Pesquisas e Práticas Psicossociais
ISSN 1809-8908
Inventing to know
Ângela Carneiro Silva
Professora, psicóloga clínica e educacional. Doutora pelo Programa de Pós Graduação de Psicologia Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Pós doc na Universidade Federal Fluminense-UFF. É pesquisadora do grupo Entre_Redes. E-mail: angela.carneiro@gmail.com
RESUMO
O presente trabalho é o relato de uma experiência em torno da escolha profissional com jovens imigrantes em Lisboa. Acompanha os processos de escolha dos jovens e as articulações com a produção de modos de vida, o mundo do trabalho e a cena contemporânea. Ao tomar como referência o campo de pesquisa da Ciência no Feminino busca-se um modo de pesquisar que habita uma rede de conexões locais, situadas e encarnadas, com uma escuta de corpo inteiro, sensível a outras sintaxes singulares e promissoras de acontecimentos. O trabalho apresenta os desafios de um pesquisarCom e suas marcas no corpo do campo, da pesquisadora e do texto nos percursos inventivos para conhecer.
Palavras chave: Escolhas profissionais; Produção de conhecimento; PesquisarCom.
ABSTRACT
This is a report of experiences about career choice with young immigrants in Lisbon. The choice processes are followed, together with the linkages with the production of ways of life, the world of professions and work and the contemporary scene. By taking as reference the research field of Feminine Science, a way of researching that lives into a network of local connections is sought, a way of listening with the whole body, open to alternate and promising syntaxes. The work points to the challenges of a 'researchWith' and to its influences over the research field itself, as well as over the researcher and her text, along the creative routes to knowledge.
Keywords: Professional choices; Production of knowledge; ResearchWith.
RESUMEN
Este documento es el relato de una experiencia en torno a la elección profesional con jóvenes inmigrantes en Lisboa. Acompaña a los procesos de elección para los jóvenes y las articulaciones con la producción de las formas de vida, el mundo del trabajo y la escena contemporánea. Tomando como referencia la línea de investigación de la Ciência del Femenino, buscar una habitar una red de conexiones locales, situados y encarnados, con una escucha de cuerpo completo, sensible a otras sintaxis singulares y prometedores. El artículo presenta los retos de un pesquisarCom y sus marcas en el cuerpo del campo, del investigador y del texto en las rutas de la invención para conocer.
Palabras clave: Opciones profesionales; Producción de conocimiento; InvestigarCo
Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já tem a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos.
Fernando T. de Andrade
Quando começamos uma escrita, atravessamos um mar de surpresas. O título, num primeiro instante tão claro - Inventar para Conhecer -, de repente se desdobra em outras possibilidades, que nos tomam nas muitas conversas-leituras com os parceiros de pesquisa. À procura do melhor dizer, que se o diga, mas principalmente que seja um gerador de conversas.
Nessa direção, havia algo a que não prestava atenção, muitas vezes tomava como uma distração. No exercício de escrever, além da atenção necessária para organizar as muitas falas, encadear ideias e mapear as tensões que conversam em nossa cabeça, somos tomados por imagens que pedem para ganhar letra. Passei a escutá-las. E, na medida em que focava nesses processos, percebia que as imagens traziam um clima, davam um tom, criavam um cenário e uma continuidade. Podiam surgir inteiras, mas também fragmentadas.
Nesse texto, a imagem que me surge é a da proa de um barco cortando o mar, subindo e descendo num ritmo firme e cantante: movimento, espuma, água, desenhando num veleiro que insistentemente me acompanha.
Tentei redesenhar a imagem do veleiro. Por que não um navio iluminado, com a ideia de estabilidade e força, que atravessa o oceano? Ou um barco que volta e ancora no porto, mas que, em seu devir barco, sempre retorna ao mar? Ou um barco nau que já abrigou os loucos, em suas derivas concretas e delirantes? As caravelas, que ocuparam o imaginário dos grandes navegantes que redesenharam o mundo! Ou os barcos dos velhos marinheiros e suas histórias. E hoje, como não sermos impactados com o barco balsa que busca a vida, mas encontra a morte. Milhares de imigrantes sem ter para onde ir e muito menos como voltar nos questionam cotidianamente sobre de que somos capazes. E como não fazer disso um destino que nos faz, não mortais, mas mortíferos?
Mas não é assim que funciona. Algo escapa ao controle do querer dizer quando um afeto nos toma. Algo da ordem do acontecimento. A imagem do veleiro se impôs. E sigo, braceando as velas, sabendo que, com um veleiro, é preciso negociar. Você não segue em linha reta. É preciso compor com o vento, saber a melhor resultante, perceber as suas mudanças súbitas para tirar o maior proveito. Saber das correntes marítimas, ler o céu, o silêncio de toda a vida ao redor, saber que só há espaço para o essencial, logo o desapego é fundamental. Ter paciência com a calmaria e com as tempestades também. E nessa aposta seguir. E assim fomos, horizonte à vista, às terras de Lisboa.
Lá estava para uma bolsa "sanduíche", às voltas com o tema dos jovens e suas escolhas profissionais. O tema das escolhas se desdobrou tanto em nosso percurso que nos trouxe a ideia de que os jovens, mais que escolherem profissões ou ofícios, escolhem modos de vida. Com isso em mente, passamos a rastrear os processos de escolhas dos jovens e as articulações entre as produções de subjetividades, o mundo do trabalho e a cena contemporânea, com seus avanços tecnológicos inimagináveis e descompassos nos aspectos sociais e políticos. E percebemos que essas escolhas não seguem um caminho retilíneo, natural, óbvio, mas se constroem nos encontros, nos desvios e em novas composições. Voltamos a nossa atenção, então, aos processos que pedem corpo e tempo. Um corpo que se desenha pelo trabalho do tempo com as marcas dos acontecimentos. Afinal, muito acontece, mas nem tudo nos acontece.
E começo pela frustração de me ver limitada a uma rotina de tão somente assistir algumas apresentações e frequentar bibliotecas. Afinal, como aprender sobre as relações entre os jovens e suas escolhas de futuro ficando à distância, mediada por terceiros, que me apartariam da voz, do timbre, das pausas, do sotaque, enfim, das modulações que cortam os coletivos quando a singularidade se inscreve? Como conhecer os processos de escolha que estariam acontecendo entre os jovens sem saber como eles viviam e o que faziam, principalmente naquele momento, no auge da crise europeia, em que os bancos assumiam e definiam fronteiras?
Desassossegada, em busca de uma travessia encarnada, encontro ressonâncias em Stengers (1989), que mergulha no trabalho de Barbara McClintock, uma pesquisadora que toma o seu objeto, no caso o milho, como um ser vivo. Esse objeto se organiza e compõe com o meio ambiente, tece histórias que o singularizam e assim produz sentidos e conhecimento. Barbara McClintock afia o olhar para uma escuta de corpo inteiro e se deixa interrogar. As palavras de Stengers me alertam que ficar longe dos jovens me permitiria apenas falar sobre eles e voltar com uma única história. Isto é, ficar sem a possibilidade de ouvir outras versões que se desenhariam, não a versão da juventude, mas múltiplas versões de juventudes e suas escolhas possíveis.
Essas questões ganham densidade em meus percursos a partir do trabalho de uma série de pesquisadoras: Despret e Stengers (2011), Mol (2007), Haraway (1995,, 2008), Moraes (2010), Quadros (2011) e outras, que se inserem no campo da Ciência no Feminino. É o campo de produção de um conhecimento marcado, no corpo do pesquisador, no corpo do campo e no corpo do texto, pela capacidade de se deixar tocar e ser tocado pela presença do outro. Um campo de pesquisa que não se define por uma ciência-de-mulher, mas de mulheres fazendo ciência. Uma ciência no singular, que muitas vezes envolve o sentimento de solidão e não pertencimento, por andar nas bordas do estabelecido, da verdade colocada como única e permanente. Portanto, essas pesquisadoras fazem um convite ao risco de uma conversa de transformação e de invenção mútuas.
Daí a insistência da aproximação com os jovens, na rua, na escola ou no trabalho. Isto para não meramente falar por eles e muito menos sobre eles, mas sim para aprender com eles, saber como se inventam no chão de suas vidas e conhecer seus desafios e as brechas que encontram para existir. Trata-se de manter atenção e disponibilidade para fazer "existir realidades que não estavam dadas antes e que não existem em nenhum outro lugar senão nestas e por estas práticas" (Moraes, 2010, p.35).
Trata-se então de construir com os jovens um campo vivo, em tensão, aberto às diferenças, exposto ao imprevisível, que negocia com o outro a invenção de algo que não é nem do meu nem do seu jeito. É, antes, uma forma inventada por ambos, na radicalidade de um modo de estar junto, não por uma imposição, mas uma disponibilidade ao que entre nós possa surgir. É afinal um trabalho que se faz nas travessias, marcadas por um fazer que não busca uma verdade única, definitiva e universal. Busca, sim, o que pode surgir nos encontros, no miúdo e singular do gesto, no fazer cotidiano e se transforma em histórias. Abertura ao que Despret e Stengers (2011) chamam de 'versões', uma narrativa, efeito de um encontro com o outro, com múltiplos sentidos, e que inevitavelmente carrega uma dose de traição pelas novas composições e misturas..
Assim, começo a procurar modos de ficar na biblioteca, ir aos seminários, mas também de encontrar as falas vivas e diretas dos jovens no chão de suas vidas. Faço contatos com uma escola pública de ensino médio, de formação técnica em artes, com uma organização não governamental que atua na periferia, com a cultura hip-hop, e com a Casa do Brasil de Lisboa, uma associação sem fins econômicos, formada por brasileiros.
Escolho aqui relatar o trabalho com imigrantes na Casa do Brasil de Lisboa. Por quê? Por radicalizar a vivência de ser estrangeiro, numa exposição intensa e contínua a tantas novidades: cultural, econômica, política, afetiva, cognitiva, o que gera um descompasso entre tantas informações e pede um tempo de digestão. Também porque estava no mesmo barco de tantas mudanças, e essa aproximação me incluía nas 'estrangeiridades', além de entender que um saber que se inventa se faz no campo do desconhecido, nas novas fronteiras.
Nos primeiros contatos, aprendi que a Casa do Brasil de Lisboa é uma associação civil (ONG) formada principalmente por brasileiros residentes em Portugal e por portugueses amigos do Brasil. Fundada em 1992, tem como propósito principal trabalhar em prol dos interesses dos imigrantes em Portugal, em especial dos brasileiros e demais lusófonos, dentro de uma ótica de integração e de luta pela igualdade de direitos e de responsabilidades. Atua como polo de reflexão e promoção de debates temáticos e intervém ativamente em questões relativas à política de imigração em Portugal e na luta contra o racismo e a xenofobia. É também um espaço de diversidade e de promoção da cultura brasileira em Portugal1. Além de orientação jurídica, oferece espaço para apresentações, saraus e cursos sobre a cultura brasileira.
A Casa funciona em parceria com diferentes instituições, dentre elas o Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural - ACIDI, que tem como missão colaborar na concepção, execução e avaliação das políticas públicas, transversais e setoriais relevantes para a integração dos imigrantes e das minorias étnicas, bem como promover o diálogo entre as diversas culturas, etnias e religiões2. Nessa rede está o Gabinete de Inserção Profissional (GIP), como parte do projeto Rede Imigrante (RIG), fruto de uma parceria entre o ACIDI, o Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP) e associações de imigrantes. O GIP oferece serviços de apoio na procura de emprego e formação para imigrantes residentes em Portugal, visando à sua colocação no mercado de trabalho. Há vinte e cinco GIPs espalhados pelo país, que partilham uma base de dados e prestam informações sobre o acesso à formação profissional e ao emprego. Além de brasileiros, há africanos e europeus do leste.
A coordenadora do GIP esclarece que as informações coletadas nas entrevistas se articulavam com outros serviços, de âmbito nacional, que faziam um levantamento que serve de base para monitorar os fluxos de entrada e saída de imigrantes no país, para orientar as políticas públicas relativas a essa população.
Apesar dos muitos acordos entre Brasil e Portugal, a legalização dos imigrantes ainda é trabalhosa, mas é esse processo que viabiliza o recebimento do cartão-cidadão, documento fundamental para regularização de permanência, acesso ao sistema de saúde, moradia, abertura de conta bancária, entre outras possibilidades. Contudo, embora com toda a orientação, a maioria dos imigrantes brasileiros continua ilegal - 150 mil ilegais, num universo de 250 mil imigrantes. Muitos chegam a Portugal, vindos diretamente do Brasil. Outros, via outro país europeu em que já haviam tentado se estabelecer antes sem sucesso. A barreira da língua é o ponto mais apontado como a grande dificuldade, mas não o único. É, sobretudo, a diferença no jeito de ser: é muito difícil resolver as coisas do jeitinho do brasileiro. A desinformação do imigrante brasileiro, muitas vezes, faz da experiência de mudança um pesadelo e gera dificuldades que o leva muitas vezes a desistir e aceitar a clandestinidade.
O perfil do migrante brasileiro mudou. Antes migrava como mão de obra barata, mas a migração mais recente tem sido de jovens estudantes, principalmente oriundos de universidades particulares, que não conseguem emprego na área de formação ao concluírem os estudos no Brasil. Tentam então valorizar o currículo com uma especialização ou um mestrado em Portugal. A expectativa é estudar, trabalhar e depois voltar. A valorização da nossa moeda nos anos de 2011 e 2012 permitia aos estudantes ter uma autonomia e sair da casa dos pais, pois lá, moradia e alimentação são muito mais baratas do que nas grandes cidades brasileiras, e isso adquire uma importância: isso é tudo, você estudar, trabalhar e poder fazer uma vida.
O fato é que, nas condições que migram, terminam aceitando qualquer trabalho para sobreviver enquanto tentam se qualificar. No entanto, o serviço de encaminhamento para o trabalho tem dificuldade para fazer esse serviço, pois muitas vezes as vagas surgem, mas os jovens não conseguem preencher as exigências, principalmente quanto ao domínio de outra língua e precariedade de expressão escrita e oral em português.
Diante de tantas dificuldades desses jovens, a coordenadora do trabalho foi percebendo que as entrevistas, na urgência de coletar os dados de cada entrevistado, deixavam de fora as histórias das pessoas e os acontecimentos surpreendentes que ouvia, pelo que começou a questionar o seu próprio trabalho. Na sua aflição, assim resumiu: ou preenchia os formulários ou ficava nas histórias, o fato é que o tempo não era suficiente para fazer as duas coisas.
Pensei no veleiro e no velejador, em como é preciso negociar para tomar um rumo, nem do seu jeito nem do meu, mas buscando outros caminhos e compondo com novas forças para o veleiro seguir. Mas navegar não é preciso, escutar é preciso. Quem são esses imigrantes que se perdem nos formulários e excedem o tempo das entrevistas? Quem são esses que chegam, mas continuam à deriva? E quais os usos dessas informações, já que a maioria se mantem na clandestinidade? Quem fala, no desassossego da coordenadora?
Esse cenário nos leva a uma experiência radical de encontro, nas fronteiras da língua e da cultura, das reinvenções da lógica do mercado e dos seus efeitos nos processos de subjetivação. Quando o mundo se redefine em novas fronteiras, como habitar espaços que aportem um comum e façam da deriva um momento e não uma condenação? Múltiplas aflições, por onde as brechas?
Uma proposta: um espaço de aproximação
Proponho à direção da Casa do Brasil de Lisboa a realização de um grupo de acolhida que, para além da entrevista e do preenchimento de formulários, utilizasse o grupo para favorecer a conversa e abrir espaço para encontros entre as pessoas. Aguardamos a autorização da coordenação da Casa para realizarmos, durante três meses, o que veio a se chamar Grupo de Acolhida. A possibilidade de participar do grupo de acolhida foi divulgada para a rede do GIP, que trata de imigração de uma maneira geral, não só de brasileiros. Após a entrevista com a coordenação, era oferecida a possibilidade de participar do grupo.
Assim, o grupo foi apresentado como um lugar de conversas em que as pessoas pudessem falar de seus percursos e partilhar experiências. Abrir espaço para o que estava ficando de fora, para o que ali era falado na agonia da coordenadora, na agonia dos imigrantes. O que esse encontro nos reservava? A aposta era um espaço de escuta, de partilha e de risco, pois nas palavras de Damian (2014) um espaço para o improviso exige muito daqueles que se submetem. Um espaço que não fosse oficial, mas legítimo.
Minhas perguntas dobraram.
Como se articulavam escolhas profissionais com as condições de vida dos jovens, o desemprego, a constante formação e capacitação? O que empurrava esses jovens a atravessar um oceano, numa grande aventura, para cair em situações que muitas vezes já conheciam? O que os impelia? Dificuldade de inserção no mercado de trabalho, carência de empregos, desvalorização do diploma? De que forma a migração os atingia como um imperativo? Mas, o que seriam capazes de fazer, que outros sentidos poderiam produzir com esses percursos? Como as diferenças culturais os atravessavam e como eles compunham com isso? De que forma esse encontro, posto em análise, poderia ajudar a acompanhar os processos que ali aconteciam? E qual seria, afinal, a sensibilidade da minha escuta para as perguntas deles? O quanto o grupo seria parceiro nessa proposta?
Com tudo isso e mais o que não consigo contar, o grupo começa com 20 pessoas, jovens estudantes, um ator de teatro, uma enfermeira, uma estudante alemã, outra belga, residentes em Portugal do programa de intercâmbio Erasmus3. A jovem alemã queria aprender português, para vir para o Brasil no ano seguinte. Com o passar do tempo, uns foram, outros chegaram. Procuravam informações elementares sobre acomodação e ajuda, independentemente da condição legal, e conseguiam indicações de organizações religiosas.
E aí muitas coisas aconteceram, mas escolho contar o primeiro encontro em que o tema era "Estou aqui, e agora?".
Um novelo nos enredando
A cada apresentação de um participante, uma história. E de história em história uma rede foi formada.
O ponto de partida das conversas foi a decisão de vir para Portugal. Algumas razões: vontade de conhecer a Europa, tomar um banho de cultura, estudar, trabalhar, melhorar o currículo em instituições internacionais, na expectativa de poder voltar, arranjar emprego e ganhar a vida e viver uma vida melhor. Muitos haviam se formado e estagiado, mas não haviam conseguido emprego na área de formação original. Para as estudantes alemã e belga desejosas de vir para o Brasil, participar do grupo era uma forma de falar português, conhecer a cultura e vivenciar o que é ser estrangeiro, sentimento que, para um cidadão da União Europeia, é diluído.
No primeiro momento, a fala dos brasileiros ocupa as conversas do grupo. Eles trazem histórias de um Brasil que deixa muita saudade e falam do encantamento com o novo país. As participantes alemã e belga são vistas no grupo como à parte do processo de migração, são silenciadas e silenciam, mas paulatinamente se implicam e são implicadas, num 'entre nós' a partir de algumas brechas.
Dizem os brasileiros o quanto a vida no Brasil estava difícil, se conseguiam um emprego, era temporário, com uma carga horária absurda, muita responsabilidade e condições de trabalho insustentáveis. As dificuldades são verbalizadas numa torrente de queixas e ressentimentos. A frustração de não viver do próprio trabalho, a pressão pela continuidade dos estudos e, com isso, uma despesa infindável e a necessidade de sobreviver, trabalha-se no que aparece. Tropeçam na palavra exílio: Sair para se recuperar e ter outras coisas para poder falar, ganhar a vida. E uma tristeza na fala de uma jovem: Eu na verdade descobri uma coisa muito ruim, eu lá ou cá continuo imigrante. Só que lá é pior porque é na minha própria terra.
Gostar do que faz, mas também poder viver do que se faz, ter uma perspectiva predominava na fala dos jovens. Mas, ficar também não era fácil: Você começa a se agarrar ao que tem, mesmo que você não saiba direito o que tem, aí você se isola. E o que aparece de repente é um não lugar. O jovem verbaliza a dolorosa experiência de estar se vendo sem futuro, sem lugar, sem vínculos. Numa movimentação, no compromisso de se qualificar, dar consistência ao currículo, aprender outra língua, trabalhar, estudar, sair do Brasil em que o conhecido são as condições desfavoráveis.
Uns tentam explicar a situação por meio de um discurso de fracasso pessoal, e de dificuldades familiares e escolares. A jovem alemã questiona a maneira como o problema é colocado: individual, particular, como se o mundo em que estamos vivendo não fizesse parte disso. Diz que não pode e não quer comparar sua situação, originária que era de um país rico e de uma família com recursos, com uma série de facilidades. É formada em ciências sociais, trabalha a dança na cultura do hip-hop, o que lhe trouxe uma vivência tão diferente que a fez repensar a vida, sua cultura e o sistema econômico que rege tudo, na lógica do mercado em que a competição e a afirmação de uns se faz na negação de outros. Fala de uma nova colonização, sem fronteiras, que é pouco enfrentada. Um outro participante, ator, concorda com ela, mas diz que esse modo de pensar, ou de não pensar, sobre as coisas, faz parte de um processo histórico das ditaduras na América Latina: não ver, não ouvir, não falar, não pensar. Uma estratégia da ditadura que, se já foi militar, hoje é econômica. Uma história de invisibilidades.
Comentam sobre as manifestações que estão ocorrendo na Espanha (feiras espalhadas por todo país, comandadas por jovens que mobilizam a comunidade civil sobre a situação de falta de perspectiva em que os jovens, na Europa se encontram: política, emprego, moradia, educação, saúde). Essa discussão amplia o campo de reflexões do grupo. A questão é mais que pessoal. Reverbera em vários contextos e oferece diferentes elementos que se compõem e criam novas paisagens.
Não foi um encontro fácil. Saí do grupo muito tocada com as histórias, pensando nos percursos que também atravessava para estar ali. Na pressão alta que nos surpreendeu diante dos desafios de nos expor ao que ainda não conseguimos nomear. Tanto que no encontro seguinte começamos pelo mal-estar que alguns tiveram, inclusive com enjoos e vômitos. O corpo falou. Muitas crenças e histórias desenharam nosso encontro, diferenças no modo de pensar e sentir. De repente o que não encontrou palavras escoou pelo corpo. O corpo doeu.
Tive medo da intensidade dos acontecimentos e dos três meses que tínhamos, me questionei sobre os riscos, duvidei da minha avaliação sobre a pertinência do trabalho, se estava considerando o tempo da minha estadia com o tempo dos jovens do grupo. Estaria sendo inconsequente? Por algum tempo essa questão me tomou. Só mais tarde quando o grupo deu continuidade ao trabalho, sem a minha presença, percebi qual havia sido a minha função: a de sustentar uma escuta ao que pedia palavra e corpo naquele momento. Com as novas conexões entre eles uma rede se teceu em novas tramas. Mas, naquele momento o barco só balançava.
Os incômodos do corpo me levaram a Despret (2004) e suas questões sobre o que diz um corpo. Ao explorar as investigações do psicólogo Pfungst sobre o caso do cavalo Hans e sua relação com o treinador, Despret destaca que os corpos são vibráteis, que são capazes de afetar e serem afetados. O cavalo é capaz de perceber no corpo do treinador sinais que o guiam em suas respostas e indicam uma conversa. Hans lê o corpo do treinador, pois é capaz de dar visibilidade a articulações que estão invisíveis. O corpo do treinador fala, mesmo que ele não perceba, mas Hans é afetado e se deixa afetar por ele. Ora, se um corpo se desenha pelos afetos que o atravessam, quantos corpos podemos ter? Tantos quantos possíveis para que esse corpo se recrie nos afetos que se intercruzam, num processo ininterrupto, que o força a ultrapassar os seus próprios limites. Hans nos desafia.
O mal estar dos corpos no grupo nos empurrava para uma experiência limite. Algo se deslocava entre nós e pedia novas formas. Ficar no mesmo uso das palavras já não dava conta dos processos em curso no próprio corpo dos participantes, da pesquisadora, do campo e no corpo do texto. Uma experiência de abertura e, portanto, de risco. Atravessar esse mal estar teceu entre nós um campo de partilha, nos colocou enfim no mesmo barco. Entramos em movimento. Uma abertura para pensarmos as diferenças como linhas de aproximação, e nessa direção o grupo seguiu.
O que aprendemos
Primeiro, a invenção de um espaço entre nós. Um espaço que chamarei de fronteira. Um 'entre-lugar'. Um espaço muito particular, complexo e delicado, que foi se inventando por um modo de criar tempo e espaço, que nos permitiu atravessar os impactos de poder star juntos, tão 'estrangeiramente'. Um espaço de travessia. O que se tinha era que aquelas pessoas não eram moradoras, turistas ou estudantes, mas já não eram imigrantes, pois eram ilegais em sua maioria. Trabalhavam, mas sem direitos, eram formados, mas sem profissão. Estavam fora das regras, logo, não eram cidadãos. A marca do não prevalecia. Nosso desafio foi descentrar do não para outros possíveis, para a abertura de outros modos de se conviver.
Passamos a prestar atenção no miúdo das falas, gestos e olhares, nos pequenos movimentos que poderiam desarrumar o que sabíamos. Como no barco, a pequena brisa de repente nos surpreende como uma ventania. Talvez daí o medo, meu, deles, nosso, quando não se sabe direito o tamanho do que está por vir e é preciso tirar dali, do entre nós uma direção.
No encontro seguinte, combinamos um piquenique, com a proposta de cada um trazer para compartilhar algo de sua terra: comida, história, música, lembrança, qualquer coisa significativa do lugar de onde vinham. Mas, também algo que fosse novo em suas vidas, parte da experiência na nova cultura. Essa atividade chamou atenção para as mudanças que estavam acontecendo: as novas vizinhanças, a facilidade de circular pela cidade, o habitar um novo espaço, os novos paladares, os hábitos, o mapeamento de novos lugares e a percepção de coisas que estavam em estado de acontecimento. Afinar o olhar. Muito interessante a percepção entre o que está em andamento e a recusa de acolher o que mudou. O quanto o corpo sinaliza um impacto, mas ainda não habitou os novos movimentos. Atravessar a fronteira nos leva a perceber o que é e o que não é mais, e incorporar as novas marcas, que dão condições de seguir ampliando a capacidade de os corpos se apoderarem do próprio destino.
Em segundo lugar, aprendemos a importância da escuta, que pode nos levar para fora do que já sabemos. Escutar o campo e o maior número de conexões que o atravessam. Nesse percurso, a escuta ganha um destaque fundamental, uma película sensível a outras sintaxes, que ativa novas sensibilidades e intensidades promissoras. Uma escuta que sustente, acolha o que escapa, ainda que em murmúrios, e que não deixe no vácuo do mar aberto uma possibilidade de naufrágio. Manter presente que, diante de tantas falas, é o que nos afeta que toma nossa atenção.
Uma convocação se faz para abandonarmos o solo firme da totalidade, das certezas que a razão insiste em cultivar e que nos dão identidades. Ao contrário, é preciso buscar a abertura para as multiplicidades de versões. Qualquer versão? Sim, qualquer versão. Mas, com certeza, há que se pesar o que a versão pode nos fazer fazer, e nessa direção ser responsável pelas consequências desses fazeres. Qualquer versão, mas não qualquer coisa. Qualquer coisa nos faz qualquer coisa.
Dentro disso, a escuta do corpo. Todo ouvido. Todo ouvido com o outro. Não deixá-lo sem retorno, nem ocupar seus vazios com promessas de como fazer, mas sustentar lado a lado o tempo da travessia. O passar mal, o mal-estar vivido no corpo no grupo, o desassossego da coordenadora do serviço (mal-estar, o medo de como suas informações contribuíam para uma maior integração ou somente para o controle dos órgãos de extradição) e as dúvidas da pesquisadora quanto às suas implicações: uma atividade por três meses e depois ir embora4? Tudo isso, junto e misturado, desenhou caminhos. E esse compromisso com a escuta mostrou-se fundamental, foi o que afiançou o encontro, um espaço de partilha, principalmente do que estava fora do protocolo.
Em terceiro lugar, aceitar as rupturas, desvios e mudanças, porque algo que virou desassossego já pede novas formas, é algo que já está presente, mesmo que ainda não tenha nome.
Conseguiu o que andava a procura: começar a cair do outro lado. Está, finalmente, numa geografia onde reina a estranheza e também - pelo menos, para ele - o mistério. E repara que a alegria que rodeia tudo o que é novo está quase a fazê-lo voltar a ver o mundo com entusiasmo. Em países como este, é possível reinventarmo-nos, abrem-se horizontes mentais... Se toda a gente soubesse ver o mundo assim, pensa, se toda a gente compreendesse que, de repente, tudo pode ser novo à nossa volta, nem sequer necessitaríamos de perder tempo a pensar na morte (Vila-Matas, 2011, p.15).
Nesse contexto, pensamos ainda nas narrativas que uma pesquisa pode produzir e no que ela é capaz de fazer com o pesquisador. Dizendo de outra forma, o que está em jogo numa pesquisa travessia é até onde seria possível pensar de forma diferente, em vez de legitimar o que já se sabe, pois é a própria vida que se desloca para a zona de risco. E, atravessado pelas dobras dos acontecimentos, já não se volta mais o mesmo. O saber implica justamente nessa metamorfose do olhar e da própria existência, nessa transfiguração ou separação de si mesmo.
Também não podemos esquecer que é preciso suportar os momentos de confusão diante dos muitos que nos habitam. É buscar o fio de Ariadne num labirinto confuso, como se refere Stengers (1989) ao trabalho de Barbara McClintock.
Um belo exemplo dessa tensão é o que os diários de Cristóvão Colombo nos mostram, segundo Todorov (1993, p.18). Ele descreve dois Colombos, um marcado pelo cristianismo, praticante e obediente aos ensinamentos da igreja. A verdade e o caminho estão dados. A vida é graça, e os ensinamentos só caem em desgraça das dúvidas pela falta de fé.
Há outro Colombo, entretanto. O jovem que foi criado junto ao mar, entre velhos marinheiros e suas histórias, nas artesanias dos nós, ventos e marés. Marcado por uma sabedoria que é difícil de esquecer, pois feita na memória do corpo: "Vivi a vida dos marinheiros... esse ofício leva aqueles que o abraçam a querer conhecer os segredos desse mundo". Colombo sabia conversar com o mar sem a mediação da doutrina. Como discípulo do mar, pensou diferentemente do que sabia. Atravessou suas próprias fronteiras, se reinventou e reinventou o mundo.
Assim, "o barco é a heterotopia por excelência "(Foucault, p.422, 2001), são os contra lugares que contestam e invertem o espaço real em que vivemos. Espaços que funcionam em condições não hegemônicas e criam ilusões necessárias à vida. Nos interstícios da fronteira, nos fazem fazer da própria borda espaços de invenção e inventar em novos ancoradouros. Se tivesse ficado na biblioteca e nos seminários, com certeza teria muitas histórias para contar, mas a que vivi só foi possível pelos encontros, naquele momento, com aquelas pessoas, naquele lugar. E de lá continuo recebendo notícias, de que o grupo segue seu rumo, inventando seus caminhos, se multiplicando em novas vozes.
De volta ao porto, não mais os mesmos.
Não é incomum que ao planejarmos uma desejada viagem, a ida pareça bem mais longa do que a volta. Em geral a ida está envolvida pela ansiedade do novo, pela excitação da realização de um desejo, enfim, pela suposta alegria do conhecimento. Já a volta é marcada pelo cansaço, pela familiaridade pressuposta do trajeto que não mais oferece novidades. De volta para casa temos a sensação de saber onde estamos vivenciando um certo conforto e, por que não dizer, um tipo de controle sobre o tempo e o espaço. No contexto desta trajetória, "voltar para casa" representa retomar um caminho familiar, é verdade. No entanto, este caminhar de regresso não tem nada do mesmo, pois me disponibilizo a passar por esse caminho com um olhar mais atento aos pequenos recantos resgatando o novo no velho percurso, percebendo-o com o vigor e a admiração de uma primeira vez. (Quadros, 2011, p.24).
Uma aposta. Uma aposta de todos que buscam na direção de um fazer Ciência, uma Ciência no Feminino feita nas artesanias do tempo, do corpo, na escuta de um campo de forças coletivas que não deixem no vácuo os múltiplos singulares da vida que insiste passar.
Referências
Damian, J. (2014). La plume sans le masque. In Tollis, C. Créton-Cazanav, L. Aublet, B. L'effet Latour: l'influence d'un sociologue sur une communauté de jeunes chercheurs. p. 221-248. Paris: Éditions Glyphe. [ Links ]
Despret, V. & Stengers, I. (2011). Les faiseuses d'histoires. Ce que les femmes font à la pensée. Paris: La Découverte / Les Empêcheurs de penser en rond. [ Links ]
Despret, V. (2004). The body we care for: figures of anthropo-zoo-genesis. Body and Society, 2004. Versão traduzida para o português por Maria Carolina Barbalho e Ronald Arendt, não publicada. Recuperado em 03 outubro 2014 de http://xa.yimg.com/kq/groups/19965835/1307741106/name/Despret+-+Hans.doc
Foucault, M. (2001). Outros Espaços. In: Michel Foucault. Estética: literatura e Pintura, Música e Cinema. (pp.411- 422). Coleção Ditos e Escritos, v.III. Rio de Janeiro: Forense Universitária. [ Links ]
Haraway, D. (2008). When species meet. Minneapolis: University of Minnesota Press. [ Links ]
Haraway, D. (1995) Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, 5, 7-41. [ Links ]
Mol, A. (2007). Política ontológica. Algumas ideias e várias perguntas. In: Nunes, J. A; Roque, R. (Orgs.). Objectos impuros: experiências em estudos sociais da ciência (pp.22-40) Porto: Edições Afrontamento. [ Links ]
Moraes, M. (2010). PesquisarCOM: política ontológica e deficiência visual. In: Moraes, M.e Kastrup, V. Exercícios de ver e não ver: arte e pesquisa com pessoas com deficiência visual (pp.26-51) Rio de Janeiro: Nau Editora. [ Links ]
Portugal. Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural, I.P.- ACIDI (2011). www.acime.gov.pt.
Portugal. Casa do Brasil de Lisboa (2011). www.casadobrasil.info/.
Quadros, L.C.T. (2011) A Construção Artesanal do Fazer Clínico. Tese de doutorado, Programa de Pós Graduação em Psicologia Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, Rio de Janeiro, RJ. [ Links ]
Todorov, T. (1993). A Conquista da América: A Questão do Outro (pp. 18-387). São Paulo: Ed. Martins Fontes. [ Links ]
Stengers, I. (1989) A Ciência no Feminino. (pp. 427-431). Revista 34 Letras, nº 5/6, Rio de Janeiro. [ Links ]
Vila-Matas, E. (2011). Dublinesca (p-320). Alfragide: Teorema. [ Links ]
Recebido em 28/11/2015
Aprovado em 29/03/2016
1 http://www.casadobrasil.info/, acesso em Dez. 2012.
2 http://www.acidi.gov.pt/, acesso em Fev. 2013.
3 Protocolo Erasmus - European Region Action Scheme for the Mobility of University Students - estabelecido em 1987, é um programa de apoio interuniversitário de mobilidade de estudantes e docentes do ensino superior entre estados membros da União Europeia (UE) e estados associados, que permite a alunos estudarem noutro país por um tempo entre 3 e 12 meses. O objetivo é encorajar e apoiar a mobilidade acadêmica, dentro da UE.
4 O Grupo de Acolhida continua em atividade na Casa do Brasil de Lisboa, sob responsabilidade dos próprios participantes. Um bom analisador dos processos de implicação dos participantes.