Arquivos Brasileiros de Psicologia
ISSN 1809-5267
https://doi.org/10.36482/1809-5267.arbp2020v72s1p.170-184
ARTIGOS
"A colonização foi muito perfeita aqui": reflexões de refugiadas africanas no Brasil1
"Colonization was very perfect here": African refugees' reflections in Brazil
"La colonización fue muy perfecta aquí": reflexiones de refugiadas africanas en Brasil
Lumena de Aleluia SantosI; Amana Rocha MattosII
IMestre. Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social. Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Rio de Janeiro. Estado do Rio de Janeiro. Brasil
IIDiscente. Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social. Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Rio de Janeiro. Estado do Rio de Janeiro. Brasil
RESUMO
Neste trabalho, analisamos os processos de subjetivação de mulheres com status de refugiadas africanas no Brasil. Para tanto, utilizamos o conceito de universo institucional de refúgio para interpelar o debate sobre o fluxo de pessoas solicitantes de refúgio no contexto brasileiro nos últimos anos. Partimos de uma contextualização histórica sobre as relações raciais no Brasil e de questões dos trânsitos migratórios tais como se configuram hoje nas agendas econômicas e políticas para discutir os processos de subjetivação das interlocutoras desta pesquisa. Nesse sentido, propomos algumas reflexões acerca das formas de institucionalização que impactam diretamente nas relações de mulheres advindas de países africanos integradas como refugiadas na sociedade brasileira, a partir de entrevistas semiestruturadas realizadas com duas mulheres migrantes.
Palavras-chave: Refúgio; Migração; Relações raciais; Processos de Subjetivação.
ABSTRACT
This paper analyzes the subjectivation processes of women with African refugee status in Brazil. For that, it uses the concept of institutional universe of refuge to challenge the debate on the flow of people requesting refuge in the Brazilian context in recent years. It starts from a historical contextualization about race relations in Brazil and from issues of migratory transits as they are configured today in the economic and political agendas to discuss the processes of subjectification of the interlocutors of this research. In this sense, it proposes some reflections on the forms of institutionalization that directly impact on the relations of women from African countries integrated as refugees in Brazilian society, based on semi-structured interviews with two migrant women.
Keywords: Refuge; Migration; Race relations; Subjectivation Processes.
RESUMEN
En este artículo analizamos los procesos de subjetivación de mujeres con estatus de refugiadas africanas en Brasil. Para ello, utilizamos el concepto de universo institucional de refugio para cuestionar el debate sobre el flujo de personas que solicitan refugio en el contexto brasileño en los últimos años. Partimos de una contextualización histórica sobre las relaciones raciales en Brasil y de los temas de tránsitos migratorios tal como se configuran hoy en las agendas económicas y políticas para discutir los procesos de subjetivación de los interlocutores de esta investigación. En este sentido, proponemos algunas reflexiones sobre las formas de institucionalización que impactan directamente en las relaciones de las mujeres de países africanos integradas como refugiadas en la sociedad brasileña, a partir de entrevistas semiestructuradas con dos mujeres migrantes.
Palabras clave: Refugio; Migración; Relaciones raciales; Procesos de Subjetivación.
Ao analisarmos os dados estatísticos apresentados pela Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) (2016; 2012), observamos a relevância quantitativa de refugiados provenientes de países do continente africano para o Brasil que solicitam e acessam as políticas instituídas pelos programas de assistência e "integração" de pessoas refugiadas. Este artigo discute as camadas subjetivas que a experiência do refúgio tem produzido frente aos fluxos sociais de pessoas com status de refugiadas, tomando a experiência de duas mulheres negras advindas de países africanos com status de refugiadas no Brasil. A partir das falas das entrevistadas, discutimos seus processos de subjetivação em território brasileiro, fazendo algumas considerações acerca do modo como o universo institucional do refúgio (Facundo, 2014) é um campo que aciona visceralmente o debate das relações raciais e contribui para a discussão dos processos de subjetivação em uma perspectiva interseccional.
As políticas migratórias vêm ganhando destaque em todo o mundo e as notícias sobre a chegada de refugiados no Brasil têm produzido uma série de narrativas sobre esse quadro contemporâneo de mobilidade humana2, dando notoriedade ao tema tanto nas organizações nacionais e internacionais que trabalham com Direitos Humanos quanto em pesquisas acadêmicas acerca das experiências migrantes. No que tange às produções pela mídia e por representantes do universo institucional dos refugiados, vale destacar, de acordo com Facundo (2014), que não somente uma "realidade" é disseminada, mas também certos discursos que delimitam uma visão política específica sobre os deslocamentos e as pessoas que atravessam fronteiras. Em relação à formulação e circulação desses discursos, a autora afirma que o Brasil constantemente é mencionado nos discursos dos agentes do universo institucional do refúgio como um país de comunidade "acolhedora" e de sistema "exemplar" de proteção para refugiados. Tais discursos elogiosos referem-se às políticas públicas3 e ao perfil da população brasileira entendida como "multicultural" e se baseiam na ideia de um passado receptivo aos imigrantes e estrangeiros, enaltecendo, assim, o caráter humanitário do Brasil.
Universo institucional do refúgio e relações raciais no Brasil
O universo institucional do refúgio é um conceito formulado por Facundo (2014) para se referir ao conjunto de ações, setores e fluxos burocráticos que intentam organizar a gestão de pessoas refugiadas. Dentro dessa estrutura institucional, destacam-se os equipamentos acionados pelas organizações internacionais que atuam na pauta do refúgio, buscando estabelecer pactos estatais a partir de negociações com autoridades governamentais de modo a viabilizar ações e programas de assistência aos refugiados (Facundo, 2014). A política brasileira de refugiados está organizada a partir das relações entre a estrutura jurídica, social e institucional (internacional e nacional). Desse modo, a ACNUR atua diretamente com os órgãos do governo, por meio de parcerias com o setor privado e organizações da sociedade civil que trabalham em territórios estratégicos, realizando ações de cunho assistencial e acompanhamento jurídico.
Para programar ações no país frente ao contingente de demandas acerca dos/as refugiados/as, foi aprovada a lei n. 9.474 (1997), que determina os mecanismos para a implementação do Estatuto dos Refugiados (Lei n. 9.474, 1997). Ao solicitar refúgio no Brasil, os sujeitos acionam, no território nacional, o status de busca por proteção e garantia desses direitos. Dentre os marcos políticos do sistema institucional, está a Convenção de 1951, que incentiva a criação do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), encarregado de analisar o pedido e declarar o reconhecimento da condição de refugiado; o Protocolo de 1967, relativo ao Estatuto dos Refugiados, instrumento que elimina as restrições temporais e geográficas, aspectos que foram estabelecidos na Convenção de 1951; e a Declaração de Cartagena, que marca um momento importante na discussão sobre o tema perante o panorama de conflitos armados. No plano nacional, o estado brasileiro conta com alguns dispositivos de operacionalização desses acordos, como escritórios em Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro e Roraima, responsáveis pela proteção e integração de refugiados e pela arrecadação de recursos nessas cidades consideradas estratégicas. Conforme apresenta Facundo (2014), esses são os principais marcos regulatórios utilizados como justificativas para o elogio do país por parte dos agentes institucionais do refúgio.
Sobre isto, faz-se necessário reconhecer que o processo histórico brasileiro é atravessado por uma forte presença de políticas migratórias pautadas, principalmente, por ideais racializados, não só em relação ao tráfico da população negra escravizada, mas também no que diz respeito a políticas de estado voltadas para as populações brancas de países europeus incentivadas a migrar para o Brasil ao longo do século XX, contribuindo para a narrativa de um país "misturado" e de convívio multirracial (Guimarães, 2012). Tendo como base esse histórico, o Brasil tem sido projetado internacionalmente como um país de referência para o acolhimento aos refugiados, ganhado notoriedade, sobretudo, frente ao seu caráter exemplar em avançadas legislações e ações de integração local dos solicitantes de refúgio em contexto nacional (Facundo, 2014).
DaMatta (1990) evidencia que os estudos das relações raciais no Brasil estão voltados à compreensão do impacto causado pela intitulada teoria da democracia racial, um desdobramento dos postulados de Gilberto Freyre. Uma crítica destacada pelo autor consiste na análise da chamada fábula das três raças, que constitui uma poderosa força ideológica no Brasil e constitui, junto com o mito da democracia racial, as bases de um projeto político e social para o país. O fortalecimento da compreensão da cultura e dos brasileiros como povo de "mestiços", intimamente associada à negação do racismo no Brasil, contribuiu com a repercussão internacional da imagem do Brasil como um país acolhedor das diversas culturas e raças (Schwarcz, 1993). Guimarães (2012) assevera ainda que o ideal de uma sociedade brasileira sem "linha de cor", isto é, uma sociedade em que a cor não interferiria na ascensão social a cargos de destaque, por exemplo, tem sido uma perspectiva socialmente propagada enquanto estratégia política, que esconde as condições sociais e psicológicas de uma estrutura de dominação e hierarquização racial, alcançando, por essa via, todos os tecidos da sociedade brasileira.
Desse modo, é necessário reconhecer que nossas práticas foram consolidadas paralelamente ao fortalecimento do próprio regime da colonização, situação que marca nosso percurso enquanto sujeitos e da própria consolidação do Brasil enquanto nação. Reconhecer isso é de suma importância para compreender como determinadas lógicas institucionais, bem como interpessoais, estruturaram-se no Brasil e, assim, visualizar como essas engrenagens históricas e políticas atravessam os fluxos migratórios contemporâneos. Neste trabalho, voltamo-nos para as falas de mulheres migrantes africanas que vivem no Brasil para pensar como suas subjetividades são produzidas neste contexto, e dialogamos com questões importantes levantadas por nossas interlocutoras para pensar o universo institucional do refúgio e as relações raciais no país.
Trânsitos, fronteiras e processos de subjetivação racializados
A construção do campo desta pesquisa baseou-se na interlocução com duas mulheres africanas migrantes4: Maby, nascida na Gâmbia, entrevistada em São Paulo, e Bintou, nascida no Congo, entrevistada no Rio de Janeiro. O diálogo com ambas se deu nos itinerários da primeira autora como voluntária e participante nas agendas de instituições que atuam com a temática do refúgio nestes dois estados, incluindo seminários, eventos culturais e agendas ativistas da pauta do refúgio, bem como sua colaboração em uma instituição administrada por pessoas refugiadas. As entrevistas realizadas compõem um projeto audiovisual que se deu em paralelo ao desenvolvimento de campo desta pesquisa, coordenado pela primeira autora, ainda em andamento5. As entrevistas semiestruturadas foram realizadas a partir de um roteiro conversado previamente com as interlocutoras. Na sequência, aconteceram como um diálogo de perguntas e respostas enquanto a câmera no formato de gravação talking-head (câmera parada) registrava suas respostas e interações com os filhos ou com as pessoas da instituição, totalizando 4 horas de conteúdo gravado, que posteriormente foi transcrito para análise.
"Antes de vir, eu achava que era uma beleza": narrativas sobre pertencimento e refúgio
Durante o trabalho de campo, Bintou se apresentou como senegambia, sempre dando ênfase ao legado deixado por seu pai, um empreendedor de tecidos no Senegal - legado este que hoje resgata em sua atual função como empresária de moda africana nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, bem como professora de inglês em uma ONG que contrata pessoas refugiadas para atuarem como "professores de idiomas de maneira cultural". Quando alguém lhe pergunta "de onde você é?", Bintou logo responde: "eu sou gambiana, mas meus pais são senegaleses, por isso eu falo que sou senegambia, para nós é muito normal na linguagem senegambia se chamar assim". Em um dos diálogos com a entrevistadora sobre sua percepção do Brasil antes e depois de chegar ao país, Bintou sinaliza:
O brasileiro tá muito ligado na língua portuguesa, tipo, você tá muito ligado ao seu colonizador, diretamente falando para ele… [...] esse é um sentimento que nós [migrantes de países africanos] estamos tentando entender também… é difícil… vocês foram criados de um jeito, nós fomos criados de outro jeito, mas a gente tem que dar oportunidade, a primeira coisa é se respeitar... eu acho até que a valorização de um angolano é muito diferente que o outro [refugiado que não fala português] (Bintou, entrevista concedida em agosto/2018).
A importância dada ao idioma do colonizador no Brasil é percebida por Bintou como uma hierarquização entre as nacionalidades africanas que falam português e as que não falam, um sentimento que é exemplificado quando ela percebe a valorização de um migrante angolano em detrimento de outras nacionalidades que não falam português. A entrevistada atua em uma das principais instituições que fornecem aulas de idiomas para refugiados, em um projeto que tem refugiados como professores de cursos de idiomas e cultura. O aprendizado do idioma nacional é uma das premissas mais valorizadas por parte dos programas institucionais para promover experiências de integração. O constante incentivo a tais ações ganha notoriedade quando um refugiado se destaca nessas instituições, como é o caso de Bintou, que possui fluência em português, espanhol e inglês, o que facilitou sua inserção no mercado de trabalho. Entretanto, associado aos desafios de administrar o aprendizado do idioma e competências técnicas para o exercício do seu cargo de professora, Bintou esbarra em alguns entraves:
Bintou: Esse respeito não é na fala 'eu te respeito', é na ação, tem que atuar, a gente sente no olhar, na ação, no trato... Nós somos pretos, a gente sabe o que a gente passa no dia a dia... tanto que as pessoas insistem que não existe racismo, mas a gente sente…
Entrevistadora: Quem?
Bintou: Tem brasileiro preto que fala, reclama, é tipo que o irmão tá muito de mimimi, tá folgado... nossa, tem muito preto que me fala 'mas é sério que você vê racismo aqui no Brasil?', um preto brasileiro te falando isso... acho que a gente precisar mudar isso, pra nossa liberdade completa, o pobre em África acha que o brasileiro é maravilhoso. Antes de vir, eu achava que era uma beleza... (Bintou, entrevista concedida em agosto/2018, grifos nossos).
A ideia de que o Brasil não é um país racista é um dos muitos resultados dos projetos baseados no mito da democracia racial, agravados quando tais discursos são reproduzidos e perpetuados pelos grupos estruturalmente afetados que vivenciam tais opressões, bem como pelos profissionais que atuam em setores que pautam as violações dos direitos humanos. A ausência de profissionais negros atuando nos espaços institucionais do refúgio em que um dos critérios primordiais para contratação é a fluência em idiomas hegemônicos como francês, inglês e espanhol, é um elemento que compõe o racismo institucional que se faz presente nas relações sociais brasileiras. Apesar do discurso sobre ser um país democrático, cotidianamente tal representação racial não é vista em tais cargos. Questionar esses processos implica em tomar consciência de que a formação da sociedade brasileira, desde a escravidão até os dias atuais, contribui para a construção de relações raciais hierarquizadas nas esferas econômica, política, jurídica e cultural, fazendo uso de discursos e práticas discriminatórias, como as teorias científicas de superioridade racial branca, bem como a representação simbólica negativa de pessoas negras. A fala de Bintou, "A gente sente no olhar, na ação, no trato, nós somos pretos", confere materialidade a essa compreensão.
A gente precisa falar desses africanos que estão deixando tudo, com a ilusão de vir e encontrar com o povo brasileiro, entende… o povo preto [brasileiro] tá revoltado por alguma coisa, mas a gente precisa dialogar, precisam entender a nossa história, se a gente não se escutar como é que a gente vai seguir? Tem coisas que vocês nunca vão conseguir entender, porque não faz parte da cultura de vocês, tem coisas que não vivemos, vocês que viveram, nem a gente vai entender, porque não faz parte da nossa cultura. O povo em África acha que o brasileiro é um povo maravilhoso, mas olha o Pelé, eu nem sabia que ele mesmo nem se interessava por pretas... o que acontece para nós, africanos, mesmo fora de África, torcemos para pessoas pretas, porque a maior representatividade de preto fora é no Brasil, por exemplo no futebol. Como por exemplo o Bolt [Usain St. Leo Bolt ex-velocista jamaicano multicampeão olímpico], a gente vai torcer por ele, por ele ser africano… (Bintou, entrevista concedida em agosto/2018).
Ao falar de sua frustração, Bintou localiza a relação do brasileiro com a linguagem, e fala de sua surpresa ao entrar em contato com os negros brasileiros e identificar os resultados de um processo exitoso de colonização, produzindo uma comparação em relação às experiências de outros negros, sobretudo os de países africanos que falam outras línguas para além das línguas do colonizador. Sua percepção da aculturação dos negros brasileiros frente ao português colonizador é evidenciada quando lhe é perguntado por que ela acha que essa aculturação se deu:
Colonialismo, colonialismo, sabe?… e manipulação de informações. A vida inteira imagina se você vai ouvir de um preto brasileiro, como é que foi isso, você sabe? Um irmão que vai te falar que o africano se vendeu, sob quais circunstâncias? Como é que foi isso? A pessoa que tava comprando tava onde? Tava na casa dele? Tava na sua casa para comprar seu irmão? Entende? A gente precisa desmontar tudo! No Brasil vocês não veem personagens pretos, por exemplo, Machado de Assis, pra mim Machado de Assis ele era branco, ele é vendido e pintando como branco, foi só há duas semanas que descobri que ela era preta, quem sabe disso? Então é isso que está acontecendo aqui... A gente precisa contar a nossa história, todas as realezas que eu vi, esse povo precisa aprender um pouco, o problema que a colonização foi muito perfeita aqui, é muito presente aqui e na língua portuguesa (Bintou, entrevista concedida em agosto/2018, grifos nossos).
Fanon (2008) analisa o complexo do negro (antilhano) na experiência de aquisição da língua do colonizador (francês). Se considerarmos o contexto do Brasil, podemos pensar a língua portuguesa como parte do processo de colonização e, por consequência, de dominação, em prol da construção de uma consciência nacional, unificada e brasileira. Diante disso, "falar bem" ou "não falar bem" o idioma são processos que demarcam o sentido de proximidade e distanciamento em relação ao status de nacionalidade e de pertencimento ao país. O autor aborda a relação do negro com a língua do colonizador para falar das relações de colonização simbolizadas pela introjeção das máscaras brancas, evidenciando que tudo começa pela linguagem - o "tudo", aqui, sintetizado nos códigos e símbolos de racialização acerca da experiência da pessoa negra como consequência da colonização. O processo de subjetivação se ancora nas etapas do enquadre e aculturação - quanto maior o leque de recursos, maior o seu poder de intervenção. Assim, a experiência de aquisição da linguagem equipara-se ao sucesso na civilização colonial. Para o autor, a modernidade ocidental, ao definir uma compreensão de humanidade (branca), produz os não humanos, os outros (não brancos), o que tem efeitos psíquicos para os sujeitos.
O aprendizado do idioma nacional é uma das premissas mais incentivadas pelos programas institucionais nas experiências de integração local6, valorizando os refugiados que se destacam dos demais, como é o caso de Bintou, que possui fluência em português, espanhol e inglês, o que facilitou sua inserção no mercado de trabalho. O nível de fluência na língua portuguesa é equiparado a uma integração exitosa em território brasileiro, e o processo de integração do refugiado vai sendo avaliado pela capacidade de absorção do idioma local.
Fanon (2008) e Mbembe (2018) debruçam-se sobre os mecanismos psíquicos que os sujeitos negros desenvolvem em suas experiências de subjetivação nos projetos de integração social em sociedades racistas. Os autores enfatizam a construção social desses mecanismos, que produzem identidades enquanto oferta de uma suposta integração social. Desse modo, as práticas de ressimbolização de si que se relacionam à introjeção das máscaras (brancas) de adaptação social funcionariam para o alívio do sofrimento do não lugar experimentado por esses sujeitos desterritorializados. Ao fazerem isso, lhes é proporcionada uma recomposição, uma requalificação e um reaprendizado acerca dos seus novos valores e das novas formas que a sua presença negra (corpo e fala) passam a operar para o outro e para o mundo, o que não se dá sem sofrimento psíquico e custos emocionais.
O diploma trancado na mala e o trabalho informal: reconhecimentos e apagamentos
Para as autoridades do refúgio, uma integração de sucesso relaciona-se ao processo que paulatinamente vai transformando os refugiados em cidadãos nacionais (Facundo, 2014). No domínio da língua está a promessa do reconhecimento nacional: dominar um certo idioma seria assumir a identidade cultural (Hall, 2014) local, trazendo o sentimento de pertencimento e integração. Entretanto, essa promessa não tem sido alcançada integralmente quando vivenciada por pessoas como Bintou e Maby, mulheres cujos marcadores raciais, de gênero e territoriais apontam outros eixos de integração. Mesmo quando o idioma é "dominado", o resultado pode ser lido como ilegítimo:
Hoje não tem muita gente falando comigo, mas talvez eu consiga representar as que não estão aqui. Uma mulher que quer tá lá [atuando em sua área de formação] trabalhando, mas não consegue porque tem que estar no Brás vendendo roupa [...] O diploma dela está em casa, trancado na mala, porque dizem que não tem como revalidar os seus diplomas. Ela teve que parar no Brás para vender roupa. E ainda vendendo roupa ela está sendo maltratada pela polícia que vai atrás dela e pegam o material dessa mulher que não tá roubando... (Maby, entrevista concedida em agosto/2018, grifos nossos).
Nessa passagem, Maby refere-se a uma das práticas de subsistência dentro das lógicas de integração. A venda de roupas, especificamente no Brás, na cidade de São Paulo, é atividade recorrente desenvolvida por mulheres migrantes e refugiadas. O trabalho informal tem sido uma das principais saídas encontradas por elas frente às dificuldades em relação à documentação, dentre outros percalços vivenciados na tentativa de conseguir emprego. Em instituições de acolhimento a refugiados é possível identificar a esmagadora maioria de mulheres negras e de países africanos que, frente ao cenário de escassas oportunidades de acesso ao mercado formal, acabam por ocupar postos subalternizados de trabalho.
Sobre este aspecto, Facundo (2014) descreve de maneira bastante elucidativa as consequências dos tempos administrativos do refúgio, repercutindo padrões de desvantagens sociais que são trazidos por Maby como "parar no Brás para vender roupa", tendo em vista que o seu diploma "está em casa, trancado na mala". Para além de evidenciar o panorama de relações conflitantes entre os espaços responsáveis pela gestão e diligências da pauta do refúgio no Brasil, a mala (destino dos diplomas não reconhecidos) é base simbólica para refletirmos sobre os impactos sociais que a deslegitimação intelectual acarreta histórias de vida de mulheres atravessadas pela racialidade. Se para as cidadãs brasileiras negras a relação entre racismo, educação e mercado de trabalho já delimita condições para produção de sofrimento psíquico, Maby especifica os entraves e impactos que se articulam às burocracias encontradas no processo de revalidação de seu diploma enquanto refugiada.
Apesar do discurso de Maby associar o reconhecimento social do diploma ao alcance de melhores postos de trabalho e condições de humanidade, no entrecruzamento do diploma (não reconhecido) com a condição de mulheres estarem "vendendo roupa e sendo maltratada pela polícia", realocam-se as premissas de um Estado pautado em lógicas necropolíticas (Mbembe, 2018), em que a solução (vender roupas no Brás) de um problema delimitado pelo próprio Estado (o não reconhecimento do diploma) é também vista como uma ação que enclausura não apenas o diploma, mas também as próprias mulheres em labirintos do indesejável, seja no não reconhecimento, seja na informalidade.
O município de São Paulo é o principal destino no país de migrantes e refugiados, e configura-se como a capital foco dos programas de integração e assistência a essa população, tendo em vista as maiores "chances de integração", elementos que se concentram a partir de exercícios de gestão-controle por parte das decisões que compõem o universo institucional do refúgio (Facundo, 2014). Essa receptividade, entretanto, não é experienciada sem conflitos pelas e pelos migrantes, como aponta Maby:
Uma vez ouvi dizer de brasileiros que a gente tá aqui para roubar os empregos deles. A gente tá aqui é para somar, somar e para crescer esse Brasil "bonitinho", eu falo sempre "bonitinho', a gente não veio para brincar aqui, você nunca vai ouvir um congolês falar "quero ficar aqui...", a gente tá sempre mandando dinheiro para família (Maby, entrevista concedida em agosto/2018).
Em tom irônico, Maby aciona as camadas polêmicas das narrativas produzidas sobre a chegada de refugiados ao Brasil. Por um lado, situações explícitas de rejeição por parte de brasileiros que se posicionam contra o apoio do país ao contingente de solicitações de refúgio. Por outro, a tentativa de manejar politicamente um convencimento em meio às palestras, entrevistas e seminários de que refugiados não são migrantes econômicos, isto é, pessoas cuja motivação migratória não é uma grave violação de direitos humanos. Sobre os esforços que têm sido empregados por parte da política de refúgio em delimitar essas distinções, Facundo (2014) apresenta as linhas que se instauram na tentativa de um convencimento moral por parte dos agentes institucionais do refúgio para gestores, empresários e cidadãos brasileiros sobre o acolhimento dos "verdadeiros refugiados".
Por mais que exista um esforço em relação à condução das narrativas produzidas de modo a diferenciar os itinerários de experiências do "verdadeiro refugiado" do status daqueles que são migrantes econômicos, existe ainda uma correlação de ordem prática e direta frente aos projetos de vida, no território em que se instala, que diz respeito à inserção no mercado de trabalho. Dessa maneira, ao mesmo tempo em que existe uma produção política que intenta diferenciar essas duas categorias, as soluções encontradas por parte dos programas de assistência e integração de refugiados são estabelecer parcerias com empresas que se beneficiem por estarem empregando o refugiado, uma rede articulada a partir da imagem do programa que alcança inserções sociais, da empresa/empregador benevolente e atento às causas humanas, somando-se à imagem da refugiada que possui um itinerário sofrido de distintas degradações. Parte das consequências dessa rede são traduzidas por Bintou:
O refúgio minimiza a nossa pessoa, porque essa marca que colocam sob nosso corpo de refugiado torna a pessoa muito humilde, como coitados... não somos coitados não. Somos gente. Humano como todo mundo. Nós somos trabalhadores. Nós somos inteligentes. Nós vamos no campo de batalha para trabalhar. Queremos essa liberdade. Essa oportunidade também. Estar no lugar para poder trabalhar (Bintou, entrevista concedida em agosto/2018, grifos nossos).
Os códigos simbólicos, morais e políticos, acionados no processo de institucionalização da categoria refugiado são denunciados por Bintou quando as imagens de pessoas "humildes" e "coitadas" são as que ganham projeção em detrimento de outras como, por exemplo, trabalhadoras, inteligentes e humanas. A massiva produção e disseminação desta condição de refúgio que "minimiza a pessoa", expande-se, encarcerando-as em enquadramentos de existência social, jurídica e política do refúgio. Bintou evidencia que as marcas de refugiada em seu corpo têm consequências simbólicas e práticas no seu cotidiano, principalmente para as condições que delimitam o (não) acesso a lugares sociais que deseja alcançar. Para além dos postos de trabalho, ela reivindica o reconhecimento de sua humanidade. A fala de Bintou oferece elementos para visibilizar as hierarquias simbólicas que têm sido tecidas enquanto resultantes dos status de refúgio, bem como as correlações que denunciam as consequências que lhe atravessam a partir das marcas que vão sendo produzidas em sua experiência da diferença - uma diferenciação que ela associa à humilhação, sentimento divergente do que se propõe a política de refúgio no âmbito da oferta de proteção e integração. Sua fala é também elucidativa ao delimitar a área em que ela se sente afetada: a capacidade intelectual surge como objeto de reivindicação por reconhecimento, associada à humanidade, em um convite a se libertar de uma prisão simbólica, desumanizante, que lhe foi incumbida ao receber o rótulo de refugiada.
Benevolência, marketing, falsidade e as máscaras do refúgio
Alcoff (2016) afirma que para descolonizarmos o conhecimento, se faz necessário estarmos atentos aos modos como vêm sendo produzidas as identidades sociais, evidenciando os objetivos a que se destinam os projetos de colonização que reforçam a criação de certas identidades, ao passo que outras identidades têm sido desautorizadas epistemologicamente. As categorias de raça, gênero, classe e sexualidade são enfatizadas por Hill Collins (2000) como primordiais nos processos de examinar as experiências particulares dentro dos sistemas de opressões, pois são elementos da estrutura social que precisam ser reconhecidos como dispositivos fundamentais que favorecem desigualdades, em exercícios que colocam em cheque categorias universais aplicáveis a um grupo. Nessa direção, Bintou localiza o seu ponto de vista e, portanto, o seu grau de particularidade dentro da universalidade refugiada, colocando-nos frente ao seu corpo de refugiada, bem como à necessidade de reconhecer sua especificidade de subalternização e, assim, de resistência a estes silêncios institucionais. Afirmações como "Seu silêncio não vai proteger você", de Lorde (2019, p. 52), ajudam a elaborar que as interlocuções com Bintou e Maby só foram possíveis no tempo que se fez favorável, interna e politicamente, para quebrar seus respectivos silêncios. Um silêncio epistêmico (Collins, 2000; Kilomba, 2010).
Eu não aguento mais ver lá todo mundo bonitinho na cadeira dizer que estão fazendo projeto para os refugiados, e não sabe o que o refugiado tá passando. Hoje o prédio caiu, refugiado estava lá dentro. E cadê? Cadê a ajuda? Essa família que tá lá na África, não sei aonde, cadê a resposta para essa família? Você pode dar mil reais, dois mil reais hoje, e depois? A mulher tá lá no prédio invadido, mas amanhã vai estar na rua, vai ficar onde com 5 filhos? Seus filhos brasileiros que nasceram aqui... (Bintou, entrevista concedida em agosto/2018).
Segundo Butler (2007), é possível compreender que a existência do refúgio é atravessada por uma série de poderes que produzem e mantêm tal situação de destituição, implicando nos modos como as relações sociais e políticas que constituem os ideais de refúgio (e de refugiadas/os) contribuem para uma concepção de sujeitos à margem do poder da nação, logo, demandantes da "benevolência" de políticas e programas intitulados "ajuda humanitária". Esse discurso, propagado em termos da concessão do refúgio, a despeito de quaisquer interesses políticos, elege a ajuda humanitária como oferta à população dos países expulsores, repercutindo diretamente na compreensão dos modos de produção acerca do refúgio, no qual o problema se instala nas pessoas que estão em êxodo, deslocando o olhar das causas e problemas que originam a migração destas populações.
O conceito de interseccionalidade, proposto por Crenshaw (1991), cumprir a tarefa teórico-metodológica de compreensão das distintas formas de iniquidades vividas pelas mulheres. Partindo das reflexões da autora, é possível extrapolar resquícios teóricos que intentam priorizar alguns marcadores, desconsiderando outros. Akotirene (2018) afirma que "interseccionalidade é esta encruzilhada analítica que não se restringe a pensar as experiências das mulheres negras, mas dos homens negros também, em verdade de todas as categorias humanas eleitas dentro do escopo político não normativo"7.
Dar o devido peso às linhas geopolíticas que produzem especificidades reforça a necessidade trazida pelas contribuições de Crenshaw (1991) acerca do cruzamento de categorias nas experiências de mulheres negras. Nesse sentido, visibilizar que a migração e as políticas que compõem esse universo, ao serem acionadas no campo das experiências de mulheres como Bintou e Maby, evidencia eixos de subordinação específicos por parte das lógicas de administração do Estado, subordinações que ainda não têm recebido a devida atenção por parte dos movimentos feministas, mesmo dos feminismos negros.
Queremos a mudança. Hoje, o Brasil fala que 'nós acolhemos refugiados', como acolhe os refugiados? Queremos também o refugiado no lugar deste trabalho, na instituição pública. Porque temos advogados, temos médico, temos intelectual, temos bilíngue, temos tudo... A gente não quer mais essa falsidade, a gente não quer mais viver essa falsidade... nós somos vozes, não adianta mais, nós refugiados, esse nome que colocaram na gente, nós já sabemos que estão fazendo muito marketing em cima, a gente não quer mais isso (Maby, entrevista concedida em agosto/2018).
O marketing de corpos negros é uma prática antiga, assim como o lucro advindo desse mercado. De acordo com Cabral (2002), o racismo atua no consciente e subconsciente da alteridade como um eficiente mecanismo civilizatório. Em sua análise, o autor afirma que todo e qualquer tipo de prática racista exacerba-se precisamente no instante da proximidade presente entre os discursos de alteridade e benevolência social. Assim, observa que essa operação se limita a situar o outro como uma diferença a ser discursivamente reconhecida e respeitada, desde que a distância. Nessa direção, reconhecendo esse percurso do lugar social relacionado à categoria refugiado, e visualizando ainda a necessidade de questionar e (re)pensar em conjunto estratégias de enfrentamento à estigmatização produzida, Maby segue indagando as noções advindas ao receber o status de refugiada:
Até quando isso? A gente não quer mais essa falsidade de que "recebe o refugiado", a gente não quer mais essa falsidade, a gente não quer mais pessoas abrindo ONG pra lá, pra cá, dizendo que ajuda refugiado, a gente não tá recebendo isso, essa ajuda, a gente não aguenta mais colocar a imagem do refugiado dizendo que o refugiado tá falando, queremos ver, ir até o ponto da periferia, ver essas mulheres... parar a falsidade... se quer receber os refugiados, vão no ponto e ajuda, a gente não quer mais essa porta aberta, e quando entra, se vire, a pessoa tem que quebrar a cabeça para sobreviver (Maby, entrevista concedida em agosto/2018).
Ao nomear como falsidade, ela evidencia que a política tem duas caras: aquela que aparece dizendo que protege os refugiados, e outra que, na hora da urgência do pedido de socorro permanece em silêncio. Maby ressalta os agenciamentos entre a benevolência e os discursos associados ao status do refugiado, denunciando os jogos de poder presentes em meio à produção de uma inteligibilidade refugiada, aos acúmulos históricos de uma política de Estado pautada na necessidade premente de isolar esses sujeitos, evidenciando um dos mais atuais processos de institucionalização que compõem a agenda migratória. Isso resulta em efeitos significativos na construção das identidades e subjetividades de vários indivíduos que partilham entre si a condição do refúgio, mas nem sempre possuem a mesma condição econômica, política e cultural. Sendo assim, é importante atentar para como essa posição marginalizada do status do refúgio impacta na percepção das interlocutoras sobre suas condições subjetivas.
Os questionamentos e rompimentos com a tutela de significados impressos nos modos de subjetivação das políticas de refúgio se inter-relacionam com os mecanismos analisadas por Fanon (2008) em relação aos negros diante das "máscaras brancas". Em seu estudo das relações raciais, reflete sobre as consequências da dominação colonial da França e pensa o racismo conceitualmente sob o ponto de vista da produção de subjetividades. Desse modo, as máscaras seriam os estereótipos resultantes criados para compor os processos identitários de pessoas negras e seus complexos de inferioridade. Assim como o racismo produziu sobre as experiências de pessoas negras um exercício político de introjeção de máscaras brancas. Nesta pesquisa, pudemos observar, a partir da análise das entrevistas realizadas, como o universo institucional do refúgio tem produzido dispositivos que operacionalizam máscaras simbólicas que vão desde a manutenção e propagação da imagem do Brasil como um país democrático e, portanto, humanitário, até a inauguração de novos agenciamentos de uma agenda necropolítica, que podem ser considerados de maneira análoga como máscaras do refúgio que surgem para compor o quadro das relações de inteligibilidade por parte daqueles que estão administrados sob o status de refugiado no Brasil.
Na realidade a gente se sente afastada, a gente fica na fila do hospital, a gente demora pra ter moradia, uma mãe solteira com filhos não consegue ter casa para morar digna e, hoje, o que está acontecendo, o refugiado está sendo assassinado, saímos do nosso país para pedirmos socorro no Brasil e chegamos aqui e estamos sendo mortos... (Maby, entrevista concedida em agosto/2018).
Para Mbembe (2018), a utilização das técnicas e o desenvolvimento de aparatos planejados para a execução das políticas do fazer morrer e da guerra são paralelos à intencionalidade de controle de determinados corpos ou de determinados grupos sociais. Dessa maneira, o processo de exploração do ciclo em que se estabelecem as relações necropolíticas opera pelo extermínio dos grupos que não têm lugar algum no sistema, uma política que parte da exclusão para o extermínio (Mbembe, 2018). É um poder de determinação sobre a vida e a morte ao desprover o status político dos sujeitos. Pelbart (2018) destaca que a política de extermínio revela a sobrevivência da matriz colonial no contexto contemporâneo e, em especial, no Brasil nos dias atuais. A diminuição ao biológico desumaniza e abre espaço para todo tipo de arbitrariedade e inumanidade, explicitando os substratos morais e políticos advindos do corpo físico negro (Mbembe, 2018).
Então eu tô falando, em nome de todos os imigrantes e refugiados, queremos paz, basta de violência, basta de assassinato, e que o governo está fazendo? O congolês que estava no bar recebeu três tiros na cabeça e depois? Porque ele é um refugiado? Porque ele é um migrante? Um bicho? E depois? Acabou a história?... Os pais estão lá na África sabendo que os filhos estão lá no país estrangeiro para tentar nova oportunidade para ajudar lá, e nós chegamos aqui com risco de voltar para nossa terra num caixão, porque muitas vezes na nossa terra não voltamos num caixão. Sim, a morte chega pra todo mundo, mas nesse ponto de ser assassinado, tá virando moda, ontem assassinaram um congolês, outro dia, um senegalês, até quando? Vai chegar no ponto de bater nas nossas portas, entrar nas nossas portas, nas nossas casas para nos matar... o refugiado morto, até quando? (Bintou, entrevista concedida em agosto/2018, grifos nossos).
O desabafo de Bintou vai ao encontro das lutas dos movimentos negros cujas denúncias apontam a existência de um genocídio negro em processo no país. É importante destacar a relevância política do conceito de genocídio, pois chama a atenção seu teor denunciativo, provocador e mobilizador, sobretudo em se tratando do genocídio negro, que apresenta a violência presente nas relações raciais brasileiras. Segundo Ratts (2007), Beatriz Nascimento já discutia, no final dos anos 1970, que a democracia racial possui um caráter genocida, tendo em vista o objetivo político de branqueamento da população.
O universo institucional do refúgio aciona intersecções de marcadores sociais que impactam diretamente nos fluxos de integração. A raça impacta sobremaneira na opressão destinada a uma pessoa com status de refugiada, haja vista que dos projetos de racialização brasileiros surgem os projetos de segurança nacional, articulações que intrinsecamente recaem nas lógicas de poder presentes no funcionamento dos fluxos migrantes de pessoas refugiadas, aprisionando experiências de subjetivação de corpos negros em tramas sociais específicas.
E se essa mulher tá querendo ajuda pra levar num psicólogo? Internar a filha? Tá difícil... o que é que vocês estão esperando? Levar flores? Para dizer tchau? Discursos que refugiado não sei o que lá, quando a pessoa tá viva e tá pedindo socorro... queremos mulher na instituição pública, bote mulher refugiada, migrante que defende nossos direitos, que nós temos capacidade, a gente não está só para embelezar dizendo que é refugiado, queremos refugiados lá dentro, porque é a pessoa que viveu na pele a discriminação, ela vai saber dizer e defender o que sente o refugiado, queremos essas pessoas lá na instituição pública... (Maby, entrevista concedida em agosto/2018).
Ao se referir às tecnologias de controle por parte do Estado, Maby apresenta como os modos de produção da morte têm sido reatualizados ao longo dos tempos na atuação jurídica, social e política do Estado frente a corpos que as lógicas necropolíticas elegem como alvos de extermínio. Na gestão das vidas refugiadas, têm sido respaldadas essas lógicas de controle que se estruturam no desafio em reconhecer os contornos interseccionais que delimitam marcadores que acompanham as especificidades de serem interpeladas como refugiadas. A revolta de Maby sobre a morte se soma à revolta pela ausência de ações por parte das instituições que atuam na área do refúgio no país, sobretudo com a ênfase que é dada aos discursos de proteção do sujeito refugiado.
Por sua vez, ao apontar os desafios de acesso das políticas públicas de assistência, saúde e educação, Bintou evidencia as diferenças de posicionamentos por parte dos agentes institucionais do refúgio, manifesta a sua percepção acerca dos marcadores que se interligam a tais direcionamentos de (des)atenção, aparentemente relacionados à nacionalidade. Uma questão que se coloca aqui é a relação que tem sido estabelecida entre os agentes institucionais e os refugiados. Ao analisar a palavra escolhida por Bintou para nomear a postura dos agentes de refúgio, "falsidade", chama a atenção que este se trata de um termo cotidianamente utilizado para nomear processos relacionais que versam sobre a amizade ou relações afetivas. A falsidade assinala uma trajetória relacional entre o estabelecimento de vínculo, expectativa, projeção e também de decepção com o que lhe foi apresentado como possibilidade, quando dirigiu demandas que não tiveram resposta por parte dos agentes do refúgio. Tal panorama de intensa marginalização de marcadores que se fazem presentes em processos de subalternização social relaciona-se ao cenário de contradições que permeiam a dinâmica de oferta da proteção humanitária por parte das instituições e programas que se propõem a compor o universo institucional do refúgio, e atravessa os processos de subjetivação das entrevistadas neste contexto.
Considerações finais
Neste trabalho, partimos de uma contextualização histórica sobre as relações raciais no Brasil, considerando-se questões dos trânsitos migratórios e do universo institucional do refúgio tal como se configuram hoje, nas agendas econômicas e políticas, para discutir os processos de subjetivação das interlocutoras desta pesquisa. Maby e Bintou mobilizam em suas falas uma compreensão densa acerca da sua integração em contexto brasileiro, bem como tecem preciosas críticas aos agenciamentos decorrentes da relação com o universo institucional do refúgio - acúmulos que só foram possíveis considerando-se os lugares específicos que seus corpos ocupam nos imaginários ficcionais que intentam aprisioná-las em narrativas únicas.
O tema dos deslocamentos territoriais convoca a uma reflexão acerca de quais projetos políticos queremos disputar em termos de organização societária. Nessa perspectiva, falar sobre deslocamentos é falar sobre conjuntura política, bem como evidenciar que o Brasil vivencia, por exemplo, um cenário atual em que inúmeros grupos e representantes políticos se autorizam a fazer discursos de cunho xenófobo e racistas nos mais diferentes meios de comunicação. Mama (2011) demarca que o engajamento político de mulheres em territórios africanos tem sido desenvolvido há tempos, sendo necessário compreender que a luta de agora é, também, a luta de outras que nada puderam dizer, mas que estiveram envolvidas em uma série de estratégias de organização contra os eixos de opressão, dentre eles, o patriarcado e tantos outros anunciados eixos de subordinação. Nesse sentido, pensar as experiências migratórias exige pensar os elementos ideológicos nos quais estamos inseridos nas relações sociais e de poder, que nos constituem enquanto sujeitos. As identidades de nacionalidade são, portanto, categorias que compõem processos subjetivos. Pensar esses processos e relações no campo da psicologia social contribui para o compromisso social com a pesquisa e o exercício da profissão.
Referências
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Endereço para correspondência:
Lumena de Aleluia Santos
luma.aleluia@gmail.com
Amana Mattos
amanamattos@gmail.com
Submetido em: 24/09/2020
Revisto em: 31/10/2020
Aceito em: 31/10/2020
1 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
2 Zylberkan (2018).
3 O trabalho de campo desta pesquisa foi realizado no ano de 2018. As políticas públicas aqui mencionadas foram implementadas nas gestões dos governos federais do Partido dos Trabalhadores (PT). Já as políticas públicas para o refúgio no governo de Jair Bolsonaro, iniciado em 2019, evidenciam o retorno à ideologia de Segurança Nacional, retirando o Brasil do Pacto Global pela Imigração da ONU que garantia a proteção aos Direitos Humanos para pessoas migrantes e refugiadas.
4 Os nomes fictícios foram escolhidos pela primeira autora.
5 A publicização do conteúdo da pesquisa de campo foi autorizada pelas entrevistadas, bem como foi cedido o uso de imagem para fins de pesquisa em relação às entrevistas gravadas em vídeo. Os resultados finais da pesquisa foram compartilhados com as entrevistadas previamente à sua publicação.
6 Cristina (2017) e Brasil (2016).
7 Discurso proferido por Carla Akotirene no evento Mulher com a palavra. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Jnfk0pCP3pg&t=2323s