Pesquisas e Práticas Psicossociais
ISSN 1809-8908
Homicídios conjugais na grande Florianópolis: notícias publicadas no diário catarinense1
Conjugal homicides in Florianópolis: news articles published by diário catarinense
Homicidios conyugales en gran Florianópolis: noticias publicadas en diario catarinense
Lucienne Martins-BorgesI; Júlia de Freitas GirardiII; Mariá Boeira LodettiII
IProfessora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina. Contato: lucienne.borges@ufsc.br
IIMestranda em Psicologia, Universidade Federal de Santa Catarina. Contato: julia.girardii@hotmail.com
IIIGraduanda em Psicologia, Universidade Federal de Santa Catarina. Contato: mboeiralodetti@gmail.com
RESUMO
O homicídio conjugal é entendido como uma passagem ao ato que ocorre dentro de uma relação conjugal, na qual os parceiros podem estar juntos ou separados. A presente pesquisa visou realizar um mapeamento dos casos de homicídios conjugais cometidos na Grande Florianópolis, de 2000 a 2010, a fim de identificar as principais variáveis envolvidas nesses homicídios. Para tanto, utilizou-se as reportagens jornalísticas publicadas no jornal de maior circulação na região: Diário Catarinense. Realizou-se uma coleta no banco de dados no arquivo do jornal, a qual totalizou 34 casos de homicídio conjugal. Concluiu-se que há uma predominância de homicídios conjugais nas seguintes situações: cometidos por homens, em casais com relatos de violência conjugal e em casais cuja separação e o ciúme apresentam significativo impacto.
Palavras-chave: homicídio conjugal; crime passional. violência conjugal; pesquisa documental.
ABSTRACT
Conjugal homicide is understood as an acting out that occurs within a conjugal relationship in which partners can be together or apart. This research was aimed at mapping the cases of conjugal homicides that were committed in Florianópolis, from 2000 to 2010, in order to identify the main variables involved in these murders. For this, it was used the news reports published in the most popular newspaper in the region: Diário Catarinense. A data collection was conducted in the database of the journal files, which totalized 34 cases of conjugal homicide. It was concluded that there is a predominance of conjugal homicides in the following situations: committed by men, in couples in which there were reports of conjugal violence and in couples in which abandonment and jealousy have a meaningful impact.
Keywords: conjugal homicide; passional crime. domestic violence; documentary research.
RESUMEN
Homicidio conyugal se entiende como un pasaje al acto que se produce dentro de una relación conyugal, en la que los socios pueden estar juntos o separados. Esta investigación tuvo como objetivo mapear los casos de homicidios conyugales en Florianópolis, de 2000 a 2010, con el fin de identificar las principales variables implicadas en el asesinato. Para ello, se utilizaron los informes de prensa publicados en el periódico más importante de la región: Diário Catarinense. Hubo una recogida en la base de datos en el archivo del periódico, que ascendió a 34 casos de homicidio conyugal. Se concluyó que existe un predominio de homicidios conyugales en las siguientes situaciones: cometidos por los hombres, en las parejas conyugales de las cuales hubo informes de violencia conyugal y en las parejas en que separación y celos tuvieron un significativo impacto.
Palabras clave: homicidio conyugal; crimen pasional; violencia conyugal; investigación documental.
Introdução
O homicídio conjugal, utilizado para definir os homicídios que ocorrem entre pessoas que estão ou estiveram vinculadas uma à outra - pelo casamento, união estável ou namoro -, é o termo privilegiado neste artigo (Martins-Borges, 2011). Diferentes são as circunstâncias que costumam levar ao ato homicida, as quais variam, muitas vezes, de acordo com o sexo dos agressores. Segundo Dutton (2001), os homicídios cometidos por homens têm como motivação principal afetos de abandono, que podem ser retratados pelo ciúme e pela separação. Já os perpetrados por mulheres ocorrem geralmente em situações de defesa - ao serem confrontadas com a violência do parceiro -, quando visam à própria proteção ou à dos filhos.
Das categorias dos homicídios, os homicídios intrafamiliares - e por consequência o homicídio conjugal - é um dos que tende a causar impacto mais dramático no grupo familiar e social. Martins-Borges (2010), em pesquisa documental realizada com 54 homens e mulheres que cometeram homicídio conjugal, no Canadá, demonstrou que 60% das mulheres e 45% dos homens que mataram seu(sua) companheiro(a), consultou um profissional da saúde no ano que antecedeu o gesto homicida. Na maioria dos casos, durante a consulta com o profissional, as pessoas fizeram referência a um sofrimento psíquico, relacionando-o a dificuldades conjugais. Nesse sentido, pode-se pensar que a prevenção de tais homicídios parece estar mais ao alcance dos profissionais das áreas de saúde e assistência social.
No Brasil, poucos estudos trazem números relativos aos homicídios conjugais ocorridos no território nacional como um todo. No que se refere ao homicídio conjugal em que as vítimas são mulheres, o Mapa da Violência (Waiselfisz, 2015), que fornece dados sobre as taxas anuais de homicídios de mulheres no Brasil, reconhece que a limitação dos dados se configura como um problema, uma vez que não se sabe quem foi o agressor nem o contexto em que os homicídios ocorrem. O que se observa é a existência de estudos com dados que se referem a uma realidade mais regional, como o de Blay (2000), realizado com uma amostra de 310 vítimas de homicídio, na cidade de São Paulo, no ano de 1998. Dessas vítimas, 254 (82%) eram mulheres e 56 (18%) eram homens. Dos homicídios cometidos contra mulheres, cuja autoria era conhecida, 49% foram praticados por companheiros e 17% por ex-companheiros, isto é, em quase 66% dos casos, a mulher foi assassinada por um homem com quem ela esteve - ou ainda estava - em relação afetiva. Ao encontro disso, e diante da escassez de elementos oficiais referentes ao homicídio em si, o Mapa da Violência (Waiselfisz, 2015) recorreu aos dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde, para aproximar-se de um cenário que pode estar relacionado às variáveis precursoras do homicídio conjugal. Esses dados registraram que entre adolescentes de 12 e 17 anos que notificaram terem sido vítimas de algum tipo de violência, 23,2% eram praticadas por seus parceiros ou ex-parceiros. Já entre as violências notificadas por mulheres de 18 a 59 anos de idade, metade delas foram praticadas por parceiros ou ex-parceiros. Dessa forma, considerando-se que uma proporção elevada de homicídios de mulheres é cometida por companheiros ou ex-companheiros, pode-se imaginar a complexidade da problemática em contexto nacional quando se observa os dados referentes às violências notificadas pelo Sinan.
Os dados apresentados por Blay (2000) são condizentes com os encontrados em um panorama mundial, em que, segundo Websdale (1999), 20.311 homens e 31.260 mulheres foram mortos por seus(suas) companheiros(as), entre os anos de 1976 e 1996, nos Estados Unidos. Na mesma direção, Campbell, Webster e Glass (2009) informam que, entre os países industrializados, os Estados Unidos possuem a maior taxa de intimal partner homicide (IPH, ou homicídio de parceiro íntimo) e que, no período de 2000 a 2004, ocorreram de 1.400 a 1.750 casos de IPH por ano. Paralelamente, Wilson e Daly (1995) constataram que, no Canadá, uma mulher tem risco nove vezes maior de ser morta pelo seu parceiro do que por um desconhecido. Já em Portugal, de acordo com o Ministério da Justiça (2010), de 2007 a 2009 ocorreram 129 casos de homicídio conjugal, correspondendo a 13% do número total de homicídios naquele país.
Segundo Bifano (2011), a perda do objeto amado pode ser vivenciada pelo agressor como uma ameaça interna, e pode levar à repercussão de um ato homicida contra o(a) companheiro(a). O homicídio conjugal praticado por homens seria o extremo da expressão "de possessividade ou de rejeição da perda do controle sobre a sua parceira. Além disso, o risco de um eventual homicídio aumenta quando o parceiro desconfia que sua parceira esteja sendo infiel ou quando ela decide colocar um termo na relação" (Martins-Borges, 2009, p. 776). Para Dutton e Kerry (1999), o ciúme, que é relatado como uma das principais razões - ao lado da separação -, nada mais é do que variação do medo do abandono.
Há um consenso entre os dados encontrados em diversos autores (Campbell et al., 2009; Soares, 2002; Dutton & Kerry, 1999) de que um número elevado de homicídios conjugais ocorre após a separação do casal - ou até um ano depois dela. É importante ressaltar que o maior risco se encontra no período em que um dos parceiros expressa a vontade de se separar ou em até dois meses após a concretização da separação, quando se faz presente - com maior intensidade - o sentimento de abandono. Nota-se que algumas vezes, segundo Dutton e Kerry (1999), os homens que matam sua companheira - ou ex-companheira -, antes de cometer o ato, ameaçaram fazê-lo em momentos em que se falou sobre separação. Os autores observam ainda que o homicídio é, muitas vezes, explicado pelos agressores como uma resposta a um sentimento intolerável desencadeado pelo sentimento de abandono.
Outro fator de risco é a violência conjugal que, de acordo com Campbell et al. (2009), está presente em 67% a 80% dos casos de homicídio conjugal nos EUA. A Organização Mundial de Saúde (OMS, 2002, p. 5) define violência como "o uso intencional da força física ou do poder, real ou em ameaça, [...] que resulte ou tenha grande possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação". A violência conjugal, especificamente, segundo Narvaz e Koller (2006), consiste na perpetração da violência física, sexual, emocional ou psicológica, dentro de uma relação afetiva e sexual. No Brasil, o artigo 5º da Lei no 11.340/06 (2007) - ou Lei Maria da Penha - define violência doméstica e familiar como "qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial". No mundo, de acordo com Narvaz e Koller (2006), uma em cada quatro mulheres é atingida por violência conjugal. Já no Brasil, segundo a Sociedade Mundial de Vitimologia (como citado em Bifano, 2012), 23% das mulheres sofrem dessa forma de violência.
Em estudo realizado no estado de Quebéc, Canadá, entre os anos de 1991 e 2009, Bourget e Gagné (2012) constataram 276 casos de homicídios conjugais. Das 42 mulheres que mataram seus companheiros, 11 (26.2%) sofriam de violência conjugal, e dos 234 agressores do sexo masculino, 61 (26.1%) eram os instigadores de violência conjugal contra suas companheiras.
Em alguns casos, a violência conjugal parece estar associada ao uso de álcool ou de outro tipo de droga, que atua como desinibidora e não como causa para esse ato (Bifano, 2012). Nos EUA, em estudo realizado com 90 homens condenados por homicídio conjugal, Dutton e Kerry (1999) relatam que um terço dos agressores estava alcoolizado durante o ato homicida, sendo o cenário mais típico o confronto entre as partes sobre alguma indiscrição sexual ou a ameaça de término do relacionamento. Igualmente, nos casos estudados por Martins-Borges (2010), no Canadá, o consumo abusivo de álcool esteve presente tanto no grupo de homens como no de mulheres que assassinaram sua(seu) companheira(o).
O homicídio conjugal algumas vezes ocorre sob a forma de homicídio-suicídio, que, segundo Bins, Doler e Teitelbaum (2009), é uma expressão usada para designar um homicídio seguido pelo suicídio do agressor, e este pode ocorrer logo em seguida ou em um intervalo de tempo de uma hora a uma semana após o ato homicida. Já para Sá e Werlang (2007), o período de tempo entre o homicídio e o suicídio deve ser de até 24 horas. De acordo com esses autores, não existem, no Brasil, estatísticas sobre o homicídio-suicídio. Independentemente do tempo, os autores concordam em dizer que o homicídio conjugal e o suicídio constituem nesses casos dois atos relacionados a um mesmo evento. No entanto, estudos apontam algumas características comuns às passagens ao ato homicida, como o fato de ele ser perpetrado, em sua maioria, por homens, ter como vítima as mulheres e ser o agressor mais velho que a vítima. A maior parte deles ocorre em relacionamentos amorosos conflituosos, sendo o ciúme um fator desencadeante (Bourget & Gagné, 2012; Bins, Doler & Teitelbaum, 2009; Liem & Roberts, 2009; Sá & Werlang, 2007; Soares, 2002).
Sá e Werlang (2007) realizaram estudo sobre homicídio-suicídio, identificando 14 casos na cidade de Porto Alegre/RS, nos anos de 1996 a 2004, fundamentados em matérias de jornais, inquéritos policiais e entrevistas semiestruturadas com familiares ou com conhecidos próximos. Nessa pesquisa, 87,5% das vítimas eram mulheres, os agressores eram seus parceiros - ou ex-parceiros - e os atos ocorreram no período da separação ou em até um ano depois dela, "podendo-se concluir que o período de ruptura e separação inicial é o mais perigoso do ponto de vista da mulher, pois o ciúme e o temor de perder a companheira transformam-se, constantemente, no estopim de crime do tipo passional" (Sá & Werlang, 2007, p. 187).
Em outra pesquisa, realizada por Teixeira (2009), no Rio Grande do Norte, entre 1995 e 2002, foram selecionados cinco casos de homicídio-suicídio para um estudo aprofundado. A autora observou que foi recorrente a intenção de separação por parte da vítima - ressaltando que em um dos casos o casal estava separado havia apenas um mês. Outros dados, ainda no Rio Grande do Norte, apontam que, no período entre 1986 e 2003, constatou-se a ocorrência de 23 homicídios-suicídios em que somente um caso não envolvia uma relação afetivo-conjugal (Teixeira, 2009).
Dessa forma, pôde-se verificar que existem características comuns na maioria dos estudos pesquisados quanto aos casos de homicídios conjugais e homicídios suicídios: impacto da separação, abuso de bebidas alcoólicas e presença de violência conjugal - denunciada ou não (Martins-Borges, Boeira-Lodetti & Girardi, 2014; Martins-Borges, 2010; Campbell et al., 2009; Sá & Werlang, 2007; Dutton, 2001; Dutton & Kerry, 1999). Tais características, compreendidas como indícios precursores ao homicídio conjugal, tendem a ser, em muitos casos, verbalizados pelos agressores ou vítimas antes do homicídio. Assim, um levantamento das características comumente encontradas nos estudos sobre a temática e suas particularidades na população aqui estudada poderá melhor contribuir para sua prevenção.
Com base nessas considerações, objetivou-se realizar um mapeamento dos homicídios conjugais na Grande Florianópolis, cuja etapa inicial consiste no levantamento de casos dessa categoria de homicídios, reportados por meio de matérias de jornais da Grande Florianópolis. Segundo a Granfpolis (Associação dos Municípios da Grande Florianópolis), a mesorregião é composta por 22 municípios2, com aproximadamente um milhão de habitantes. Para tanto, utilizou-se o Arquivo do jornal Diário Catarinense, por ser esse o periódico de maior circulação. Além do levantamento dos homicídios conjugais ocorridos, buscou-se uma compreensão preliminar acerca dos homicídios conjugais cometidos na Grande Florianópolis, apoiada nas variáveis analisadas.
Cabe salientar que o levantamento por intermédio de artigos de jornais é uma etapa inicial frequentemente realizada por pesquisadores dessa temática, principalmente em regiões em que não há uma sistematização dos dados por meio de banco de dados de órgãos da Justiça ou da Segurança Pública, como é o caso de Florianópolis. Os jornais, por meio de matérias cotidianas, acabam se tornando o veículo de registro da maioria dos homicídios que se tornam públicos. Nesse sentido - apesar do que é veiculado como implícitos culturais nas matérias publicadas -, é por meio dos artigos de jornais que se torna possível a sistematização dos casos de homicídios conjugais (Pasinato, 2011; Houel, Marcader & Sobota, 2003)
Por meio das reportagens pesquisadas, levantou-se, na Grande Florianópolis, entre o período de 2000 e 2010, um número inicial de 34 homicídios conjugais. Tais dados encontram-se descritos ao longo do presente artigo. Durante o processo desta pesquisa, notou-se que no Brasil há poucos estudos recentes a respeito da temática (Pasinato, 2011). Já no que se refere à década de 1980, foram encontrados alguns estudos no campo da epistemologia feminista sobre o assassinato de mulheres que contemplam temáticas referentes aos crimes de paixão (Corrêa, 1981; Machado, 1997). Com relação ao contexto internacional, encontrou-se um número maior de produções, nas quais se pôde constatar entre os pesquisadores um consenso no que se refere a algumas considerações relacionadas ao homicídio conjugal, como: presença de violência no histórico da relação conjugal; impacto da separação; abuso de bebidas alcoólicas e/ou outras drogas; prevalência do gesto homicida na população masculina; impacto dos transtornos psicológicos e do perfil de personalidade (Martins-Borges, Girardi & Boeira-Lodetti, 2013; Martins-Borges, 2009; Campbell, Webster & Glass, 2009; Dutton & Kerry, 1999).
Procedimentos Metodológicos
Para os fins a que se propõe o recorte do presente estudo, foi utilizada a pesquisa documental, tendo como amostra os casos de homicídios conjugais repertoriados no jornal Diário Catarinense e ocorridos na Grande Florianópolis, nos anos de 2000 a 2010.
Como etapa inicial da pesquisa, foi realizada uma coleta de dados nos arquivos localizados na sede do jornal Diário Catarinense - periódico de maior circulação na região de Florianópolis. Foram pesquisados todos os jornais do ano de 2000 ao de 2010, nas versões impressa e digital. No entanto, na versão digital, só estão disponíveis reportagens a partir do ano de 2003. Com o intuito de fazer um levantamento exaustivo do número de casos de homicídios conjugais ocorridos nesse período, utilizaram-se, para versão digital, as palavras e o cruzamento das palavras "homicídio", "crime passional", "passional", "suicídio", "assassinato", "uxoricídio", "femicídio", "mata marido", "mata mulher", "ex-mulher", "ex-marido". Na versão impressa, a coleta do material foi centrada, por sugestão do jornal, na sessão denominada "Polícia" - que foca na temática deste estudo. Foram incluídos no estudo somente os artigos relacionados a homicídios conjugais ocorridos na região estudada e nos anos de 2000 a 2010. Foram excluídos os artigos sobre tentativas de homicídio, homicídios conjugais ocorridos em outras regiões assim como casos de homicídios nos quais o vínculo entre o agressor e a vítima não estava claramente definido. Para os fins deste estudo, foram encontrados 34 casos que se enquadravam nas especificações estabelecidas pela pesquisa.
De acordo com os objetivos estabelecidos para esta pesquisa, determinou-se anteriormente à coleta de dados que as seguintes categorias seriam analisadas: município em que ocorreu o ato, sexo do agressor, ano do homicídio, diferença de idade entre agressor e vítima, separação conjugal, presença de indícios precursores, motivação, arma utilizada, homicídio-suicídio, morte de uma terceira pessoa. Tais categorias foram tratadas de forma quantitativa por meio de estatística descritiva, que demonstra a frequência dos fatos pesquisados.
Resultados e discussão
Foram levantados 34 casos de homicídio conjugal na Grande Florianópolis, ocorridos entre os anos 2000 e 2010. Cabe ressaltar que todas as informações aqui apresentadas refletem as informações presentes nos artigos de jornais, sob forma de relatos do jornalista ou de falas de pessoas por ele entrevistadas. Na Tabela 1 pode-se observar a distribuição desses casos por município, como relatados pelo jornal Diário Catarinense: 65% dos homicídios (22) aconteceram na cidade de Florianópolis e 35% (12) no conjunto de municípios que compõem a mesorregião da Grande Florianópolis.
Pode-se verificar a quantidade de homicídios ocorridos em cada ano do período estudado (2000 a 2010), o que é demonstrado no Gráfico 1. A média ponderada do número de casos por ano é de 3,1 casos, com um desvio padrão de 1,54. Observa-se ainda, segundo o Gráfico 1, que há um leve aumento no número de casos de homicídio conjugal no decorrer dos anos. Da mesma forma, segundo o Mapa da Violência 2012 (Waiselfisz, 2011), constatou-se um aumento de 122,9% no número de homicídios ocorridos na cidade de Florianópolis, entre os anos de 2000 e 2010. No ano de 2000, aconteceram 35 homicídios na capital; já em 2010, esse número subiu para 96 ocorrências, sendo a taxa de 22,8 homicídios a cada 100 mil habitantes (Waiselfisz, 2011). Paralelamente a esse aumento no número de homicídios, o que se observa, segundo o Sebrae (2013), é um aumento de 23% na população residente na mesorregião da Grande Florianópolis, entre esses mesmos anos delimitados no presente artigo.
Dos 34 homicídios, 33 (97%), ou seja, a imensa maioria, foram cometidos por agressores do sexo masculino, e apenas 1 (3%) por mulher, o que é coerente com os estudos pesquisados (Martins-Borges, Boeira-Lodetti & Girardi, 2014; Sá & Werlang, 2007; Campbell et al., 2009; Dutton, 2001), os quais relatam a predominância de agressores do sexo masculino nessa categoria de homicídio. Porém, a proporção aqui encontrada de homicídios cometidos por homens (97%), em relação aos cometidos por mulheres (3%), é diferente de algumas proporções indicadas em estudos realizados em outros países: no Canadá francófono, as proporções são de 84% e 16%, respectivamente (Martins-Borges, 2009); nos Estados Unidos, de 65% e 35% (Websdale, 1999). Dutton (2001) relata que no homicídio conjugal homens e mulheres matam seus companheiros (ou ex-companheiros) por diferentes razões: os homens geralmente praticam o ato como uma reação ao sentimento de abandono, desencadeado pelo ciúme ou pela separação; já as mulheres passam ao ato como forma de proteger a própria vida ou a de seus filhos.
A Tabela 2 mostra o número de casos e a porcentagem de algumas variáveis analisadas. Nota-se que em 21 (62%) dos casos o agressor era mais velho que a vítima, o que está em consonância com o estudo de Campbell et al. (2009), segundo os quais esse é um dos fatores que influenciam os casos de homicídios conjugais. Martins-Borges (2010) descreve em seu estudo que os homens (n=27) que mataram suas companheiras ou ex-companheiras eram em média 4,67 anos mais velhos que elas.
Observa-se ainda, na Tabela 2, que em 23 (68%) dos casos agressor e vítima estavam separados. Da mesma forma, nos 54 casos de homicídios conjugais estudados por Martins-Borges (2010), 28% (15) dos casais estavam separados, e em 11% (6) a ameaça de separação foi indicada como uma motivação para cometer o homicídio. Nos estudos pesquisados (Campbell et al., 2009; Martins-Borges, 2009; Soares, 2002; Dutton & Kerry, 1999), essa variável tem importante relação com o gesto homicida, devido ao medo da perda e aos afetos de abandono desencadeados pela perspectiva da separação. Os autores relatam que do momento em que é expresso o desejo de se separar do(a) parceiro(a) até um ano após a sua concretização há o maior risco de ocorrer o homicídio conjugal.
Em 16 (47%) casos (Tabela 2), a motivação para o ato não foi esclarecida. Nos 18 (53%) casos em que uma explicação foi indicada como a motivação para o homicídio, a separação (15%) foi observada como uma das principais razões que levaram ao ato, seguida do ciúme (12%). Separação e ciúme aparecem juntos em 26% dos casos. Percebe-se que, dos casos em que foi possível identificar a motivação que levou ao gesto homicida, destacaram-se a separação e o ciúme. Levando-se em conta que nos casos estudados a grande maioria é composta por agressores do sexo masculino, pode-se perceber uma semelhança com dados encontrados em outras pesquisas, em que, nos homicídios conjugais cometidos por homens, separação e ciúme configuraram-se como motivações principais (Weizmann-Henelius et al., 2012; DeJong, Pizarro & McGarrell, 2011; Dobash & Dobash, 2011; Martins-Borges, 2009; Mize, Schackelford & Shackelford, 2009).
Quanto à arma utilizada, armas de fogo e objetos cortantes ou penetrantes (faca) foram os meios mais recorrentes (44% em ambos os casos). Outros meios observados para a execução do ato foram o estrangulamento/sufocação (6%), o uso de automóvel (3%) e de fogo (3%). Apesar dos cuidados a serem observados quanto à distância cultural entre o Brasil e o Canadá, cabe apontar alguns dos muitos estudos que trabalharam a temática do homicídio conjugal nesse país. Em sua pesquisa com 90 pessoas condenadas por homicídio conjugal no Canadá, Dutton e Kerry (1999) verificaram que 30 (33%) utilizaram objetos perfurocortantes e 24 (27%) empregaram arma de fogo. Do mesmo modo, em Martins-Borges (2010), observa-se que, dos 54 homicídios, 20 (37%) foram cometidos com arma de fogo e 22 (41%) com objetos perfurocortante. Campbell et al. (2009) relatam que a presença de arma de fogo na residência está diretamente associada com o aumento do risco de a mulher ser morta pelo marido. No que se refere ao homicídio-suicídio, em seis casos o meio utilizado para o ato foi a arma de fogo. Ao encontro disso, no estudo de Sá e Werlang (2007), 87,5% dos homicídios-suicídios foram realizados com arma de fogo. De forma semelhante, de cinco casos estudados por Teixeira (2009), quatro envolveram arma de fogo e um incluiu objeto cortante ou penetrante.
Em relação à presença de indícios precursores, 22 (65%) dos casos analisados, eles estavam presentes sob a forma de: violência conjugal - registrada em boletins de ocorrência ou não; uso de álcool e/ou drogas; existência de outro relacionamento; presença de transtornos psicológicos; outros atos criminais. A violência conjugal é relatada por diversos autores (Martins-Borges, Boeira-Lodetti & Girardi, 2014; Dobash & Dobash, 2011; Bifano, 2011; Campbell et al., 2009; Blay, 2000) como uma característica presente na maior parte dos casos de homicídio conjugal. Nos estudos de Martins-Borges (2010) sobre homicídio conjugal, nota-se que a violência conjugal esteve presente em 40 dos 54 casos, o que equivale a 74%. Apesar disso, a autora ressalta que o homicídio conjugal não pode ser configurado necessariamente como um continuum da violência conjugal, pois há casos em que não havia presença desse tipo de violência no histórico do casal. Também, desta forma, o uso de álcool e/ou drogas não é visto como determinante no ato, mas como um facilitador para a sua ocorrência (Bourget & Gagné, 2012; Bifano, 2012; Dutton & Kerry, 1999). Cabe ressaltar, portanto, que a violência conjugal e o abuso de substância podem estar diretamente relacionados ao agravamento da manifestação da violência.
Considerações finais
O homicídio conjugal é um ato que repercute de forma trágica em uma relação que é - ou que foi - de intimidade e pautada por sentimentos, geralmente amorosos. Observou-se que poucas pesquisas no Brasil dedicam-se a estudar o homicídio conjugal, um gesto muitas vezes vinculado a um sofrimento psíquico que tem um impacto relevante no grupo social. Notou-se ainda um crescimento do número de casos ao longo dos anos, o que denota a importância de se estudar mais profundamente essa temática, na procura de dados que possam oferecer um quadro mais representativo de tal realidade, uma vez que o número de casos de homicídio acompanha o aumento no número da população da mesorregião da Grande Florianópolis.
Verificou-se, por meio dos relatos descritos nas notícias de jornal, que o impacto da separação está presente na maior parte dos homicídios conjugais estudados, uma vez que estes ocorrem quando o casal se separou ou está em vias de separação. Observou-se também que os atos foram quase na totalidade perpetrados por agressores do sexo masculino, predominantemente mais velhos que as vítimas; em casais que se encontravam em relações conflituosas, apresentando indícios precursores, como a violência conjugal, o uso de álcool e/ou drogas. Muitas vezes, tais conflitos (geralmente expressos por meio da violência conjugal) foram relatados a membros da família, a profissionais da saúde, a profissionais da assistência social e a policiais. Ainda que não possa ser possível a confirmação desses dados, essa informação tende a indicar a tentativa das partes envolvidas de expressar o sofrimento e de procurar ajuda.
O fato de agressores e vítimas procurarem ajuda ou, simplesmente, um lugar de expressão em busca de solução para o conflito e o sofrimento por ele causado, permite pensar que o homicídio poderia ter sido evitado. Assim, pesquisas que possam identificar variáveis precursoras poderiam contribuir para o desenvolvimento de protocolos e modelos de prevenção e de intervenção. Cabe ressaltar que muitos casos de conflitos conjugais são direta ou indiretamente relatados aos profissionais de saúde e aos profissionais da assistência social, antes que cheguem às Delegacias de Polícia, às Delegacias da Mulher, ao Judiciário e mesmo aos membros da rede social. Essa observação leva a pensar que a prevenção de tais atos se torna possível quando ações de intervenção, de tratamento e de proteção forem organizadas com a colaboração dos profissionais da saúde e da assistência social.
A maioria dos casos noticiados pelo jornal Diário Catarinense ocorreu na cidade de Florianópolis. Essa observação pode ser explicada pelo número elevado de habitantes na capital, se comparado a outros municípios, ou pelo fato de a sede do jornal situar-se em Florianópolis, o que pode explicar a atenção voltada aos casos ocorridos na capital. O acesso a outras fontes de informação, como os processos penais, poderia contribuir futuramente para complementar essa lacuna da pesquisa documental.
Para a realização de tais pesquisas, é necessário que se articule, em primeiro lugar, um modo de sistematização das informações e, em segundo, uma melhor comunicação entre instituições de ensino, da segurança pública, da saúde, da assistência social e do Judiciário, uma vez que todas possuem informações relevantes e complementares. Assim, para a construção de um quadro geral, representativo do homicídio conjugal, é necessário combinar todas essas informações. Pesquisas dependem, atualmente, de informações veiculadas em meios de comunicação como os jornais. Nos casos de violência conjugal e outros tipos de violência, os dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde, constituem uma fonte importante de estudos sobre a violência, mas quando se trata de homicídios conjugais, não há uma uniformização oficial dos dados. Na ausência de uma sistematização das informações, pode-se supor que a objetividade dos dados, ao se pensar em uma pesquisa científica, deixa a desejar. Percebe-se que os artigos tendem a refletir uma percepção limitada sobre o fenômeno e seria redutor utilizar como base somente tais artigos científicos para concluir sobre a complexidade dos homicídios conjugais. Porém, na falta de sistematização de dados, os artigos de jornais se mantêm como uma rica fonte de dados, pois ao tornar público o que era, até então, do âmbito do privado, permite refletir sobre o fenômeno.
Referências
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Recebido em 19/02/2015
Aprovado em 18/10/2016
1 Apoio financeiro: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e Funpesquisa, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
2 Águas Mornas, Alfredo Wagner, Angelina, Anitápolis, Antônio Carlos, Biguaçu, Canelinha, Florianópolis, Garopaba, Governador Celso Ramos, Leoberto Leal, Major Gercino, Nova Trento, Palhoça, Paulo Lopes, Rancho Queimado, Santo Amaro da Imperatriz, São Bonifácio, São João Batista, São José, São Pedro de Alcântara e Tijucas.