Arquivos Brasileiros de Psicologia
ISSN 1809-5267
https://doi.org/10.36482/1809-5267.ARBP2019v71i2p.34-50
ARTIGOS
O conhecimento tácito a partir da perspectiva de Michael Polanyi
Tacit knowledge from Michael Polanyi's perspective
El conocimiento tácito desde la perspectiva de Michael Polanyi
Adriano Pereira de MeloI; Larissa Medeiros Marinho dos SantosII; Tatiana Cury PolloIII; Lívia da Silva BachettiIV
IMestre em Psicologia. Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). São João del-Rei. Estado de Minas Gerais. Brasil
IIDocente. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). São João del-Rei. Estado de Minas Gerais. Brasil
IIIDocente. Departamento de Psicologia. Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). São João del-Rei. Estado de Minas Gerais. Brasil
IVDoutora em Psicobiologia. Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto. Universidade de São Paulo (USP). Ribeirão Preto. Estado de São Paulo. Brasil
RESUMO
O propósito deste artigo é apresentar o conceito de conhecimento como proposto pelo epistemólogo Michael Polanyi, explicitando conceitos como conhecimento tácito, meaning e habitar. De acordo com o autor, todo processo de conhecimento sempre envolve uma dimensão tácita, que vai além daquela em que o conhecimento pode ser explicitado por palavras. O trabalho foi dividido em subpartes com a intenção de facilitar a compreensão dos elementos específicos contemplados por Polanyi para a compreensão do que é conhecer. Compreende-se que o conhecimento sempre envolve consciência que, por sua vez, é dividida em atenção focal e subsidiária, sendo o resultado da integração tácita de elementos subsidiários na relação com o elemento focal (meaning). Considera-se que, apesar de utilizada em diversos campos do conhecimento, a obra desse autor é pouco conhecida no Brasil e ressalta-se a importância de estudos que busquem explicitar sua abordagem, inclusive na relação com outros autores.
Palavras-chave: Conhecimento Tácito; Meaning; Integração Tácita.
ABSTRACT
The purpose of this paper is to present the concept of knowledge as proposed by the epistemologist Michael Polanyi, explaining concepts such as tacit knowledge, meaning and dwelling. According to the author, every process of knowledge always involves a tacit dimension, which goes beyond what can be explained by words. The work was divided into sub parts with the aim of facilitating the comprehension of the specific elements contemplated by Polanyi for the understanding of what is to know. It is understood that knowledge always involves consciousness, which in turn is divided into focal and subsidiary attention and is the result of the tacit integration of subsidiary elements in the relation to the focal element (meaning). It is considered that although it is used in several fields of knowledge, the work of this author is little known in Brazil and it is emphasized the importance of studies that seek to make explicit its approach, including in the relation with other authors.
Keywords: Tacit Knowledge; Meaning; Tacit Integration.
RESUMEN
El propósito de este artículo es presentar el concepto de conocimiento como propuesto por el epistemólogo Michael Polanyi, explicitando conceptos como conocimiento tácito, meaning y habitar. De acuerdo con el autor, todo proceso de conocimiento siempre involucra una dimensión tácita, que va más allá de aquella en que el conocimiento puede ser explicitado por palabras. El trabajo se dividió en subpartes con la intención de facilitar la comprensión de los elementos contemplados por Polanyi para la comprensión de lo que es conocer. Se entiende que el conocimiento siempre implica conciencia que, a su vez, se divide en atención focal y subsidiaria, siendo el resultado de la integración tácita de elementos subsidiarios en la relación con el elemento focal (meaning). Se considera que a pesar de ser utilizado en diversos campos del conocimiento la obra de este autor es poco conocida en Brasil y se resalta la importancia de estudios que busquen explicitar su abordaje, incluso en la relación con otros autores.
Palabras clave: Conocimiento Tácito; Meaning; Integración Tácita.
Introdução
Ao se falar em conhecimento, principalmente no âmbito da filosofia da ciência, podemos ter a ideia de uma entidade impessoal que pode ser inteiramente traduzida em palavras. Nas palavras de Popper, "conhecimento em um sentido objetivo é conhecimento sem um conhecedor; conhecimento sem um sujeito cognoscente" (1975, p. 111). Ao contrário dessa posição, neste artigo, o objetivo é discutir o conhecimento a partir da perspectiva de Michael Polanyi, ou seja, enquanto um produto humano que é construído dentro de um corpo/mente fazendo contato com a realidade. Para tanto iremos explorar a abordagem teórica proposta pelo autor, a partir de conceitos como conhecimento tácito, meaning e habitar (Polanyi, 1958; 1966; 1969).
Polanyi (1966) reconheceu que em todo processo de conhecimento há sempre uma dimensão tácita, além daquela que é explícita. O termo tácito é comumente associado ao conhecimento que temos, mas que não conseguimos expressar. Pode se referir a performances corporais como em esportes, música ou habilidades necessárias em um laboratório e também a intuições culturais e suposições pré-reflexivas que guiam a forma pela qual interagimos com o mundo e com as pessoas (Adloff, Gerund, & Kaldeway, 2015). Cardoso e Cardoso (2007) complementam que o termo tem origem latina tacitus e significa silencioso, expressa uma compreensão que é implícita, que existe mesmo sem ser constatada.
Nós sabemos mais do que conseguimos explicar com palavras. Tomemos como exemplo a fala humana: imagine uma criança que saiba falar um idioma. Mesmo sem saber as regras gramaticais ou até mesmo escrever, ela é capaz de fazer um enunciado que se enquadra dentro da estrutura de sua língua. No processo de criação do enunciado estão presentes as palavras e as regras gramaticais que regem o idioma. Entretanto, a criança que está criando o enunciado não está pensando nessas regras e, na maioria das vezes, não tem um conhecimento explícito sobre elas. Nesse caso, o enunciado é o componente explícito do conhecimento e as regras gramaticais, o componente tácito. Podemos utilizar a metáfora do iceberg para exemplificar a relação entre o tácito e o explícito. Imagine o conhecimento como um iceberg, a maior parte dele está submerso e uma pequena parte está fora da água. A parte submersa é o componente tácito do conhecimento e o restante é a parte explícita (Saiani, 2004).
No intuito de ampliar o conhecimento sobre o tema e investigar os estudos realizados até o momento, foi feita uma busca bibliográfica, com os descritores Michael Polanyi e conhecimento tácito, na base de dadosaScientific Electronic Library Online (SciELO) e do Portal de Periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (, Pes). Percebeu-se uma carência de artigos teóricos e em português que aprofundem as discussões sobre o tema. O foco dos 17 artigos encontrados residiam nos campos: construção e gestão do conhecimento nas organizações (Albagli, & Maciel, 2004, Silva, 2004; Popadiuk, & Santos, 2010; Leonardi, & Bastos, 2014), no esporte (Nery, Telles, Santos, Terra, & DaCosta, 2018) e na administração pública (Braun, & Mueller, 2014), conhecimento tácito e expressão do corpo nas artes (Souza, 2018), supervisão na formação de psicólogos (Carneiro, Caldas, & Sampaio, 2011), formação de professores (Duarte, 2003), modelagem do ambiente de aprendizagem matemática (Rosa, & Orey, 2012) modelagem de linhas de transmissão de energia elétrica (Campos, Elmiro, & Nobrega, 2014), administração estratégica e aprendizagem organizacional (Leite, & Porsse, 2003) e difusão do conhecimento e desenvolvimento (Sampaio, Passos, & Assis, 2014). Importante ressaltar que, apesar de utilizarem o conceito de conhecimento tácito proposto por Polanyi, esses estudos não aprofundam as discussões sobre esse conceito, ainda pouco explorado.
Considera-se que carecemos de uma compreensão mais ampla do conceito de conhecimento tácito na sua relação com outros conceitos propostos pelo autor, tais como o de meaning e o de habitar (Polanyi, 1958; 1966; 1969; Polanyi, & Prosch, 1975). Por isso, são necessários artigos teóricos que descrevam e ampliem essa discussão, favorecendo o acesso ao conhecimento e expandindo o entendimento desse conceito que gradativamente tem sido usado nas mais variadas áreas do conhecimento. Compreender a perspectiva de Polanyi e os conceitos por ele desenvolvidos se torna importante para reflexões sobre diversos campos do conhecimento, principalmente no que se refere à própria noção de conhecer.
No materialismo científico, os fenômenos psicológicos são considerados apenas epifenômenos da matéria. A epistemologia de Polanyi, ao contrário, coloca a psicologia como um campo próprio e com grande relevância para a compreensão da realidade. A forma de compreensão usada neste trabalho é equivalente ao termo habitar cunhado por Polanyi (1966) afirma que todos nós, quando fazemos contato com o mundo externo, estamos dando sentido a ele, independentemente da maneira pela qual esse contato é feito.
Nós sabemos mais do que podemos falar
Um dos principais desafios desse artigo é discutir sobre o conhecimento do qual não podemos falar, sobre essa dimensão tácita na qual, segundo Polanyi (1958; 1966; 1969), todo o conhecimento é fundado. Mas, tal discussão gera um paradoxo: como podemos escrever sobre o que está além das palavras usando palavras? Vamos começar a clarificar o pensamento. Comecemos pelo fato de que ao escrever lutamos para achar as palavras certas apesar de sabermos o que queremos transmitir. Procuramos dicas, sinais e símbolos que permitam ao leitor compreender o pensamento. O segundo fato a ser notado, é que você leitor precisa fazer um esforço para entender as palavras buscando seus significados dentro de sua experiência com o mundo. Esse é um dos pontos abordados por Polanyi (1958; 1966; 1969): todo conhecimento é baseado na nossa experiência pessoal de significado e que a verdadeira compreensão depende de tais experiências.
Polanyi critica a visão objetiva de conhecimento na qual os objetos, por meio da observação, nos oferecem dados que são independentes da nossa percepção de realidade e de verdade, separando assim o conhecimento do conhecedor. Ele exemplifica o início da sua teoria como a seguinte afirmação:
Eu devo reconsiderar o conhecimento humano começando pelo fato de que nós podemos saber mais do que podemos comunicar. Esse fato parece óbvio; mas não é fácil dizer exatamente o que ele significa. Um exemplo. Nós conhecemos a face de uma pessoa, e podemos reconhecê-la entre milhares, na verdade, entre milhões. Ainda assim, frequentemente não conseguimos explicar como reconhecemos uma face conhecida. Então, a maioria desse conhecimento não pode ser expressa por palavras (Polanyi, 1966, p. 4, tradução nossa).
Semelhante ao exemplo anterior, da identificação da face de uma pessoa, utilizado por Polanyi (1966), existem outros tipos de reconhecimento que são similares. Reconhecemos mudanças de humor, ao olhar o rosto de uma pessoa, sem poder dizer com muita clareza, por quais características sabemos isso. De acordo com Polanyi (1966), nas universidades, aulas práticas são usadas para treinar os alunos na arte de identificar diferentes espécies de plantas, animais ou rochas, pois essas ciências descritivas não podem ser totalmente traduzidas em palavras.
Com o exemplo do estudo do reconhecimento, de doenças e espécies, o autor entende que se entra no campo da transmissão do conhecimento. Por isso, argumenta-se que o fato desse conhecimento poder ser a partir de exercícios práticos prova que o mesmo pode ser transmitido. Mas, para Polanyi (1966), essa transmissão ocorre unicamente confiando na cooperação inteligente da pessoa que está sendo ensinada para compreender o significado da demonstração, pois não podemos descrever, passo a passo, como este reconhecimento é feito.
Polanyi (1966) relaciona sua teoria com a psicologia da Gestalt. Ele diz a Gestalt demonstrou que podemos reconhecer uma fisionomia integrando a consciência que temos de cada característica sem sermos capazes de identificá-la, e que a percepção da fisionomia acontece através da equilibração dessas características impressas na retina ou no cérebro. Mas ele enxerga a Gestalt de outra forma: como o resultado da modelagem da experiência no ato da busca pelo conhecimento. Esse processo de modelagem é chamado de integração tácita.
Dentro da lógica do pensamento tácito, o autor identifica vários tipos de saberes tácitos, dentre eles, a arte de diagnosticar, a performance de habilidades - que podem ser artísticas, atléticas ou técnicas -, o conhecimento mais intelectual ou mais prático, know how e know what. O uso de sondas e ferramentas e o uso denotativo da linguagem também fazem parte desta lista (Polanyi, 1958; 1966; 1969).
Com essa discussão, o autor começa a definir dois pontos importantes de seu pensamento. O primeiro é a dimensão tácita do conhecimento. Pode parecer que Polanyi diferencia o conhecimento tácito do explícito de forma ontológica, entretanto, conhecimento explícito, seguindo a lógica do autor, nada mais é que conhecimento tácito expresso em linguagem. O segundo ponto é a inseparabilidade do conhecimento e do conhecedor. Esse ponto ficará mais claro ao decorrer do artigo, mas já se pode notar que o autor trabalha com o conhecimento pessoal. Não nega o método científico, mas, sim, demonstra que esse é pessoal dentro da dimensão tácita.
Ainda sobre a dimensão tácita, podemos notar que ela é maior do que se pode colocar em palavras e é, também, anterior a linguagem. Polanyi (1969) alega que o fato de possuirmos conhecimentos que não podem ser falados e de que devemos conhecer primeiro alguma coisa não falada para depois podermos expressar isso em palavras, era senso comum nas análises filosóficas da linguagem, em séculos anteriores. Mas, o positivismo tenta ignorar esse fato, em razão de o conhecimento tácito não ser acessível à observação objetiva. Nesse sentido, Loenhoff (2015, p. 24) afirma que o:
[...] conhecimento tácito é holístico, por que as práticas que ele habilita não são singulares nem isoladas. Elas são, em vez disso, inextricavelmente enredadas com outros contextos de ações e seus horizontes de referência os quais, devido a sua totalidade, não são representáveis.
Polanyi (1958; 1966; 1969) analisa o conhecimento e a consciência em seus próprios termos, ou no seu nível de realidade, como será esclarecido mais a frente no texto. Em seguida veremos como ele propõe o funcionamento dessa dimensão tácita.
Estrutura do conhecimento
Uma das principais características do conhecimento tácito é a divisão dos atos conscientes em dois tipos de atenção: atenção focal e atenção subsidiária1. Podemos exemplificar a partir da percepção de um objeto simples, como uma caneta: imagine que uma pessoa esteja na sua frente e, de repente, tire uma caneta do bolso, aponta o dedo para ela e te faça uma pergunta: o que é isso? Você provavelmente vai dizer que é uma caneta. Sua atenção focal está voltada para caneta, para seu significado como um todo. Mas a caneta não é única coisa que sua mente está observando, pois o objeto tem vários elementos, como: tampa, tubo de tinta, ponta esferográfica. Além dos elementos materiais, sua mente tem memórias de suas experiências passadas com canetas: como manuseá-las, como e para que você as usa etc. A atenção que é dada a esses outros elementos é chamada atenção subsidiária.
Segundo Polanyi (1958), esses dois tipos de atenção são exclusivos. Não podemos dirigir a atenção focal para dois elementos ao mesmo tempo. Além do que, se dirigirmos nossa atenção para o objeto subsidiário ele deixa de ser subsidiário e passa a ser focal. Atenção focal e subsidiária não são dois graus de percepção, mas sim dois tipos diferentes de atenção dadas a um objeto, afirma o autor. Usando a percepção visual como exemplo, Polanyi (1969) entende que podemos dizer que olhar para um elemento, prestando atenção nele mesmo é diferente de ver esse elemento enquanto olha para o contexto do qual ele faz parte.
Assim, como temos dois tipos de atenção, o conhecimento sempre envolve duas coisas, que são chamadas de termos do conhecimento tácito. O primeiro termo é chamado proximal, está relacionado a elementos subliminares de um objeto e outros elementos como: processos inconscientes, processos emocionais, respostas motoras etc. O segundo termo é chamado distal e está relacionada ao objeto do conhecimento como um todo, ao seu significado (Polanyi, 1966; Saiani, 2004; Granja, 2006; Virtanen, 2014).
A partir dos dois tipos de atenção e dos dois termos do conhecimento, vamos analisar a relação funcional dos elementos proximais ao alvo distal. No ato do conhecimento tácito nós não "olhamos para", mas sim "olhamos de para", ou seja, partimos do primeiro termo para o segundo termo da relação tácita. Então, é do termo proximal que temos conhecimento e talvez não sejamos capazes de falar sobre ele. Quando observamos um objeto familiar, dependemos da nossa consciência, awareness, de seus atributos enquanto prestamos atenção à aparência característica do objeto. Da mesma forma, confiamos na nossa consciência, awareness, da combinação de movimentos musculares para a prática de uma habilidade física. Assim estamos prestando atenção a partir desses elementos subsidiários para a realização de sua finalidade conjunta. Esse é a chamada estrutura funcional do conhecimento tácito (Polanyi, 1966). "Conhecimento tácito integra as características de uma entidade compreensível e nos faz vê-las formando uma entidade" (Polanyi 1969, p. 218, tradução nossa).
Para compreender outros dois aspectos do conhecimento, imagine uma pessoa cega achando seu caminho por meio de uma bengala. A princípio ela sentirá os impactos que a bengala fará em sua mão e dedos, mas, essa sensação irá se perder na medida em que a pessoa sente a ponta da bengala tocando o chão (Polanyi, & Prosch, 1975). Esse é o aspecto fenomenológico do conhecimento. A aparência do todo é diferente da aparência do agregado de suas partes, pois ela é controlada por um princípio diferente daquele que controla suas partes (Polanyi, 1969). O conhecimento também possui um aspecto semântico. Voltando ao exemplo anterior, as informações conseguidas pelas sensações da bengala tocando o chão são o significado, meaning, da experiência tácita ao se usar essa ferramenta. Esse aspecto semântico nos diz o que é aquilo que observamos ao usar a bengala que, nesse caso, pode ser o caminho de volta para casa (Polanyi, & Prosch, 1975).
Com sua proposta de estrutura do conhecimento, Polanyi vai aprofundando a noção de que o conhecimento reside na interação ativa entre conhecedor e a entidade compreensível a ser conhecida. A relação da estrutura funcional com o conhecedor ficará mais clara no texto com o conceito de habitar, mas os aspectos fenomenológico e semântico já demonstram o papel da mente e do significado no conhecimento. O exemplo da bengala deixa isso claro ao demonstrar como simples sensações físicas sentidas na palma da mão podem ser transformadas em uma entidade compreensível.
Tríade do conhecimento tácito
O pensamento científico, em geral, tende a entender o conhecimento como uma "coisa", por exemplo, falando que um livro contém conhecimento. Essa afirmação não soa estranha para a maioria de nós. Entretanto, do ponto de vista adotado aqui, o conhecimento não é uma "coisa" em si, mas sim um processo. Polanyi (1969) estabelece uma relação em tríade dos coeficientes no processo do conhecimento tácito. Temos a pessoa, A, a palavra, B, e o objeto, C. Dessa forma, uma pessoa, A, forma uma palavra, B, para significar o objeto, C. A pessoa, A, íntegra a palavra, B, na sua dependência em C. Mas a palavra, B, não é o objeto, C. Essa integração dota a palavra com um significado que aponta para o objeto. Para exemplificar, Polanyi (1969) cita um palestrante apontando o dedo para um objeto e dizendo para a audiência, "olhe para isso"? (p. 181). Dessa forma a plateia seguirá o dedo e irá olhar para objeto.
O modo no qual estamos cientes do objeto é diferente do modo no qual estamos cientes do dedo apontando. Temos aqui a relação entre atenção subsidiária e focal. Nossa atenção focal está no objeto, enquanto o dedo é percebido, subsidiariamente, em relação a ele. "É nossa atenção subsidiária de uma coisa que a dota com significado: significado que depende de um objeto no qual estamos focalmente cientes" (Polanyi, 1969, p. 182). Para finalizar a tríade, o ato de integração dessa relação significativa que ele deve ser feito por uma pessoa.
Podemos entender melhor, agora, os aspectos funcional, fenomenológico e semântico do conhecimento. O aspecto funcional é a relação entre os dois termos: nos tornamos cientes de um objeto, apreendendo-o a partir de seus elementos subsidiários. Esse é o resultado da integração feita pela pessoa A. O aspecto fenomenológico diz que estamos cientes dos elementos subsidiários que apontam para C, nos termos de C, e os elementos subsidiários têm uma mudança sutil de aparência. O aspecto semântico é o C, que tem um significado além das partes subsidiárias e que as dotam com significado.
Integração tácita
A capacidade de apreender vários elementos subsidiários com o foco em um significado é chamada por Polanyi (1969) de integração tácita. O autor enxerga essa integração como uma busca pelo conhecimento. O uso da linguagem é uma performance tácita. Ela integra vários tipos de atos sem significado em uma relação com um foco, que é o seu significado (Polanyi, 1969).
A integração tácita já está clara se analisarmos os exemplos utilizados no texto até agora. Dessa forma, vamos ver a relação da integração com os elementos proximais. Os elementos proximais são os mais variados possíveis, desde objetos físicos do ambiente até processos internos como emoções. Segundo Polanyi (1969), atenção subsidiária geralmente é confundida com subconsciente:
Nosso conhecimento de regras linguísticas e a maneira como as aplicamos na fala são comumente chamadas de conhecimento inconsciente aplicado inconscientemente. Eu devo denominar isso como conhecimento subsidiário e denominar sua aplicação de integração tácita (Polanyi, 1969, p. 197, tradução nossa).
Uma característica subsidiária pode variar entre muitos níveis. Algumas são facilmente percebidas e outras são estritamente inconscientes. Por exemplo, estamos claramente cientes das partes de um rosto quando o observamos, mas não podemos constatar estímulos subliminares dentro do nosso corpo nem traços neurais em nosso cérebro. "Nós podemos dizer, bem geralmente, que onde quer que estejam dentro do nosso corpo, os processos que fazem a consciência nascer em nós, o conhecimento tácito dará sentido ao evento em termos da experiência na qual estamos prestando atenção" (Polanyi, 1969, p. 147, tradução nossa). A diferença entre subsidiário e inconsciente é que o subsidiário tem uma função para preencher. Enquanto ele funcionar como uma característica do objeto em que estamos com a atenção focal, o conhecimento subsidiário pode variar entre os diferentes níveis de consciência.
Nós conhecemos com o nosso corpo
Para compreendermos melhor o que é o conhecimento tácito, vamos analisar outro dos principais pontos da teoria de Polanyi (1966; 1969): como ele vê a relação entre o corpo e o conhecimento. Em suas palavras: "A forma como o corpo participa do ato de percepção pode ser generalizada, de modo a incluir as raízes corporais de todo conhecimento e pensamento" (1969, p. 147, tradução nossa).
Na década de 1980 um novo ramo da psicologia cognitiva, chamado cognição corporificada (embodied cognition), propôs uma mudança na explicação da cognição. Nesse novo ponto de vista, a cognição não mais acontece isolada no cérebro, mas é um processo que depende de um corpo e de seus órgãos sensoriais fazendo contato com o mundo externo (Lindblow, 2007).
Em todas as transações com o mundo exterior, estamos subsidiariamente cientes do nosso corpo, dos impactos que o mundo provoca nele e das respostas produzidas por ele. Experienciamos o mundo a partir do corpo, de acordo com a estrutura funcional do conhecimento tácito. O modo como transformamos experiências corporais sem significados em uma entidade significativa, como explicado no exemplo do uso da bengala, pode ser estendido para incluir traços neurais e estímulos subliminares de dentro e fora do corpo (Polanyi, 1966; 1969). Para o neurocientista Damásio (1996) o corpo também é fundamental para o conhecimento:
O corpo, tal como é representado no cérebro, pode constituir o quadro de referência indispensável para os processos neurais que experienciamos como sendo a mente. O nosso próprio organismo, e não uma realidade externa absoluta, é utilizado como referência de base para as interpretações que fazemos do mundo que nos rodeia e para a construção do permanente sentido de subjetividade que é parte essencial de nossas experiências. De acordo com essa perspectiva, os nossos mais refinados pensamentos e as nossas melhores ações, as nossas maiores alegrias e as nossas mais profundas mágoas usam o corpo como instrumento de aferição (p. 16-17).
Deve-se lembrar que este exemplo está sendo usado dentro da visão ontológica e epistemológica de Polanyi (1966) e, apesar de o corpo fazer parte da construção do conhecimento, a consciência e o conhecimento não podem ser explicados em termos de corpo, ou em termos das leis da física e da biologia, pois eles estão em outro nível de realidade, como será explicado mais adiante no texto.
Habitar
Para Polanyi (1966) nós geralmente experienciamos nosso corpo no sentido do mundo no qual estamos observando, a partir dele. Descrevemos, aqui, como podemos utilizar uma bengala para sentir objetos tocados por sua ponta. Podemos dizer que, dessa forma, transformamos essa ferramenta em uma extensão do nosso corpo, ficando cientes do objeto a partir da ferramenta, ou seja, ela é usada como elemento subsidiário. Toda vez que utilizamos alguma coisa para conhecer outra, da mesma maneira em que utilizamos o corpo para conhecermos o mundo, essa coisa muda de aparência (aspecto fenomenológico do conhecimento). Nós as percebemos, agora, no sentido do objeto em que estamos experienciando, assim como experienciamos nosso corpo utilizando-o para sentir o mundo através dele. Podemos dizer que "quando fazemos uma coisa funcionar como o termo proximal do conhecer tácito, nós a incluímos em nosso corpo - ou estendemos nosso corpo para incluí-la - de modo que passamos a habitar nela" (Polanyi, 1966, p. 16).
Essa é a diferença entre olhar para alguma coisa, nela mesma, e experienciar, através dela, outra coisa, que seja seu significado. Habitar em nosso corpo nos permite conhecermos o mundo através dele. Além de ferramentas, o uso da linguagem também funciona como uma extensão do nosso corpo. Quando aprendemos a usar a linguagem, assim como a usar ferramentas, estamos cientes delas da mesma maneira em que estamos cientes do nosso corpo, passando a conhecer coisas a partir delas. Assim, Polanyi (1966; 1969) afirma que podemos dizer que as interiorizamos e fazemos, nós mesmos, habitarmos nelas.
Já vimos, anteriormente, que o conhecimento tem dois termos, o proximal e o distal, e que experienciamos o segundo através do primeiro. Dessa forma, uma entidade compreensiva é formada pela integração tácita de várias características, tendo em vista seu significado conjunto. A partir de agora, podemos olhar essa integração como uma interiorização. Assim, podemos ampliar a diferença entre olhar para e experienciar através, concluindo que: não é olhando para as características que constituem o termo proximal que compreendemos seu significado conjunto, mas sim, habitando nelas (Polanyi, 1966).
Embora as bases para a compreensão do termo habitar (indwelling) já tenham sido expostas, a chave para se entender este termo reside na diferença entre os dois tipos de atenção e na relação funcional entre eles. Polanyi (1969) explica como os dois tipos de atenção são excludentes, ou seja, não podemos ter atenção focal, nos termos proximais, e distal, ao mesmo tempo. Ele ilustra esse fato dando o exemplo de quando repetimos uma palavra várias vezes prestando atenção no movimento dos lábios e no som da palavra, perdendo o significado dessa palavra. Segundo ele, isso ocorre porque retiramos nossa atenção focal do significado da palavra e a mudamos para o movimento dos lábios e, disso, decorre uma perda de significado. O mesmo acontece quando um pianista foca sua atenção no movimento dos dedos e esquece como se toca a peça. Nos dois casos, houve uma mudança da atenção focal para elementos proximais neles mesmos. Podemos dizer, então, que "deixamos" de habitar esses elementos proximais.
Assim, podemos concluir que habitar se refere ao uso de elementos proximais e da atenção subsidiária, no ato de se conhecer outra coisa. Isso sempre envolve um significado. Para ilustrar essa fala, Polanyi e Prosch (1975) usam o exemplo de uma pessoa tentando compreender a mente de um mestre de xadrez. A pessoa não reduz a mente do mestre aos movimentos que ele faz, mas sim, habita esses movimentos como elementos subsidiários, dentro da estratégia composta pelo mestre.
Outro exemplo sobre as funções de habitar, usado por Polanyi (1966), é quando aceitamos certos ensinamentos morais, interiorizando-os. Isso ocorre quando nos identificamos com esses ensinamentos e os usamos de forma subsidiária, na prática de julgamentos e atos morais. Polanyi (1966) diz que essa lógica se estende à ciência, em geral, pois quando usamos uma teoria, estamos habitando nela, vendo o mundo pela sua luz.
Nós sabemos mais do que podemos falar e falamos mais do que podemos saber
Vamos voltar ao assunto que intitula esse tópico, tentando resolver o paradoxo, mas antes gostaríamos de fazer umas observações. Não estamos tentando, aqui, diminuir a importância da linguagem e do pensamento articulado, nem esse é o intuito de Polanyi (1958; 1966; 1969). O intuito é esclarecer que a linguagem é uma ferramenta e que tem uma base tácita. O pensamento de Polanyi, a seguir, resume o que queremos dizer: "enquanto a linguagem expande a inteligência humana imensamente além do domínio tácito, a própria lógica da imagem - o jeito com que a linguagem é usada - permanece tácito" (1969, p. 145, tradução nossa).
Para Polanyi (1969), a habilidade de reconhecer coisas particulares acontece sem a necessidade de nomeá-las. Isso é provado pelo fato de animais poderem reconhecer membros de uma classe sem possuírem linguagem. Temos o fato, também, de alguns animais que desenvolvem certo nível de consciência ampliada (Damásio, 2005).
Damásio (2005) descreve um pouco sobre a natureza da linguagem:
Palavras e sentenças denotam entidades, ações, eventos e relações. Palavras e sentenças traduzem conceitos, e esses consistem na ideia não linguística do que são as coisas, as ações os eventos e as relações. Necessariamente, os conceitos precedem as palavras e as sentenças tanto na evolução da espécie como na experiência cotidiana de cada um de nós. Palavras e sentenças de seres física e mentalmente sadios não vêm do nada, não podem ser a tradução de um nada anterior a elas. Assim, quando a mente diz "eu" ou "mim", ela está traduzindo, com facilidade e sem esforço, o conceito não linguístico do organismo que é meu, ou do self que é meu (p. 239).
Para Polanyi (1966), o verdadeiro conhecimento reside na habilidade de usá-lo. Palavras, por si só, não carregam o verdadeiro conhecimento, vamos ver esse fato ilustrado com o exemplo da paciente S, descrito por Damásio (2005). S sofria de uma doença que foi responsável pela calcificação das amígdalas dos lobos temporais esquerdo e direito. Ela não possuía nenhum problema de aprendizado, sua inteligência e linguagem eram normais. O único problema é que a sua capacidade de sentir medo foi comprometida. Ela não teve as experiências que tivemos com situações desagradáveis e não aprendeu os sinais que indicam perigo ou uma situação desagradável. Intelectualmente, ela sabe descrever o que é medo e até como reagir em uma situação de perigo, mas não consegue reconhecer nem reproduzir uma expressão facial de medo. Ela sabe as definições de medo, mas não tem o conceito tacitamente formado em sua mente.
Outro exemplo é o argumento feito pelo filósofo Jackson (1986), que cria uma história sobre uma neurocientista chamada Mary. Ela sabia tudo sobre a neurofisiologia da visão de cores, mas nunca pôde experimentá-las, pois cresceu em um ambiente fechado em preto e branco. Embora tivesse todo o conhecimento sobre como as cores são geradas, esse conhecimento não proporcionou a experiência de enxergar as cores.
Resolvendo o paradoxo, vimos que o conhecimento ou o significado é tácito, e que as palavras funcionam como um apontamento para o significado que queremos transmitir. Dessa forma, podemos sim usar palavras para falar sobre o que está além delas, assim como podemos apontar o dedo para um objeto que queremos expor, unicamente confiando na cooperação inteligente do interlocutor. Outro ponto importante, é que, analisando a teoria de Polanyi, averigua-se que mesmo se duas pessoas demonstrarem o um mesmo conhecimento externamente, os elementos subsidiários e o meaning podem ser completamente diferentes.
Conhecimento e realidade
"Eu devo dizer que observamos objetos externos por sermos subsidiariamente cientes do impacto que eles fazem em nosso corpo e das respostas que nossos corpos fazem a eles" (Polanyi 1969, p. 214). Podemos dizer que fazer contato com algum objeto é fazer contato com uma realidade externa. Polanyi acredita que nosso contato com a realidade é aprofundado pelo conhecimento. Em suas palavras:
Nós podemos considerar essa nossa capacidade de saber mais do que podemos falar se acreditarmos na presença de uma realidade externa com a qual podemos estabelecer contato. Isso eu faço. Eu me declaro compromissado com a crença em uma realidade externa gradualmente acessível ao conhecimento e eu considero todo entendimento verdadeiro como uma intimação de tal realidade que, sendo real, deve ainda se revelar para nosso aprofundado entendimento em uma gama indefinida de manifestações inesperadas (1969, p. 133, tradução nossa).
De acordo com a definição de realidade de Polanyi (1966), o real deve se manifestar de diversas maneiras, ainda desconhecidas, pois problemas e pessoas possuem uma realidade mais profunda que pedras em uma calçada. E embora as pedras sejam mais tangíveis, não têm um nível de significância tão grande como pessoas e problemas. Para Polanyi, o significado é mais importante que a tangibilidade, ele considera as pessoas como sendo mais reais.
Pelo pensamento do autor, temos uma realidade, que é gradualmente percebida pelos sentidos humanos e suas ferramentas, consideradas por ele uma extensão do corpo. A linguagem e a ciência são algumas dessas ferramentas que nos ajudam a aprofundar o conhecimento da realidade (Polanyi, 1969).
Entre os dois termos do conhecimento, o proximal e o distal, existem dois níveis de realidade. Polanyi (1966) explica que o nível superior é construído com base nas leis que regem o nível inferior, mas ele não pode ser explicado por essas leis. Vamos analisar o exemplo da fala, que possui cinco níveis de realidade: 1° produção da voz, governada pela fonética; 2° produção de palavras, governada pela lexicografia; 3º produção de sentenças, governada pela gramática; 4º estilo, governado pela estilística; 5º composição literária, governado pela crítica literária. À medida que os níveis vão aumentando, seu grau de "realidade fica maior" e os elementos são menos palpáveis. Temos, ainda, uma hierarquia de comando, na qual o mais real comanda o menos real. Por exemplo, os sons da voz são produzidos para formar palavras, mas não podemos derivar um vocabulário da fonética; usamos o vocabulário para formar frases, que são controladas pelas leis da gramática, mas não podemos derivar regras gramaticais do vocabulário.
Como outro exemplo, Polanyi (1966) pede que consideremos uma máquina qualquer. Ela pode parar de funcionar ou mesmo quebrar, se alguns dos seus materiais se desgastarem, fato explicado pelas leis da química e da física. Entretanto, o design e os princípios operacionais são definidos pela engenharia. Mesmo explicando a falha da máquina, a física e a química não possuem os princípios operacionais da engenharia. Contudo, esses princípios dependem das leis da física e da química para funcionarem. Aqui, ele defende que temos níveis de organização nos quais o nível superior depende do trabalho do inferior.
Meaning
Pode-se dizer que o termo meaning representa a base de todo conhecimento e o "coração" da teoria de Polanyi (1958; 1966; 1969) e Polanyi e Prosch (1975). De acordo com o pensamento de Polanyi, os autores Gerund e Johnson (2015) afirmam que o meaning é anterior a qualquer ato de conhecimento e não deve ser reduzido à linguagem e a atos conceituais e proposicionais.
Polanyi e Prosch (1975) analisam a relação entre subsidiários (S) e o meaning focal (F), de acordo com o que eles chamam de interesse intrínseco (ii). O primeiro exemplo a ser estudado é o uso elementar da linguagem, mais especificamente, na designação através de um nome à alguma coisa, assim como de uma pessoa ou de um objeto. Nesse tipo de associação, a palavra e entidade compreensível, a qual ela se refere, não são parceiros iguais. Para exemplificar essa diferença, pense em um cartão-postal que possua a imagem do Pão de Açúcar e do Cristo redentor, no Rio de Janeiro. Quando se olha para um, logo se lembra do outro, pois os dois são interessantes em si mesmos. Agora, imagine um turista apontando o dedo em direção ao Cristo. A relação entre o dedo e o Cristo é diferente da relação entre ele e o Pão de Açúcar. O dedo só possui interesse na sua dependência em relação ao Cristo.
Dessa maneira, Polanyi e Prosch (1975) colocam sinais, palavras, mapas e fórmulas matemáticas no mesmo patamar que o dedo apontado, os classificando como indicadores. A palavra, ou indicadores, não possuem interesse em si. Possuem apenas capacidade de direcionar nossa atenção para o meaning. Podemos visualizar esse tipo de meaning de acordo com o diagrama representado na Figura 1, no qual temos (S) subsidiários em sua relação como meaning focal (F).
Grande parte dos exemplos usados até agora seguem essa fórmula. Esses tipos de integração, nas quais aos subsidiários falta interesse intrínseco, são chamados de integrações egocêntricas. Esse nome é devido ao fato de que, embora haja a integração de pistas por habitar nelas, tendo o self como o centro, as entidades formadas parecem estar longe do self (Polanyi, & Prosch,1975), apesar de as pistas serem provenientes da experiência de habitar.
A segunda classe de meaning proposta por Polanyi e Prosch (1975) é chamada simbolização. Nela, são os subsidiários que possuem interesse intrínseco e somos arrebatados por esses meanings. Tome como exemplo uma bandeira: olhando-a somente como objeto, ela não possui grande interesse para nós. Entretanto, se for a bandeira de um país, o que está funcionando, subsidiariamente, é nosso senso de pertencimento a uma nação, a integração de nossa existência, como um todo, vivida em um país. O objeto focal, na indicação e na simbolização, é diferente, assim como seus subsidiários. O meaning da bandeira, da forma como foi explicado, só é possível se colocarmos nossa existência como um todo nela, é preciso se entregar a essa peça de pano para que ela se torne uma bandeira simbolizando um país (Polanyi, & Prosch, 1975).
Outro exemplo é o de uma medalha, conseguida através de um campeonato esportivo. Esse objeto em si, como um pedaço de metal, também não possui grande interesse, mas, subsidiariamente, o que está acontecendo é que a pessoal está integrando memórias difusas de suas experiências em horas de treinos, além do senso de orgulho por ter superado limites e obstáculos. Nesse tipo de meaning, a participação do self é um pouco diferente da indicação. Na simbolização, a integração é "estabelecida ao se entregar memórias difusas e experiências do self a esse objeto dessa forma, dando a ele uma visível corporificação" (Polanyi, & Prosch, 1975, p. 75).
O diagrama para a simbolização deve ser diferente do anterior. A seta reta apontando do subsidiário para o focal deve ser substituída por uma seta em forma de loop (Figura 2). Os autores explicam que a razão disso é que, ao se entregar ao objeto, os elementos subsidiários se tornam corporificados nele e o objeto reflete, assim, esses subsidiários (Polanyi, & Prosch, 1975).
Outra forma de meaning analisada pelos autores é a metáfora. A capacidade de se integrar materiais diversos em um todo já foi bem trabalhada até aqui. Também podemos usar essa mesma lógica para a metáfora. Entretanto, ela é diferente das integrações discutidas até agora, como veremos a seguir.
O meaning atingido por uma metáfora é o resultado da relação entre os dois elementos da metáfora: o tenor e o veículo. I. A. Richards propôs denominar "conteúdo" (tenor) a ideia subjacente, e "veículo" (vehicle) a ideia sob cujo signo a primeira é apreendida. Mas importa notar que a metáfora não é o "veículo": ela é o todo constituído pelas duas metades (Ricoeur, 2000, p. 129-130). Essa relação se dá pela semelhança e principalmente dessemelhança entre eles. Tomemos, por exemplo, uma frase de William Shakespeare na peça Ricardo II: "Nem todas as águas do severo e áspero mar podem lavar o óleo santo de um monarca ungido" (citado por Polanyi, & Prosch, 1975, p. 77). Se essa afirmação for tomada de forma naturalística, soará absurda, mas se tomarmos a frase metaforicamente, facilmente poderemos encontrar um significado que vai além do sentido literal. O significado metafórico é estabelecido pelo mesmo mecanismo semântico usado para fazer uma bandeira simbolizar um país, mas com a diferença de que, no caso da simbolização, o objeto focal não é significativo nele mesmo. Já na metáfora, o tenor e o veículo possuem ambos um significado (Polanyi, & Prosch, 1975). O diagrama dessa relação é apresentado na Figura 3.
Entretanto, esse diagrama ainda não representa a metáfora completamente. Ele apenas mostra a relação entre tenor e veículo. Para chegarmos à metáfora, precisamos adicionar um nível que envolva o self. O diagrama da Figura 4 propõe uma nova interação. Sendo assim, análogo à simbolização, os elementos subsidiários, que consistem de nossas experiências relacionadas às duas partes da metáfora, são integradas na medida em que o tenor e veículo se relacionam um com o outro no objeto focal que é a metáfora (Polanyi, & Prosch, 1975).
Antes de chegarmos ao objetivo principal desse tópico, que são as obras de arte, vamos revisitar e classificar, de acordo com Polanyi e Prosch (1975), os tipos de integrações trabalhadas até agora. Primeiramente, temos integrações básicas, que são alcançadas pela percepção, habilidades, relações de parte-todo e ações. Consequentemente, cada uma dessas integrações é feita em dependência de uma coerência com um todo, seu objeto focal (Polanyi, & Prosch, 1975).
Também temos tipos de integrações a partir do que Polanyi e Prosch (1975) classificaram como meanings artificiais ou semânticos, na qual estão inclusos a indicação, simbolização, metáfora, obras de arte, mitos e rituais. O uso do termo semântico não é empregado aqui para se limitar a meanings atingidos pela linguagem. Ele cobre todo o tipo de meaning que é inventado pelo homem (Polanyi, & Prosch, 1975). Na medida em que passamos de integrações simples, assim como em uma percepção visual, para integrações semânticas, como as metáforas, é necessário um maior esforço imaginativo.
Analisando o que foi escrito até agora, partimos da percepção até a metáfora para pavimentar o caminho às obras de arte. A integração tácita de uma obra de arte é mais complexa do que a da metáfora. Integrar duas coisas dissimilares não é o bastante para se ter uma obra de arte, embora algumas partes da obra de arte possam ser formadas por tais integrações (Polanyi, & Prosch, 1975).
Além do mecanismo semântico da metáfora, a obra de arte funciona a partir de sua estrutura e história. Se tomarmos como exemplo um poema, temos como estrutura a métrica, as rimas, o uso de conotações de palavras, o uso de sonoridade e de metáforas. A história é o conteúdo, que pode ser colocado em forma de prosa. O meaning do poema não pode ser transmitido pelo seu conteúdo em prosa. A artificialidade da estrutura separa o poema da voz do poeta e da nossa experiência diária. Dessa forma, estrutura e história corporificam uma à outra. Mas ainda acontece alguma coisa a mais, além da integração de estrutura e história, na construção de uma obra de arte. É o nível no qual nossas difusas experiências e existências respondem ao formato produzido pela obra: ocorre uma integração imaginativa de incompatibilidades formando uma nova entidade, de acordo com a Figura 5 (Polanyi, & Prosch, 1975).
Seguindo o conceito de realidade de Polanyi, as obras de arte têm um alto nível de realidade e significância. Analisando sua estrutura do conhecimento da percepção até as obras de arte, nota-se que a relação entre conhecimento e conhecedor vai se tornando mais estreita, ficando difícil delimitar as fronteiras entre eles. Na verdade, o que o autor parece propor é um tipo de não dualismo entre os dois, um "caminho do meio" que transcende os extremos de conhecimento separado do conhecedor e conhecimento subjetivo, totalmente ligado ao conhecedor.
Considerações finais
O objetivo principal desse artigo foi explorar a perspectiva do conhecimento a partir dos conceitos como conhecimento tácito, meaning e habitar, propostos por Polanyi. Analisamos pontualmente sua teoria, buscando explicitar cada elemento importante para a compreensão das propostas. Vimos que, segundo o autor, todo conhecimento é fundado a partir de uma dimensão tácita que depende da experiência do conhecedor.
O conceito de conhecimento tácito pode ser uma ferramenta para melhor entender o homem e suas atividades. Polanyi o aplicou em sua epistemologia e outros autores já o aplicaram em diversos campos desde a psicologia analítica (Saiani, 2004), até a sociologia (Adloff et al., 2015). Assim, como elemento indispensável ao conhecimento, é imprescindível que a dimensão tácita ocupe seu lugar dentro das pesquisas em ciências humanas.
O fato é que Michael Polanyi não é muito conhecido no Brasil e temos poucos trabalhos realizados baseados em sua proposta teórica. É de se esperar que uma epistemologia com bases na psicologia, que nega a visão puramente objetiva da realidade, onde o conhecedor não tem papel e que também nega a interpretação materialista do mundo, não seja muito bem-vinda no âmbito científico. Wallace (2009) destaca que a ciência do século XX tem uma certa hierarquia que dificilmente é contestada. Nela, temos o materialismo científico em primeiro lugar, seguido por: física, química, biologia e psicologia. Polanyi já apresenta os níveis de realidade nos quais temos a psicologia como um campo que não pode ser explicado pelos demais.
Após as reflexões propostas e a partir da linha de raciocínio delineada por Polanyi, é importante considerar que para desenvolver sua teoria ele usou o trabalho de vários autores e, depois de seu último livro, muitos pesquisadores escreveram suas ideias, logo, ainda há muito a ser feito em relação ao estudo do conhecimento tácito. Seria interessante, em pesquisas futuras, fazer uma revisão desses trabalhos para encontrar convergências e controvérsias e traçar, se possível for, um solo ontológico comum entre novos autores da psicologia e neurociências e Polanyi.
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Endereço para correspondência:
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Lívia da Silva Bachetti
livbachetti@yahoo.com.br
Submetido em: 26/01/2018
Revisado em: 02/12/2018
Aceito em: 31/01/2019
1 No original: Two kinds of awereness; focal awereness e subsidiary awereness. Optamos pelo uso da palavra "atenção" como tradução.