Arquivos Brasileiros de Psicologia
ISSN 1809-5267
ARTIGOS
Racismo e necropolítica: um debate entre teoria social e psicanálise
Racism and necropolitics: a debate between social theory and psychoanalysis
Racismo y necropolítica: un debate entre teoría social y psicoanálisis
Carlos Alberto Ribeiro CostaI; Thayslane Pereira dos Santos LeiteII; Angelo Marcio Valle da CostaIII; Julia Sardinha Leonardo Lopes MartinsIV; Claudia Soares Sant'AnnaV; Daniel Henique Serra dos SantosVI; Ana Clara Oliveira da Cunha SoaresVII; Renata Magaldi Granato MoraesVIII; Maria Isaura Rodrigues PintoIX; Rafael Bordallo de Figueiredo RaposoX
IPsicanalista e psicólogo. Docente. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade Federal Fluminense. Niterói. Estado do Rio de Janeiro. Brasil
IIDiscente. Universidade Federal Fluminense. Niterói. Estado do Rio de Janeiro. Brasil
IIIDiscente. Universidade Federal Fluminense. Niterói. Estado do Rio de Janeiro. Brasil
IVDiscente. Universidade Federal Fluminense. Niterói. Estado do Rio de Janeiro. Brasil
VDiscente. Universidade Federal Fluminense. Niterói. Estado do Rio de Janeiro. Brasil
VIPsicólogo. Universidade Federal Fluminense. Niterói. Estado do Rio de Janeiro. Brasil
VIIDiscente. Universidade Federal Fluminense. Niterói. Estado do Rio de Janeiro. Brasil
VIIIDiscente. Universidade Federal Fluminense. Niterói. Estado do Rio de Janeiro. Brasil
IXDiscente. Universidade Federal Fluminense. Niterói. Estado do Rio de Janeiro. Brasil
XPsicólogo. Universidade Federal Fluminense. Niterói. Estado do Rio de Janeiro. Brasil
RESUMO
Ao tomar a pandemia de Covid-19 como contexto e analisador, este artigo discute os elos históricos entre o racismo e a gestão medicalizada do direito de vida e de morte no Brasil. Parte-se do entendimento de que a escuta e manejo clínicos das situações de sofrimento psíquico no contexto da medicalização da vida (na pandemia, e mesmo fora dela) implicam, necessariamente, fazer também crítica social. Para tal, propomos um debate que enoda teoria da clínica, as histórias da medicina social e da psicanálise no Brasil, e os conceitos de bio e necropolítica. Nossa hipótese é a de que se por um lado, em sua chegada ao Brasil, a psicanálise foi "cooptada" por uma tradição médica higienista (o que polarizou por anos a forma como ela foi vista em nosso país), por outro, por sua estrutura conceitual, pelo contraponto inicial com o modernismo brasileiro, e por seu atual debate sobre a segregação, essa práxis pode explicitar sua potência e vocação antirracista.
Palavras-chave: Psicanálise; Racismo; Necropolítica; Biopoder.
ABSTRACT
Taking Covid-19 Pandemic as a context and analyzer, this article discusses the historical links between racism and the medicalized management of the right to life and death in Brazil. It is based on the understanding that listening and clinical management of situations of psychological distress in the context of the medicalization of life (in Pandemic, and even outside it) necessarily imply making social criticism as well. To this end, we propose a debate that encapsulates clinical theory, the histories of social medicine and psychoanalysis in Brazil, and the concepts of bio and necropolitics. Our hypothesis is that if, on the one hand, on its arrival in Brazil, psychoanalysis was "co-opted" by a hygienist medical tradition (which for years polarized the way it was seen in our country), on the other, by its conceptual structure, by the initial counterpoint with Brazilian modernism, and by its current debate on segregation, this praxis can make explicit its anti-racist power and vocation.
Keywords: Psychoanalysis; Racism; Necropolitics; Biopower.
RESUMEN
Tomando como como contexto y analizador la Pandemia Covid-19, este artículo analiza los vínculos históricos entre el racismo y la gestión medicalizada del derecho a la vida y muerte en Brasil. Se basa en el entendimiento de que la escucha y el manejo clínico de situaciones de malestar psicológico en el contexto de la medicalización de la vida (en Pandemia, e incluso fuera de ella) implica necesariamente hacer también crítica social. Para ello, proponemos un debate que encapsula la teoría clínica, las historias de la medicina social y el psicoanálisis en Brasil, y los conceptos de biopoder y necropolítica. Nuestra hipótesis es que, si, por un lado, a su llegada a Brasil, el psicoanálisis fue "cooptado" por una tradición médica higienista (que durante años polarizó la forma en que se veía en nuestro país), por el otro, por su estructura conceptual, por el contrapunto inicial con el modernismo brasileño, y por su actual debate sobre la segregación, esta praxis puede hacer explícito su poder y vocación antirracista.
Palabras clave: Psicoanálisis; Racismo; Necropolítica; Biopoder.
Introdução
Franqueamos a segunda década do século XXI num momento marcante da história recente de nossa civilização. A pandemia de Covid-19 tem afetado a vida de bilhões de pessoas no planeta: o número de contaminados, internados e mortos alcança cifras aterradoras; as unidades de tratamento intensivo (UTI), quase sempre insuficientes, precisaram ser reequipadas e não raro se mostram perto da lotação máxima; na ausência de medicamentos e vacinas realmente efetivos, a estratégia de isolamento social, o uso de máscaras e a higienização, impuseram-se como principais recursos - os mais eficazes ante uma transmissão extremamente competente do vírus.
Ao lado da ausência de horizonte para o fim da pandemia, do risco ou efetivação da perda das condições materiais de sustento e da problemática gestão da crise no Brasil (entre o controle 'errático' e o negacionismo), a necessária ferramenta isolamento social teve como efeito colateral a contribuição para o aumento da experiência coletiva de mal-estar, repercutindo uma série de rupturas nas rotinas até então estabelecidas. Para boa parte da população, interromperam-se bruscamente hábitos cotidianos, como circular pelas ruas, conviver nas mais diversas instituições, se dirigir ao ambiente de trabalho, ter atividades sociais de lazer e até no se despedir, por meio de rituais coletivos, dos entes queridos perdidos. As experiências de luto do cotidiano perdido, as tensões do convívio familiar quase ininterrupto, o sentimento de falta de sentido, a sobrecarga de trabalho em home office junto dos afazeres domésticos etc. incrementaram as demandas por escuta e tratamentos psicoterápicos e psicanalíticos.
Em uma cultura em que já vigoravam poderosos dispositivos de patologização e medicalização da vida (pela epidemia de diagnósticos e imperativos biopolíticos de bem-estar e produtividade), o sofrimento polarizado pela pandemia passou a ser objeto de consideração e intervenção por psicólogos e psicanalistas. Dentro do referencial psicanalítico, que já acumulava críticas à "epidemia" de diagnósticos, retomaram-se as balizas freudianas lançadas em Mal-estar na civilização - ao lado do sofrimento advindo das formas de estruturação subjetiva -, o mal-estar se liga a: a) nossa pequenez ante as forças da natureza (das quais o vírus é uma das facetas) e b) nossa difícil relação com os semelhantes (no desconforto relacionado à organização social, leis, costumes, códigos humanos etc.). Somou-se a isso a reiteração da vocação política da psicanálise, que parte da ideia de que fazer clínica implica fazer crítica da cultura. Analistas se debruçaram sobre os novos settings remotos e virtuais, a finitude e o exílio forçado do cotidiano, as situações de violência doméstica, as ansiedades ante uma crise econômica sem precedentes, a ambiguidade da gestão governamental da crise etc.
Todavia, para outra parcela ainda mais numerosa da população, por razões materiais, o isolamento social nunca pôde se dar: em prol de não perderem suas fontes de renda, não puderam se autoexilar, tiveram que se expor ao risco de padecer pelo contágio como forma de não padecerem de fome e outras necessidades essenciais; um exército de trabalhadores que há muito deixa a cidade de pé, mas são invisibilizados, não puderam esperar os hesitantes programas de apoio governamental e se puseram a labutar e a abastecer a cidade em quarentena, conectando os pontos isolados através de serviços de entrega, limpeza, manutenção, vendas de itens essenciais, segurança, dentre outros.
O vírus que chegara ao país através de aviões vindos de pontos turísticos (inalcançáveis para a maioria da população), dos Estados Unidos e da Europa, agora avança em ritmo acelerado entre as classes tidas como "subalternas": dentre as primeiras vítimas fatais da Covid-19, começaram a figurar porteiros e empregadas domésticas de condomínios de alto padrão. Os mortos da pandemia vão, cada vez mais, ganhando as feições usuais da distribuição desigual dos flagelos da civilização: são pessoas pobres, de cor negra, moradores de lugares com alta concentração de habitantes e com parcos recursos sanitários em áreas desassistidas pelo Estado, com empregos mais vulneráveis e menor nível de educação.
Um estudo feito pelo Centro Técnico Científico da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (Pontifícia Universidade Católica Rio de Janeiro [PUC-Rio], 2020) aponta que, dentre os óbitos por Covid-19, pessoas sem escolaridade tem três vezes mais óbitos (71,3%) que as de nível superior (22,5%). Ao se combinarem índices de raça e escolaridade, se têm quatro vezes mais negros e pardos sem escolaridade (80,35%) mortos do que brancos com nível superior (19,65%). Considerando pessoas com a mesma faixa de escolaridade, negros e pardos tem uma proporção de óbitos 37% maior em relação às pessoas brancas.
Tavares (2020) sublinha o racismo implícito nas recriminações a indivíduos e populações que não aderem às máscaras, censuras essas que desconhecem que tal uso, no imaginário coletivo racista, aproxima seus usuários dos estereótipos de criminosos, dando margem à ocorrência de violências físicas, simbólicas, e de "riscos maiores que a própria doença". Ao contrário das classes altas e médias brancas autoisoladas, esses sujeitos pouco ou nada contaram com uma escuta clínica e visibilização de seu sofrimento.
Mais que um novo modo de mal-estar, a pandemia tornou mais agudos os abismos que separam as pessoas, numa sociedade cada dia mais desigual. O sofrimento ligado ao racismo, em particular em suas declinações e especificidades do "racismo à brasileira" (Munanga, 2017), vai se tornando cada vez mais crucial de ser tratado como objeto de análise e intervenção, pela psicologia e pela psicanálise.
É partindo dessas considerações que nasce a questão central deste artigo, qual seja, a de pensar como a escuta e manejo clínicos das situações de sofrimento psíquico no contexto da medicalização da vida (na pandemia, e mesmo fora dela) implicam, necessariamente, fazer também crítica social e considerar os elos históricos entre o racismo e os fatores biopolíticos de gestão social do direito de vida e de morte. Para tal, propomos um debate que enoda teoria da clínica, as histórias da medicina social e da psicanálise no Brasil, e os conceitos de bio e necropolítica.
Nossa hipótese é a de que se por um lado, em sua chegada ao Brasil, a psicanálise foi "cooptada" por uma tradição médica higienista (o que polarizou por anos a forma como ela foi vista em nosso país), por outro, por sua estrutura conceitual, pelo contraponto inicial com o modernismo brasileiro, e por seu atual debate sobre a segregação, essa práxis pode explicitar sua potência e vocação antirracista.
Emergência biopolítica do racismo, higienismo e necropolítica no Brasil
Deslocamentos gerais do poder sobre o corpo e a raça na modernidade
A pandemia de Covid-19 e a gestão medicalizada e racializada da vida têm precursores históricos importantes desde a modernidade A partir do século XVII, como pontua Foucault (1988), podemos observar uma espécie de deslocamento na economia das relações de poder, sua concentração verticalizada numa figura de soberano (que se confundia com a própria lei), passa a ser cada vez mais capilarizada e distribuída em agências, instituições de adestramento, figuras menores de autoridade, códigos e regimentos sistematizados. Trata-se, neste deslocamento, de formas de apropriação do "corpo como máquina": tratava-se, nessa "anátomo-política", da "ampliação de aptidões" e "extorsão de forças", em paralelo à consecução de sua "utilidade e docilidade, na sua integração em sistemas de controle eficazes e econômicos - tudo isso assegurado por procedimentos de poder que caracterizam as disciplinas" (p. 131). No que concerne a esse poder disciplinar, Exércitos, escolas, casas de força e reformatórios foram dobradiças que engatavam os corpos numa nova relação, não de coerção ao déspota, mas de cálculo o mais exato e eficaz possível para a minoração das resistências e para o governo das potências dos indivíduos.
Foucault (2008, p. 75) elenca quatro grandes componentes dessa forma de poder: a) a decomposição do corpo em elementos perceptíveis e modificáveis; b) a classificação e operacionalização desses elementos em função de objetivos determinados (isolando os melhores gestos para um efeito visado); c) o estabelecimento de sequências e coordenações ótimas (recomposição e proposição de melhores encadeamentos); e, d) um adestramento progressivo (treinamento de crescente complexidade) junto a um controle permanente (na separação entre normal e anormal, apto ou inapto).
Num segundo deslocamento das relações de poder, já no século XVIII, vemos advir uma modulação suplementar às disciplinas, voltada menos a anátomo-política dos indivíduos e mais a uma apropriação da mecânica mesma do vivo, no "corpo-espécie", na busca pela regulação mesma das populações, e do corpo como "suporte dos processos biológicos" (Foucault, 1988, p. 131). Fatores como distribuição e concentração geográfica, condições de vida, taxas de nascimentos e óbitos, graus de saúde, alimentação, longevidade etc. "são assumidos mediante toda uma série de intervenções e controles reguladores: uma bio-política da população" (p. 131). Esse poder sobre a vida que se inaugura, tem repercussões também em relação à morte: trata-se menos, agora, de um direito do soberano em relação a dar a morte aos súditos (no sentido de "causar a morte ou deixar viver") (p. 128) do que uma capilarização, em relações mais difusas de poder, de um "fazer viver e deixar morrer".
Foucault diferencia esse poder biopolítico de seu suplemento disciplinar, também em "Segurança, território e população" (2008, p. 80-81). Ao incluir o biopoder no rol dos dispositivos de segurança, utilizando como exemplo as técnicas de inoculação e vacina, ele elenca quatro componentes desse poder: a) a noção de "caso": desvinculação da doença de um modo de vida específico (não mais própria a um lugar/clã/modo de vida) e extrapolação da mesma para outros contextos; b) a busca por uma gestão particularizada dos riscos: quantificações das cidades, locais da cidade, profissões afetadas, morbidade e mortalidade; c) identificação do perigo: estabelecimento de quais são as distribuições dos riscos e perigos em diferentes extratos das populações; e, d) a noção de crise: i) no cálculo de disparada, aceleração, e multiplicação de casos (curva epidemiológica); e, ii) nos cálculos de ação sobre os determinantes das doenças para frear sua evolução normal.
Segundo Foucault (1988), é justamente nessa captura do biológico entre disciplina e biopoder que as modernas concepções de racismo puderam vir a aflorar:
O racismo se forma nesse ponto (racismo em sua forma moderna, estatal, biologizante): toda uma política do povoamento, da família, do casamento, da educação, da hierarquização social, da propriedade, e uma longa série de intervenções permanentes ao nível do corpo, das condutas, da saúde, da vida quotidiana, receberam então cor e justificação em função da preocupação mítica de proteger a pureza do sangue e fazer triunfar a raça (p. 140).
Essa emergência, por certo, não deixará de trazer um paradoxo. Nos limites da normatização, e com a constituição de modos de vida a serem conservados em detrimento de outros tomados como passíveis de se deixar morrer, o poder soberano de matar é reintroduzido: o racismo adentra como lógica justificadora da exploração (extração até a morte da potência de trabalho/exposição calculada da mão de obra aos riscos) e como políticas de negligência e extermínio mais direto dos anormais, indesejáveis, indóceis ou subalternos. A gramática difusa do racismo pré-moderno ganha roupagem cientificista e se constitui como forma cotidiana de exercício do poder estatal e micropolítico perante os grupos racializados, numa narrativa que naturaliza essas relações e desapropria esses coletivos de suas histórias próprias. Foucault aí especifica o racismo moderno:
Portanto, o racismo é ligado ao funcionamento de um Estado que é obrigado a utilizar a raça, a eliminação das raças e a purificação da raça para exercer seu poder soberano. A justaposição, ou melhor, o funcionamento, através do biopoder do velho poder soberano do direito de morte implica o funcionamento, a introdução e a ativação do racismo. E é aí, creio eu, que efetivamente ele se enraíza. (Foucault, 1999, p. 309)
A emergência dessas reconfigurações de poder e o racismo inerente a estas transformações parece, porém, guardar diferenças quando ocorrem em países que hoje se encontram nas zonas mais periféricas do desenvolvimento econômico, e que por muito tempo foram colônias de exploração das metrópoles europeias, como é o caso do Brasil. Nestes países, esse poder sobre a vida e a morte exige modalizações específicas.
Modulações necropolíticas do poder nos países periféricos
Com efeito, ao cotejarmos as descrições foucaultianas sobre a complexificação da patologização e gestão da vida e da morte, em suas relações com o racismo, ocorre perguntarmo-nos sobre o quanto, em países como o Brasil, as modulações biopolíticas acompanharam - e ainda hoje acompanham - aquilo que ocorreu na Europa e América do Norte. De certo modo, algo parece particularizar essas relações quando as referências são países mais na periferia do capitalismo. É indo ao encontro dessas especificidades que vemos se suplementarem os conceitos foucaultianos de biopoder e biopolítica a partir da noção de necropolítica, desenvolvida pelo filósofo camaronês Achille Mbembe.
Como vimos, em sua vertente de "fazer viver", a biopolítica é um poder que se exerce quando o vivo entra no domínio dos cálculos, e faz do poder-saber um agente de transformação da vida humana. Não obstante, em sua faceta de "deixar morrer", esse poder excede seus efeitos para além da vida, tocando a morte. Se toda biopolítica é também, intrinsecamente, uma tanatopolítica, como sublinha Duarte (2008, p. 4), o deixar morrer e a noção de suspensão do ordenamento político mostram que em países como o Brasil há algo particular. Em nosso país, muitas vezes, principalmente ao vermos os números de mortes violentas de parcelas bem específicas da população em relação ao restante do mundo, parecemos sair do "deixar morrer" para o "fazer morrer". A necropolítica acrescenta à tanatopolítica especificações sobre o contexto das ex-colônias europeias e das periferias, onde os processos de modernização são, em comparação com as metrópoles, tidos como "incompletos".
A necropolítica logo implica uma submissão da vida ao poder da morte - reconfigurando profundamente as relações entre resistência, sacrifício e terror. Nesses "mundos de morte", bolsões de "estado de exceção" perpétuo, populações são submetidas a condições de vida que lhes conferem o estatuto de "mortos-vivos", em um embaralhamento das fronteiras entre resistência e suicídio, sacrifício e redenção. (Mbembe, 2016, p. 71).
Conforme comenta Mbembe (2020), na pandemia, o vírus democratizou o poder de matar. Governos e hospitais decidem quem continua respirando. O isolamento seria justamente uma forma de regular esse poder, já que desse modo podemos dela escapar ou adiá-la, mas é um poder relativo, porque depende das outras pessoas. Pelo olhar de Mbembe, na ex-colônia que é o Brasil, a necropolítica reitera as mesmas vítimas a terem suas vidas colonizadas pelo poder de vida e de morte:
Saindo de análises centradas em contextos europeus, "Necropolítica" fornece ferramentas para pensarmos a forma de constituição de diagramas de poder não apenas nos contextos pós-coloniais de Áfricas, mas também nos processos de colonização, neocolonização, descolonização e nos traços de colonialidade que ainda imperam com força nos contextos latino-americanos, caribenhos e brasileiros (Lima, 2018, p. 26).
A pandemia faz com que todos nós tenhamos um certo poder sobre a morte, mas, de alguma forma, continuamos dependendo das outras pessoas pois todo corpo se torna uma ameaça. O isolamento é o que se faz necessário para a regulação desse poder, pois escolher se isolar ou escolher sair de casa é também escolhas que dizem sobre a vida e a morte neste momento. Todos nós temos em nossas mãos o poder de matar, o que está em questão é o que fazemos com esse poder que agora foi democratizado.
No Brasil, o resgate e a proteção à economia foram prioridades nas estratégias governamentais durante esse momento de pandemia. O isolamento tardou a ser implementado e foi uma estratégia sustentável apenas nos estratos mais privilegiados da população, sendo ainda pouquíssimas cidades a aderirem ao isolamento mais incisivo - o lockdown. Soma-se a isso o fato de que as medidas de distanciamento e isolamento de infectados, higiene, acesso à água tratada, ao encanamento de esgoto e a ambientes amplos e bem ventilados, permeabilidade das áreas afetadas a equipamentos de saúde etc. é algo que uma parte significativa das comunidades no Brasil nunca teve. A "lógica do sacrifício", própria ao neoliberalismo, se transmuta, logo, em "necroneoliberalismo", quando balizada pela ideia de que "a vida de uns vale mais do que a vida de outros" e de que as "mesmas raças, as mesmas classes sociais e os mesmos gêneros (Mbembe, 2020, p. 4) caem sob a decisão de quem deve viver e quem deve morrer".
Logo, não é possível pensar em uma pandemia no Brasil sem pensar também em raça, classe e gênero. Não é possível ignorar quais são as pessoas escolhidas para morrer, quem é levado a se expor para a manutenção do Estado. É necessário que seja feito esse recorte para que se entenda que a população não vivencia esse período igualitariamente - nem todos têm o poder de escolha.
Sob a luz da noção de necropolítica, as rupturas no ordenamento jurídico não se limitam a momentos mais explícitos como a ditadura civil-militar brasileira - ou mesmo a pandemia -, mas que a exceção e descontinuidade em relação aos direitos humanos mais fundamentais nos marca, "seus efeitos modelam as práticas discursivas, atualizando o colonialismo, colocando em suspensão o que queremos dizer quando falamos em democracia, principalmente em contextos que se constituíram sob o 'mito da democracia racial'" (Lima, 2018, p. 27).
Célere retorno à medicina eugênica e ao higienismo no Brasil
As relações, no Brasil, entre medicalização, racismo e necropolítica, têm raízes profundas, que ainda hoje tem incidências e repercussões importantes. Em nossa história, a colonização portuguesa levou a séculos de escravidão, tornando os negros alvos de amplíssimo tráfico de pessoas, e a utilização do trabalho forçado a base para a economia. A tardia independência, em 1822, implicou a necessidade de construção de um projeto de nação e identidades próprias, distintos do então recente passado como colônia.
O movimento de "modernização" do Brasil se iniciara, de fato, com a vinda da corte de Dom João VI para o Brasil, na tentativa bem-sucedida de escapar ao julgo napoleônico. Uma série de mudanças culturais, econômicas e políticas haviam impactado o cotidiano da colônia, que passou a almejar maior liberdade econômica e política quando do retorno da corte a Portugal. Entretanto, foi como Império independente que sobreveio o imperativo de se adequar à démarche liberal capitalista mundial. Grandes eram os desafios para o país, ainda escravocrata, com industrialização por muito tempo proibida pela metrópole, marcado por muitos anos de códigos de direito draconianos, economicamente rural e extrativista, e com uma cultura submissa aos valores e ideais europeus. Assim, o projeto de modernização brasileira e a construção de uma identidade nacional passaram por uma série de paradoxos que tensionavam liberalismo e heranças monárquicas ligadas à ex-metrópole, autonomia de produção e consumo e escravidão, negação da cultura local em prol de padrões europeus.
Muitas décadas mais tarde, com o Brasil sendo uma das últimas grandes nações a abolir a barbárie da escravatura, um enorme contingente de pessoas se viu lançada a sua própria sorte. O Estado, então, passa a erigir novas formas de controle, gestão e supressão desses corpos. Entre o fim do século XIX e início do século XX, muito atravessado, pelo olhar vindo do outro lado do Atlântico, em particular pelas teorias europeias românticas, torna-se cada vez mais consolidado o pensamento de que uma unidade nacional implicava a pureza e essência de um povo, o que confere, por contraste, densidade ao pensamento de que "a mistura de raças e a qualidade do solo e do clima eram os grandes empecilhos para o desenvolvimento e a civilização no país" (Santana & Santos, 2016).
Com o advento do pensamento positivista, o darwinismo social, o pensamento eugênico e a teoria da degeneração, passaram a ser chaves do entendimento "científico" da questão racial, entronizava-se, agora sob a roupagem cientificista, o homem branco como raça superior. Na Europa, o Brasil era citado entre os teóricos racistas e darwinistas sociais como um de degeneração produzida pela "miscigenação racial promíscua" (Masiero, 2005). A mestiçagem repercutia a transmissão, por herança biológica, de taras e defeitos como a "apatia", a "imprevidência", o "desequilíbrio moral e intelectual" e a "inconstância" (Santana & Santos, 2016). O higienismo devinha o movimento, ao mesmo tempo médico e político, de gestão da população para fins de controle da 'degeneração'.
Segundo Masiero (2005, p. 200), nas primeiras décadas do século XX, as teorias raciais positivistas prosseguem seu avanço, inclusive quanto às teorias psicológicas, fornecendo uma série de hipóteses para se pensar as causas da loucura: com Franco da Rocha, o higienismo aplicado à esfera do mental; com Ignácio Cunha Lopes, a inteligência e a personalidade com o eugenista Renato Kehl; a seleção do bem dotados na educação, por Jean Ovide-Decroly etc. Eram dois os grandes fatores atribuídos à "degradação humana" e ao atraso do desenvolvimento nacional: (1) a mistura de raças e culturas distantes; e, (2) a mistura entre indivíduos portadores de boas qualidades genéticas com os já degenerados, independente de etnia e origem (Masiero, 2005, p. 200).
À medida que florescem no Brasil, movimentos eugenistas e higienistas se propuseram a tarefa de regenerar a nação e evitar a degeneração física e mental da população. Enquanto a eugenia asseverava que "o processo de seleção natural eliminava os indivíduos com menor capacidade de adaptação", o surgimento das ideias de proteção social (em termos de assistência médica e previdência social) avançava. As políticas públicas mais coletivas eram ora criticadas ora polarizadas em termos de controle e poder de polícia por motes racistas e eugenistas.
[...] era por intermédio de aparelhos como a Sociedade Eugênica de São Paulo, a Liga Brasileira de Higiene Mental, a Liga Pró-saneamento do Brasil e periódicos como o Boletim de Eugenia que esses intelectuais, principalmente médicos, formulavam, veiculavam suas ideias e formavam grupos que pressionavam o Congresso Nacional e o Poder Executivo (Santana, & Santos, 2016, p. 34).
Duas grandes oposições, nesse momento se deram, de forma a mitigar os efeitos dessa gestão médico-racializada da vida no Brasil. De um lado, o movimento sanitarista refutara o atrelamento entre "mestiçagem racial" e "insucesso econômico e cultural": "os homens eram improdutivos porque estavam doentes" (Santana & Santos, 2016). De outro, sob a influência de Gilberto Freyre e a chegada do Estado novo, o nacionalismo brasileiro passa a pensar numa "raça brasileira", a partir da "miscigenação e da assimilação", tomada, desta vez, de forma "positiva". Os projetos autoritários que se seguiram às profundas raízes da escravidão, e ao recalcamento da miscigenação como violência branca sobre os corpos negros e indígenas, ajudaram a consolidar o racismo no Brasil.
A psicanálise, que tem a ver com isso?
No início de nosso artigo, utilizamos o cenário da pandemia de Covid-19 como contexto e como analisador das formas como nossa sociedade conjuga o poder sobre a vida e a morte com um racismo que lhe é inerente, além de ponderarmos sobre o quanto o sofrimento ligado à pandemia foi muito seletivamente passível de chegada e elaboração por meio de uma escuta clínica.
Pois bem, nossa questão, neste momento deste escrito, é menos pensar por que essas pessoas não chegam aos psicólogos clínicos e analistas - ou mesmo sobre como tornar essa chegada possível - do que lançar luz sobre o porquê muitas vezes os psicanalistas se mostram indiferentes ou pouco propositivos aos efeitos de sofrimento de vida ou morte ligados ao racismo. Se o racismo e a gestão bio e necropolítica têm uma história, que se particulariza pelas contingências materiais, políticas e culturais ao longo do tempo, algo semelhante pode também ser dito em relação à própria história da psicanálise em nosso país. Mas, de onde viria essa impermeabilidade?
A dimensão política da psicanálise
Algo crucial de se salientar é que, ao contrário do que sustenta uma certa vulgarização da psicanálise, o debate sobre a dimensão política, cultural e social dos processos inconscientes, as formas de sofrimento ligados à organização social e à exploração do homem pelo homem - o homo homini lupus -, nunca escaparam à pena de Freud:
i. Em "Três ensaios para uma teoria da sexualidade" (Freud, 1905/2006) e "Moral sexual 'civilizada' e doença nervosa" (Freud, 1908/2006), Freud fala de como as exigências morais e a seletividade social, feitas à sexualidade, ao pulsional e ao desejo, com fins de integração dos sujeitos no sistema produtivo, exige um alto preço em termos de angústia;
ii. em "Totem e tabu" (Freud 1913a/2006), discorre Freud sobre como, a despeito de constituir suas regras de interdição, a própria civilização se erige sob algo aniquilador, reiterando, simbolicamente de tempos em tempos, em seus festins, o sacrifício fundador;
iii. em "Psicologia das massas e análise do eu" (Freud, 1921/2006) Freud fala da anulação do particular em fenômenos de massa, do exército e da igreja como estruturas sociais coercitivas e segregadoras e de como o dito "narcisismo das pequenas diferenças" atrela identificações entre membros de um mesmo grupo e a hostilidade para com a diferença;
iv. em "Mal-estar na civilização" (Freud, 1930/2006) e em "Por que a guerra" (Freud, 1933/2006) trata do mal-estar inerente à organização social e da agressividade e da pulsão de morte como gozo da exploração e da aniquilação do homem pelo homem;
v. em 1931, em "O parecer do perito no caso Halsman" Freud (1931/2006) se levanta, junto a outros intelectuais judeus, contra o uso da psicanálise (de origem judia) para legitimar, por meio de um parecer "técnico", um julgamento racista no alvorecer do nacional-socialismo.
O mesmo pode ser dito de Lacan (1957/2008), para quem a alteridade, em suas mais diversas declinações, é constitutiva dos sujeitos, como atesta sua hipótese de uma "estrutura de linguagem" do inconsciente, e mesmo antes, a complexa dialética do "estádio do espelho" (Lacan, 1949/2008). Ao longo de toda sua obra, Lacan privilegia o debate e crítica da cultura:
i. desde muito cedo trabalhara as relações dos sujeitos com a composição social do sentido em sua tese "Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade" (Lacan, 1932/1987), assim como as consequências da organização familiar burguesa para o psiquismo em "Complexos familiares" (Lacan, 1938/2003);
ii. reitera as transformações simbólico-materiais do advento da ciência e do capitalismo em seu seminário sobre "O eu na teoria de Freud e na técnica psicanalítica" (Lacan, 1954/1985), em "A ciência e a verdade" (Lacan, 1966/2008) e em seu seminário sobre "O avesso da psicanálise" (Lacan, 1969/1985);
iii. toca na questão dos efeitos de segregação alinhados a expansão sem precedentes do mercado global, em "Pequeno discurso aos psiquiatras" (Lacan, 1967) e diz que "o inconsciente é a política", em seu seminário sobre "A lógica do fantasma" (Lacan, 1967/2003);
iv. o seu "retorno a Freud", não se trata de um purismo ou uma sacralização do mesmo, mas de um declinar a psicanálise, desde seus fundamentos, até o "horizonte" da subjetividade de nossa época - o que implica, inclusive, a autocrítica de seu passado.
A dimensão política e social, marcada por uma postura que atrela clínica e crítica social, é, pois, algo inerente ao discurso psicanalítico. Cabe aos candidatos a analistas exercê-la, considerando as condições históricas, materiais e culturais que o cercam.
A chegada da psicanálise no Brasil: entre a medicina eugenista e o movimento artístico modernista
Ao nos dedicarmos a esse exercício de considerar as condições históricas, materiais e culturais que envolvem a psicanálise no Brasil, nos deparamos com uma série de especificidades. Em seu desembarque em nosso solo, a psicanálise, lida mormente em alemão, é vertida pelos médicos e intelectuais da época - uma elite branca e europeizada, para quem soavam promissoras as ideias eugenistas e higienistas.
Segundo Oliveira (2002), entre os anos 1920-1940, uma psiquiatria branca e elitizada se apropriou de referências psicanalíticas para validar teses racistas e o controle social. Com o projeto civilizatório de embranquecimento e "modernização" da sociedade brasileira em marcha, buscava-se de apropriar do que se julgavam serem os fatores de sucesso dos países mais ricos, como raça, clima e solo. Há, aqui, a paradoxal biologização da psicanálise: conceitos como os de pulsão, inconsciente e desejo são torcidos em prol de teorias atavistas e degeneracionistas e de noções como as de "raça" e "instinto" - ideias estranhas ao discurso psicanalítico, oriundos de uma psiquiatria já velha e contra as quais Freud se insurgira quando da fundação de suas teorias. Diferentemente do que propõe uma experiência de análise - impossível no Brasil daquela época, dado que apenas nos anos 50 se começaria a formação de analistas -, um "ego civilizado" aparecia como alternativa a um "id primitivo".
A medicina higienista, defendida por Porto-Carrero e pela Liga Brasileira de Higiene Mental, por um viés individualizante e moral, via na psicanálise uma ferramenta civilizatória corretiva e de adequação aos ideais modernos: nela é depositada uma esperança de agente (r)evolutivo (Fachinetti, 2012, p. 48), capaz de justificar a identificação, isolamento e prevenção dos ditos "desviantes".
Identificada como agente decisivo da "degeneração", a miscigenação é criticada, também, por essa exótica combinação entre eugenia e psicanálise. O inconsciente, lido por essa perspectiva, ganha a interpretação de uma instância primitiva a ser colonizada, disciplinada pela consciência e pelos valores civilizatórios modernos. Retalha-se, ainda, o conceito de "sublimação" (Russo 2005, p. 145, apud Fachinetti, p. 49), atravessado pelo o que os autores dessa corrente defendiam como sendo uma educação sexual, verdadeira gestão dos ditos "impulsos primitivos", a serem vertidos em atitudes socialmente condizentes com os ideais modernos.
Antagônica a essa perspectiva, no que tange ao tema da miscigenação e ao papel da psicanálise nisso, estava a posição das vanguardas artísticas modernistas sobre o tema. Entra em questão aqui uma outra percepção dos valores estrangeiros, tingida de cinismo e descontentamento frente aos valores da 'Velha Europa', que guarda ressonâncias, mas também muitas especificidades em relação aos movimentos artísticos modernistas de lá. O interesse destes artistas, nesse sentido, recai sobre a criação de uma identidade própria, que para isso, recorrerá à cultura popular e seu acervo referencial, semiótico e imagético de caráter múltiplo; refutando a submissão ao ethos e aos pensamentos coloniais.
Na contramão da medicalização eugenista e higienista da psicanálise, a retomada deste discurso pelos modernistas ganhava o sentido de permitir encontrar referências culturais centrais, "originárias", algum tipo de retorno do recalcado (Facchinetti, 2012), o resgate de algum substrato recalcado essencial à identidade brasileira.
Esse processo, defendido por modernistas como Oswald de Andrade, que questionava a forma como a miscigenação era pensada em nossa cultura, não se daria, também ele, de forma neutra em relação às teses psicanalíticas mais clássicas. A proposta destes artistas é a de depor o autoritarismo do Pai em nome de uma sociedade matriarcal. O antropofagismo, uma das máximas do movimento, preconiza uma aglutinação e síntese da diferença partindo da alteridade. Inspirado na cena mítica forjada por Freud em "Totem e tabu" (Freud, 1913a/2006), em que os filhos do Pai da horda primitiva assassinam e devoram o tirano em favor de uma nova organização social, tratava-se não de arremedar as ideias europeias e norte americanas, mas de metabolizá-las - fazer delas outra coisa.
Numa valorização das manifestações culturais dos povos 'indígenas' ancestrais do Brasil e dos afrodescendentes, das lendas, folclore, carnaval, e saberes e experiências dos sertões, o projeto civilizatório modernista tinha menos da metrópole medicalizada, autoritária, vitoriana e geometricamente anódina e mais de "Pindorama" - nominação indígena do Brasil atravessada por uma suposta organização matriarcal.
Facchinetti (2012) propõe que ambas as leituras parecem partir de um esforço para recorrer à psicanálise como forma de compor e legitimar, através de suas formulações metapsicológicas e seus desdobramentos para uma teoria da cultura e da sociedade, diferentes "projetos civilizatórios", elevando-a, através de uma apreensão sociológica, às escalas coletivizantes. As leituras higienistas e modernistas abordam, cada uma à sua maneira, temas como o lugar dos discursos médico-morais, das questões raciais, do papel da miscigenação na constituição de uma subjetividade brasileira e os efeitos culturais do tabu, suas proibições e consequentes recalques, o que atesta a competência e interesse do recurso à psicanálise como parte do campo de debates sobre o social.
Do analista "vazio" ao "analista cidadão": psicanálise e antirracismo
A despeito da contraposição, na chegada da psicanálise ao Brasil, entre as matrizes higienistas e modernistas, foi, com efeito, o ideário medicalizado aquele que acabou por se hegemonizar. A invenção freudiana foi se consolidando, em nossas terras, sob o adágio de que esta se tratava de um saber mais próximo de uma ciência médica e biológica, neutra e universal - o que recalcou tanto sua potência política quanto o real interesse dos higienistas na utilização distorcida de seus conceitos.
O início tardio da formação de analistas no Brasil apenas perpetuou ainda mais essa situação. Somente em torno dos anos 50 é que a psicanálise começa a dar seus passos mais sólidos em termos da fundação de sociedades psicanalíticas no Brasil. Ainda hoje, muito pouco se conhece sobre a história destas instituições, sendo esse pouco eminentemente ligado ao eixo São Paulo - Rio de Janeiro - Porto Alegre. Há poucos trabalhos existentes sobre isso, e quando há arquivos e outras fontes primárias para a pesquisa, são raras as instituições psicanalíticas que abrem seus arquivos à consulta.
De fato, também a psicanálise secundarizou, em seus desenvolvimentos, uma apropriação de sua própria história e da história de suas instituições, guardando suas próprias referências a um lugar mais distanciado - posto que mesmo Freud (1913b/2006) fomentara, algumas vezes, a imagem do analista como "cirurgião" e certa "neutralidade" (Freud, 1914/2006) como ferramenta para evitar a sugestão e manejar a transferência.
A esses três fatores - as resistências dos próprios analistas a contarem sua história, a polarização medicalizada da chegada da psicanálise no Brasil e o início tardio da formação de analistas em nosso país - somou-se o contexto da ditadura civil-militar a partir de 1964, o que acabou por reforçar os imperativos de despolitização e a reiterar a postura do analista como "neutro", "sem subjetividade" e "imparcial".
Essa situação ganha alterações com a chegada do lacanismo nos anos 1970 e 1980 (balizada por suas relações com Althusser), mas, principalmente, com o contexto da redemocratização - aurora dos movimentos sociais, desenvolvimento de políticas públicas e maior abertura às demandas sociais até então silenciadas. A forma como os analistas viam a si mesmos e seu lugar social foi sofrendo deslocamentos. Paulatinamente, foi se firmando o entendimento de que se precisava relativizar a postura do "analista vazio" e a afirmar o lugar de "analista cidadão":
Os analistas têm que passar da posição de analista como especialista da desidentificação à de analista cidadão. Um analista cidadão no sentido que tem esse termo na teoria moderna da democracia. Os analistas precisam entender que há uma comunidade de interesses entre o discurso analítico e a democracia, mas entendê-lo de verdade! Há que se passar do analista fechado em sua reserva, crítico, a um analista que participa; um analista sensível às formas de segregação; um analista capaz de entender qual foi sua função e qual lhe corresponde agora (Laurent, 1999, p. 10).
(Re)conhecer sua história e seu lugar em comunidade de interesses para com um projeto democrático de civilização, que compreende em si as tensões e potências do convívio e inclusão das diferenças e da singularidade, e que se opõe às formas de segregação, implica, de maneira muito sensível, passar das escusas de que a psicanálise não é um saber racista para a sustentação de sua vocação e potência antirracista.
Para tal, é preciso, por um lado, aprender as dimensões estruturais, metapsicológicas e o lugar central da alteridade em nosso advir como sujeito, assim como as formas mais globais de reorganização dos poderes biopolíticos em nossa civilização. Por outro lado, é crucial desvelar os mecanismos estruturantes das formas de segregação, observando suas especificidades, localizando-as tempo e espacialmente.
Importa pensar, com Munanga (2017), o "racismo à brasileira", as especificidades de um povo que se incomoda em falar sobre o assunto; que, em posturas "ambíguas e fugitivas", nega seus mitos de "superioridade e inferioridade raciais" (p. 34); que, "mesmo quando pego em flagrante discriminação", "sempre encontra um jeito de escapar, às vezes depositando a culpa na própria pessoa segregada" (p. 37). Importa pensar, com Almeida (2019), o quanto há imanência entre capitalismo e racismo e como as atuais teorias neoclássicas da discriminação, que repercutem em nosso contexto neoliberal hoje, cumprem uma tripla função de: "1. Reduzir o racismo a um problema ideológico" (o que cumpre uma função de desconhecer as questões políticas e econômicas); "2. Desviar o debate racial para o campo da meritocracia" (aprendendo-o como questão de "superação pessoal); e "3. Responsabilizar o indivíduo pelo próprio fracasso" (o que releva a precariedade dos sistemas de educação) (p. 129).
Numa interface mais frontalmente entre psicanálise e teoria social, mister se faz pensar, como fez Lelia Gonzales (1984), o racismo como essa espécie de "neurose cultural brasileira". Ao utilizar tal formulação, num texto que versa sobre racismo e sexismo no Brasil, a autora pretende desvelar como, a maneira de um sintoma, há, nessa neurose social, um "ocultamento", visando "conservar certos benefícios": a manutenção do mito de uma nação não racista, o esquecimento de um passado escravocrata e genocida, a legitimação da expropriação, até hoje, do corpo e da força de trabalho de negras e negros, os dizeres populares que naturalizam tais sujeitos em lugares de submissão e sub-humanidade.
É essa "neurose", que faz da negação e submissão do negro o modo de tornar-se branco, que desvela e valida a falsa democracia racial, que prioriza uma consciência provinda de um discurso dominante em detrimento de uma memória inconfessa. Uma psicanálise antirracista abre espaços para a inscrição de um outro não branco, dando lugar a não brancos como analistas e parceiros intelectuais, e que repensa seu compromisso mais com a memória do que com a consciência europeia e dominante.
No fronte dessa psicanálise antirracista, há as profícuas contribuições do estudo realizado por Neusa dos Santos Souza (1983), em "Tornar-se negro". De forma ao mesmo tempo nítida e visceral, a autora traz à luz sua pesquisa, em que recolhe falas, depoimentos e testemunhos dos efeitos deletérios do produto "econômico-político-ideológico" (p. 25) que é o "Mito negro": invenção colonial e exploratória que reduz a negritude a uma "natureza negra" (p. 28), inferior à branquitude.
Na interface entre a Teoria da ideologia, as contribuições decoloniais de Fanon e os conceitos psicanalíticos de narcisismo e ideal do eu, esta psicanalista forja o conceito de "ideal do eu branco" e explicita como este mito se reflete na forma como os próprios sujeitos negros simbolizam seu corpo, proveniência e lugar social. A partir de uma apropriação crítica destes processos, ao mesmo tempo simbólicos, sociais, econômicos e históricos, pela desmontagem coletiva deste mito, abre-se a via para a invenção de outras negritudes, que produzam desalienação e que relativizam esse ideal do eu branco:
Assim, ser negro não é uma condição dada, a priori. É um vir a ser. Ser negro é um tornar-se negro. A possibilidade de construir uma identidade negra - tarefa eminentemente política - exige como condição imprescindível, a contestação do modelo advindo das figuras primeiras - pais ou substitutos - que lhe ensinam a ser uma caricatura de branco. Rompendo com este modelo, o negro organiza as condições de possibilidade que lhe permitirão ter um rosto próprio (p. 77).
Tempo de concluir
"Se atirarmos ao chão um cristal, ele se parte, mas não em pedaços ao acaso. Ele se desfaz, segundo linhas de clivagem, em fragmentos cujos limites, embora fossem invisíveis, estavam predeterminados pela estrutura do cristal" (Freud, 1933/2006). Com essa citação de Freud, retornamos ao trajeto que nos conduziu até aqui. Excepcional como é este acontecimento, a pandemia de Covid-19, ao estilhaçar o cotidiano que nos parecia tão familiar, revela como as estruturas e modos de organização social são parte crucial do que é a experiência do sofrimento, ao determinar lugares sociais, acessos e restrições, recursos e precariedades, reconhecimentos e desconhecimentos.
Ao passo que, para uma parcela mais privilegiada da população, o sofrimento ligado a esse momento (de perdas, temores, horizontes difusos etc.) e a necessária estratégia de isolamento social (e seus impactos em nossa relação com aos próximos e a cidade), encontrou lugar de acolhida, para outra parcela da população, o isolamento - sem o necessário suporte governamental e social mais amplos - nunca foi uma alternativa. Estes - invisibilizados em sua lida e expostos aos riscos para deixar de pé o símile de cotidiano que ainda resta - viram ser reiterados movimentos de exclusão social e segregação. Essa parcela, que tem cor, idade, sexo e endereço não aleatórios, é vítima de um mortífero poder sobre a vida e a morte, amparado por teorias e dispositivos ideológicos que buscam minorar suas existências e justificar o injustificável.
Resgatamos na história de nosso país as modulações mais específicas do racismo e do necropoder, depreendemos como a ex-colônia escravagista, em seu projeto de modernização e embranquecimento, cooptou vários discursos, entre eles a psicanálise, de modo a tornar essa exploração do homem pelo homem ideologicamente sustentável.
Buscamos sublinhar que a psicanálise não pode se esquecer de sua história e das marcas de sua chegada ao Brasil, balizada pelos discursos higienistas, sob as escusas de que, em sua estrutura epistemológica, noções como "raça" e "instinto" lhe são estranhas. Mas, também entendemos que a psicanálise não pode esquecer sua potência e vocação política, de crítica e transformação da cultura. Esse trabalho se inscreve numa rede de esforços contemporâneos, como um dos nós de um movimento maior. Nesse movimento, somos parte de um conjunto cada vez mais numeroso de analistas que apreendem como a postura de "cidadão", conjugada com as contribuições de analistas e intelectuais negros, nos ensina a levar adiante o tesouro deixado por Freud, reiventando essa práxis de modo que, nem por negligência nem ativamente, podemos nos calar diante do racismo.
Referências
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Submetido em 11/10/2020
Revisado em 03/11/2020
Aceito em 03/11/2020