11 2 
Home Page  


Pesquisas e Práticas Psicossociais

 ISSN 1809-8908

     

 

As possibilidades de intervenção do psicólogo em favor dos procedimentos de doação de órgãos e transplantes: um relato de experiência

 

The possibilities of psychologist's intervention in favor of organs donation and transplantation procedures: an experience report

 

Las posibilidades de intervención del psicólogo en favor de los procedimientos de donación de órganos y trasplantes: uno relato de experiencia

 

 

Elizielly de Oliveira MartinsI; Hugo Silva ValenteII; Lara Brum de CalaisIII

IGraduanda em Psicologia pela Faminas Muriaé. E-mail: eliziellyom@hotmail.com
IIMestre em Psicologia pela UFSJ. Professor de Psicologia na Faminas Muriaé
IIIMestre em Psicologia pela UFJF. Doutoranda em Psicologia pela UFJF. Professora do curso de Psicologia no CES-JF

 

 


RESUMO

Este relato de experiência apresenta, primeiramente, uma breve revisão sobre o funcionamento dos procedimentos de doação de órgãos e transplantes no Brasil, em termos de regulamentação jurídica, protocolos técnicos e questões éticas envolvidas. Num segundo momento, argumentamos sobre a necessidade de atuação do psicólogo na chamada "cadeia de doação". Por fim, apresentamos o relato de experiência de um projeto realizado em um hospital geral, situado em uma cidade da Zona da Mata Mineira, que demonstra como a intervenção psicológica grupal pode melhorar os serviços de conscientização social sobre a importância da doação de órgãos. Em longo prazo e em escalas maiores, as intervenções psicológicas podem funcionar como ferramenta de redução das filas de espera para transplantes, por meio da modificação de opiniões muitas vezes fantasiosas sobre esse procedimento que tem salvado vidas em todas as partes do mundo.

Palavras chave: Doação de órgãos; Transplante de órgãos; Atenção primária; Psicologia hospitalar.


ABSTRACT

First, this experience report presents a short review about the procedures of organ transplantation, in Brazil, in terms of its legal regulation, technical protocols and the ethical issues involved. Secondly, we will argue for the need of psychologist's performances in the so-called 'donation chain'. Finally, we will present an experience report of a project implemented in partnership with a general hospital, situated in a city of Zona da Mata Mineira. This experience report demonstrates how psychological intervention in groups can improve the social awareness about the importance of organ donations. In long terms and larger scales, the psychological intervention can be used as a tool to reducing the waiting lists for transplants. This is because it can help to change the fanciful beliefs that people often have about this procedure that has been saving lives all over the world.

Keywords: Organ donation; Organ transplantation; Primary care; Hospital psychology.


RESUMEN

Este relato de experiencia presenta, al principio, una breve revisión sobre el funcionamiento de los procedimientos de donación de órganos y trasplantes en Brasil, en términos de regulación jurídica, los protocolos técnicos y cuestiones éticas involucradas. En uno segundo momento, argumentamos sobre la necesidad de la actuación del psicólogo en la llamada 'cadena de donación'. Por fin, se presenta el relato de experiencia de uno proyecto llevado a cabo en uno hospital general, situado en una ciudad de La Zona de La Mata Mineira, que muestra cómo la intervención psicológica en uno grupo puede mejorar el conocimiento de los servicios sociales sobre la importancia de la donación de órganos. En largo plazo y en escalas más grandes, las intervenciones psicológicas pueden funcionar como herramienta de reducción de las filas de espera para trasplantes, a través de la modificación de opiniones menudo fantasiosas acerca del procedimiento que tiene salvado vidas en todas las partes del mundo.

Palabras clave: Donación de órganos; Transplante de órganos; Atención primaria; Psicología hospitalar.


 

 

Introdução

Os transplantes de órgãos são práticas cirúrgicas capazes de salvar vidas e trazer esperança para os pacientes acometidos pelas mais variadas doenças. Porém, os índices de transplantes realizados pelos sistemas de saúde são muito baixos. Esse índice reduzido está associado a dificuldades tecnológicas e à falta de doadores. É possível constatar que, para o aumento das doações, é necessário amplo debate em comunidade e intensa conscientização da população a respeito dos benefícios da doação.

A doação de órgãos é um procedimento situado no tênue limite entre a vida e a morte e dialoga com a dimensão simbólica da relação do homem com o mundo e com os outros homens (Steiner, 2004). Por isso, esse procedimento precisa ser discutido, no contexto subjetivo, com os possíveis doadores e receptores e também no contexto familiar. Essas discussões podem trazer à tona fantasias que têm influência direta nas decisões e no equilíbrio emocional dos indivíduos envolvidos (Garcia, Souza & Holanda, 2005). As fantasias advindas do senso comum e informações incorretas sobre os procedimentos se relacionam diretamente com o baixo número de doações.

Com isso em vista, este relato de experiência apresenta uma das possibilidades de "intervenção psicológica", neste caso em ambiente hospitalar, relacionada à conscientização e provimento de informações sobre a importância da doação e transplantes de órgãos. Essa intervenção está articulada aos programas de Atenção Primária em Saúde (APS) e Educação Permanente em Saúde (EPS).1

A Atenção Primária em Saúde é responsável pelos procedimentos de menor complexidade no tratamento de saúde da população, seja de necessidades individuais ou da família. O individuo é colocado como parte central dos serviços de cuidado: ele é visto como parceiro na gestão da própria saúde e da comunidade a que pertence, tendo acesso a orientações, conhecendo os modelos de tratamento de saúde e fortalecendo uma relação mais duradoura e direta com os seus cuidadores (Organização Mundial da Saúde, 2008). Este relato de experiência se inclui numa interface da Psicologia com a Atenção Primária.

É na Atenção Primária que a aplicação dos procedimentos do nível zero da "cadeia de doação", ou seja, a conscientização e o estímulo ao sujeito para conversar sobre o tema com a família teria mais êxito, por existir uma relação mais estreita entre cuidadores, indivíduo e sociedade. Por esse motivo, os profissionais de saúde têm muita importância na divulgação de informações sobre a doação de órgãos (Traiber & Lopes, 2006).

 

Conhecendo o programa de doação de órgãos no Brasil

Atualmente, vigora no Brasil a Lei nº 9.434/97, que trata de aspectos importantes como, a condição da retirada dos órgãos, como deve ser realizado o diagnóstico de morte encefálica, que permite a doação intervivos de órgãos duplos e tecidos, proíbe e pune qualquer tipo de comercio de órgãos, criando os sistemas nacionais responsáveis pelo gerenciamento dos procedimentos de fila de espera, etc. Nesse mesmo ano, foi promovida uma reflexão multiprofissional, no campo da Saúde Pública, sobre os critérios que permeiam os procedimentos de doação, tais como as necessidades sociais, as filas de espera e a dificuldade para encontrar doadores (Bendassolli, 2001).

De acordo com a Portaria nº 2.933/10, no âmbito da doação de órgãos e transplantes, é essencial utilizar as estratégias da política de Educação Permanente em Saúde.2 Essa é uma das melhores ferramentas de conscientização voltada para a capacitação dos profissionais envolvidos, para que eles possam executar melhor suas funções e repassar informações úteis para a população. Além de diminuir a probabilidade de erros do profissional, aumenta a conscientização coletiva sobre o tema e a possibilidade de receber um "sim" da família na hora da entrevista.

As CIHDOTTS,3 segundo a Portaria nº 2.600/09, são responsáveis pela promoção da Educação Permanente em Saúde com a equipe hospitalar. Esse programa pode ser realizado em parceria com a equipe de recursos humanos, ou seja, com o setor administrativo e com o setor de psicologia organizacional do hospital. Ele colabora na estrutura da "cadeia de doação", que caracterizamos a seguir.

Existem duas formas de doação de órgão: em vida (intervivos) e após a morte (post mortem) (Steiner, 2004). A primeira geralmente ocorre entre membros da família de primeiro grau. Na segunda, o candidato à recepção deve aguardar a vez numa fila de espera até que o órgão de um doador compatível seja disponibilizado.

A "cadeia de doação" é caracterizada por três "níveis de atuação" que devem ser seguidos tanto na doação em vida quanto na pós-morte: 1. Extirpação; 2. Transplante; e 3. Cuidados. A extirpação é posterior à permissão de remoção do órgão (Steiner, 2004). No caso da doação após a morte do doador, inicialmente deve-se verificar e documentar legalmente se houve morte encefálica, pois para que o procedimento seja bem-sucedido é necessário manter o funcionamento fisiológico dos órgãos em estado satisfatório. Trata-se, portanto, de questões técnicas para as quais toda a equipe hospitalar é mobilizada (Garcia, 2000).

As questões sociais envolvidas na doação de órgãos, que Steiner (2004) chama de "dimensão das relações", estão atualmente incluídas no nível 1 da cadeia de doação. Essa dimensão se inicia com o envolvimento de membros da família do possível doador com a equipe médica. Trata-se do reconhecimento da vontade ou da opinião do paciente, que agora está em estado de morte cerebral ou óbito, quanto à doação de órgãos. Caso o paciente não esteja incluído em nenhum item da lista de rejeição, cabe à sua família o consentimento para que o processo de doação prossiga em termos de extirpação do órgão.

O segundo nível da "cadeia da doação" é o transplante, fase em que o órgão passa a pertencer ao corpo de outra pessoa. Por último, seguem os procedimentos do nível de "cuidado": após o transplante deve ser oferecido acompanhamento psicológico e médico ao receptor, considerando que esse é o momento em que o paciente está mais sensibilizado, pois foi lhe concedida uma "nova oportunidade de vida" e será necessário restabelecer suas funções físicas e emocionais (Steiner, 2004).

É importante observar que a "cadeia de doação" necessita de um nível anterior aos que foram apresentados acima, que seria o "nível zero", nível de conscientização social sobre a temática da doação. Esse momento de conscientização deve estar incluído na cadeia de doação como um dos procedimentos que compõem o trabalho de Educação Permanente em Saúde e dos profissionais que trabalham na Atenção Primária à Saúde. Essa conscientização, tanto dos profissionais quanto da população em geral, colabora no aumento de número de doadores e, consequentemente, na redução das filas de espera por transplante. É nesse nível de trabalho que se insere nossa temática.

Apesar de o sistema de fila no Brasil ser comparativamente bem organizado, a lista de espera hoje é bem maior do que a das doações recebidas. O motivo disso é a falta de procedimentos técnicos permanentes de conscientização social sobre doação de órgãos (Timm, 2011). Além disto, o sensacionalismo dos noticiários a respeito do tráfico de órgãos alimenta ainda mais o preconceito (Moraes, Gallani & Meneghin 2006).

Por motivo do crescimento demasiado da fila de espera, tornou-se obrigatório que os hospitais com número de leitos igual ou superior a 80 criassem as Comissões Intra-Hospitalares de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplantes (CIHDOTTS). Essa é uma das políticas públicas adotadas para a melhoria do quadro de doações e transplantes (Pêgo-Fernandes e Garcia, 2010). No Brasil, o Sistema Nacional de Transplantes (SNT) recebe auxílio também do Ministério da Saúde, da Central Nacional de Notificações, Capitação e Distribuição de Órgãos (CNNCDO) e das Organizações à Procura de Órgãos (OPOs) (Timm, 2011).

 

Psicologia da saúde e as intervenções em grupos

A psicologia da saúde deve estar engajada na temática de doação de órgãos, pois na última nos deparamos com questões sociais, clínicas e institucionais a respeito dos procedimentos que permeiam a doação e o transplante (Bendassolli, 2001). O indivíduo, seja receptor, doador ou familiar de doador, está sujeito a reações que irão depender do seu conhecimento a respeito desse procedimento e o significado que ele dá ao transplante. Nos procedimentos de doação em vida, a primeira entrevista psicológica com o doador tem como objetivo informá-lo sobre os processos cirúrgicos pelos quais irá passar e sondar as questões emocionais e níveis de conhecimentos relativos à doação. Já com o receptor do órgão, o objetivo é investigar suas expectativas e confiança diante do processo, esclarecer suas fantasias e dúvidas, possibilitando que sintomas de ansiedade e medo diminuam, trazendo reforços positivos ao procedimento (Garcia et al., 2005).

No caso dos familiares de pessoas doadoras pós-morte, deve-se levar em conta que o momento de realização da entrevista para a doação coincide com um período de luto vivenciado pela perda de um familiar, demandando uma abordagem psicológica cautelosa (Sadala, 2004). Ao mesmo tempo, abordar a questão da doação exige urgência devido às dificuldades técnicas que podem ocorrer caso o tempo mínimo de espera pela extirpação seja ultrapassado. Nesse período, a decisão da família é muito difícil e, por isso, tudo é determinante no momento da decisão: o tratamento da equipe médica antes e pós-óbito, a atenção que é dada aos familiares, a forma como é oferecida a possibilidade de doação, etc. É válido lembrar que o papel do psicólogo ou entrevistador não é de convencer, e sim apresentar a possibilidade da doação. A conscientização social sobre a relevância da doação de órgãos ocupa uma posição central, tendo em vista que a divulgação e esclarecimento sobre os aspectos relacionados à doação podem facilitar o entendimento da população e, consequentemente, aumentar o número de doadores e o número de pessoas salvas. É importante frizar que, caso um dos membros da família não esteja de acordo, o processo se encerra e não é realizada a doação (Rech & Filho, 2007).

Outro ponto relevante é que a família saiba da condição de óbito antes que ocorra a entrevista incluída no nível 1 da cadeia de doação. Fazer a entrevista em busca de aprovação da retirada do órgão antes de a família saber o relatório preciso sobre a morte do seu familiar diminui a probabilidade de respostas positivas para a doação (Timm, 2011).

Com a intenção de colaborar no debate sobre as intervenções do psicólogo na temática da doação de órgãos, apresentaremos um relato de experiência de um Projeto de Extensão Universitária realizado pelos autores deste texto e outros colaboradores, num ambiente hospitalar localizado em uma cidade da Zona da Mata Mineira. O referido projeto utilizou as "rodas de conversa" com pacientes e acompanhantes em situação hospitalar com o objetivo de conscientizá-los a respeito dos benefícios da doação de órgãos para o campo da saúde. O conceito de "humanização dos serviços"4 deve estar presente em todo o processo de conscientização, doação e transplante de órgãos (Moraes, Santos, Merighi & Massarollo, 2014). É absolutamente necessária a humanização de todas as etapas desse processo, desde o nível zero (nível de conscientização) até o nível três (nível de cuidados).

 

Uma experiência de conscientização

Os objetivos principais desse projeto foram a conscientização e a sensibilização social para a doação e o transplante de órgãos e também o levantamento de informações sobre as possibilidades de atuação do psicólogo na cadeia de doação. Levamos em conta os processos psicossociais e os princípios básicos da Atenção Primária, como a facilitação da acessibilidade à informação, orientação para o contexto familiar, análise de contexto social e orientações para promoção de saúde (Starfield, 2002). O objetivo de nossa proposta foi, portanto, ampliar os serviços relacionados às campanhas de doação de órgãos e transplantes. Nosso interesse é que essas campanhas não se resumam apenas a panfletagem e discursos vagos. A ideia foi levar aos pacientes e acompanhantes uma informação de qualidade e esclarecer suas dúvidas, de maneira que conseguissem disseminar as informações que recebiam dos profissionais para as suas famílias e comunidades. Dessa forma, poderíamos produzir efeitos de participação ativa do público-alvo nessa "cadeia de doação", aumentando a probabilidade de doação e consequentemente indivíduos salvos pelos transplantes.

A proposta, desde a apresentação do tema, foi bem recebida pela instituição hospitalar e pelo setor de recursos humanos, incluindo o setor de psicologia organizacional responsável pela autorização formal. O hospital já possuía a CIHDOTT que, na ocasião, era composta por três enfermeiras e uma psicóloga. Nosso primeiro passo foi participar das reuniões periódicas da comissão, que abrangiam discussões sobre as atualizações dos procedimentos práticos e legais da doação e transplante, organização das campanhas, captação de doações realizadas no hospital e questões relacionadas à entrevista familiar.

As informações que forneceríamos foram estabelecidas a priori e depois reorganizadas de acordo com as demandas que surgiam durante os encontros. Buscamos materiais publicados pelo Ministério da Saúde e em artigos científicos relacionados ao tema. Além das reuniões da CIHDOTT, realizamos entrevistas com uma das psicólogas do MG Transplante de uma cidade da Zona da Mata Mineira, a fim de nos orientarmos com profissionais que já atuavam nessa área há mais tempo.

Os encontros propriamente ditos foram realizados em duas reuniões por semana durante o período de quatro meses consecutivos. Essas reuniões ocorriam nos leitos do setor de internação onde estavam internados pacientes do SUS. Cada leito comportava de dois a oito pacientes internados com seus respectivos acompanhantes. As conversas eram realizadas de quarto em quarto. Propusemos aos participantes que se sentassem em círculo, quando possível, para facilitar a troca de experiências e o alcance visual entre eles e o facilitador. Os procedimentos sobre doação e transplante eram explicados de forma geral e algumas questões eram aprofundadas quando necessário. As intervenções tinham a duração média de vinte minutos. No fim de cada conversa eram distribuídos panfletos e fôlderes explicativos.

Suspeitávamos que os pacientes ficariam receosos quanto ao tema abordado, devido às características gerais do ambiente em que estavam e, muitas vezes, devido ao seu alto grau de debilidade em termos de saúde. Sabemos que esse contexto frequentemente faz as pessoas refletirem sobre as questões relacionadas à morte, muitas vezes permeadas de angústia e medo. Com o intuito de evitar a resistência dos pacientes e acompanhantes, desde o início das conversas já explicávamos com cautela que o objetivo daquela intervenção não era induzir à doação, mas sim apresentá-los a possibilidade de conhecer mais sobre o tema. De forma geral, fomos muito bem recebidas nos leitos e tivemos participação significativa daqueles pacientes. Dispúnhamos de muito pouco tempo para realizar as intervenções, já que os pacientes recebiam constantemente a visita de médicos, enfermeiros, nutricionistas, fisioterapeutas e assistentes sociais. Essa grande movimentação de profissionais e a rotina do hospital faziam com que nossos encontros fossem frequentemente entrecortados. Dispúnhamos de um tempo médio de 15 a 20 minutos para cada intervenção grupal e o número de participantes em cada roda de conversa variava de três a 16 pessoas.

As dúvidas mais frequentes durante nossas intervenções eram, por exemplo, a respeito da morte encefálica, já que alguns pacientes não entendiam esse conceito e muitas vezes acreditavam que "se o resto do corpo ainda funciona é sinal de que ainda há esperança de o paciente voltar à vida". Houve também o aparecimento de dúvidas relacionadas ao "tráfico de órgãos". Alguns pacientes acreditavam que o atestado de óbito poderia ser dado mesmo antes de ele morrer, a fim de retirar seus órgãos para a venda ilegal. Realmente a técnica de transplante gerou uma nova modalidade de crimes relacionados à venda de órgãos, mas a legislação prevê que o diagnóstico de morte encefálica seja realizado por dois médicos diferentes, que não podem fazer parte da equipe responsável pela doação de órgãos e transplante (Lei n. 9.434/97). Além do mais, os familiares têm o direito de acompanhar os profissionais no momento da realização do diagnóstico. De qualquer forma, foi importante esclarecer-lhes que os procedimentos de doação e transplante devem ser realizados sempre em instituições preparadas e que é muito importante que conheçamos os detalhes envolvidos nesse contexto para que a sua insegurança seja reduzida. Em todos os encontros, percebemos a real necessidade desses grupos de conversa especializada a fim de realizar a desmitificação desse tipo de intervenção médica e reduzir mal-entendidos.

Outra dúvida relatada se referia à integridade aparente do corpo após a retirada dos órgãos a serem doados. Alguns participantes acreditavam que os procedimentos poderiam descaracterizar a imagem corporal do falecido. Como esclarecimento, informamos que há um compromisso ético e legal relacionado à manutenção do corpo no melhor estado aparente possível. Os profissionais que atuam na fase de extirpação se preocupam em realizar suturas com muito cuidado e, se possível, que essas suturas não estejam visíveis durante as cerimônias de velório. No caso de retirada de córneas, que é uma intervenção que deixa traços mais visíveis (geralmente hematomas na face, na região abaixo dos olhos), há possibilidades de minimização dos efeitos visuais por meio da maquiagem e preparo do corpo antes do velório. Além do mais, o aparecimento de hematomas sob os olhos é frequente mesmo nos casos em que não houve retirada de órgãos (Associação Brasileira de Transplante de Órgãos, 2002).

Apesar da alta rotatividade de participantes, em algumas ocasiões tivemos a oportunidade de reencontrar pessoas que já tinham participado da nossa roda de conversa das semanas anteriores. Com isso, em curto prazo já conseguimos obter respostas positivas sobre a nossa intervenção, por exemplo: uma senhora que estava como acompanhante de um dos pacientes relatou que tinha o desejo de ser doadora de órgãos, porém nunca tinha conversado sobre essa questão com a família. Depois de ter participado da nossa roda de conversa, de ter recebido várias informações e ter tirado suas dúvidas, ela se sentiu mais à vontade para expressar esse desejo para a família. Da mesma forma, pôde saber qual era o desejo de cada um dos familiares em relação à doação de órgãos.

Episódios como esse demonstram os efeitos de aumento da probabilidade de alcançar, mesmo que em longo prazo, nosso objetivo de ampliar o número de indivíduos que estejam dispostos a doar. Mais do que a disposição, essas pessoas passam a relatar abertamente à família sobre seu desejo para que, no momento da entrevista, esses familiares já tenham consciência da decisão tomada, o que acarretará sucessivamente a diminuição do número de indivíduos que estão na fila à espera de um transplante. Assim cumpriremos nosso dever como profissionais em favor da saúde pública, na atenção primária à saúde, mais especificamente no "nível zero da cadeia de doação de órgãos".

 

Referências bibliográficas

Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (2002). Ministério da Saúde, Conselho Federal de Medicina. Entenda a doação de órgãos: decida-se pela vida.

Bendassolli, P. F. (2001). Percepção do corpo, medo da morte, religião e doação de órgãos. Psicologia: reflexão e crítica. 14(1), 225-240.         [ Links ]

Bettinelli, L. A., Waskievicz, J., & Erdmann, A. L. (2004). Humanização do cuidado no ambiente hospitalar. Humanização e cuidados paliativos (pp. 87-99). São Paulo-SP: Edições Loyola.         [ Links ]

Garcia, M. L. P., Souza, Â. M. A., Holanda, T. C. (2005). Intervenção psicológica em uma unidade de transplante renal de um hospital universitário. Psicologia Ciência e Profissão. 25(3), 472-483.         [ Links ]

Garcia, V. D. (2000). Por uma política de transplantes no Brasil. São Paulo-SP: Oficce Editora.         [ Links ]

Lei n. 9.434 de 4 de fevereiro de 1997 (1997). Dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento e dá outras providências. Brasília, 1997. Recuperado em 20 janeiro, 2015, de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9434.htm

Moraes, E. L., dos Santos, M. J., Merighi, M. A. B., & Massarollo, M. C. K. B. (2014). Vivencia de enfermeros en el proceso de donación de órganos y tejidos para trasplante1. Rev. Latino-Am. Enfermagem, 22(2), 226-33.         [ Links ]

Moraes, M. W., Gallani, M. C. B. J., & Meneghin P. (2006). Crenças que influenciam adolescentes na doação de Órgãos. Rev Esc Enferm USP, 40(4), 484-492.         [ Links ]

Organização Mundial da Saúde. (2008). Relatório Mundial de Saúde 2008: cuidados de saúde primária - agora mais que nunca.

Portaria nº 2.600, de 21 de outubro de 2009 (2009). Aprova o Regulamento Técnico do Sistema Nacional de Transplantes. Brasília, 2009. Recuperado em 5 fevereiro, 2015, de http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2009/prt2600_21_10_2009.html

Portaria nº 2.933, de 27 de setembro de 2010 (2010). Institui no âmbito do sistema nacional de transplantes - SNT, o programa nacional de qualificação para a doação de órgãos e de tecidos para transplantes - Qualidott. Brasília, 2010. Recuperado em 11 agosto, 2014, de http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2010/prt2933_27_09_2010.html

Rech, T. H., & Rodrigues Filho, E. M. (2007). Entrevista familiar e consentimento. Revista Brasileira de Terapia Intensiva, 19(1), 85-89.         [ Links ]

Sadala, M. L. A. (2004). Doação de órgãos: a experiência de enfermeiras, médicos e familiares de doadores. São Paulo-SP: Unesp.         [ Links ]

Starfield, B. (2002). Atenção primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologias. Brasília: Ministério da Saúde.         [ Links ]

Steiner, P. (2004). A doação de órgãos: a lei, o mercado e as famílias. Tempo Social, Revista de Sociologia da USP, 16(2), 101-108.         [ Links ]

Timm, G. A. (2011). Ministério da Educação. Universidade Católica de Pelotas: centro de ciências jurídicas e sociais. Mestrado em política social.

Traiber, C., & Lopes, M. H. I. L. (2006). Educação para doação de órgãos. Sci. med, 16(4), 178-182.         [ Links ]

 

 

Recebido em 30/09/2015
Aprovado em 06/09/2016

 

 

1 É importante ressaltar aqui que, apesar de os hospitais fazerem parte e serem responsáveis pelos procedimentos da Atenção Terciária à Saúde, a intervenção psicológica que será relatada se apropria de recursos da Atenção Primária à Saúde.
2 O programa de Educação Permanente em Saúde é uma estratégia do Sistema Único de Saúde (SUS), adotada com o intuito de capacitar e qualificar os profissionais da saúde. O objetivo é disponibilizar um profissional mais bem preparado para atender melhor e com mais eficácia a população.
3 Comissões Intra-Hospitalares de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplantes.
4 A humanização no contexto do tratamento hospitalar se refere à valorização das dimensões humanas e subjetivas dos indivíduos envolvidos. No caso do paciente, cuidá-lo em sua totalidade, levar em conta questões psíquicas, físicas, emocionais, espirituais, sociais, entre outras (Bettinelli, Waskievicz & Erdmann, 2004).

Creative Commons License All the contents of this journal, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution License