públicas; Estudantes.
O Domínio Saúde Mental apresenta um conjunto de ementas que contempla referências à Saúde Mental, temas comuns aos campos da psiquiatria e da psicologia. Observa-se a presença do sentido patológico, referido à doença mental, compreendido a partir de duas subcategorias de análise: Psiquiatria e Teorias Clássicas.
A Psiquiatria envolve ementas que apresentam descrições nosológica e propedêutica referentes às doenças mentais:
Estuda os sinais e sintomas das doenças psíquicas, assim como seus diagnósticos, evoluções, tratamentos e prevenções, colocando o estudante em contato direto com os problemas psicológicos e psiquiátricos mais frequentes através da prática de atendimento em ambulatório e de Inter consulta hospitalar com supervisão docente (Escola 2).
Psicologia Médica e Psiquiatria do adulto e da criança (psiquiatria preventiva, semiologia, principais síndromes psiquiátricas, psicoses e retardo mental, desenvolvimento e reações anormais, urgências psiquiátricas) (Escola 19).
Chama a atenção que em apenas seis ementas, no conjunto de todas analisadas, a saúde mental aparece associada a conteúdos de políticas públicas. Priorizar o contexto de aprendizagem associado às políticas públicas de saúde permite o desenvolvimento de competências técnicas e de manejo interpessoal em equipes interdisciplinares a partir da concepção de multicausalidades da doença mental (Bezarra Junior, 2007). O que se observa são ementas que apresentam discursos voltados para a prática hospitalocêntrica e de clínica individual tradicional com foco na patologia, com pouco investimento na disseminação dos novos modelos de cuidado e atenção, que estariam apropriados aos dispositivos do Sistema Único de Saúde (SUS).
Além de identificar um número reduzido de disciplinas referindo esta abordagem, quando estas emergem, estão apresentadas como um subtema, parte de um conjunto de muitos outros temas, denotando uma posição secundária no currículo:
Saúde mental e cidadania. Reforma psiquiátrica e políticas públicas para atenção de saúde mental. Impacto da saúde mental sobre o paciente e a família. Abordagens psicossociais. Neurobiologia, bases biológicas e meios de investigação dos transtornos mentais. Semiologia psiquiátrica. Classificações psiquiátricas e os diagnósticos diferenciais. Transtornos psiquiátricos. Manejo clínico e psicofarmacologia dos transtornos mentais. Psicopatologia, psicodinâmica e psicoterapia (Escola 27).
História da Psiquiatria, reforma psiquiátrica e políticas públicas em saúde mental. O normal e o patológico. As funções psíquicas elementares (consciência, atenção, orientação, senso-percepção, memória, afetividade, vontade, psicomotricidade, pensamento, juízo da realidade, linguagem, personalidade e inteligência). O impacto da doença mental sobre o paciente, a família e a sociedade. Saúde mental e cidadania. Discussão de aspectos éticos (Escola 29).
Constata-se uma preocupação nas ementas acima de apresentar o que há de novo nas diretrizes do SUS para a Saúde Mental, instituídas a partir da Lei nº 10.216/2001, que redireciona o modelo assistencial em saúde mental, o que implica no ensino de novas formas de intervenção. Entretanto, em paralelo na mesma disciplina, busca-se uma contraposição trazendo o ensino clássico e tradicional, pode-se observar uma tentativa na prática de anular o discurso da saúde pública.
Ainda nos domínios da saúde mental, outra categoria de análise foi identificada, Teorias Clássicas, por referir temas relacionados às teorias da psicanálise, da psicogenética, da personalidade e além de psicodiagnóstico. Todas priorizam a abordagem nosológica associada a aspectos patológicos, desenvolvimentistas ou associada à clínica individual tradicional:
Introdução ao desenvolvimento ontogenético do ser humano sob a visão da teoria pulsional de Freud - da teoria cognitiva de Piaget, teoria dialética biopsicossocial de H. Wallon. As fases do desenvolvimento e as idades psicossociais do Homem (1ª infância, 2ª infância, adolescência, idade adulta e velhice) (Escola 18).
A forma como as teorias clássicas são descritas, agregando abordagens filosóficas distintas a serem estudadas em espaço de tempo reduzido, evidencia a fragilidade na formação epistemológica. Trata-se de uma apresentação de conhecimento superficial e no nível tão amplo que pode dificultar a compreensão do sentido do conhecimento. Dessa forma, o conjunto dessas teorias prioriza o estudo do psiquismo numa concepção que pressupõe o ser humano como sujeito universal e muitas vezes holístico ou submetido, exclusivamente, às leis da natureza biológica (Dimenstein, 2000).
Embora se reconheça a necessidade de que o médico inclua em sua prática a atenção aos aspectos psicológicos que envolvem o processo saúde-doença e saúde mental, observa-se que a presença e a forma como essas teorias clássicas são abordadas limitam o repertório interpretativo dos médicos, especialmente quando não contemplam de forma efetiva a discussão sobre os determinantes históricos e sociais desses processos. Isso pode impactar a construção sobre as concepções de saúde e nos modelos de atenção à saúde a serem praticados.
O domínio temático Psicologia Médica contempla ementas que colocam o ensino da psicologia voltado à prática médica15 desenhadas a partir de quatro categorias de análise: Relação Médico-Paciente, Campo de Conhecimento, Politica Públicas e Estudante.
A categoria Relação Médico-Paciente é o conteúdo mais frequente entre as disciplinas; está anunciado como conteúdo proposto em 10 escolas e em 17 disciplinas. Segundo a literatura, esta temática nos últimos 20 anos, tem sido considerada central para a melhoria da qualidade do serviço de saúde (Caprara, & Franco, 1999). Embora o conteúdo relação médico-paciente seja considerado um tema central, observa-se a baixa frequência como este está intencionado, no conjunto das ementas.
Instrumentalizar os alunos no desenvolvimento da Relação Médico-Paciente e transmitir conhecimentos sobre os aspectos psicológicos das principais etapas do ciclo vital (Escola 33).
Fundamentos do comportamento humano. Relações interpessoais. Aspectos culturais e psicológicos da sociedade brasileira. Aspectos psicodinâmicos da relação médico-paciente e princípios bioéticos. Características psicológicas dos médicos. Transferência, contratransferência e resistências (Escola 19).
Ainda nesta categoria destaca-se o elemento comunicação, como parte da categoria Relação Médico-Paciente, que emerge como uma competência a ser desenvolvida pelo médico e de responsabilidade atribuída à psicologia, assim como as especificidades da técnica de realização de entrevistas no manejo de situações de morte e de dor crônica:
Estuda o processo saúde-doença e suas implicações psicossociais, dimensões da comunicação interpessoal no contexto da saúde, aspectos psicológicos do relacionamento profissional de saúde-equipe-usuário-família, relações interpessoais e grupais (Escola 1).
Realização de anamnese completa. Reflexão sobre a correlação clínica de casos mais simples; desenvolvimento de uma atitude facilitadora da comunicação frente aos diversos padrões de comportamento dos pacientes. Conhecimento da rotina de realização dos exames de laboratório básicos. Técnicas do exame físico [...]. A anamnese psicológica. O atendimento psicológico. As doenças psicossomáticas. Aplicações da psicologia médica: na relação médico-paciente; no psiquismo do médico: o médico e a morte; na educação para a saúde e, na saúde mental (Escola 36).
Um estudo realizado por Matosinho, Grosseman e Patrício (2004) aponta que a relação médico-paciente é uma importante fonte de satisfação profissional do cotidiano do trabalho médico. Entretanto, na realidade brasileira, as consultas médicas se realizam em geral em tempo minúsculo; são construídas a partir de encontros superficiais. Isto devido à priorização da análise de exames em detrimento de uma clínica e da doença em detrimento do adoecimento, o que fragiliza a perspectiva de atendimento humanizado como prevê a Constituição Brasileira e nas DCNs (Resolução Nº 3, 2014). E reflete um padrão de atendimento frágil e com pouco investimento no campo da comunicação e no tempo necessário para construir uma relação do médico com o paciente, sua história, seu processo de adoecer e se curar.
A categoria Campos de Conhecimento, identificada como parte do Domínio Psicologia Médica, apresenta um vasto conjunto de campos de conhecimento amontoados sob o nome de psicologia: Antropologia, Espiritualidade, Tanatologia, Sociologia, Filosofia, Ética e Bioética, entre outros. A psicologia foi historicamente construída na interface com outros campos de conhecimento (Resolução Nº 3, 2014), entretanto, nos resultados encontrados, os campos de conhecimento não se colocam na lógica do diálogo entre saberes, mas se apresentam como um aglomerado de conteúdo sobreposto em um reduzido território disciplinar. Este dado evidencia o pouco espaço dado aos conhecimentos de conteúdo humanístico na formação do médico brasileiro e nos permite questionar como é possível formar profissionais aptos a desenvolver práticas humanizadas quando esta perspectiva não está priorizada no processo formativo?
A categoria Políticas Públicas em Saúde não incluiu as ementas que referem as políticas em Saúde Mental, porque essas foram categorizadas nos domínios da Saúde Mental. Curiosamente, as referências à promoção à saúde, à Política Nacional de Humanização, estão presentes em apenas duas ementas, de duas Escolas Médicas. Enquanto os princípios do SUS, que deveriam dar sustentação à prática humanizada e sustentar o trabalho de formação médica nos domínios da relação com o usuário, familiares, com a equipe, com as redes, com outros serviços e setores de saúde, não se apresentam articulados ao conhecimento psicológico. Em quatro disciplinas, em duas Escolas, determinantes dos processos saúde-doença foram indicados. O que pode indicar uma falta de compreensão das possibilidades de contribuições da psicologia na atualidade.
Discute-se aqui como as políticas públicas não são abordadas como conteúdos associadas à psicologia, possivelmente pela história da própria psicologia, marcada por seu compromisso com a concepção de subjetividade individual e o fortalecimento de práticas elitistas de natureza assistencial. Considera-se, neste estudo, que integrar o ensino da psicologia às políticas públicas permite situar que o processo de construção da subjetividade se faz no plano coletivo, no plano de multiplicidades, consequentemente no plano público (Aragaki, & Spink, 2009; Daltro, & Pondé 2016; Vilela, 2012). Concordamos com Benevides (2005), que afirma que a psicologia agregada ao universo das políticas públicas em saúde pode fazer intercessões no processo de pensar-fazer políticas de saúde, dando suporte à experimentação destas no jogo de conflitos de interesses, desejos e necessidades dos atores que compõem as redes de saúde.
A categoria denominada Estudante contempla ementas que em seu conteúdo propõem oferecer ao estudante um espaço como possibilidade de reflexão sobre seu próprio processo formativo. Isso pode ser visto a partir das temáticas que elas referem: compreender mecanismos, compreender a vocação, ser solidário e autocuidado. Esta possibilidade, ainda que tímida, evidencia um importante olhar para a formação médica, reconhecida como um processo educacional que promover sofrimento psíquico entre os estudantes (Daltro, & Pondé, 2011), espaços institucionais desta natureza podem viabilizar a reflexão sobre esta própria experiência e seus efeitos na vida dos sujeitos.
Considerações finais
O conjunto das ementas estudadas evidencia que o ensino da psicologia está colocado de maneira frágil na estrutura dos currículos de graduação em medicina. Poucas ementas referem os conteúdos à psicologia médica e, quando referidos, aparecem de forma dispersa, em carga horária reduzida. A configuração encontrada nos permite afirmar que as proposições feitas sobre a psicologia pelas DCNs para graduação em medicina - como conhecimento essencial - não se manifestam nas ementas publicadas.
As ementas analisadas sugerem ainda que a psicologia que chega à formação médica tem uma função mais instrumental. Colocada prioritariamente a serviço da qualificação do manejo da prática profissional, sem articulação com o que é vivido e produzido no contexto do sistema de saúde. Essa abordagem simplificada da psicologia limita o desenvolvimento de competências de natureza crítica-reflexivas sobre a formação médica, sobre os processos de saúde-doença, sobre as políticas de saúde e sobre a implicação do médico como ser individual e coletivo.
Discute-se aqui possíveis consequências de trabalhar a relação médico-paciente como uma técnica protocolar, apresentada de maneira desarticulada do conjunto de elementos político-sociais que envolvem o sistema de saúde e os conceitos de saúde que nele circulam. Considera-se que essa abordagem - frequente, no conjunto das ementas - pode provocar distorções no exercício da profissão, na medida em que se considera a indissociabilidade mente-corpo e a consequente complexidade do processo saúde-doença. Ensinar sobre a complexidade envolvida na relação médico-paciente, apenas pelo viés da personalidade do médico - como se ele pudesse, com a empatia, solidariedade e capacidade de comunicação, dar conta de tamanha complexidade - simultaneamente empodera e abandona o médico à sua pessoa, sem considerar que na relação médico paciente existe uma dimensão dialética no sentido de transformar e ser transformado pelo processo de um outro que não é passivo. Nesta perspectiva, o médico fica autorizado a escolher qual a atitude que quer ou que pode ter, para dar conta de seu pertencimento a um sistema de saúde precário e adoecido. Pode, inclusive, se desvincular do compromisso ético com a Política Nacional de Humanização, por exemplo.
Observa-se, também, que os conteúdos presentes nas ementas refletem a própria história da psicologia, que ao longo de seu percurso identitário, priorizou a dimensão da individualidade privada em detrimento de uma subjetividade sócio histórica. Em sua tentativa de ser reconhecida como ciência, aproximou-se da racionalidade médica da modernidade e investiu, especialmente, na lógica desenvolvimentista consolidando-se como campo de conhecimento e de prática comprometida com o sofrimento individual dos sujeitos ou de organizações.
Do ponto de vista das autoras, a Educação Médica se aproveita pouco do potencial transformador da psicologia, especialmente na articulação complexa entre sujeito, cultura e sociedade. Propõe-se que a psicologia se coloque a serviço do fortalecimento da dimensão humana da medicina e de uma formação voltada para a formação de profissionais aptos a compreensão e ação relativas à integralidade nas práticas em saúde. E com foco nas dimensões subjetivas da realidade concreta, aspectos que poderiam ser úteis para serem apropriados pelos profissionais da medicina.
Esse estudo discute a necessidade de um deslocamento na posição epistemológica hegemônica, naturalmente identificada ao discurso biomédico associado à medicina moderna, para uma psicologia que integre os processos saúde-doença e o sofrimento psíquico aos processos sócio históricos, comprometida com a promoção de transformação social. Esta perspectiva volta-se para a formação de médicos que incluam em sua prática as necessidades de saúde de indivíduos e de populações, que possam oferecer uma atenção integral e cidadã.
O estudo apresenta a limitação que se refere ao próprio objeto em estudo, pois, na medida em que uma ementa anuncia um projeto de disciplina, circunscreve o campo teórico e prático a ser apresentado ao longo do período. Entretanto sabe-se que no contexto da educação brasileira, os registros documentais não correspondem, necessariamente, à prática desenvolvida no cotidiano acadêmico, mas podem assinalar as intenções ali desenhadas. Além disso, quando se considera a amplitude da psicologia como campo de conhecimento, avalia-se que conteúdos referentes a ela podem estar circulando em outras disciplinas sem o devido registro documental. Acrescenta-se ainda o fato de apenas terem sido incluídas no estudo as ementas que estavam publicadas online e com livre acesso.
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Endereço para correspondência:
Mônica Ramos Daltro
monicadaltro@bahiana.edu.br
Maiara Lourenço Souza de Jesus
maiarajesus13.1@bahiana.edu.br
Ligia Marques Vilas Bôas
ligiavilasboas@bahiana.edu.br
Marilda Castelar
marildacastelar@bahiana.edu.br
Submetido em: 28/11/2017
Revisto em: 13/04/2018
Aceito em: 26/04/2018