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Arquivos Brasileiros de Psicologia

 ISSN 1809-5267

     

https://doi.org/10.36482/1809-5267.ARBP2019v71i1p.143-157 

ARTIGOS

 

Ansiedade entre as pessoas surdas: um estudo teórico

 

Anxiety among deaf people: a theoretical study

 

Ansiedad entre las personas sordas: un estudio teórico

 

 

Fábio SantosI; Joilson Pereira da SilvaII

IPreceptor e Supervisor. Centro Universitário AGES (UniAGES) Paripiranga. Estado da Bahia. Brasil
IIDocente. Programa de Pós-graduação em Psicologia. Universidade Federal de Sergipe (UFS). Aracajú. Estado do Sergipe. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo deste estudo teórico foi discutir a influência da comunicação, do gênero, do nível educacional e das características da surdez sobre a ansiedade das pessoas surdas. Comunicação e características da surdez são constantes desencadeadores de ansiedade entre as pessoas surdas, pois são praticamente inerentes à surdez, o que requer estratégias comunicacionais eficazes e maior habilidade linguística para lidar com seus efeitos ansiogênicos. O nível educacional e o gênero são fortalecedores do desenvolvimento da ansiedade, porém, advêm de contextos externos ligados ao modelo de cuidado e aos valores recebidos na família e fora dela e à possibilidade de desenvolvimento educacional. Apesar de comum a todas as pessoas, a ansiedade apresenta desencadeadores específicos para as pessoas surdas, o que requer da família um maior suporte social e emocional, além do engajamento de profissionais e pesquisadores na busca por meios que protejam ou facilitem a vida das pessoas surdas contra a ansiedade.

Palavras-chave: Pessoa surda; Ansiedade; Psicologia e Surdez.


ABSTRACT

The purpose of this theoretical study was to show and discuss the influence of communication, gender, educational level and deafness characteristics on deaf people anxiety. Communication and deafness characteristics are constant anxiety triggers among deaf people, because are practically inherent to deafness, requiring effective communication strategies and greater linguistic ability to deal with their anxiogenic effects. Educational level and gender are empowered by the development of the anxiety, however, they derive from external contexts linked to the model of care and the values received in the family and outside of it and to the possibility of educational development. Although common to all people, anxiety presents specific triggers for deaf people, which requires a greater social and emotional support from the family, as well as the engagement of professionals and researchers in the search for ways that protect or facilitate the lives of deaf people against anxiety.

Keywords: Deaf Person; Anxiety; Psychology and Deafness.


RESUMEN

El objetivo de este estudio teórico fue presentar y discutir la influencia de la comunicación, del género, del nivel educacional y de las características de la sordera sobre la ansiedad de las personas sordas. Comunicación y características de la sordera son constantes desencadenantes de ansiedad entre las personas sordas, pues son prácticamente inherentes a la sordera, lo que requiere estrategias de comunicación eficaces y una mayor habilidad lingüística para lidiar con sus efectos ansiogénicos. El nivel educativo y el género son fortalecedores del desarrollo de la ansiedad, pero provienen de contextos externos ligados al modelo de cuidado y a los valores recibidos en la familia y fuera de ella y a la posibilidad de desarrollo educativo. A pesar de común a todas las personas, la ansiedad presenta desencadenadores específicos para las personas sordas, lo que requiere de la familia un mayor soporte social y emocional, además del compromiso de profesionales e investigadores en la búsqueda de medios que protejan o faciliten la vida de las personas sordas contra la ansiedad.

Palabras clave: Persona Sorda; Ansiedad; Psicología y Sordera.


 

 

Introdução

Em 2018, a Organização Mundial da Saúde (OMS) estimou a existência de 466 milhões de pessoas com algum grau de surdez no mundo (6,1% da população mundial), sendo 432 milhões de adultas (um terço delas de idosas) e 34 milhões (7%) de crianças. As regiões globais que concentram mais pessoas com surdez são: Sul (131 milhões de habitantes) e Leste (100 milhões de habitantes) da Ásia, África Subsaariana (49 milhões de habitantes) e Leste da Ásia e Pacífico (47 milhões de habitantes). A América Latina e o Caribe possuem 40 milhões de pessoas (World Health Organization [WHO], 2018). No Brasil, cerca de 10 milhões delas convivem com a surdez, das quais 344.206 não conseguem ouvir, 1.798.967 ouvem com grande dificuldade e pouco mais de sete milhões e meio apresentam alguma dificuldade auditiva (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2012).

A audição tem a função de ambientalizar quanto ao meio circundante, permitindo a sua identificação e interação através das experiências sonoras, assim como facilitar a comunicação e a interação social (WHO, 2016). A ausência ou dificuldade auditiva (DA) pode se tornar um obstáculo para se experienciar todas essas funcionalidades e gerar prejuízos sociais, educacionais e emocionais (Negrelli, & Marcon, 2006) que podem ser contornados, em certa medida, por meio de intervenções precoces que adaptem o sujeito, ainda criança, ao mundo (Brito, & Dessen, 1999). No entanto, a maneira como a pessoa com perda auditiva se adaptará à falta ou dificuldade de audição pode depender do grau em que é capaz de ouvir. Há quatro graus: a surdez leve (de 26 a 40 dB), cujo reconhecimento de palavras é afetado pela distância e barulho ambiente; a surdez moderada (de 31 a 60 dB em crianças e de 41 a 60 dB em adultos), que dificulta o entendimento de discursos em distâncias próximas; a surdez severa (de 61 a 80 dB), em que apenas sons altos, gerados por pessoas ou ambientais, são mais facilmente reconhecíveis; e a surdez profunda (acima de 81 dB), na qual os sons altos podem ser notados como vibrações (WHO, 2016).

O grau de surdez, portanto, também tem grande influência sobre a experiência de vida em meio a sociedades oralizadas. Assim, é possível notar que com essa divisão formem-se dois grupos distintos: o de pessoas com DA, que são afetadas no dia a dia, mas que não são impedidas, por completo, de se comunicar sob condições favoráveis, e o de pessoas surdas, incapazes de utilizar sua própria audição para fins comunicacionais (Kvam, Loeb, & Tambs, 2007). No caso desses últimos, a aquisição da língua de sinais desde a infância é a maneira mais efetiva de se garantir o desenvolvimento da linguagem (Chaveiro, & Barbosa, 2004), que permitirá o desenvolvimento em diferentes dimensões (Cardoso, & Capitão, 2007; Freitas, & Magalhães, 2013).

Por outro lado, a surdez e as dificuldades na comunicação podem favorecer a criação de obstáculos à vida e ao desenvolvimento desse grupo, a exemplo das dificuldades de inserção e permanência no mercado de trabalho, bem como a falta de independência no acesso a locais públicos (Marin, & Góes, 2006); superproteção familiar (Li, & Prevatt, 2010); variação no acesso à educação (Fellinger, Holzinger, & Pollard, 2012), entre outros. Essas seriam barreiras que, além de afetar o desenvolvimento das pessoas surdas, poderiam repercutir em sua saúde mental, uma vez que a surdez "afeta muitas dimensões da experiência, incluindo o funcionamento psicológico e social" (Martin, & Bat-Chava, 2003, p. 511).

O grau de surdez e o período em que ela ocorre não impactam apenas na habilidade auditiva (Haynes, 2014), as experiências de vida também contribuem para o declínio da saúde mental da população surda: um exemplo seria a aflição e a angústia devido ao recebimento de rótulos e estereótipos na infância e adolescência em âmbito escolar e social (Li, & Prevatt, 2010) que podem, com perseverança, resultar em dificuldades psicoemocionais ulteriores. Para os jovens surdos de 12 a 18 anos em maior contato com o mundo ouvinte, essa interação pode ser comprometedora ao seu funcionamento (Eldik, Treffers, Veerman, & Verhulst, 2004), de modo que a falta de audição "pode causar desordens no processo de ajustamento humano ao ambiente" (Pirani, Afshar, & Hatami, 2017, p. 50). Perder completamente a audição, por exemplo, muda drasticamente a vida de uma pessoa, sendo capaz de provocar depressão, ansiedade social ou solidão e isolamento, ainda que, felizmente, os desfechos da não audição sejam vividos de maneira diversa de pessoa a pessoa (Knutson, & Lansing, 1990).

Em meio a diversas considerações sobre a saúde mental da população surda, existe um crescente interesse pelo estudo das psicopatologias nesse grupo pela comunidade científica (Eizaguirre, Rodríguez, Pardo, Fernández-Rivas, & González-Torres, 2014). Como condição crônica, a surdez gera prejuízos que vão além de dificuldades cotidianas e ao funcionamento social, causando impactos à saúde mental daqueles que a adquirem (Garnefski, & Kraaij, 2012a), incluindo ser um fator de risco para problemas psicológicos gerados pelas situações adversas que provoca (Ahmadi et al., 2015), como seriam as que envolvem problemas comunicacionais e oportunidades de interação (Garnefski, & Kraaij, 2012b). Sentir-se ansioso seria mais um reflexo da surdez. Apesar de pouco discutidas, algumas situações podem produzir ansiedade entre as pessoas com surdez, mesmo as que usam aparelho auditivo ou outros dispositivos de assistência à audição (Carmen, & Uram, 2002). Neste artigo, serão abordados elementos empíricos e teóricos sobre o tema ansiedade e surdez presentes na literatura. A seleção das fontes aqui consultadas não seguiu um critério predefinido, considerando a natureza deste trabalho (estudo teórico), mas sua adequação ao objetivo: apresentar e discutir a influência da comunicação, do gênero, do nível educacional e das características da surdez sobre a ansiedade das pessoas surdas.

Ansiedade

A ansiedade é uma resposta psicofisiológica que expressa tensão diante de circunstâncias que configurem perigo ou ameaça (Hyman, & Cohen, 2014), sendo comumente identificada pelas reações fisiológicas que acarreta: taquicardia, sudorese, tremores, alteração na respiração, entre outros (Bachion, Peres, Belisário, & Carvalho, 1998). Essa reação também é acompanhada por medo e/ou estresse frente às ameaças encontradas no ambiente (Margis, Picon, Cosner, & Silveira, 2003). Ao tratar da ansiedade, fenômeno cujo termo se popularizou com o passar do tempo em virtude da maior discussão das suas causas, consequências e tratamento, é necessário abordar dois domínios inerentes e importantes a ela: normalidade e patologia (Costa, 2012).

O estado de ansiedade normal é comum a todos os seres humanos (Sanchez, & Gouveia Junior, 2011), costuma ser "passageiro e geralmente está associado a um estressor específico" (Carmen, & Uram, 2002, p. 48). A dimensão patológica da ansiedade (os transtornos de ansiedade), ainda que possua características semelhantes às da ansiedade normal, possui implicações comprometedoras por persistir, apresentar intensidade excessiva e incapacitar quanto à estima precisa dos perigos encarados (American Psychicatric Association [APA], 2014). A existência de um quadro ansioso, patológico ou não, tem relação com diferentes fatores, como eventos ambientais e recursos pessoais para enfrentá-lo (Margis et al., 2003).

Apesar de a ansiedade ser vivenciada por todas as pessoas (Grolli, Wagner, & Dalbosco, 2017), culturalmente lhes é ensinado que ela precisa ser evitada, o que reforça o entendimento de que evitar o seu desencadeamento é a melhor maneira de ser lidada (Pirani et al., 2017). Não por acaso, "a ansiedade é caracterizada pela marcada evitação, com a evitação a lugares e situações ansiogênicas reduzindo a frequência com que os sintomas de ansiedade são experienciados" (Cosh et al., 2017, p. 602). A representação social indesejável da ansiedade estimula nas pessoas tentativas de controle e escamote a ela (Booth-Butterfield, & Booth-Butterfield, 1994). Tanto esse aspecto cultural quanto o social favorecem um crescente risco psicossocial, pois, ao não ser identificada e tratada, a ansiedade pode se relacionar à saúde física e ao bem-estar mental (Cosh et al., 2018), de um modo negativo, certamente. Em vez de relegá-la, devem-se endossar medidas que diminuam os impactos da ansiedade à qualidade de vida e ao funcionamento diário das pessoas a partir de práticas interventivas e de prevenção (Germain, & Marcotte, 2016).

Pesquisar sobre a ansiedade entre as pessoas surdas será frutífero à ciência e ao campo de investigação da surdez e da saúde mental, considerando que estudos sobre o assunto ainda reforçam uma literatura controversa (Theunissen et al., 2012), sem consenso (Costa, 2012), carecendo de maior examinação (Cosh et al., 2017) e mais pesquisas versando acerca dos efeitos da surdez sobre a ansiedade (Contrera et al., 2017) ou da ansiedade na vida das pessoas surdas.

Surdos e ansiosos

Diversas pesquisas sobre a ansiedade entre as pessoas surdas foram conduzidas ao redor do mundo (Kvam et al., 2007; Bizjak, 2009; Palmer et al., 2013; Sanchez, 2013; Azab, Kamel, & Abdelrhman, 2015; Karademir, 2015; Ariapooran, 2016; Suhani, Suhani, Badea, 2016), e embora a literatura sobre ansiedade e perda sensorial demonstre ser escassa (Cosh et al., 2017) e possua lacunas (Cosh et al., 2018), indica-se que a perda de algum sentido tem grande significância sobre os níveis de ansiedade apresentados por uma pessoa (Idágarra, Rincón, Hoyos, & Ochoa, 2009). A surdez seria um exemplo. Esse pressuposto aponta que as pessoas surdas seriam muito ansiosas em virtude das dificuldades para se comunicar (Booth-Butterfield & Booth-Butterfield, 1994; Ahmadi, Daramadi, Asadi-Samani, Givtaj, & Sani, 2017), ao estar em situações desconhecidas (Sanchez, & Gouveia Junior, 2011) e incertas (Shushtari et al., 2015), entre outros.

Uma gama de fatores psicossociais, culturais e individuais pode servir como "gatilho" para se experienciar a ansiedade, seja ela patológica ou não. Inicialmente, faz-se observação à necessidade de adaptação às exigências de um meio majoritariamente oralizado como um dos primeiros obstáculos que a pessoa surda irá se deparar e que pode lhe desencadear estresse e ansiedade (Silva, 2016). O estresse também surgiria da incompreensão dos pais ao comportamento dos seus filhos infantes ainda não diagnosticados com surdez. Incompreensão também vivida em sociedade, que ao estigmatizar e discriminar as pessoas surdas geraria o risco de desenvolverem problemas mentais (Kvam et al., 2007). Temendo que os mesmos sejam agredidos, pais impedem a participação social dos seus filhos surdos desde a infância, ainda que a superproteção possa levar a medo frequente entre os surdos (Li, & Prevatt, 2010).

As circunstâncias descritas acima parecem culminar ainda mais em dificuldades de adaptação social e individual. Atitudes de superproteção e outras reações sociais e familiares em relação às pessoas surdas podem levar à consciência da atenção e avaliação negativa alheia (Booth-Butterfield, & Booth-Butterfield, 1994). Tais comportamentos são facilmente nocivos à população surda, uma vez que entre os seus jovens o Transtorno de Ansiedade Social (TAS) seria comumente desencadeado (Ahmadi et al., 2017). O TAS "é um medo constante de uma ou mais situações em que um indivíduo é exposto à visão pedante dos outros, enquanto tem medo do que fez ou de seu comportamento ser embaraçoso e humilhante" (Pirani et al., 2017, p. 53) e seria comum entre quem possui surdez devido a situações específicas de interação social e de dificuldades comunicacionais (Cosh et al., 2018). Em dada pesquisa se observou que a ligação entre a autoavaliação global e o estresse induzido pelas características da surdez poderia predizer um estado ansioso (Gent, Goedhart, & Treffers, 2011). Um mau ajustamento pessoal e uma má acomodação à própria surdez demonstram ser meios que se relacionam a diversificadas consequências psicológicas, entre elas a ansiedade social (Knutson, & Lansing, 1990).

No entanto, diversas situações desencadeiam a ansiedade (Batista, & Oliveira, 2005), além de outros fatores que podem favorecer o seu desencadeamento ou manutenção entre as pessoas surdas. Quatro deles serão discutidos a seguir.

Fatores associados à ansiedade entre as pessoas surdas

Comunicação

Os fatores que afetam a saúde mental das pessoas surdas parecem ligá-la a problemas sociais, comportamento e comunicação (Brown, & Cornes, 2015). A dificuldade comunicacional desempenha um risco no aumento das chances de que uma pessoa surda se sinta ansiosa (Ahmadi et al., 2017) e desenvolva um Transtorno de Ansiedade (TA) (Idágarra et al., 2009). A exclusão de experiências comunicacionais leva solidão e isolamento às pessoas surdas, o que nutriria a sensação de ser diferente dos demais e as levaria a evitar o contato social (Azab et al., 2015). Tais adversidades ansiogênicas não são obstáculos de responsabilidade da pessoa surda, pois apesar de poderem utilizar diferentes meios para se comunicar, a exemplo da leitura labial e da escrita (Eizaguirre et al., 2014), a língua de sinais possui um papel vital para ela (Fellinger et al., 2005).

Em comparação àqueles surdos que não se comunicavam através dela foi possível notar uma maior gama de problemas na saúde mental, a exemplo da ansiedade, quando analisados os modelos de comunicação domiciliar entre participantes de um estudo realizado na Austrália (Brown, & Cornes, 2015). Os autores consideraram que o uso de um meio de comunicação alternativo diminui a qualidade da comunicação familiar e compromete a sua sensibilidade. Por outro lado, poder se comunicar de diferentes maneiras pode ser um meio de se experienciar menos ansiedade durante as situações interacionais do que quando se possui apenas uma forma de comunicação, como observado em outro estudo (Karademir, 2015). Desse modo, possuir melhores habilidades de comunicação pode alterar a sintomatologia psicológica longitudinalmente (Cosh et al., 2017), assim como ser um preventivo psicopatológico (Theunissen et al., 2015). A qualidade da comunicação parece ser tão importante quanto o modo de se comunicar (Brown, & Cornes, 2015).

As barreiras comunicacionais podem, entretanto, limitar apoio informacional significante e favorecer um estado de angústia (Eizaguirre et al., 2014) e também de ansiedade (Azab et al., 2015), quando a surdez não permite a compreensão do que se passa ao redor. Para as pessoas surdas, os obstáculos de comunicação passam a requerer uma resposta quase imediata: proatividade ou evitação (Ahmadi et al., 2017). Sabe-se que as estratégias comunicacionais possuem um importante efeito sobre a ansiedade, especialmente quando estas não são efetivas (Knutson, & Lansing, 1990).

No caso dos jovens surdos, a ansiedade pode prejudicar o seu funcionamento social (Theunissen et al., 2012), de forma que mesmo a comunicação sofra os efeitos de se estar ansioso entre aqueles que se comunicam em línguas diferentes (Karademir, 2015). Embora possa naturalmente gerar medo a todas as pessoas, a comunicação passa a ser ansiogênica por ser desafiadora e ameaçadora àquelas que são surdas, incompreendidas e estigmatizadas por sua diferença. Uma possível predisposição à ansiedade se relacionaria ao canal de comunicação utilizado por um dos comunicantes, havendo no âmago desse fenômeno o temor acerca das consequências ou avaliações negativas recebidas por aquilo que é comunicado. Porém, a ansiedade comunicacional é comum tanto à oralização como à sinalização. No caso das pessoas surdas, a ansiedade tem efeitos deletérios sobre a sinalização: inibindo a transmissão de mensagens, dando aos seus sinais menor clareza e intensidade ou tornando-os mais lentos. Quando ansiosas, as pessoas surdas podem usar estratégias de comunicação mais evitativas, sinalizando de modo incompleto ou dando respostas mínimas (Booth-Butterfield, Heare, & Booth-Butterfield, 1991).

Pessoas surdas e ouvintes teriam a sua comunicação afetada pela ansiedade de igual maneira, todavia, em virtude de diversos desafios diários à comunicação, as pessoas surdas lidariam com um ansiogênico em potencial a mais do que quem ouve. É o que apontaram Booth-Butterfield e Booth-Butterfield (1994) num estudo realizado em três escolas para surdos nos EUA. Os autores puderam observar que diante de um estado de ansiedade cada vez maior, a sinalização se mostrou prejudicada e menos eficaz por sua lentidão, não clareza, incompletude, menos intensidade e frequência e dissociação às expressões faciais coordenadas. Esses resultados podem levar à interpretação da sinalização como descuidada, desmotivada ou deseducada. Apontam, ao fim, que o comprometimento da comunicação sinalizada se deve a dificuldades no processamento da informação, uma vez que a ansiedade gera uma sobrecarga cognitiva.

Em seu dia a dia, a pessoa surda depara-se com diferentes situações em que a comunicação se mostra uma barreira de difícil acesso em diversos lugares, entre eles no âmbito familiar, que pode reverberar em problemas emocionais e em maior estresse (Silva, 2016). Na perspectiva de Sanchez e Gouveia Junior (2011), a comunicação seria o comportamento ideal para se reduzir a ansiedade vivida, o que a torna uma espécie de antiansiogênico.

Gênero

Os transtornos de ansiedade tendem a surgir ainda na infância e possuem maior proporção de incidência (2 por 1) entre pessoas do gênero feminino (APA, 2014). As pesquisas no campo da surdez que, de certo modo, confirmam esses resultados não trazem possíveis "explicações" sobre tamanha prevalência quando o que está em realce é o gênero da amostra. Contudo, algumas pesquisas sobre ansiedade possuem amostras que apresentam em seus resultados maiores níveis de ansiedade entre partícipes surdas (Kvam et al., 2007; Li, & Prevatt, 2010), diferindo, inclusive, significativamente da amostra masculina (Bizjak, 2009; Fellinger et al., 2005; Karademir, 2015; Suhani et al., 2015; Theunissen et al., 2012). Esses dados não nos condicionam a associar a ansiedade ao gênero, pois há estudos que também apontam para um maior nível de ansiedade entre participantes surdos (Anthony, 1992; Sanchez, 2013). Entretanto, pensemos nos modelos de criação adotados por pais ou responsáveis de crianças: meninos e meninas tendem a ser socializados de formas muito diferentes (Dell'Aglio, 2003). Quando surdas, elas tendem a ser monitoradas mais de perto e com menos oportunidades de comunicação e de interação (Ahmadi et al, 2015). No caso da surdez, os modelos de cuidado são influenciados pelo conceito que ela possui para os cuidadores, o que pode ser promotor de negligências ou autoritarismos (Freitas, & Magalhães, 2013).

A infância representa um período de grande importância para a saúde mental das pessoas surdas (Idágarra et al., 2009), sendo as práticas de educação parentais importantes para a sua vida social, afetiva e emocional. A mulher surda terá que lidar com rótulos pejorativos que salientam uma (im)provável incapacidade e deficiência que degrada sua saúde mental (Perlin, & Vilhalva, 2016), pois os valores sociais negativos atribuídos a elas podem influenciar as crenças pessoais que carregam (Santos, Lima, & Silva, 2016). São impostos crenças e valores que dificultam a vida das mulheres surdas, provavelmente muito mais do que aos homens, e que podem favorecer o desencadeamento dos transtornos de ansiedade, que atingiriam mais ao gênero feminino quando produzem estresse ambiental crônico (WHO, 1993).

Essas crenças e valores podem levar a autoconceitos que sumarizam a identidade feminina surda a diferenças de gênero puramente biológicas, que a associem ao trabalho doméstico e a tomar a própria noção de si, enquanto mulher, como inferior ao homem (Andrade, & Finau, 2012). A "absorção" de pensamentos discriminatórios de repúdio ou de superproteção oriundos da família pode ser um risco às mulheres surdas, que criarão o medo de avaliações negativas (Karademir, 2015). Li e Prevatt (2010) observaram que muitos dos medos que seus participantes com diferentes graus de surdez apresentavam poderiam estar associados ao controle ambiental exercido pela família. De fato, o receio de falhar e de sofrer críticas foi muito maior entre as participantes surdas do que entre os surdos, o que foi explicado pelos autores como um reflexo da comparação que elas fazem de si com uma imagem ideal.

Talvez por esses e outros motivos as mulheres tendam a ser mais suscetíveis a experienciar medos, estresse e fobia social, sendo mais assertivas para expressar quando sentem medo (Suhani et al., 2016), o que possivelmente justifique os maiores índices de ansiedade entre elas do que entre amostras surdas masculinas. Essas diferenças em torno da ansiedade "podem ser explicadas pela maior necessidade de aprovação social que as meninas enfrentam e pela maior resistência dos meninos em admitir sentimentos de ansiedade, quando comparados com as meninas" (Batista, & Oliveira, 2005, p. 46). Deve-se considerar que a cultura patriarcal e a educação desse sistema contribuem para que os homens expressem com maior dificuldade o que sentem independentemente de sua condição auditiva.

Nível educacional

O nível educacional também demonstra interferir sobre o nível de ansiedade entre as pessoas surdas. Palmer et al. (2013) identificaram um nível significativamente maior de ansiedade entre os participantes surdos sem nível superior de 4 anos, algo que também foi notado no Brasil (Costa, 2012): participantes surdos que haviam concluído o ensino superior apresentaram significativo menor nível de ansiedade do que aqueles que possuíam apenas o fundamental (completo ou não). Igualmente, aqueles que cursaram o ensino médio incompleto mostraram-se significativamente menos ansiosos do que quem cursou o ensino fundamental incompleto. Quando comparados aos ouvintes, se observou o contraste: mesmo possuindo o ensino médio completo, os surdos foram mais ansiosos do que os ouvintes que possuíam apenas o ensino fundamental maior completo, enquanto os partícipes surdos que possuíam o ensino superior completo foram menos ansiosos do que os ouvintes com pós-graduação. A presença de diferenças conforme o nível educacional não foi observada em dada pesquisa com 135 atletas com diferentes graus de surdez e que cursavam o ensino fundamental, médio e superior (Karademir, 2015).

Aponta-se que entre os estudantes o aumento do nível educacional poderia reduzir a ansiedade (Booth-Butterfield, & Booth-Butterfield, 1994). Uma explicação estaria na melhor capacidade para lidar com os efeitos provocados pela ansiedade (Suhani et al., 2016), ou seja, quanto mais estruturado cognitivamente essa pessoa for, melhor sua capacidade para enfrentar os sintomas da ansiedade (Cardoso, & Capitão, 2007). O ambiente educacional também possui seu grau de interferência sobre a ansiedade vivida pelos estudantes surdos, como reforçam as experiências, favorecendo-a ao dificultar o desempenho acadêmico e atrapalhar o aproveitamento numa disciplina (Ariapooran, 2016) ou limitando-a ao dar a devida atenção à autoestima, à competência e à autoconfiança dos alunos com surdez (Booth-Butterfield, & Booth-Butterfield, 1994). No quesito âmbito educacional e ansiedade, as escolas especiais aparentam favorecer esse segundo desfecho (Booth-Butterfield et al., 1991).

Todavia, o tipo de instituição de ensino indefine implicações ansiogênicas em seus alunos surdos ou com DA. O estudo de Theunissen et al. (2012) pôde corroborar: a ansiedade geral foi maior entre os alunos surdos de escolas especiais do que os de regulares, enquanto a ansiedade social demonstrou um desfecho inverso. Kurková (2015) constatou que ansiedade e tensão foram maiores entre os participantes surdos e ouvintes de escolas regulares e menores entre os surdos de escolas especiais. A autora verificou, também, que incompreensão da comunicação ambiente, reações atrasadas e preocupação com danos ao aparelho auditivo são os principais estressores que geram ansiedade e tensão aos alunos com surdez nas aulas de educação física.

Características da surdez

Um primeiro elemento relativo à surdez seria o próprio nível auditivo. Ao mesmo tempo em que há afirmações na literatura que pressupõem correlações positivas entre o grau de surdez e o risco de problemas à saúde mental (Kvam et al., 2007), também se destaca a falta dessa evidência (Fellinger et al., 2012). Um estudo egípcio (Azab et al., 2015) com grupos equitativos de crianças com surdez (leve, moderada e severa) permitiu verificar que aquelas com menor audição apresentaram maiores índices percentuais de ansiedade nos subtipos generalizada, de separação, social e evitação escolar. Por possuírem menos dificuldades em virtude da audição e disporem de uma melhor habilidade de comunicação, as crianças com surdez leve lidariam menos com a ansiedade e com o estresse. Já no Irã, pesquisadores observaram que os adolescentes surdos de um grupo de treinamento em assertividade não apresentaram diminuições nos níveis de ansiedade social quando comparados a pares com DA, que exibiram reduções significativas em seus níveis de ansiedade após o grupo (Ahmadi et al., 2017). Outros resultados de pesquisas indicaram que a severidade da surdez favoreceu sua maior probabilidade (Contrera et al., 2017) e relação (Garnefski, & Kraaij, 2012a) com a ansiedade.

Theunissen et al. (2012) observaram que possuidores de surdez severa tiveram maior nível de ansiedade geral do que os de surdez moderada e profunda, respectivamente. Já os participantes com surdez moderada apresentaram mais ansiedade social do que quem possuía surdez severa e profunda, respectivamente. Todavia, os autores consideraram não ter havido associação entre grau de surdez e nível de ansiedade. Ao verificar a influência dos dispositivos auditivos sobre a ansiedade geral e social, percebeu-se que em ambas o nível foi maior entre usuários de aparelho auditivo convencional do que de Implante Coclear (IC), havendo grande diferença na ansiedade social. A semelhança nos níveis de ansiedade entre usuários de IC e ouvintes foi justificada como reflexo do suporte institucional dos implantados ao longo da sua reabilitação (fonoaudiológico, psicológico, social etc.) para prevenir ou diminuir incidências psicopatológicas. A idade da implantação, bem como a concessão de menor proteção e maior liberdade para interagir por pais e professores a esses usuários, reduziria o nível de ansiedade dos seus usuários.

Em outro estudo, Theunissen et al. (2015) notaram que os usuários de aparelho auditivo pontuaram mais nos aspectos psicopatológicos internalizados (incluindo ansiedade geral, social e generalizada) do que usuários de IC, ainda que esses últimos possuíssem maior grau de surdez. Presumiu-se que o tipo de aparelho auditivo poderia predizer tais sintomas internalizados. Tanto nesses aspectos como nos externalizados, a amostra implantada não diferiu significativamente da ouvinte, indicando que a melhor comunicação oral se relacionou a baixos índices de psicopatologia. Ao auxiliar os usuários de IC a obter alguma audição, o seu dispositivo auditivo geraria melhores possibilidades interacionais com o mundo e com outras pessoas.

Aqueles que perderam a audição podem sofrer impactos psicológicos, tornando-se ansiosos (Shushtari et al., 2015), o que deposita na idade da PA um fator de modulação dos sintomas de ansiedade (Idágarra et al., 2009), ainda que seja possível que surdos que perderam a audição antes de 4 ou 9 anos de idade sejam mais ansiosos do que aqueles que a perderam depois desses períodos (Kvam et al., 2007). Essa possível vulnerabilidade à ansiedade estaria associada ao tempo de intervenção junto à perda auditiva (Theunissen et al., 2015). Ao negar a surdez de um ente, muitas famílias procuram tardiamente serviços especializados que possam contribuir para o desenvolvimento do familiar surdo (Negrelli, & Marcon, 2006), embora o próprio ambiente doméstico pudesse beneficiá-lo, quando a língua de sinais pode ser aprendida e fazer parte do meio de comunicação familiar (Freitas, & Magalhães, 2013), o que favoreceria um bom desenvolvimento da sua saúde mental (Fellinger et al., 2012), independentemente do quanto possa ou não ouvir.

 

Considerações finais

Objetivou-se discutir a influência da comunicação, do gênero, do nível educacional e das características da surdez sobre a ansiedade das pessoas surdas. A ansiedade é uma experiência comum a todas as pessoas, afetando de igual maneira as surdas, apesar de determinados fatores serem mais proeminentes no seu desencadeamento e manutenção do que seriam para as ouvintes. As consequências de ser surdo nessas sociedades são vastas e podem levar a isolamento, exclusão, estigmatização e mau ajustamento à surdez, fatores que também podem pôr a saúde mental da população surda em risco.

Dificuldades comunicacionais são um dos principais e mais recorrentes obstáculos vividos pelas pessoas surdas. Considerando o grande número de pessoas com algum grau de surdez no mundo e no Brasil, bem como a quantidade de ouvintes que é capaz de se comunicar satisfatoriamente com elas, é compreensível que as interações entre surdos e ouvintes possam gerar estresse e ansiedade. Não seria por acaso o medo patológico da reação alheia ser tão comum a esse grupo, que poderia ser constatado pela necessidade de se evitar o contato social. Adaptar-se comunicativamente a pessoas fora da sua comunidade ou círculo social parece ser uma estratégia necessária e uma alternativa à interação e à redução ou proteção à ansiedade.

Quando observado o gênero é possível constatar que os níveis de ansiedade possuem uma maior incidência na vida das mulheres surdas e demonstra um caráter crônico e nocivo à sua saúde mental. Apesar de os estudos consultados não expressarem uma justificativa para tal inclinação, presume-se que o cuidado e a educação destinados às surdas sejam promotores de maiores privações e superproteção, que desenvolvem mais medos e ansiedades nelas em longo prazo, como já ocorre às ouvintes. A despeito dos poucos estudos apresentados, o nível educacional não demonstrou ser um fator com implicações claras para a saúde mental das pessoas surdas, considerando o grau de qualificação ou mesmo o tipo de escola em que se estuda. Entretanto, a educação se mantém relevante e importante para a independência das pessoas surdas, o que refletiria em conquistas pessoais e profissionais de impacto em sua qualidade de vida e, certamente, saúde mental. Considerando as dificuldades de interação provocadas pela surdez é compreensível que a sua severidade favoreça ainda mais a ansiedade, especialmente quando a socialização é prejudicada pela menor capacidade de ouvir.

É relevante o papel que profissionais diretamente ligados à comunidade surda e pesquisadores interessados possui em contribuir para a melhoria da qualidade de vida desse grupo através de intervenções profiláticas e de psicoeducação. Apenas entrando em contato com essa população esses atores poderão se beneficiar com informações mais precisas e, por outro lado, levar benefícios a ela nesse interjogo de "semear e colher". Nesse sentido, o engajamento científico é de suma importância, tanto quanto o interventivo, especialmente quando prioriza a cultura surda, que seria mais bem compreendida quando nos referimos à adoção da língua de sinais em todo o seu processo de desenvolvimento. Para o Brasil, país que ainda precisa dar seus passos iniciais no que diz respeito ao enfoque à saúde mental da comunidade surda, o emprego dessa língua prevenirá dificuldades geradas quando se relega a sua importância, principalmente no campo científico.

 

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Endereço para correspondência:
Fábio Santos
fbi-psico@hotmail.com

Joilson Pereira da Silva
joilsonp@hotmail.com

Submetido em: 01/09/2018
Revisto em: 08/12/2018
Aceito em: 16/01/2019

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