73 1 
Home Page  


Arquivos Brasileiros de Psicologia

 ISSN 1809-5267

     

https://doi.org/10.36482/1809-5267.ARBP2021v73i1p.121-136 

ARTIGOS

 

A paternidade em famílias monoparentais masculinas: a perspectiva bioecológica

 

The paternity in male single-parent families: the bioecological perspective

 

Paternidad en familias monoparentales masculinas: la perspectiva bioecológica

 

 

Angela Roos CampeolI; Caroline Rubin Rossato PereiraII

IUniversidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis. Estado de Santa Catarina. Brasil
IIUniversidade Federal de Santa Maria. Santa Maria. Estado do Rio Grande do Sul. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Indicadores demográficos apontam a crescente heterogeneidade dos arranjos familiares. Nas famílias monoparentais, os homens assumem a paternidade unilateral, embora em menor expressividade em relação às mulheres. Este estudo objetivou compreender as experiências e significados vivenciados pelos homens em famílias monoparentais masculinas. Utilizou-se do método qualitativo, com delineamento de estudo de casos. Participaram quatro pais, com ao menos um filho de até 11 anos de idade, sob sua responsabilidade, por um período mínimo de cinco meses. Destaca-se a afetividade com que os homens exerciam as tarefas parentais e assumiam tarefas tradicionalmente atribuídas às mulheres, distanciando-se de um modelo tradicional de paternidade. Os pais do presente estudo relataram ser possível construir um convívio familiar com qualidade em famílias monoparentais. Ressalta-se a importância de conferir visibilidade e reconhecimento para tal configuração.

Palavras-chave: Pai; Família; Monoparental.


ABSTRACT

Demographic indicators point to the increasing heterogeneity of family arrangements. In single-parent families, men assume unilateral paternity although in a lower number in relation to women. This study aimed to understand the experiences and meanings that fathers in male single-parent families undergo. It was a qualitative study with exploratory method and case study delimitation. Four fathers were analyzed. They had at least an eleven-year-old child under their responsibility for a minimum period of five months. It stands out their distancing from a traditional model of paternity. They performed the parental tasks and tasks traditionally attributed to women with care and affection. The fathers of the present study corroborated that it is possible to build a quality family relationship between father and children in single-parent families. It is important to give visibility and recognition to such families arrangements.

Keywords: Father; Family; Single parent.


RESUMEN

Los indicadores demográficos apuntan a la creciente heterogeneidad de los arreglos familiares. En las familias monoparentales, los hombres asumen la paternidad unilateral, aunque en menor medida en relación con las mujeres. Este estudio tuvo como objetivo comprender las experiencias y los significados experimentados por los hombres en familias monoparentales masculinas. Se utilizó el método cualitativo, con un diseño de estudio de caso. Participaron cuatro padres, con al menos un niño de hasta once años, bajo su responsabilidad, por un período mínimo de cinco meses. Se destaca la afectividad con la que los hombres realizaban tareas parentales y asumían tareas tradicionalmente asignadas a mujeres, alejándose de un modelo tradicional de paternidad. Los padres del presente estudio informaron que es posible construir una vida familiar de calidad en familias monoparentales. Se enfatiza la importancia de dar visibilidad y reconocimiento a esta configuración.

Palabras clave: Padre; Familia; Monoparental.


 

 

A configuração familiar monoparental tem apresentado índices crescentes no meio social nas últimas décadas, representada, principalmente, por mulheres responsáveis pelo lar. De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), referentes ao ano de 2015, as famílias monoparentais formadas por mulheres sem cônjuge e com filhos representam 87,4% dos arranjos monoparentais brasileiros. Embora as famílias monoparentais masculinas sejam uma composição menos frequente, observa-se uma crescente participação dos pais nos cuidados dos filhos, alcançando 3,4% dos arranjos familiares brasileiros (IBGE, 2015). Em vista disso, neste estudo, o interesse volta-se para as famílias monoparentais masculinas.

Durante o século XX, consolidaram-se mudanças socioeconômicas e culturais que desencadearam a ampliação das compreensões acerca das relações familiares e suas novas configurações. A partir de então, delineia-se um crescente interesse a respeito da participação paterna no ambiente familiar e a revisão dos fatores que constituem o ser homem e ser pai (Staudt, & Wagner, 2008). Esse panorama, a condição de monoparentalidade, crescente em todos os grupos socioeconômicos, construiu-se, principalmente, com base na perda de um relacionamento, como diante da morte ou da separação ou, ainda, do desejo de uma parceria íntima para criação dos filhos (Anderson, 2016).

A partir de um estudo de caso de uma família monoparental masculina, Ried e Pereira (2012) ilustraram a dificuldade dos pais de famílias monoparentais em se adaptar às mudanças sociais e aos novos valores referentes ao exercício das competências parentais. Contudo, em estudo realizado no contexto norte-americano, Walker, Crawford e Taylor (2008) destacaram que crianças e adolescentes em famílias monoparentais perceberam o vínculo existente em suas famílias como mais forte do que aquele das famílias nucleares, pelo fato de superarem juntos experiências difíceis. Ademais, Ried e Pereira (2012) verificaram uma flexibilização, por parte do pai, no que se refere às concepções das funções paternas, ao realizar atividades que, historicamente, estiveram associadas à figura materna, como: cuidado, educação e trocas afetivas. Todavia, Gryzibowski e Wagner (2010) alertam que o acúmulo de tarefas do lar, tais como a criação dos filhos, o sustento da família e o manejo das questões emocionais pode sobrecarregar os homens.

Dessa forma, circunscreve-se a influência dos contextos em que o pai, um ser biológico, psicológico e social, está inserido. Conforme o paradigma Bioecológico do Desenvolvimento Humano, o ciclo vital é caracterizado por sucessivas interlocuções pessoa-ambiente (Bronfenbrenner, & Morris, 1998). De acordo com o modelo proposto, deve-se considera de forma inseparável os seguintes elementos: processo, pessoa, contexto e tempo (PPCT). Para a compreensão e discussão do fenômeno desse estudo, avalia-se importante evidenciar o processo que envolve a paternidade e sua constante e fundamental interação com as características da pessoa e com o tempo, aspectos esses que de desenvolvem em diferentes contextos.

O processo destaca-se como o principal mecanismo responsável pelo desenvolvimento, compreendendo as formas de interações recíprocas e gradativa, entre organismo e contexto, entendidas como processos proximais (Bronfenbrenner, & Morris, 1998). De acordo com Bueno, Vieira, Crepaldi e Schneider (2015), como o pai interage (a forma), o quanto ele interage (a força), o que o pai faz com a criança (o conteúdo) e a direção dos processos proximais (se a interação é recíproca) devem ser considerados ao compreender o desenvolvimento da paternidade. Tais fatores variam sistematicamente como uma função conjunta de características da pessoa em desenvolvimento, do ambiente (contexto) onde ocorrem e das mudanças e continuidades sociais que ocorrem ao longo do ciclo de desenvolvimento.

No que diz respeito à pessoa, esta é compreendida a partir da integração de fatores biopsicossociais (Bronfenbrenner 2005). Como características centrais da pessoa, o Modelo Bioecológico destaca: a força, os recursos e as demandas. A força refere-se às disposições comportamentais e atributos pessoais que impulsionam os processos proximais, que podem se apresentar a partir de dois efeitos: (1) competência, que se refere à aquisição e desenvolvimento de conhecimentos, habilidades e capacidade para conduzir e direcionar seu próprio comportamento, através de situações e domínios evolutivos; e (2) disfunção, que se refere à manifestação recorrente de dificuldades em manter o controle através de situações e diferentes domínios do desenvolvimento (Bronfenbrenner, & Morris, 1998). Novamente, considera-se que ambos os resultados dependem da natureza do ambiente onde eles se encontram.

Os recursos envolvem características relacionadas aos aspectos cognitivos e emocionais, como: habilidades, experiências e inteligência, que influenciam na capacidade de engajar-se em processos proximais. Há também os recursos sociais e materiais, como acesso à comida, moradia, ou seja, condições oferecidas por determinada sociedade. Por último, as demandas contemplam as disposições que agem como estímulo imediato, ou não, em direção à outra pessoa. Refere-se, por exemplo, à curiosidade, capacidade de interação, tendo em vista fatores como idade, aparência, cor da pele.

Outra importante contribuição de Bronfenbrenner refere-se a uma visão ampla e contínua sobre o desenvolvimento, através da dimensão tempo, alcançando através dos fatores de interação, dos recursos pessoais e da trajetória pessoal, o momento atual e histórico de cada pessoa. Assim, essa dimensão temporal consiste na sequência de eventos que constituem a história pessoal de cada indivíduo, de modo a ultrapassar uma visão restrita do momento presente e fundamentar-se no entendimento de que as características pessoais de uma pessoa não podem ser entendidas fora do momento histórico em que este se desenvolve (Neiva-Silva, Alves, & Koller, 2004).

A partir da Abordagem Ecológica do Desenvolvimento Humano (AEDH) e considerando que os aspectos do ambiente mais relevantes para o desenvolvimento psicológico são aqueles que possuem significado para a pessoa (Bronfenbrenner, 2005), detém-se a atenção na figura de pais monoparentais, que se deparam com as funções parentais no sistema familiar e no mundo contemporâneo. Assim, este estudo objetivou compreender as experiências e significados vivenciados pelos pais em famílias monoparentais masculinas, em vista de conferir visibilidade e reconhecimento social para tal configuração.

 

Método

Participantes

Integraram este estudo quatro homens1 responsáveis por uma família monoparental masculina simples, com ao menos um filho(a), com idade entre cinco e onze anos (Tabela). Os participantes residiam em uma cidade do interior do estado do Rio Grande do Sul com tempo de convívio mínimo de cinco meses. Os participantes foram convidados a participar do estudo por meio de indicações nas redes sociais e profissionais da pesquisadora responsável.

Delineamento e Procedimentos

Tratou-se de um estudo do tipo exploratório e descritivo, com caráter qualitativo ao procurar compreender, através das experiências dos participantes, o fenômeno da paternidade em famílias monoparentais masculina (Minayo, 2012). A pesquisa esteve pautada no delineamento de Estudo de Caso Coletivo (Stake, 1994), o que permitiu aprofundar o que há de sistêmico nas relações familiares. Em termos de embasamento teórico, a compreensão dos dados esteve pautada no Pensamento Sistêmico (Vasconcellos, 2018) e no Modelo Bioecológico do Desenvolvimento Humano (Bronfenbrenner, & Morris, 1998).

Os participantes, após assinaram o Termo de Consentimento Livre Esclarecido, responderam, no primeiro encontro, ao Questionário de Dados Sociodemográficos e a uma entrevista semiestrutura sobre Paternidade em Contexto da Monoparentalidade. Ao final da entrevista convidou-se os participantes a darem continuidade ao processo de pesquisa via utilização da fotografia com atribuição de significado. Os participantes, então, receberam uma câmera fotográfica digital e as instruções de como manuseá-la adequadamente. Dois participantes (César e Marcelo) optaram por realizar os registros fotográficos com a câmera do celular particular. Em seguida, solicitou-se que registrassem, num período de sete dias, cinco momentos na tentativa de responder à seguinte instrução: "Busque fotografar cenas, imagens, no seu dia-a-dia, que você acha que mostrem um pouco da sua experiência como pai". Posteriormente, agendou-se um segundo encontro, quando foram abordadas as percepções dos pais sobre as suas próprias produções fotográficas.

Inicialmente, a coleta dos dados estava prevista para acontecer na residência das famílias, no entanto, apenas uma coleta ocorreu dessa forma. Em dois casos o processo aconteceu na escola dos filhos dos participantes, uma escola filantrópica, localizada na comunidade em que os participantes residiam. Um participante, optou por realizar os encontros nas dependências da universidade vinculada a esta pesquisa. Considera-se, contudo, a relevância do acesso à residência ou à comunidade em que as famílias viviam, uma vez que, conhecer o ambiente físico favoreceu a compreensão da realidade enfrentada por estas famílias.

A presente pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Santa Maria, através do CAAE 81161817.6.0000.5346. Ainda, esteve em conformidade com a Resolução no 016/2000 do Conselho Federal de Psicologia (CFP) e no 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde (CNS). Quanto ao método de produção de imagens fotográficas, a pesquisadora assegurou a proteção à privacidade dos participantes e das demais pessoas presentes nos registros fotográficos.

Quanto à análise dos dados, utilizou-se como referência a técnica de Análise de Conteúdo proposta por Bardin (2010). Os dados coletados foram analisados conjuntamente, buscando-se integrar o material obtido a partir de ambos os instrumentos. Desse modo, os retratos foram apresentados em nível descritivo dos elementos que compõem as imagens e, a partir das entrevistas, de acordo com o conjunto formado pelo agrupamento de fotos e a história individual de cada autor (Joly, 2008). Conforme Bardin (2010), a Análise de Conteúdo se constituiu em três fases: pré-análise; exploração do material; tratamento dos resultados, inferências e interpretações. A etapa de pré-análise envolveu a organização do material, sistematizando as ideias iniciais. Na fase de exploração do material, decompôs-se o texto, codificando os fragmentos selecionados. Finalmente, realizou-se o tratamento dos dados encontrados, interpretando-os e realizando inferências, a partir dos registros (Bardin, 2010).

As categorias tiveram como unidade de análise o tema e foram construídas a partir do modelo aberto, ou seja, tomaram forma no curso da própria análise e, agruparam unidades com significações aproximadas. Uma vez definidas as categorias temáticas de análise e com base em uma orientação e definição clara sobre o conteúdo de cada uma das categorias temáticas, dois juízes, especialistas da área, classificaram separadamente as unidades de análise às categorias propostas. O cálculo da taxa de fiabilidade na categorização das unidades de análise, a partir de uma análise estatística, foi realizada com o auxílio do SPSS versão 22 para Windows. Neste estudo, o coeficiente de Kappa alcançou o índice de 0,88, ou seja, considera-se uma concordância quase perfeita entre os juízes.

 

Resultados

A seguir, serão apresentados os resultados referentes aos quatro casos estudados. Para cada um dos casos serão descritos aspectos da história familiar e, em seguida, apresentados os resultados a partir das quatro categorias temáticas, exemplificadas por vinhetas procedentes das entrevistas e dos registros fotográficos. As categorias identificadas foram: Funções parentais: um olhar dinâmico aos processos proximais; "Eles vieram no mundo e mudou a minha vida": a experiência da paternidade; Modelos de paternidade; A paternidade em famílias monoparentais: o pai inserido na cultura do macrossistema. Após a apresentação, os quatro casos serão discutidos conjuntamente.

Caso 1: César

César estava em uma união estável com Renata há 12 anos quando, há um ano e meio, Renata deixou a residência da família. Desde então, César residia sozinho com as filhas, Jéssica (7 anos) e Martina (11 anos) e aguardava decisão judicial para oficializar o pedido de guarda unilateral. As filhas não mantinham contato frequente com a mãe. No momento da coleta de dados, César tinha uma namorada. A família residia em um bairro bem localizado na cidade e usufruía de uma estrutura física confortável.

Funções parentais: um olhar dinâmico aos processos proximais

César demonstrou ser um pai bastante envolvido com os cuidados físicos2 das suas filhas. Antes de sair para o seu trabalho envolvia-se na preparação das crianças para irem à escola: "Seis horas acordo, faço café para elas, arrumo o que elas vão levar para escola". O pai relatou que a filha mais velha dividia com ele algumas responsabilidades domésticas, mas, principalmente, em relação à irmã mais nova, assumindo, por vezes, uma postura materna: "A Jéssica me ajuda bastante. Às vezes, ela tenta tomar o partido como se fosse mãe da Martina, tentando mostrar pulso firme pra Martina, ensinar as coisas".

Quanto ao estabelecimento de regras e disciplina direcionadas às filhas, César contava com o apoio de uma babá nos dias de semana. Inclusive, à babá era solicitado o cumprimento do horário de ir dormir das meninas, uma vez que, no turno da noite, ele frequenta as aulas da graduação. De todo modo, o pai costumava dedicar um tempo, ao final do dia, para revisar os temas de casa das filhas: "Quando chego em casa, ver se elas fizeram os temas". E, recorrentemente, ia até a escola e conversar com as professoras sobre as filhas: "Procuro sempre estar informado com o colégio, pra saber como é que andam as coisas. [...] Cada dois, três meses eu faço uma reunião junto com as professoras".

"Eles vieram no mundo e mudou a minha vida": a experiência da paternidade

César afirmou que a paternidade vinha sendo a realização de um sonho: "Era o que eu mais queria, e agora tenho duas. Presente em dobro". Por isso, segundo ele, não hesitou em assumir a paternidade após o rompimento da união estável. Com o nascimento das filhas, durante a convivência da família nuclear, o casal acordou que César assumiria os cuidados das meninas para Renata estudar: "Quando conheci a mãe delas, eu estava na faculdade, daí larguei de mão porque veio a Jéssica. Daí deu a oportunidade para ela estudar e eu ficar com as crianças". Dessa forma, ao assumir sozinho os cuidados das filhas, disse que "Já estava acostumado, leva e traz e responsabilidades com elas, colégio e ajudar nos temas".

O pai revelou que, atualmente, considerava seu tempo com as filhas restrito e gostaria de poder aproveitar mais da companhia das meninas: "Sempre acho que falta alguma coisa, eu acho que poderia ter mais tempo para elas". Contudo, referia ter de equacionar o tempo com as filhas com a responsabilidade financeira: "Só que vem a parte da responsabilidade como pai, sustentar a casa, os funcionários para pagar". Isso provocava em César o sentimento de incompletude, uma vez que: "A gente acha que não está dando conta, não está fazendo tudo o suficiente, sabe? Apesar de estar fazendo o que pode".

Nesse sentido, o pai também expressou a sobrecarga de tarefas: "A gente se vira em 50, porque enquanto está pensando no trabalho, está pensando nelas. Daí tem horário, tem que saber o horário, tenho que largar o que estou fazendo para dar atenção para elas". Mas entende que esse esforço é recompensado, de modo que César registrou em imagem um momento em que ele e as filhas estavam num espaço da casa denominada por ele de "peça da baderna", brincando ao final do dia. Em seu depoimento o pai disse: "Não tem prazer maior, tu chegar e ter um afeto tão grande, né", e que com elas se sente "o pai super-herói, pai é pai".

Modelos de paternidade

Em relação aos seus modelos de cuidado, César pontuou a ausência de uma referência paterna positiva em sua vida. Relatou não ter estabelecido uma relação próxima com o seu pai. Nesse sentido, afirmou se sentir muito diferente do próprio pai: "Não sou de bater. Meu pai me batia por qualquer coisa". Ele expressou o desejo de ser um pai melhor para suas filhas, do que seu pai havia sido para ele.

A paternidade em famílias monoparentais: o pai inserido na cultura do macrossistema

Ao retratar o modo como se enxergava assumindo os cuidados com as filhas, César afirmou que vinha desempenhando a parentalidade de maneira positiva. Ele se considerava um bom pai e com um retorno social que corroborava a sua postura: "Todo mundo sempre me chama de pai-mãe, porque, como sempre dizem, eu sempre fui paizão, estar sempre junto".

Com relação às dificuldades percebidas pelo pai, César apontou como principal desafio a "dificuldade referente à parte que elas são tudo meninas", diante do fato de, como homem, precisar realizar cuidados e dar orientações às duas. Ele destacou a importância da educação sexual, embora encontrasse dificuldades em abordar o assunto: "É difícil para um pai pegar e conversar com uma criança, dizer tu vai menstruar, logo depois tu tem que se cuidar, se tiver algum relacionamento".

César supõe que cuidar de um menino pode ser mais fácil para um homem, exemplificando da seguinte forma: "Eu acho que é mais fácil para o homem um guri, que é bem mais prático, vai lá e bota uma roupa, um chinelo e um boné e vamos embora", enquanto a menina: "A menina já é bem complicada, seis horas da manhã eu tenho que levantar, é arrumar, essa função e vai. E é lavar cabelo, secar cabelo".

Contudo, o pai reconhece que, independente do gênero dos filhos, as suas demandas precisam ser atendidas por figuras de afeto: "Da mesma forma como eu passo às vezes trabalho com elas, as mães também, algumas, aquelas que gostam. Conheço algumas que estão com os filhos, mas não estão nem aí".

Caso 2: Pedro

Pedro e Pâmela, durante 12 anos, viveram em uma união estável, e tiveram dois filhos, Emílio (9 anos) e Martin (5 anos). Há aproximadamente um ano o casal decidiu se separar e Pedro assumiu os cuidados dos filhos. A guarda paterna não estava oficializada, a dupla parental optou por fazer um "acordo de boca". As visitas de Pâmela aos filhos não aconteciam de forma regular. A família residia em um bairro vulnerável da cidade e a casa se apresentava em condições físicas precárias, em terreno compartilhado com outras pessoas da família.

Funções parentais: um olhar dinâmico aos processos proximais

Pedro relatou um grande envolvimento e preocupação com os cuidados físicos dos filhos, principalmente em relação a bem alimentá-los: "Faço café pra eles. Eu mesmo faço o pão de casa, dou pra eles comerem". A apresentação de uma fotografia, em que Emílio e Martin estavam, à noite, sentados cada um em sua cama, com um prato de comida, retratava a satisfação do pai em poder ofertar alimento aos filhos: "A janta, aqui era arroz, feijão, mandioca, bolo de arroz e galinha. Eu que preparo a comida deles"

Neste contexto de vulnerabilidade social, a família enfrentava dificuldades financeiras e de acesso aos recursos relativos à saúde. Diante de importantes restrições, o pai relatou ter percorrido em torno de 10 km a pé para levar o filho no médico: "Não tinha um pila3, botei ele nas costas, o mais velho nas costas, um solão, que estava doente. Levei e trouxe ele nas costas". Por assumir os cuidados dos filhos, sem a ajuda de outro adulto, o pai era quem dava banho, arrumava, alimentava e levava os filhos para a escola. Nos períodos em que conseguia um trabalho temporário, ele recebia o auxílio de sua mãe e de sua cunhada. Além disso, os filhos de Pedro auxiliavam o pai nas tarefas domésticas: "Me ajudam, limpam a casa" e, também, nos cuidados parentais: "O maior cuida do outro que é pequeno. Ele dá banho, faz um lanche, dá café para ele, me ajuda".

Quanto à dimensão social, aos finais de semana, conforme Pedro "é o mais feliz", pois pai e filhos participavam de jogos de futebol, brincavam em pracinhas ou ficavam em casa olhando desenhos. Com relação à educação, sempre que necessário, o pai se fazia presente na escola onde os filhos estudavam: "Quem vem na reunião sou eu. Sempre estou na reunião deles, estou aí".

"Eles vieram no mundo e mudou a minha vida": a experiência da paternidade

Pedro destacou a paternidade como um momento importante de sua vida, que propiciou mudanças no seu comportamento: "Eles vieram no mundo e mudou a minha vida". Uma vez que, "Eu virei pai e fiquei muito feliz. Eu estava atirado, só na bebida, virei pai e mudei, consegui emprego. Todo final de semana gastava meu dinheiro para ir no bar. Agora, que eu virei pai, tudo mudou na minha vida".

Ao descrever a relação com os filhos, o pai relatou que, desde que estes eram pequenos, ele que assumia os cuidados, principalmente, emocionais: "Quem dá amor, quem dá carinho, até de bebê eu cuidava deles, eu que dou carinho para eles". Na medida em que os filhos cresceram, a díade assumiu uma relação de cumplicidade: "Eles não me incomodam, estão sempre do meu lado, me ajudando, sempre me dando carinho". O que reforça em Pedro o sentimento de capacidade de cuidar dos filhos: "Eu tenho coragem de cuidar dos meus filhos, eu tenho. Por eles eu faço qualquer coisa. Aí, é mais feliz!".

Modelos de paternidade

Pedro não teve relação com o seu pai biológico, pois esse faleceu quando ele ainda era muito pequeno: "Eu não conheci o meu pai. O meu pai morreu eu tinha três meses de nascido". Ele foi criado por seus avôs, a quem considerava como pais: "Mãe e pai é aquela pessoa que cria, chamava meu vô de pai, minha vó de mãe". Com muito entusiasmo ele se referia a sua avó como mãe, dizendo: "A minha mãe, minha guerreira, ela sempre estava do meu lado, me ajudando" e esta era para ele a sua referência de como ser pai.

A paternidade em famílias monoparentais: o pai inserido na cultura do macrossistema

A compreensão de Pedro sobre a monoparentalidade masculina refletia uma visão social pautada em um modelo matriarcal: "Eles pensam que nós [homens] não cuidamos. Pensam que estar com a mãe, a mãe faz tudo. [...] Ah, todo mundo fala a mãe dá mais amor e mais carinho que um pai".

Com isso, cotidianamente, Pedro se deparava com situações que o constrangiam no seu lugar de pai, como, por exemplo, em uma reunião de escola: "Semana passada tinha uma reunião. Eu entrei na sala de aula, o único homem era eu. Era tudo mulher e quem passou vergonha fui eu". Tal estranhamento indica uma percepção de desqualificação do exercício da paternidade por um pai como responsável pela família.

Todavia, este pai reconhece a igualdade de capacidade de um homem e de uma mulher para cuidar do desenvolvimento de um filho: "Pai é a mesma coisa que a mãe. A mãe e o pai a mesma coisa. Não vem dizer os filhos gostam mais da mãe que do pai. É a mesma coisa". E ressalta o seu entendimento dizendo: "Não é só a mãe que tem força, o pai tem força para criar um filho. [...] O pai faz a mesma coisa que uma mulher". Mas admite que se faz necessária uma revisão referente às concepções sobre a paternidade, inclusive por parte do Direito de Família e dos profissionais responsáveis por aplicá-lo: "Mas o mais importante é dar apoio para os pais. A Lei está mais para a mulher. Tem que dar uma lei para os homens também, para os pais. Pai é a mesma coisa que uma mulher".

Caso 3: Elias

Elias e Joana por seis anos viveram juntos, e tiveram um casal de gêmeos, João e Berenice, que estavam com sete anos. Há três anos o casal decidiu romper. Em um primeiro momento os filhos ficaram com a mãe. Frente à preocupação com o bem-estar de João e Berenice, a dupla parental acordou que as crianças passariam a residir com o pai. Elias havia solicitado judicialmente a guarda unilateral dos filhos e o processo estava em andamento. A família residia em um bairro na periferia da cidade, em situação de vulnerabilidade social, em uma casa simples, construída com madeira.

Funções parentais: um olhar dinâmico aos processos proximais

No tocante aos cuidados físicos, em especial com a alimentação, Elias, ao retratar a paternidade através de uma fotografia em que os filhos, ao final do dia estavam lanchando, referiu que assumiu um compromisso com seus filhos: "O compromisso de alimentá-los bem, porque na minha infância, para eu poder comer, eu tinha que sair vender raspadinha. Mas acho que só em não ter os teus filhos na rua já vale muito e eles ter o que comer".

Enquanto os filhos estavam na escola, o pai se dedicava às tarefas domésticas: "Durante o dia vou para casa lavar roupa, lavar louça, fazer as coisas de casa que tem que fazer". Elias relatava brincar com os filhos principalmente na rua, de pega-pega, enquanto retornam da escola para casa. O pai aproveitava esses momentos já que entendia não ter disponibilidade para brincadeiras com os filhos tanto quanto gostaria: "Lavar roupa, fazer comida para eles, uma brincadeira que outra, até porque como é só eu, não tem muito tempo de ficar brincando". A respeito da disciplina, o pai também demonstrou preocupação em desenvolver a independência nas crianças: "Eu já procuro ensinar eles mesmo a se vestirem, justamente pela questão que a gente nunca sabe o dia de amanhã".

"Eles vieram no mundo e mudou a minha vida": a experiência da paternidade

A chegada dos filhos não foi algo planejado pelo casal, mas o pai reconheceu que: "Em filho a gente não tem que mudar algo, a gente tem que construir para eles, porque no momento em eles nascem tu não pode mais viver pra ti". Elias contribuiu com os cuidados das crianças quando eram bebês, em especial por se tratar de gêmeos, "Eu, desde que meus filhos nasceram, sempre ajudei a dar banho neles, até porque eram dois, então tinha que ajudar".

Elias descreveu o fato de os filhos estarem com ele como um acontecimento que propiciou importantes mudanças no seu comportamento: "No momento em que eu era solteiro, sem ter o compromisso das crianças, eu estava mais na rua, bebendo". Dessa forma, retratou a percepção de que "A responsabilidade aumenta muito. Agora já com as crianças tem que ter as coisas para eles, tem que ter a janta, tem que ter o café".

Em um registro fotográfico, Elias capturou o momento em que ele e os filhos estavam retornando da escola para casa, ao final do turno de aula. Segundo o pai, a escolha dessa fotografia significa "O compromisso de levar, trazer e buscar no colégio e dar seguimento" e remete à sua história de vida: "Porque eu fiquei um bom tempo sem estudar, fui terminar agora a pouco. E isso é uma coisa muito importante, o estudo".

Este pai afirmou que: "Agora a minha maior alegria é ter eles junto comigo". Contudo, Elias reconhece o esforço e a dedicação diária, compartilhando a sua concepção sobre a paternidade: "É difícil, mas não impossível. Tem momentos que estou cansado, mas logo tu olha o sorriso da criança e fala 'Vamos lá. Essa é a luta. Vamos seguir em frente'. É difícil? É, mas não é impossível".

Modelos de paternidade

Elias teve uma infância de restrições morando com o seu avô e, desde muito cedo precisou trabalhar para garantir seu sustento: "Meu vô, porque foi ele que me criou até os sete anos, até a minha mãe me levar dele. Eu andava só com ele e eu sabia que, mesmo do jeito dele, ele me amava, e eu amava ele". A relação com seu pai biológico dizia respeito a uma incerteza na sua vida: "Eu não tenho certeza ainda de quem é o meu pai. Eu chamo ele de pai, porque a minha mãe falou que ele é o meu pai". Quando Elias estava com 13 anos de idade, e sob a guarda materna, Elias residiu com a mãe e o seu companheiro, que foi apresentado como pai de Elias. Mas esse contato com as figuras parentais não se estendeu até sua vida adulta.

A paternidade em famílias monoparentais: o pai inserido na cultura do macrossistema

Ao ser questionado sobre o fato de estar cuidando unilateralmente de seus filhos, Elias admitiu nunca ter se imaginado nesta situação familiar, sendo saudosista ao modelo de família nuclear: "Eu fui criado sem o meu pai, eu não queria que os meus filhos crescessem sem a mãe e o pai juntos". Elias entendia o afastamento da mãe do convívio familiar como um aspecto negativo para o desenvolvimento dos filhos: "A questão de eles ficarem longe da mãe, porque isso é uma coisa que afeta eles, eles estavam acostumados com a mãe".

Assim, ao expressar a sua percepção sobre famílias monoparentais masculinas, ele indicou acreditar que: "As pessoas devem pensar o pior, porque não vai ser bem cuidado, não vai ser bem-educado", mas faz uma crítica a essa preconcepção social: "Eu acho que as pessoas se enganam, julgam pela aparência, julgam a deixar pelo o que os outros dizem". Inclusive, acreditava existir esse entendimento na esfera do Direito: "Tu vai chegar na frente de um juiz, se tu não for um pai que tenha muito dinheiro, tu não ganha a guarda do teu filho, só se a mãe deles fazer uma coisa muito feia".

Ele acredita que esse julgamento social acontece devido ao histórico cultural: "Já vem de antigamente que a mãe tem que cuidar dos filhos, já vem na cabeça das pessoas, mãe que cuida, mãe que dá banho, mãe que isso, mãe que aquilo". Tais percepções de Elias são exemplificadas por situações de julgamentos em relação a sua família: "O pai mora com um menino e uma menina, então, já podem inventar que estou fazendo alguma coisa com a guria". E devido a isso o pai precisou tomar algumas precauções no que diz respeito a higiene da filha menina: "Quando eles vieram morar comigo, sempre tem alguém para pensar coisa errada, independente da gente ser pai ou não, então, procurei ir tirando dela de eu dar banho, justamente para não ter questão de falatório".

Nesse sentido, Elias entende ser mais fácil para o homem cuidar de um menino: "Um menino para um homem eu acho que deve ser mais fácil". Enquanto a menina: "A menina tu tem que aprender um pouco mais, pra nós homens é mais difícil". Todavia, Elias reconhece que dificuldades existem tanto para os pais quanto para as mães: "Dificuldades até as mães têm, e difícil é para todo mundo e até mesmo quando estão juntos". Mas destaca a relevância do reconhecimento social da capacidade paterna de criar filhos: "Enxergar mais o lado dos pais. Deveria ser mais aberto com essa questão, porque é injusto. Se uma mãe pode ser mãe solteira, por que um pai não pode ser pai solteiro?".

Caso 4: Marcelo

Marcelo e Valéria namoraram por quatro anos. Deste relacionamento nasceu Jonas, com 7 anos no momento da pesquisa. Quando Jonas estava com 1 ano e 7 meses de idade, a sua mãe faleceu. Desde então, Marcelo assumiu sozinho os cuidados integrais do filho. No mesmo ano, a mãe de Marcelo também faleceu. No momento da coleta de dados, a família da mãe de Jonas morava em outro estado e visitava o menino duas vezes por ano, durante o período de férias escolares. Pai e filho residiam em um apartamento na área central da cidade e tinham uma vida socialmente ativa.

Funções parentais: um olhar dinâmico aos processos proximais

Marcelo trabalhava seis dias por mês, durante 24 horas, ou seja, nestes dias permanecia durante um dia inteiro longe de casa. Nessas situações, a família se organizava de modo que Jonas passava o dia na escola e a noite na casa da babá, onde ele ficava até o dia seguinte. Nos demais dias do mês, o pai relatou estar em casa e atender sozinho às demandas do filho e da casa: "Nos outros dias, eu estou todos os dias em casa, eu passo muito tempo com ele".

A rotina da família de Marcelo, a partir da dimensão dos cuidados físicos, era a seguinte: "A gente acorda, toma café, ele toma mama, olha desenho. Eu faço as coisas de casa, a gente faz alguma atividade, brinca um pouco, isso vai até quase meio dia. Depois, busco a comida". Em seguida Marcelo deixava seu filho na escola, e ocupava o turno da tarde para se dedicar às atividades da sua vida pessoal, como mestrado, afazeres do trabalho e prática de esportes. À noite, Marcelo era o responsável pela janta, "Sempre 22h, 22h30, nós vamos deitar. Aí ele vai deitar, eu faço massagem, conto uma história, converso alguma coisa".

A respeito do estabelecimento de uma disciplina, no dia a dia, Marcelo costumava fazer negociações com o filho, como por exemplo, a solicitação de que o menino apresentasse bom comportamento na escola para ganhar um brinquedo: "Ele sabe que coisas boas geram coisas boas, e coisas ruins geram coisas ruins, é a formação de caráter". Com relação às obrigações sociais a respeito do filho e à escola, Marcelo declarou que: "As atividades da escola, todas tento cumprir. Atividades que propõem para eu e ele fazer, sempre faço. Alguma atividade que tenha com a turma, viagem, passeio. Sempre estou presente nas coisas".

"Eles vieram no mundo e mudou a minha vida": a experiência da paternidade

Apesar da chegada inesperada de Jonas na vida do casal, Marcelo relatou ter renascido com o nascimento do filho: "Minha vida mudou, eu amadureci". Frente ao pedido de expressar o que é ser pai, Marcelo relatou se tratar de algo que: "É um sentimento que não tem explicação, eu nunca tinha sentido isso na minha vida, eu amo ele incondicionalmente, eu faria tudo pelo meu filho".

O falecimento de Valéria foi um marco muito significativo na vida da família, em especial, na de Marcelo. Naquele momento de vida, Marcelo estudava e trabalhava e descreveu que: "Primeiro mês eu me vi um zumbi. Eu tinha que trabalhar, tinha que estudar, e a faculdade era integral, mais o Jonas, mais tudo o que tinha por trás. E era uma experiência nova, de eu ter que fazer tudo sozinho".

De modo reflexivo, Marcelo expôs que, por vezes, se sentia sozinho, devido à inexistência de uma rede de apoio familiar: "É ruim ser sozinho. É tão bom a gente ter alguém com quem possa contar, principalmente da família", mas tem no filho a sua fonte de "energia": "Eu fico triste, com certeza, mas no dia a dia eu não consigo ficar, quando ele [Jonas] está junto comigo ele não me dá tempo pra isso. [...] São coisas da vida, que a gente tem que conseguir superar e lidar, mas está aí a minha fonte de energia".

Modelos de paternidade

Marcelo afirmou não ter estabelecido uma relação próxima com o seu pai, pois "Meu pai foi embora quando eu tinha cinco anos, e eu não tenho muito contato com ele. Ele mora em outra cidade, me dou bem com ele, mas não é aquele vínculo paterno". Ao refletir sobre suas referências de pai, ele declarou que: "Minha mãe foi pai e mãe, assim como eu sou para o Jonas".

No exercício da paternidade, Marcelo se espelha em experiências de paternidade de outras pessoas, "A gente sempre pega as experiências, eu sou uma pessoa que eu escuto muito as outras pessoas falarem", principalmente seus amigos e colegas de trabalho: "Tem uns colegas lá que eu admiro pela vivência, como eles lidam, e as vezes eu pego uma experiência boa de um pai que faz uma coisa".

A paternidade em famílias monoparentais: o pai inserido na cultura do macrossistema

Marcelo considerava a mãe de Jonas, já falecida, de maneira positiva e acreditava que o filho se desenvolveria melhor se tivesse a mãe e o pai presentes: "Criança que é criada pelo pai e pela mãe se desenvolve melhor, a parte afetiva, a parte carinhosa", uma vez que "Ela ia amar ele da forma dela". Nesse sentido, no dia a dia como pai, Marcelo percebia dificuldades em relação à educação de Jonas devido ao fato de que: "Como é só eu e ele, eu pego e vou lá e ponho de castigo, mas daqui a pouco tem que ir lá eu tirar ele do castigo. Não tem o pai e a mãe, onde um é mais autoritário".

A família de Marcelo era acolhida socialmente, recebendo apoio das pessoas com quem o pai compartilhava a sua história: "Todo mundo que conto a minha história ficam surpresos primeiramente, mas todo mundo gosta, todo mundo me trata bem". Contudo, Marcelo entende que não são todos os homens que assumem a responsabilidade da paternidade e buscou explicações para isso: "Não sei se isso é um pouco cultural, se isso é um pouco instintivo, tem um pouco de cada coisa e até por parte de criação", e reflete que: "Ainda tem muito essa cultura de que é só a mulher que fica em casa pra cuidar dos filhos. Mas isso tem mudado bastante. Essas tarefas de casa, de criança era tudo com a mulher, hoje em dia tem um cenário bem diferente"

 

Discussão

Ao analisar o relato dos quatro pais que participaram do estudo, percebe-se que eles se apresentavam distantes da paternidade tradicional. Através do engajamento com a paternidade, numa base regular em períodos longos de tempo, os pais desempenham importante função nos processos que envolvem a interação face a face com os filhos - os processos proximais (Bronfenbrenner, 2005). Os pais dedicavam-se aos cuidados físicos dos filhos e às atividades domésticas de limpeza da casa, lavagem de roupas e preparação dos alimentos. Também, estes se preocupavam em passar para as crianças valores, regras e limites e garantir o desenvolvimento pessoal e social dos filhos, o que incluía como função paterna a participação ativa na educação e na vida escolar dos filhos.

Cabe ressaltar que os cuidados físicos dos filhos e os serviços domésticos são percebidos socialmente como uma habilidade feminina (Badinter, 1985; Staudt, & Wagner, 2008). No entanto, em especial nas famílias monoparentais masculinas, os homens se ocupam efetivamente de cuidados básicos e da educação moral e afetiva dos filhos, bem como dos afazeres domésticos (Ried, & Pereira, 2012; Grzybowski, & Wagner, 2010). Quando a mãe deixa em aberto o espaço que ocupava, esses pais são impulsionados a ampliares as atividades parentais que desempenhariam se o cônjuge estivesse presente (Grzybowski, & Wagner, 2010).

Em especial na família de César e Pedro, os filhos procuravam ajudar os pais em situações do cotidiano familiar, o que lhes atribui uma caracterização de famílias solidárias (Souza, 2008), por reduzir o acúmulo de tarefas para o pai e oportunizar um ambiente colaborativo na família. Conforme Koulouglioti, Cole e Moskow (2011), no contexto das famílias monoparentais, as crianças assumem mais responsabilidade do que nas famílias biparentais, sendo que, quanto mais velha a criança, é mais provável que ela ajude em casa.

Quanto à experiência da paternidade, todos os pais mostraram recursos emocionais e habilidades para o exercício ativo da paternidade, ainda que, nos casos dois e três, a ausência de recursos sociais e materiais, se fizesse presente a partir da condição de vulnerabilidade. Neste contexto, a disponibilidade dos pais para se sentirem responsivos às necessidades emocionais de seus filhos, também pode ser perturbada pelo seu nível de estresse decorrente das dificuldades existentes no ambiente. No entanto, independente do estímulo recebido, os quatro pais demonstraram características de motivação e persistência que envolvem a disposição de envolver-se e persistir em atividades cada vez mais complexas (força).

Em especial no discurso de Pedro e Elias, o sentimento de responsabilidade sobre a criança repercutiu em uma mudança de comportamento, inclusive, no abandono de alguns hábitos negativos (como o consumo de álcool). Borisenko (2007) também observou que o nascimento de uma criança está associado a uma maior satisfação com a vida, mais autocontrole e maior inclinação a respeitar as normas sociais e regras de comportamento. Ao remontar o processo que culminou na monoparentalidade, os pais deixaram explícito o desejo de ter a guarda dos filhos, a sensação de completude ao ter os filhos consigo e o desejo de garantir a proteção e melhor qualidade de vida aos filhos. Todavia, em alguns momentos reconheceram a sobrecarga de tarefas ao assumirem, de modo unilateral, os cuidados com os filhos e com o lar e participar de várias atividades das crianças. Nesse contexto, a análise do elemento tempo mostra-se fundamental ao se considerar as mudanças que ocorrem no homem-pai, bem como em relação com ambiente e à relação dinâmica entre esses dois processos (Bronfenbrenner, & Morris, 1998).

Outro aspecto que perpassa o elemento tempo e também a paternidade diz respeito à reflexão acerca dos modelos paternos. O ressentimento de homens adultos da falta de um pai mais próximo na infância pressupõe a necessidade de uma outra referência paterna, mais correspondente a um modelo afetivo de masculinidade (Kindlon, & Thompson, 2000). Em todos os casos estudados, o vínculo dos pais com seus próprios pais foi caracterizado pela fragilidade, pelo distanciamento e pela negatividade, o que levou a que desconsiderassem essa figura como referência de como ser pai.

Outrossim, no entendimento da Abordagem Ecológica do Desenvolvimento Humano, o valor que a cultura do macrossistema dá ao fato da mulher assumir os cuidados com a educação e a higiene dos filhos, reverbera no microssistema familiar. Quando, por necessidade, os pais, como no caso da família de Elias, precisavam realizar cuidados rotulados socialmente como algo que compete às mulheres, como dar banho, percebiam que o estigma atribuído ao gênero ainda permanece. Embora não explicitado, havia a questão da sexualidade como um risco velado que o masculino oferece quando não há presença da figura feminina (Bustamante, & Trad, 2005).

A literatura indica que o gênero da criança envolve diferenças importantes nos modos de cuidado. A menina necessita de mais cuidados corporais que o menino, na higiene e na arrumação (Bustamante, & Trad, 2005). Tal colocação coincide com a expectativa dos pais participantes de que as mulheres têm maior proximidade com a menina e que o homem tenha maior participação em alguns aspectos da vida do menino. Nesse sentido, César relatou não se perceber como a pessoa mais adequada para conversar com as filhas sobre sexualidade, apesar de identificar essa necessidade, quando buscou o apoio da namorada.

Todavia, ser pai e ser mãe é uma experiência que ultrapassa as barreiras do biológico e adquire uma condição de experiência psicológica e social. Concepção que reforça que esses novos modelos de pai, possam ser considerados tão capazes quanto as mães, para o desenvolvimento da prole. No âmbito do Direito de Família, ainda se faz necessário um "convencimento" para que o pai seja reconhecido e inseridos nos acordos que envolvem relações parentais (Arpini, Cúnico, & Alves, 2016), já concepções tradicionais arraigadas no imaginário social perpassam a atuação de profissionais do direito. Nesse sentido que Pedro e Elias relataram ser temerosos ao se deparar com o sistema judiciário, no tocante à busca pela guarda dos filhos e travar um embate com o judiciário e com a sociedade para validar o seu direito de expressar a paternidade.

 

Considerações finais

Ao focalizar a monoparentalidade masculina e sua inter-relação com aspectos do modelo PPCT, proposto por Bronfenbrenner, percebe-se o quanto o contexto sociocultural e econômico em que a família vive, repercute na forma como se constitui os laços parentais, já que, entende-se que as relações familiares são balizadas pelas normas instituídas no social, e que estão, reciprocamente, conectadas com a constituição do sujeito. No mais, os pais estudados apresentaram propósitos comportamentais que os moveram em direção aos processos proximais. Apesar de, por vezes, serem desencorajados socialmente, apresentam disposição, ou seja, a capacidade de engajar-se e persistir em atividades de progressiva complexidade em relação os filhos. Nesse sentido, ao buscar-se uma compreensão acerca das famílias monoparentais, almeja-se contribuir para com aqueles que requerem maior visibilidade, reconhecimento e respeito. Desse modo, sugere-se que novas pesquisas acompanhem longitudinalmente o desenvolvimento dessas famílias e propiciem a participação das crianças e de outras pessoas significativas que compõem as relações familiares e sociais.

 

Referências

Anderson, C. M. (2016). A diversidade, pontos fortes e desafios das famílias monoparentais. In F. Walsh (Org.), Processos normativos da família: Diversidade e complexidade (pp.128-145). Porto Alegre: Artmed.         [ Links ]

Arpini, D. M., Cúnico, S. D., & Alves, A. P. (2016). Paternidade: O ponto de vista de profissionais que atuam em varas de família. Pensando Famílias, 20(1), 29-42.         [ Links ]

Badinter, E. (1985). Um amor conquistado: O mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.         [ Links ]

Bardin, L. (2010). Análise de conteúdo. Lisboa: Ed. 70.         [ Links ]

Borisenko, J. (2007). Fatherhood as a personality development factor in men. Spanish Journal of Psychology, 10(1), 82-90. https://doi.org/10.1017/S1138741600006338 ·         [ Links ]

Bronfenbrenner, U. (2005). Making human beings human: Bioecological perspectives on human development. California: Sage.         [ Links ]

Bronfenbrenner, U., & Morris, P. (1998). The ecology of developmental processes. In: W. Damon, (Orgs.), Handbook of child psychology (pp. 993-1028). New York: John Wiley & Sons.         [ Links ]

Bueno, R. K., Vieira, M. L., Crepaldi, M. A., & Schneider, D. R. (2015). Considerações epistemológicas da perspectiva bioecológica do desenvolvimento humano sobre o envolvimento paterno. Psicologia em Revista, 21(3), 599-620. https://doi.org/10.5752/P.1678-9523.2015v21n3p599        [ Links ]

Bustamante, V., & Trad. L. A. B. (2005). Participação paterno no cuidado de crianças pequenas: Um estudo etnográfico com famílias de camadas populares. Cadernos de Saúde Pública, 21(6), 1865-1874. https://doi.org/10.1590/S0102-311X2005000600036        [ Links ]

Grzybowski, L. S., & Wagner, A. (2010). O envolvimento parental após a separação/divórcio. Psicologia: Reflexão e Crítica, 23(2), 289-298. https://doi.org/10.1590/S0102-79722010000200011.         [ Links ]

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE. (2015). Estatísticas do registro civil. Rio de Janeiro: o autor.         [ Links ]

Joly, M. (2008). Introdução à análise da imagem (12a ed.). Campinas: Papirus.         [ Links ]

Kindlon, D., & Thompson, M. (2000). Raising cain: Protecting the emotional life of boys. London: Penguin.         [ Links ]

Koulouglioti, C., Cole, R., & Moskow, M. (2011). Single mothers' views of young children's everyday routines: A focus group study. Journal of Community Health Nursing, 28(3), 144-155. https://doi.org/10.1080/07370016.2011.589236        [ Links ]

Minayo, M. C. S. (2012). Análise qualitativa: Teoria, passos e fidedignidade. Ciência & Saúde Coletiva, 17(3), 621-626. https://doi.org/10.1590/S1413-81232012000300007        [ Links ]

Neiva-Silva, L., Alves, P. B., & Koller, S. H. (2004). A análise da dimensão "Tempo" no desenvolvimento de crianças e adolescentes em situação de rua. In S. H. Koller (Org.), Ecologia no desenvolvimento humano (pp.143-165). São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Ried, J., & Pereira, A. C. (2012). Família monoparental masculina: O cotidiano e suas vicissitudes. Nova Perspectiva Sistêmica, 21(44), 81-94.         [ Links ]

Souza, A. P. (2008). Estudo comparativo das famílias monoparentais masculinas x monoparentais femininas: A influência do genitor no desenvolvimento familiar. Dissertação de mestrado, Universidade Estadual de São Paulo, Franca, SP.         [ Links ]

Staudt, A. C. P., & Wagner, A. (2008). Paternidade em tempos de mudança. Psicologia: Teoria e Prática, 10(I), 174-185.         [ Links ]

Stake, R. E. (1994). Case studies. In N. K. Denzin, & Y. S. Lincoln (Orgs.), Handbook of qualitative research. Londres: Sage.         [ Links ]

Tudge, J., & Frizzo, G.F. (2002). Classificação baseada em Hollingshead do nível socioeconômico das famílias do Estudo Longitudinal de Porto Alegre: Da Gestação à Escola. Porto Alegre. Instituto de Psicologia. Manuscrito não publicado.         [ Links ]

Vasconcellos, M. J. E. (2018) Pensamento sistêmico: O novo paradigma da ciência (11a ed.). Campinas: Papirus.         [ Links ]

Walker, J., Crawford, K., & Taylor, F. (2008). Listening to children: Gaining a perspective of the experiences of poverty and social exclusion from children and young people single-parent families. Health & Social Care Community, 16(4), 429-436. https://doi.org/10.1111/j.1365-2524.2008.00781.x        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Angela Roos Campeol
angela.r.campeol@gmail.com

Caroline Rubin Rossato Pereira
carolinerrp@gmail.com

Submetido em: 17/09/2019
Revisto em: 28/02/2020
Aceito em: 05/03/2020

 

 

1 Os nomes dos participantes foram substituídos por nomes fictícios a fim de preservar suas identidades.
2 De acordo com as dimensões da parentalidade, proposto por Hoghughi (2004), os cuidados físicos são traduzidos na garantia de alimentos, proteção, vestuário, higiene, precaução de acidentes ou de doenças, assim como a tomada de ações rápidas para uma resolução eficaz das situações.
3 Denominação coloquial para dinheiro no Rio Grande do Sul, Santa Catarina e no Paraná.

Creative Commons License All the contents of this journal, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution License