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Pesquisas e Práticas Psicossociais

 ISSN 1809-8908

     

 

ARTIGOS

 

Arte e saúde mental: uma experiência com a metodologia participativa da Educação Popular

 

Art and mental health: an experience with the participatory methodology of Popular Education

 

Arte y salud mental: una experiencia con la metodología participativa de la Educación Popular

 

 

Lucélia de Almeida AndradeI; Thelma Maria GrisiVelôsoII

IGraduada em Psicologia pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Mestranda em Psicologia da Saúde pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Saúde da Universidade Estadual da Paraíba (PPGPS/UEPB). Psicóloga no Centro de Referência de Assistência Social - CRAS Urbano, Casinhas/PE. E-mail: almeidaandrade.luca@gmail.com
IIPsicóloga. Professora do Departamento de Psicologia da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Professora do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Saúde da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). E-mail: thelma.veloso@ig.com.br

 

 


RESUMO

Neste artigo, objetivamos relatar uma experiência de estágio desenvolvida em um Centro de Atenção Psicossocial da cidade de Campina Grande-PB. Recorremos aos pressupostos teóricos e metodológicos da Psicologia Social Comunitária, em diálogo com a metodologia participativa da Educação Popular e com os princípios norteadores da Reforma Psiquiátrica brasileira. Dentre as atividades de estágio, destacamos a facilitação de oficinas em um grupo de usuários. Por meio da utilização do método do Teatro do Oprimido e de diversas linguagens artísticas, incluindo os recursos audiovisuais, foi produzido, com a participação dos usuários em todo o processo, um documentário sobre suas histórias de vida, enfocando locais e tipos de tratamento a que foram submetidos, assim como projetos de futuro. Essa prática promoveu saúde e estimulou a autonomia e o protagonismo social dos usuários, que assumiram um lugar de criação.

Palavras-chave: Reforma Psiquiátrica; Psicologia Social Comunitária; Educação Popular; Linguagem Audiovisual.


ABSTRACT

In this article, we aim at reporting an experience of internship developed into a Center for Psychosocial Care in the city of Campina Grande, Paraíba State. We used the theoretical and methodological approaches of Community Social Psychology, together with the participatory methodology of Popular Education and also with the guiding principles of the Brazilian Psychiatric Reform. Among the activities of the internship we would like to emphasize the facilitation of workshops for a group of users. The method of the Theater of the Oppressed and other artistic languages were used, and visual aids resources were produced with the participation of the users throughout the process, a documentary about their life histories, focusing on places and types of treatment they had undergone, as well as their future projects. This practice promoted health, stimulated the autonomy and social leadership of users who assumed the role of creative producers of creation.

Keywords: Psychiatric Reform; Community Social Psychology; Popular Education; Visual-audio Language.


RESUMEN

En ese artículo, objetivamos relatar una experiencia de práctica desarrollada en un Centro de Atención Psicosocial de la ciudad de Campina Grande-PB. Recurrrimos a los presupuestos teóricos y metodológicos de la Psicología Social Comunitaria, en diálogo con la metodología participativa de la Educación Popular y con los principios norteadores de la Reforma Psiquiátrica brasileña. Entre las actividades de práctica, destacamos la facilitación de oficinas en un grupo de usuarios. A través de la utilización del método del Teatro del Oprimido y de diversos lenguajes artísticos, incluyendo los recursos audiovisuales, fue producido, con la participación de los usuarios en todo proceso, un documentario acerca de sus historias de vida, enfocando locales y tipos de tratamiento a que fueron sometidos, así como proyectos de futuro. Dicha práctica promovió salud, estimuló la autonomía y el protagonismo social de los usuarios, que asumieron un lugar de creación.

Palabras-llave: Reforma Psiquiátrica. Psicología Social Comunitaria. Educación Popular. Lenguaje audiovisual.


 

 

Não cabe temer ou esperar, mas buscar novas armas.

(Gilles Deleuze)

 

Introdução

A Reforma Psiquiátrica brasileira, implementada como política pública a partir da promulgação da Lei nº 10.216/2001, possibilitou a reestruturação da assistência psiquiátrica no Brasil e criou novos dispositivos de atenção à saúde mental, os chamados serviços substitutivos (Brito, Dimenstein, Severo, Cabral &Alverga 2009), que atuam numa perspectiva integralizadora que envolve o exercício da cidadania e a integração do usuário na comunidade. A atuação nos serviços substitutivos, dentre os quais destacamos o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), está fundamentada numa lógica contrária ao modelo manicomial.

Nessa perspectiva, o profissional é convidado a pensar e a repensar sua prática e construir novas estratégias para habilitar os usuários (Venturini, 2010), criando alternativas de intervenção que promovam ações terapêuticas que resgatem a cidadania e a autonomia dos sujeitos submetidos a fortes processos de cronificação dentro de instituições psiquiátricas.

A Reforma Psiquiátrica configura-se como um processo permanente de construção, de reflexões e de transformações que ocorrem em diferentes campos: teórico-conceitual; técnico-assistencial; político-jurídico e sociocultural (Amarante, 1995). Esse contexto demanda a participação de usuários, familiares, trabalhadores de saúde e da comunidade. No processo de desconstrução do aparato manicomial, a participação é um espaço de construção coletiva do protagonismo, pois requer o deslocamento de um lugar de passividade, marcado pela dominação e pela tutela, para a "constituição de um sujeito político, que debate o tratamento e sua instituição, conhece seus direitos, participa e interfere no campo político" (Rodrigues, Carvalho & Ximenes 2011, p. 745).

Neste artigo, relatamos uma experiência de estágio em Psicologia Social Comunitária, desenvolvida com um grupo de usuários de um Centro de Atenção Psicossocial, localizado na cidade de Campina Grande-PB. O principal objetivo desse estágio foi de estimular a autonomia social e a reflexão crítica dos usuários, privilegiando o seu protagonismo por meio da promoção de atividades que valorizassem suas potencialidades e incentivassem sua participação mais ativa e criativa. Assim, foram promovidos espaços de escuta e de problematização da realidade para se produzirem "novos modos de subjetivação, pressupondo práticas de cuidado diversas das predominantes do modelo asilar" (Dimenstein, 2009, p. 19). Essa proposta teve como referencial teórico-metodológico a Psicologia Social Comunitária em diálogo com a Educação Popular.

A consolidação da proposta da Psicologia Social Comunitária, como espaço teórico e prático, remete-nos à década de 1980. Conforme Freitas (1996), essa perspectiva, fundamentada teoricamente na Psicologia Social, prioriza o trabalho com grupos e o fomento ao desenvolvimento de uma consciência crítica e identidade social e individual, guiando-se por preceitos "eticamente humanos" (p. 73). No que se refere à intervenção, objetiva promover mudanças na estrutura de uma comunidade e reconhecer o papel ativo dos grupos sociais (Álvaro & Garrido, 2006). Privilegia-se a construção de saberes a partir da interação entre o psicólogo e as pessoas da comunidade (Montero, 2004, citado por Ansara& Dantas, 2010; Campos, 1996; Ximenes, Paula & Barros, 2009). Portanto, a atuação desse profissional deve estar pautada na facilitação de um processo em que, por meio de metodologias participativas, são levantadas temáticas para discussão para que os sujeitos possam refletir sobre seus problemas e interesses e articulá-los às questões da própria comunidade.

São consideradas metodologias participativas as ferramentas que possibilitam o diálogo, a criação de espaços para troca de ideias, a construção coletiva do conhecimento e a mobilização política. Nesse sentido, os princípios teóricos e metodológicos da Educação Popular constituem uma via que potencializa as condições de participação e amplia "o deslocamento do campo pessoal para o político e do local para o histórico e para o cultural" (Melo Neto, s/d, p. 3).

Diante disso, cabe ressaltar a contribuição da Educação Popular para o desenvolvimento das práticas de psicologia em comunidade, no tocante ao fomento de formas coletivas de aprendizado, promovendo o desenvolvimento da capacidade de análise crítica sobre a realidade e o aperfeiçoamento das estratégias de luta e de enfrentamento (Góis, 2005; Vasconcelos, 2004).

Assim, a proposta de estágio desenvolvida no CAPS respeitou os seguintes princípios: o da Reforma Psiquiátrica, que defende que se centre o foco na condição humana, social, política e cultural da pessoa em sofrimento psíquico; o da Psicologia Social e Comunitária e o da Educação Popular, que defendem o exercício da autonomia e da criatividade dos grupos sociais e compreendem o homem como ser ativo, dotado de sua história e capaz de fazer transformações por meio da participação. Essa última é compreendida, aqui, como um ato interativo entre diversos atores sociais, que envolve a construção coletiva de conhecimento e intervenção em uma realidade, por intermédio do processo de reflexão-ação. Essa concepção acerca da participação constitui os princípios norteadores da Educação Popular e a referência como metodologia participativa (Melo Neto, s/d).

A seguir, faremos um relato sobre a experiência de estágio desenvolvida na referida instituição com o objetivo de refletir sobre as contribuições da articulação entre Arte, Saúde Mental e Educação Popular no contexto da Reforma Psiquiátrica.

 

Roteiro metodológico: no caminho da participação

Durante o período de estágio, entre outras atividades realizadas, facilitamos oficinas em um grupo formado por usuários, do qual participavam usuários adultos, de ambos os sexos, residentes em Campina Grande-PB. Alguns começaram a frequentar o CAPS desde sua inauguração, enquanto outros iniciaram o tratamento na instituição há menos tempo. Tratava-se, portanto, de um grupo aberto, que contou com a participação de quatro a dez usuários em cada encontro, que ocorriam semanalmente. Nessas oficinas, recorremos ao Teatro do Oprimido (TO) e à utilização de diversas linguagens artísticas, incluindo os recursos audiovisuais, uma linguagem que compreende a conexão de elementos de natureza sonora e visual, portanto, a artefatos culturais que atingem, simultaneamente, a visão e a audição (Brasil, 2006).

As oficinas foram planejadas segundo as orientações metodológicas da Arteterapia, que propõe a divisão das oficinas em quatro momentos, quais sejam: sensibilização, expressão livre, transposição da linguagem não verbal para a verbal e avaliação (Alessandrini, 2004). É válido ressaltar que todas as oficinas foram iniciadas com relaxamento, ao som de uma música, para estimular, principalmente, a concentração, por meio de exercícios de respiração e alongamento. Outro momento importante foi o "Círculo deEnergia", utilizadono encerramento de todas as oficinas, com o objetivo de concluí-las e avaliá-las. Além disso, serviu como estratégia para fortalecer o compromisso do grupo com as atividades que seriam realizadas nas oficinas posteriores.

No que se refere ao Teatro do Oprimido, trata-se de um método teatral, cujo objetivo desenvolver, em todos os participantes, melhores formas de se expressar, visando à sua transformação pessoal, política e social. Referindo-se ao TO, Boal (2008a) diz que uma nova linguagem oferece uma nova forma de conhecer a realidade e de transmitir esse conhecimento para os demais. Considerando, então, que o teatro é uma forma de linguagem por excelência, o método possibilita o ensaio da vida real (Boal, 2008b).

Quanto ao recurso audiovisual, buscamos estabelecer um diálogo com essa linguagem, pois os filmes, como veículos de comunicação e forma de expressão, têm uma força social que "não pode ser negligenciada nem subestimada", porque são "produtores de repertório de imagens, vocabulário, gostos, consumos e de memórias" (Zanini& Weber, 2010, p. 89).

Conforme Carvalho e Santos (2011), na contemporaneidade, esse tipo de artefato tem se constituído como um importante espaço de produção de conhecimento e como forma de expressão e criação. Mas há outra face do meio audiovisual que merece destaque. Fazemos referência às produções que utilizam a linguagem audiovisual e a apropriação técnica desse recurso como um instrumento na luta por reconhecimento social e fortalecimento de grupos historicamente excluídos e frequentemente estigmatizados.

Nesse sentido, não podemos pensar o audiovisual como um meio para atingir determinado objetivo, mas como algo que diz respeito ao conhecimento das nossas próprias potencialidades e como possibilidade de que os sujeitos envolvidos ocupem outros lugares além de espectadores, porquanto isso estimula o protagonismo social por meio da reinvenção de um saber-fazer (Andrade, 2013). Nessa perspectiva, há uma valorização de todo o processo de produção, cuja sequência final propicia o acesso, a valorização e a publicização de discursos relegados à invisibilidade e ao silêncio.

 

Documentando histórias: relato da experiência

No período entre agosto de 2011 e fevereiro de 2012, foi-se delineando a proposta de produção de um filme com a participação dos usuários. No período de duração desse estágio, foram realizadas trinta oficinas - dezesseis delas realizadas no primeiro semestre de 2012, doze das quais foram dedicadas ao projeto de produção audiovisual, uma ideia da estagiária desenvolvida com a participação do grupo. Depois de algumas discussões com o grupo, ficou decidido que o argumento seria a história de vida de cada usuário, com enfoque nos locais e nos tipos de tratamento a que foram submetidos, bem como sobre os projetos de futuro desses sujeitos. Em todo o processo de construção do filme, procuramos estimular a criatividade, a autonomia e o senso crítico do grupo, com as atividades que ocorriam nas oficinas. Portanto, era valorizada a participação do grupo em todas as etapas da construção do produto audiovisual, objetivando estimular o protagonismo social, uma vez que os usuários assumiram um lugar de investigação e participação (Brandão, 2001). Essa experiência foi desenvolvida com base nas potencialidades de cada usuário e respeitando o poder criador e criativo de cada um deles.

Vale salientar que, no decorrer desse estágio, a palavra "arte" não foi utilizada no sentido "mundializado", mas como "forma de designação para aquilo que o louco expressa em seus trabalhos na oficina", seguindo uma linha diferente daquela à qual "estamos conectados cultural e mercadologicamente" (Ávila & Fonseca, 2007, p. 117).

Inicialmente, foram necessárias duas oficinas, que foram facilitadas com o objetivo de apresentar a proposta e problematizar os encaminhamentos necessários para a produção de um filme, a organização e o planejamento para essa empreitada e o compromisso que o grupo precisava assumir para concretizar o projeto. Assim como o cinema, essa proposta se inicia com a fotografia. A partir da confecção de um porta-retratos em forma de móbile - utilizado para colocar uma foto dos participantes do grupo -, estabelecemos com os usuários, em um encontro mútuo e dialógico, uma conexão entre essas duas formas de arte. Nesse momento, destaca-se a relevância de estimular espaços de diálogo para ampliar as possibilidades de compreender as temáticas em discussão, como uma via de interação em que o silêncio sai de cena para dar lugar à voz, num processo de construção compartilhada de saberes (Ansara& Dantas, 2010; Carvalho, Acioli &Stoz, 2001; Oliveira, Ximenes, Coelho & Silva, 2008; Vasconcelos, 2004).

Em seguida, iniciamos a fase de discussão e de aperfeiçoamento da ideia. Para isso, foram facilitadas três oficinas para fomentar uma discussão sobre gêneros cinematográficos e construir, com o grupo, subsídios para embasar a escolha do tipo de filme que desejava produzir. Na primeira dessas oficinas, retomamos a conexão entre fotografia e cinema e proporcionamos a troca de saberes numa perspectiva dialógica. Depois, iniciamos uma roda de discussão sobre gêneros cinematográficos, que desaguou no que é necessário para produzir um filme.

As duas oficinas seguintes foram realizadas com base na proposta de um usuário. Então, foram exibidos dois filmes, um em cada oficina, ficcional e documentário, ambos de curta duração, com o intuito de dar subsídios para a escolha do gênero a ser produzido pelo grupo e definir o argumento, ou seja, a ideia geral do filme. Após a exibição, era facilitado um espaço em que os usuários pudessem discutir sobre suas impressões acerca do filme.

A partir daí, ficou decidido que faríamos um documentário "ilustrado" com cenas fictícias, cujos atores seriam os próprios usuários. Houve dois encontros para discutirmos sobre quais histórias seriam contadas no filme. O processo culminou com a escolha das histórias de vida deles, com enfoque nos processos de internação em hospitais psiquiátricos e projetos de futuro. Assim, a partir da própria realidade, os usuários podiam inventar novos modos de estar no mundo, criando "possibilidades para escapar do intolerável ou de tudo aquilo que os tem desapossado desse mundo" (Machado & Lavrador, 2007, p. 95).

Em seguida, discutimos sobre as histórias que seriam contadas e sobre os aspectos operacionais relativos à produção do documentário. Com a participação de todos os usuários, houve sugestões sobre o figurino, o cenário, o tempo de duração dos depoimentos e as histórias a serem contadas. Outra oficina foi dedicada à gravação dos depoimentos, com o auxílio de estudantes do Curso de Arte e Mídia. Nessa oficina, os usuários mostraram muita naturalidade diante da câmera, portanto, não foi preciso insistir em nenhum momento. Chamou-nos a atenção o fato de um dos usuários, cujo corpo era bastante marcado pela cronificação e que, geralmente, precisava de um estímulo maior para falar, levantar-se espontaneamente e contar sua história. Ele posicionou-se diante da câmera e contou-nos um tanto de suas memórias, apropriando-se desse instrumento como sujeito de direito à voz e à visibilidade.

Depois dessa fase, foi facilitada uma oficina com o intuito de definir, com os usuários e a partir da discussão do conteúdo dos depoimentos registrados, as cenas ficcionais que seriam gravadas. Um dos usuários lançou a proposta de construir um personagem que estaria rondando os usuários, inicialmente, chamado de "Doença". Essa proposição deu margem a uma discussão cujo resultado levou à mudança desse nome e o personagem passou a ser chamado de "Sofrimento".

Houve um planejamento conjunto sobre o cenário e o figurino e tudo o que seria necessário para confeccioná-lo. O encontro posterior teve como objetivo filmar essas cenas. Para estimular a interpretação e a descontração, antes de gravar, recorremos à facilitação do exercício de TO "Quantos 'as' existem em um 'a'". Assim, em círculo, sucessivamente, cada usuário foi até o centro e exprimiu uma emoção ou ideia, usando um dos muitos sons da letra a, com todas as inflexões ou gestos com que foi capaz de se expressar (Boal, 2008b, p. 141).

Foram realizadas, ainda, duas oficinas. Uma para escolher o nome do documentário, e a outra para planejar a divulgação. Na primeira, exibimos as primeiras cenas editadas, com o objetivo de avaliar, com os usuários, a produção e facilitar um momento em que eles pudessem propor modificações e garantir sua participação no processo de edição. Depois de muita discussão, chegamos a um acordo em relação ao título: "Um sonho de liberdade". Sobre a divulgação, foi decidido, com os usuários, que a confecção e a afixação de cartazes seriam feitas em locais estratégicos do próprio CAPS e "boca a boca".

Na última oficina desse período, exibimos o documentário com os participantes do grupo para técnicos e usuários do CAPS. Depois da exibição, facilitamos um espaço de discussão, em que os usuários foram os grandes protagonistas. Eles responderam às perguntas, foram elogiados e falaram como foi produzir um filme e participar como atores e autores do processo. Esse momento foi importante, visto que percebemos que eles precisavam falar, também, sobre seus projetos de vida. Se, de um lado, a loucura é dor e sofrimento, de outro, é potência e criação (Sander, 2010).

 

Algumas reflexões teóricas

Trabalhar com o tema "loucura" incide numa série de desconstruções sociais a serem feitas, uma vez que estamos mais acostumados a tratar a questão tendo como foco a doença, e não, a "existência-sofrimento" desses sujeitos (Brito et al., 2009).

Conforme Vasconcelos (2004), a metodologia da Educação Popular em Saúde amplia estratégias de participação da população na compreensão das diversas dimensões da vida social implicadas no processo de adoecimento e de cura, criando condições para que os sujeitos se apropriem de sua saúde. Assim, é um terreno fértil para práticas que possibilitem às pessoas em sofrimento psíquico assumirem o lugar de sujeitos de seu processo de tratamento e protagonistas de sua história.

A Educação Popular pressupõe um exercício coletivo de valorização das experiências e da capacidade criativa de cada pessoa e reconhece que os sujeitos são construtores de seus conhecimentos e que essas construções partem, necessariamente, de suas vidas e da realidade em que estão inseridos, produzindo transformações e, consequentemente, a própria história (Freire; 1999; Vasconcelos, 2004).

De acordo com Rodrigues et al. (2011), as práticas em Saúde Mental precisam estar pautadas na ideia de que a participação das pessoas é uma importante ferramenta de expressão dos segmentos excluídos da sociedade, que dá voz aos anseios daqueles que, durante muito tempo, não tiveram lugar nela. A Educação Popular em Saúde assume o compromisso com o desenvolvimento da reflexão crítica sobre a realidade, na perspectiva de promover a participação popular, a interação entre a ciência e a vida das famílias e da sociedade e o fortalecimento dos serviços de saúde (Vasconcelos, 2004). Nesse sentido, o fomento a um ambiente dialógico entre os diferentes atores envolvidos no processo de Reforma Psiquiátrica propicia reflexões e transformações acerca das concepções do cuidado em Saúde Mental, no contexto dos serviços substitutivos, e no que concerne ao imaginário social sobre a loucura. A Educação Popular em Saúde, ao propor a construção de formas de aprendizado e investigação, por meio do reconhecimento e da valorização do saber do outro, da troca de informações e da problematização, é uma metodologia para a construção de outro conhecimento sobre a loucura.

Segundo Foucault (2005), a loucura foi silenciada e retirada de circulação e deu lugar a um monólogo da razão. As oficinas de produção audiovisual restabeleceram um diálogo com a loucura, com o estranho, com o desviante da norma. Ao captar a fala dos usuários, abre-se espaço para a emergência da voz, do discurso das pessoas em sofrimento psíquico e se estimulam a autonomia e o protagonismo social dos participantes desse grupo.

Na perspectiva da Educação Popular, os processos baseados no diálogo, como os que foram propiciados nesta experiência de estágio, assumem o pressuposto de que todas as pessoas são potencialmente capazes de protagonizar a própria história, por meio do desenvolvimento de uma consciência crítica, da ampliação da capacidade de reflexão e do exercício da participação (Brandão, 2001). Como afirma Campos (2000), abrir espaço para opiniões e troca de vivências é uma experiência que, além de fomentar a grupalidade, valoriza os saberes dos atores envolvidos, no que se refere à criação de estratégias coletivas de mudança.

Assim, da própria realidade marcada pela opressão, pode surgir "um poder capaz de produzir movimentos de resistência e afirmação da vida". Formas marginais de trazer à tona os saberes e de produzir "resistência e alegria" (Figueiró, Costa Neto & Sousa, 2012, p. 64), pois

contar uma história pode vir a ser um movimento de desdobramento, deixando vir o "de dentro" para "fora", libertando aquele que se refugia nos entres das envergaduras, agenciando no sujeito uma nova configuração do ser. Em sua pluralidade, infinitas vozes dialogam, disparando um novo processo, um devir de diferença; um sujeito mais livre enquanto movimento de devir, enquanto um processo de singularização, em entrelaçamento, junção e disjunção de si com os outros. (Mairesse& Fonseca, 2002, p.113, grifos das autoras)

A linguagem audiovisual é uma forma peculiar de contar histórias que se revelam e se escondem nas narrativas (Brasil, 2006). As pessoas que fazem parte de um processo de produção audiovisual se apropriam, criam, recriam e transformam suas próprias imagens em imagens do mundo. Ao exercitar sua capacidade de romper conceitos, realizar escolhas e tomar decisões, os usuários do CAPS exercitaram também seu potencial de empreender ações que possam intervir no mundo a sua volta (Freire, 1999). Por meio de uma relação dialógica, pautada no reconhecimento da existência de diferentes saberes, na construção compartilhada do conhecimento e na possibilidade de uma experiência educativa mútua, promovemos integração, reflexão e foram ampliados canais de interação cultural e negociações, como propõem Carvalho et al. (2001) e Vasconcelos (2004).

O trabalho coletivo e a troca de experiências, aliados ao processo de criação, têm desdobramentos que se ampliam para além da produção do documentário realizada a partir dessa experiência de estágio. Conforme Amarante, Freitas, Nabuco e Pande (2011), tem-se recorrido à arte para desmitificar e transformar a concepção criada sobre a loucura desde a origem da Psiquiatria. A experiência em questão, por intermédio do desenvolvimento de um projeto que envolve atividades artísticas como instrumento para a ampliação de potencialidades singulares e de acesso aos bens culturais, reverbera na produção da emancipação e da criação de "novas comunidades e outras sociabilidades" (Lima, 2011).

 

Cenas finais? Algumas considerações...

A desinstitucionalização da loucura exige mais do que uma mudança de nomenclaturas ou espaços e lugares. Exige uma mudança em nosso modo de subjetivação, uma abertura para o "estranho em nós", que é mais do que a simples aceitação da diferença. Trata-se da construção de novas relações, novos significados, novos encontros sociais. Nesse sentido, a Educação Popular em Saúde, uma metodologia participativa, é uma potente estratégia para se refletir sobre a realidade das pessoas em sofrimento psíquico e construir dialogicamente novos saberes e práticas no contexto dos serviços substitutivos que envolvem diversos atores sociais, inclusive os usuários.

Ao longo do desenvolvimento do estágio, deparamo-nos com inúmeros desafios, principalmente relacionados à construção de novos conhecimentos e práticas sobre a loucura. Dialogamos com nossos medos, nossas inseguranças, nossas próprias representações cristalizadas a respeito do louco e que também povoam os serviços substitutivos. No entanto, tais desafios foram molas propulsoras para irmos além daquilo que acreditávamos saber, além do diagnóstico registrado em prontuários e da loucura estigmatizada, pois vimos o usuário como um sujeito ativo da própria história, como "ator" em uma vida que pode e deve ser reinventada em novas formas de existência. Desenvolvida a partir das potencialidades de cada um dos usuários, respeitando e valorizando o poder criador e criativo de cada um deles, essa intervenção contribuiu para que, cada vez mais, esses sujeitos assumam uma participação ativa e crítica na sociedade. Essa prática foi marcada pelo desejo de transformar, de ousar, de ouvir e de contar as histórias de pessoas que sofrem, mas são potencialmente capazes de viver e de produzir vida, pois, como nos ensina Manoel de Barros, "no osso da fala dos loucos tem lírios".

 

Referências

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Recebido em: 10/08/2014
Reformulado em: 31/01/2015
Aprovado em: 23/03/2015

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