Pesquisas e Práticas Psicossociais
ISSN 1809-8908
ARTIGOS MULTITEMÁTICOS
A sucata como avesso complementar da contemporaneidade
Scrap as the complementary reverse of contemporaneity
El material de desperdício como el reverso complementario de la contemporaneidad
Gisele Gonçalves Melles de Oliveira
Graduada em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP). Mestre em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP). Doutora em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP)
RESUMO
Este artigo objetiva discutir os significados da sucata na contemporaneidade, apresentando o relato de uma experiência com sucata em oficina de criação espontânea, realizada em uma universidade, como parte de uma investigação sobre os sentidos atribuídos à sucata. Propõe-se, então, a sucata - cujo significado etimológico é objeto sem valor - e as relações que ela mantém, tanto no plano econômico quanto no plano das relações sociais, como objeto e, também, como método de investigação científica. Observamos que a sucata deixa de ser apenas um objeto sem valor para se tornar um meio, um caminho que abre possibilidades de leituras de mundo, de interferências no mundo, de desdobramentos, de vias de escape. Conclui-se, assim, que em toda sua complexidade, a sucata da história (história pessoal e social), pode proporcionar, por meio de sua característica maior - a falta de significado -, a possibilidade de ressignificação, tornando-se um modo, um método, às avessas, em negativo, do contemporâneo.
Palavras-chave: Sucata; Método; Ressignificação; Contemporâneo.
ABSTRACT
The main objective of this article is to discuss the meanings associated to refuse/scrap nowadays, presenting a report about an experience conducted in a university campus, exploring scrap workshop spontaneous creation, as part of an investigation into the meanings assigned to it. We focus on the concept of refuse/scrap - whose meaning is associated with worthless material- and the relationships it maintains, both on the economic level and in terms of social relations, and also as object and scientific research method. We can observe that scrap metal ceases to be just worthless object, to become a means and a path, which enables world readings, interference and escape routes in world developments. We conclude, therefore, that in all its complexity, scrap history (personal and social history), despite being considered worthless as its greatest feature, can provide - considering its lack of meaning - the possibility of reframing, becoming a method in reverse, as a negative, of the contemporary.
Keywords: Scrap; Method; Reframing; Contemporary.
RESUMEN
Este artículo objetiva discutir los significados de la chatarra en la contemporaneidad, presentando el relato de una experiencia con la chatarra en un taller de creación espontánea, realizada en una Universidad, como parte de una investigación sobre los sentidos atribuidos a la chatarra. De ahí, se propone la chatarra - cuyo significado etimológico es objeto sin valor - y las relaciones que ella mantiene, tanto en el plano económico como en los planos de relaciones sociales, como objeto y también como un método de investigación científica. Observamos que la chatarra deja de ser apenas un objeto sin valor para convertirse en un medio, un camino que abre posibilidades de lecturas de mundo, de interferencias en el mundo, de desdoblamientos, de despliegue. Se concluye, por lo tanto, que en toda su complejidad, la chatarra, chatarra de la historia (historia personal y social), puede proporcionar por medio de su mayor característica - la falta de significado - la posibilidad de resignificación, convirtiéndose en un método, al revés, en negativa, de lo contemporáneo.
Palabras clave: Chatarra; Método; Resignificación; Contemporáneo.
No contexto contemporâneo, a força impetuosa de uma economia essencialmente consumista que se espalha por todo o canto imprime um novo valor e um novo significado aos objetos, já que passam a representar, explicitamente, como nunca antes, o novo dinamismo da conformação social. Consumir, nos séculos XVII, XVIII ou XIX, tem um sentido totalmente diferente de consumir no final do século XX e começo do século XXI. Ao analisarmos o que significa consumir, quais são os objetos que consumimos e em que circunstâncias históricas consumimos, vemos que o sentido de consumo muda completamente em relação àqueles tempos iniciais. Desde as últimas décadas do século XX, vivemos uma época denominada hiperconsumo, caracterizada como a fase em que o consumo se associa de forma cada vez mais forte a parâmetros radicalmente individuais.
Nesse recente cenário, para Baudrillard (1995), o objeto é consumido pelo que representa. Os objetos de consumo são compreendidos como lugares de trabalhos simbólicos, isto é, não são consumidos pela sua utilidade, mas pela sua capacidade de remeter o consumidor a um determinado status. Featherstone (1995) acrescenta, na discussão sobre o consumo, o conceito estilo de vida, o qual conota individualidade, autoexpressão e uma consciência de si estilizada. Pelo estilo de vida, as pessoas manifestam sua individualidade e têm consciência de que se comunicam por meio do que se apropriam. Criam-se novas relações emocionais entre indivíduos e mercadorias. As marcas se fortalecem de forma independente dos produtos, o produto deixa de ser vendido e dá lugar a um conceito, um estilo de vida associado à marca.
Para Lipovetsky (1997), pode-se caracterizar empiricamente a atual "sociedade de consumo" por diferentes traços: elevação do nível de vida, abundância das mercadorias e serviços, culto dos objetos e dos lazeres, moral hedonista e materialista. Entende Lipovetsky (1997) que, estruturalmente, é a generalização do processo da moda que a define propriamente:
A sociedade centrada na expansão das necessidades é, antes de tudo, aquela que ordena a produção e o consumo de massa sob a lei da obsolescência, da sedução e da diversificação, aquela que faz passar o econômico para a órbita da forma da moda. (Lipovetsky, 1997, p. 159).
Além da moda em mercados de massa - de roupas, ornamentos, decoração, atividades de recreação, esportes, músicas, jogos, produtos infantis, entre outros -, os serviços disponíveis também deram uma contribuição inestimável ao incremento do consumo. Segundo Mancebo (2002, p. 329), o campo da produção do conhecimento também não se apresenta imune a essa dinâmica, pois
A leitura apressada do último lançamento, o imediatismo das pesquisas que se sucedem, o aligeiramento dos cursos, a formação de mais alunos em menos tempo, podem ser consideradas como práticas que advém da lógica consumista, reduzindo um tempo de convivência, um campo coletivo de criação - com o texto, o tema, os colegas, os professores - necessário para que o circuito de ressonâncias do pensamento possa se instaurar.
Desse modo, não se compram apenas mercadorias, aqui compreendidas como produção para o mercado no qual predomina o valor de troca, e não o de uso. Buscar avidamente novos modelos e "receitas de vida" também se constitui num tipo de compra. Os efeitos dessa dinâmica consumista são múltiplos. Mancebo (2002) destaca dois aspectos que dizem respeito a essa dinâmica. Primeiro, a acentuação da velocidade, da volatilidade e efemeridade de produtos, modos e técnicas de produção e também de ideias, valores, ideologias, práticas e relações sociais: a fluidez ou "liquidez", conforme Bauman (2001). Muito mais do que a durabilidade e a confiabilidade do produto, hoje, o que traria lucro seria a velocidade atordoante da circulação, o rápido envelhecimento do novo, a reciclagem, a substituição do "entulho". Um segundo aspecto, apontado por Mancebo, teria a ver com o fato de as pessoas serem forçadas a lidar com a ideia de descartabilidade, de obsolescência programada e de se comprazerem com o consumo efêmero e instantâneo dos produtos.
Atualmente, a estética relativamente estável do modernismo, cede espaço a um novo dinamismo, no qual a capacidade técnica de produção, a proliferação das mercadorias e a fragmentação crescente do mercado induzem à instabilidade, à velocidade. Nos tempos globais, comemora-se a diferença, a efemeridade, a moda, a determinação do mercado nas formas culturais e uma pluralidade de sentidos e significados. Para Canclini (1999), o consumo poderia ser analisado como uma forma de tornar mais inteligível um mundo onde o sólido se evapora. Assim, adquirir objetos, organizá-los pela casa ou no próprio corpo, dar-lhes um lugar e uma ordem, designar-lhes atributos passíveis de estabelecer uma comunicação com os outros, são os recursos para se pensar a instável ordem social e as interações incertas com os demais. "A compulsão-transformadora-em-vício de comprar é uma luta morro acima contra a incerteza aguda e enervante e contra um sentimento de insegurança incômodo estupidificante" (Bauman, 2001, p. 95), que parece trazer, pelo menos, uma promessa de segurança, para os incertos caminhos da pós-modernidade. Objetos fugazes, futuras sucatas, que tramam a ilusão de segurança, desenham o sujeito da "pureza", em contraponto ao indivíduo que ocupa o lugar de lixo da sociedade. Lixo que nos pertence - individual e coletivamente -, que nos constitui como sujeitos desejantes, demasiadamente humanos.
Sucata: processo permeado por relações
Podemos pensar que, pela própria etimologia da palavra sucata, já temos indicação de que se trata de um objeto que se constitui por meio de processos e relações. Retomemos sua origem: está no termo árabe sugât e significa "objeto sem valor".
A guisa de reflexão, levantaremos algumas características relativas ao objeto. Baudrillard (1972), ao se remeter às sociedades primitivas, indica que o consumo de bens não diz respeito a uma economia individual de necessidades, mas a uma função social de prestígio e de distribuição hierárquica, e que é preciso que bens e objetos sejam produzidos e trocados para que se manifeste uma hierarquia social. De acordo com Baudrillard (1972), podemos observar que, desde os registros de sociedades antigas, o objeto, entre outros elementos como o mundo dos signos e o mundo das situações, também caracteriza a cultura.
Desde o advento da industrialização, o objeto adquiriu uma importância maior, quando passou a ser produzido em larga escala, coincidindo com alguns fatores sociais como: a tendência à aquisitividade, característica da civilização burguesa; o desenvolvimento dos objetos em série, e o fator que liga pouco a pouco o estatuto social à possessão de objetos, denominada por Moles (1972) como consumo conspícuo.
A princípio, para a sociedade tradicional, os objetos tinham por função inscrever o estatuto social em "dureza". Por exemplo, a decoração hereditária, na sociedade tradicional, que testemunhava a realização social, e uma segurança de uma situação adquirida. Os objetos, dessa maneira, passam a constituir uma declaração, uma constatação do destino social, denominada por Baudrillard (1972) como simulacro funcional, atrás do qual os objetos continuam a desempenhar seu papel de discriminantes sociais.
O objeto, além de materialidade, caracterizado por ser independente, móvel e passivo (pelo menos submetido à vontade do homem), é mensagem em sua exterioridade. No sentido sociocultural do termo, o objeto é vetor de comunicações. Reiteramos aqui, com intuito de refletirmos sobre os objetos e as relações, a descrição de Moles (1972) quando indica que o objeto é a concretização de um grande número de ações do homem na sociedade e se inscreve no plano da mensagem que o meio social envia ao indivíduo ou, reciprocamente, que o Homofaber subministra na sociedade global. O objeto, dessa maneira, como canal de comunicação, assume também outros aspectos, como o fato de ser portador de forma, no caso da perspectiva do criador das formas, como o artesão, o artista, o designer, ou, então, como o papel do objeto no contato que o homem mantém com os outros, também ocasião de contato interindividual.
Ao refletir sobre os objetos na atualidade, entendemos que estes refletem e dão visibilidade para modos de relações contemporâneos - afinal, caracterizam e refletem nossa cultura. Na atualidade, o consumo e, decorrentemente, o objeto, ganham um novo dinamismo no pensamento social. Observamos que os objetos, ao serem consumidos e descartados, dizem dos modos de subjetivação do sujeito no mundo atual. Afinal, a forma mercadoria, ao invadir a cultura e fundir-se com ela, transforma as relações sociais numa espécie de mercado, no qual o valor de troca predomina. Entendemos, assim, que o objeto seja o novo (que traz em si o devir sucata) ou o já descartado, diz das relações entre sujeitos, e da relação entre o sujeito e o mundo. A descartabilidade, dessa forma, transcende o que observamos com os objetos de consumo, e passa a designar um modo de relacionamento do sujeito com seu mundo, instaurado pela efemeridade e pelo imediatismo.
A sucata, portanto, caracteriza aquilo que pode ser descartado. Nesse sentido, amplia-se a perspectiva etimológica de "objeto sem valor", sem valor de troca no sentido de mercadoria, atingindo também o sentido das relações interpessoais. Pensamos, também, que a sucata é intrinsecamente vinculada a um processo, que traz em si uma noção temporal: o passado que a antecede, o presente que é a sucata, e o futuro, o qual entendemos como um campo de possibilidades. Afinal, a sucata, entre outros fatores, pode significar o devir-poluição, o devir-entulho, mas também pode se apresentar como devir-criação-ressignificação-arte-poesia. A abertura dessas possibilidades é o que nos interessa; afinal, a sucata, em toda sua complexidade, pode proporcionar, por meio de sua característica maior - a falta de significado -, a possibilidade de ressignificação, tornando-se um modo, um método, às avessas, em negativo, da paisagem contemporânea.
A Sucata como Objeto
Vivenciamos, no percurso de pesquisa2 realizada, situações que ampliaram o espectro que a sucata nos apresentava. Cada encontro do sujeito (criança ou adulto) com a sucata possibilitou o redimensionamento das perspectivas que tínhamos.
No início, para a elaboração do projeto dessa pesquisa, tivemos contato, entre vários autores, com dois livros que tratavam da sucata e sua utilização para a criatividade, são eles: O brinquedo-sucata e a criança (2001), de Marina Marcondes Machado, e Brinquedos e Engenhocas (1989), de Louise Weiss - referências que nos subsidiaram, teoricamente, e principalmente para a organização das primeiras oficinas.
Passamos, a partir dessas leituras, a montar nosso "sucatário" - termo utilizado por Machado (2001). Para recolher e organizar as sucatas, fez-se necessário redimensionar o que era lixo, quais objetos tinham valor ou não. Dessa forma, passamos a entender, como sugere Weiss (1989), que é necessário um olhar que recorte o objeto da realidade, um olhar que selecione o objeto - afinal, recolhê-lo, para o sucatário, já é o primeiro movimento de ressignificação.
Machado (2001) organiza uma lista em ordem alfabética, do que pode ser considerado "sucata". Para Weiss (1989), existem dois tipos de sucata: as industrializadas e as naturais. Entendemos, nessa pesquisa, que os recursos naturais não têm o mesmo significado dos industrializados; afinal, os detritos naturais são processados pela própria natureza. Como exemplo, as folhas que caem, as sementes, etc. Mas reiteramos que utilizamos os recursos naturais em nosso sucatário, pois entendemos que também são passíveis de serem ressignificados.
A lista, proposta por Machado (2001), está em ordem alfabética, ainda que a referida autora reitere que esta poderia estar organizada a partir de outros critérios; por exemplo, agrupando tipos de sucata (madeira/tecido/plástico/sucata da natureza/latas etc.) ou separando a sucata relacionada a diferentes profissões e ambientes: sucata da costureira e do alfaiate; sucata de médicos, enfermeiros, farmacêuticos; sucata de padarias, restaurantes e pizzarias. Pode-se, também, de acordo com Machado (2001), fazer uma lista de sucata de acordo com as estações do ano - o que nos parece muito rico: voltarmos nossa atenção para os ciclos da natureza no decorrer do ano. Assim, os caroços de frutas secas, paina, pinhas, casca de nozes, enfim, a grande variedade de recursos naturais. Ou então, sugere ainda, lista de sucata de acordo com as festas:
Carnaval (serpentina e confete, máscaras e fantasias inutilizadas); as festas juninas (restos de bandeirinhas de papel de seda, embalagens dos fogos e cartuchos de rojões, palitos de fósforo, retalhos de tecido e tranças e chapéus); a festa de Natal (papéis de embrulho, enfeites de árvore, de porta, de mesa que não servem mais, fantasias de Papai Noel e de anjos, tocos de vela, purpurina). (Machado, 2001, p. 70).
A autora propõe, dessa forma, "além da coleta de materiais de sucata, uma maior observação do meio ambiente e das pessoas, dos ritmos da cidade e da natureza, resgatando uma linguagem lúdica e poética associada ao trabalho" (Machado, 2001, p. 70), perspectiva essa que muito nos interessa.
Weiss (1989) ressalta que, além da separação e organização da sucata, é necessário providenciar o que chama de "materiais acessórios". Em nossas oficinas, sempre tínhamos a cola, a tesoura sem ponta, fita crepe, barbante e tinta guache. Esses materiais acessórios auxiliam na junção, na cor, enfim, no processo de criação do sujeito com a sucata.
No que diz respeito, ainda, à coleta da sucata, entendemos, como relevante, o relato da ocorrência de um fato e, por isso, o descreveremos a seguir. Trata-se da procura por variadas sucatas para a realização de uma grande oficina que realizaríamos em uma universidade, em uma cidade do interior do Estado de São Paulo (oficina que será descrita mais adiante). Fomos a diferentes escolas desse município, em busca de sucata. Para nossa surpresa, em uma das escolas particulares em que solicitamos a sucata, pudemos observar como os valores relativos ao descarte, ao que não serve mais, dizem dos modos de vida contemporâneos, principalmente relacionados ao consumo. Entregaram-nos uma grande quantia de materiais, composta, de uma maneira geral, de lápis coloridos, pranchas de isopor, brinquedos novos ou relativamente novos que estavam sendo descartados como sucata. Esse fato nos levou a refletir sobre algumas questões como: seriam materiais solicitados nas listas para o início do ano letivo e não sendo usados estavam sendo descartados? Afinal, no próximo ano, haveria nova lista? Como pensar esse consumo-descarte na escola? Se não pegássemos esse material, o que seria feito dele? Jogado no lixo? Essas questões passaram a nos ocupar e nos garantiram uma postura perante a pesquisa: a de refletirmos sobre os modos de consumo e de vida em nossa sociedade atual e também sobre a ausência de ressignificação. E assim a sucata, antes apenas vista como objeto tornado inútil, sem valor, passou a adquirir, para nós, valor de método, a saber, de meio para produção de conhecimento.
A Sucata Como Método
Procedimentos da pesquisa
Disponibilizar a sucata para um grupo é dispô-la no ambiente que estamos reunidos. Geralmente a colocamos no chão. Ao lado, organizamos os materiais acessórios. Independentemente da caracterização do grupo, apresentamos nossa proposta: a de utilizarmos a sucata criativamente, possibilitando a livre expressão. Assim, sem regras a serem cumpridas, a não ser a de ser criativo - o que, percebemos por meio de nossa prática, para algumas pessoas, é muito difícil -, temos a postura, perante o grupo, de não intrusão, não interferência, atuando, somente, quando solicitados.
Destacamos, aqui, a experiência realizada em uma universidade. Trata-se da "Oficina com Sucata", realizada na Semana do Psicólogo. Esse Encontro teve três dias de duração e tinha, como público, estudantes de psicologia, psicólogos e interessados. Nossa oficina se realizou no período da tarde do terceiro dia. Especificamos esses dados para podermos relatar como a oficina foi organizada.
Podemos entender que essa oficina iniciou-se, na verdade, dois dias antes da data proposta. No início da programação do Encontro, pedimos aos participantes que colaborassem trazendo sucatas. Colocamos uma caixa no saguão de entrada do referido Encontro, ao lado do posto de inscrições, com o seguinte dizer: "DEIXE AQUI SUA SUCATA".
Como os participantes passaram a trazer "suas sucatas", entendemos que, de fato, essa oficina, teve início dois dias antes do proposto, pois os integrantes do Encontro traziam "seu lixo", para, depois, ressignificá-lo. Não foram necessárias inscrições para a participação na oficina: participou quem teve interesse.
No dia da Oficina, antes de os interessados chegarem, organizamos, na quadra coberta da universidade, as sucatas até então arrecadadas. Dispusemos todas no centro da quadra. Eram muitos objetos que haviam sido descartados, trazidos por várias pessoas. Organizamos, também, em uma das extremidades da quadra, nossos materiais acessórios: cola, tesoura, fita crepe, barbante. Propositalmente, esses materiais não eram em grande quantidade, pois pensamos que sabermos usar os recursos que temos já diz do processo de ressignificação que realizamos.
Os participantes foram chegando, alguns com sacolas com mais sucata. Éramos aproximadamente, oitenta pessoas. A princípio, fizemos um grande círculo ao redor da sucata. Nesse momento, problematizamos o consumo e descarte desenfreados do contemporâneo, conversamos sobre a importância do gesto criativo em nossa atualidade e demos abertura à nossa tarde de criação. Alguns participantes, nesse curto período de fala, já haviam separado algumas "relíquias" no meio das sucatas. Outros, após a fala, correram para procurar o que podia lhes servir. Mais uma vez a sucata se apresenta, nesse momento, para o que tem "olhos para ver", como o faz o poeta ao criar ou a criança ao brincar.
Após o término da oficina, combinamos montar uma exposição no saguão de entrada da universidade. Grande parte do grupo concordou. Seguimos para o saguão e, assim, demos visibilidade para nossas ressignificações. A exposição durou uma semana.
Análise e Reflexões sobre a Produção da Oficina
Destacamos algumas produções realizadas pelos participantes da referida oficina, produções decorrentes do encontro criativo com a sucata. Encontros de potência, de invenção, de processo criativo, de recriação.
Nosso interesse não é interpretar quem brincou com a sucata, ou de que maneira brincou. Interessa-nos a possibilidade de brincar espontaneamente, criar livremente, como forma de autoconhecimento e inserção criativa na cultura.
Sob esse aspecto, destacamos a proposição realizada por um dos participantes: trata-se de uma montagem feita com fragmentos de diversas bonecas Barbie, culminando em uma escultura de fragmentos de corpos esguios, longilíneos, reorganizados às avessas. Corpos fragmentados, fluidos, sem forma, como a estética atual, ritmada por um novo dinamismo, no qual a capacidade técnica de produção, a proliferação das mercadorias e a fragmentação crescente do mercado induzem à instabilidade, à velocidade. Afinal, buscar receitas de vida, de estética, assim como os produtos, também se constitui num tipo de compra e, decorrentemente, de descarte. Se observarmos, padrões de beleza "Barbie" são, atualmente, ditados pela indústria do consumo: são as mulheres usando silicone para obter uma estética do mercado de hoje, o desejo de ser magra, que ultrapassa os demais valores da vida, tornando-se uma patologia, que influi diretamente nas adolescentes, atingindo também as crianças.
Ao ressignificar com fragmentos de Barbie, lixo da sociedade, o indivíduo reinventa a cultura, possibilitando, talvez, sua maior liberdade como sujeito, mais que consumidor do mundo contemporâneo.
Pensamos que o trabalho com a sucata não tem a pretensão de produzir obras de arte, mas tão somente oferecer possibilidades de criação e ressignificação. Tais produções nos interessam, na medida em que apontam para a multiplicidade de significados que podem representar, remetem-nos ao espaço aberto do "perene inacabamento dos significados" (Bauman, 1997, p. 136). Nesse mesmo sentido, Jamroziak (citado por Bauman, 1997), analista e intérprete da arte contemporânea, tem a seguinte indicação sobre as produções artísticas, diz ela:
prontas para absorver sentidos e significados, enfrentam o espectador contemporâneo como fantasmas: intrigantes e intensas, embaraçosas e sedutoras pelo que elas próprias são e pelas cadeias em que podem ser colocadas e em que aparecem graças a seus criadores e a seus receptores inclinados à interpretação. [...] (p. 135).
A analista reitera ainda que, mais do que um criador, o autor de imagens pós-modernas é um animador ou apresentador. Pois define que,
a autoria consiste no ato de montar o processo em movimento, enquanto o processo assim originado não tem em mira algum ponto de objetivação final numa forma reificada, funcionando, em vez disso, de maneira livre e desabrida, através de muitos caminhos - e continua incompleto e aberto [...]. (Jamroziak, citado por Bauman, 1997, p. 135).
No mesmo sentido, Bauman (1997) nos sugere que, em nosso mundo, os signos flutuam em busca de significados e os significados se deixam levar em busca dos signos. Para o referido autor, "o significado da obra de arte reside entre o artista e o espectador" (p. 134). No que diz respeito a nossa pesquisa, consideramos essa perspectiva proposta por Bauman mais interessante do que apenas uma única interpretação sobre o "objeto que foi ressignificado". Interessa-nos, dessa forma, acatar as infinitas possibilidades de interpretação que podem ocorrer no processo que se dá entre quem fez e quem vê.
Assim, podemos compreender, baseando-nos nas ideias de Bauman (1997), que o campo de possibilidades de ressignificação, por meio da utilização da sucata, transcende o momento da criação. Tal qual a sucata, também o próprio objeto já ressignificado, metamorfoseado, criado, traz em si infinitas possibilidades de interpretação. Possibilidades que se constituem, no que se refere a essa oficina, entre o sujeito que agiu com a sucata e o sujeito que viu os objetos transfigurados, ou aquele que visitou a exposição realizada no saguão da universidade.
No processo da pesquisa, na experimentação da ressignificação do objeto que já não serve, nosso objeto de estudo se revelava a cada encontro. Passamos, então, decorrente das experiências que observávamos, a entender a sucata como objeto e também como método. A própria sucata, no decorrer desta pesquisa, foi propondo os "novos caminhos".
Considerações Finais
Julgamos ser importante explanar que, a princípio, no início do nosso percurso, procurávamos definir o mundo do "objeto que já não serve", iluminando-o, desvelando-o. No caminhar da pesquisa, em busca de um maior entendimento, procuramos deslocar o objeto de seu "lugar comum" e, em vez de desvelá-lo, passamos a ter o interesse de "transfigurá-lo", ou seja, retirá-lo de seu vazio significativo e inseri-lo num contexto abrangente de sentidos; assim, a sucata deixa de ser apenas o objeto sem valor para se apresentar multifacetada, espelhando os modos de subjetivação do mundo contemporâneo. A transfiguração nos remete, portanto, a desnaturalizar, criar meios, vias, enfim, a interferir no mundo. Nesse sentido, a sucata deixa de ser apenas o objeto sem valor (aliás, sua definição etimológica), para se tornar um meio, um caminho, abrindo possibilidades de leituras de mundo, possibilidades de interferência no mundo, de desdobramentos, de vias de escape.
A sucata, como lixo - lixo consentido, lixo com sentido -, permite conhecer a história da humanidade. Tanto a história da subjetivação do sujeito quanto dos modos impessoais da existência refletidos no assentamento humano que é a cidade (Sennett, 1989), ou onde quer que chegue nossa cultura globalizada. A sucata espelha o mundo contemporâneo. Tal fato pode ser contemplado, por exemplo, no poema de Bonvicino (2004), impresso em um domingo do ano de 2004, no jornal Folha de S.Paulo, um importante veículo de comunicação do Brasil, em nossa contemporaneidade. Juntemos mais esse "retalho" do cotidiano à trama que estamos tecendo:
O LIXO
plásticos voando baixo
cacos de uma garrafa
pétalas
sobre o asfaltoaquilo
que não mais
se considera útil
ou propíciohá um balde
naquela lixeira
está nos sacos
jogados na esquinacaixas de madeira
está nos sacos
ao lado da cabine
telefônicao lixo está contido
em outro saco
restos de comida e cigarros
no canteiro, sem árvore,lixo consentido
agora sob o viaduto
onde se confunde
com mendigos
Podemos considerar que a história da civilização do século XX e início do século XXI é também constituída pela história da sucata: a sucata caracteriza o contemporâneo, pois, nos dias de hoje, não é um objeto qualquer, mas um elemento intrinsecamente ligado ao mundo globalizado atual, conquanto nossa sociedade não deixe de produzi-lo. Assim, pensamos que a sucata está na base do funcionamento desse mundo, em todos os sentidos: no plano econômico, nas relações sociais, na organização da sociedade e, inclusive, compõe os processos de subjetivação. Afinal, a sucata, caracterizada principalmente pela efemeridade e pelo descarte, diz da produção industrial, do consumo, da intimidade dos sujeitos, das famílias; enfim, a sucata diz do próprio sujeito. Como já mencionamos, dá-se um sucateamento do próprio sujeito, que fomenta as entranhas da exclusão social, o sucateamento dos vários setores da sociedade.
Pautados nessas reflexões, consideramos que refletir sobre a sucata é uma forma de estudar a contemporaneidade. Reconhecemos que pode ser um dos caminhos, obviamente não o único, mas um bom caminho, já que, afinal, a sucata está intrinsecamente ligada à constituição deste mundo. Mas, enfim, seja um caminho necessário e inevitável, visto que para compormos sentidos no contemporâneo, significamos, ressignificamos, ou não, a sucata desse mundo.
Referências
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Recebido em: 01/12/2014
Aprovado em: 13/09/2015
1 A dissertação Brincando com Sucata: a espontaneidade em jogo (Melles de Oliveira, 2005) foi apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis - UNESP - Universidade Estadual Paulista, para a obtenção do título de Mestre em Psicologia (Área de Conhecimento: Psicologia e Sociedade), sob orientação da Dra. Olga CeciliatoMattioli e objetivou demonstrar - por meio de experiências realizadas em oficinas de criação espontânea, com diferentes grupos: professores de educação infantil, alunos universitários, policiais militares e crianças -, como a sucata pode possibilitar a criatividade e a ressignificação.