Pesquisas e Práticas Psicossociais
ISSN 1809-8908
ARTIGOS
Abordagem do comportamento de uso abusivo de substâncias psicoativas no Brasil: o estado da arte
Approach to abusive behavior of psychoactive substances in Brazil: the state of the art
Abordaje del comportamiento abusivo de sustancias psicoactivas en Brasil: estado del arte
Marcella Regina Silva Rieiro GuerraI; Luc VandenbergheII
IGraduação em Psicologia (2003-2008), Pontifícia Universidade Católica, Goiânia/GO. Especialização em Saúde Mental e Dependência Química (2012-2013), Faculdade Delta, Goiânia/GO. Mestrado em andamento em Psicologia (2014-atual), área Psicopatologia, Pontifícia Universidade Católica, Goiânia/GO
IIGraduação em Psicologia (ênfase clínica) pela Univeridade de Gent, Bélgica (1985). Mestrado em Psicologia clínica e do desenvolvimento (ênfase intervenção clínica) pela Universidade de Gent, Bélgica (1988). Agregação em ensino superior pela Universidade de Gent, Bélgica (1989). Doutorado em Psicologia clínica pela Universidade de Liège, Bélgica (2001)
RESUMO
O problema complexo do tratamento do uso abusivo de substâncias psicoativas coloca a comunidade científica diante da responsabilidade social. O objetivo do presente estudo foi conhecer a produção científica nacional a respeito da reabilitação do usuário. Realizou-se uma revisão bibliográfica integrativa, cobrindo os últimos cinco anos. Dos 60 artigos obtidos pelo Google Acadêmico e o portal revistas Capes, 32 desenvolveram o tratamento da dependência como tema principal. Foram subdivididos em: modelos e programas (9 artigos); e aspectos específicos do tratamento (23 artigos). As pesquisas empíricas selecionadas sobre tratamento estão concentradas, principalmente, no sul do País. Percebe-se uma proliferação de estratégias e programas na literatura, acompanhados, contudo, pelo objetivo em abordar a pessoa como um todo e adaptar as necessidades individuais de cada sujeito como guia do tratamento.
Palavras-chave: Tratamento da dependência química. Tratamento da dependência de substâncias psicoativas. Reabilitação do dependente químico.
ABSTRACT
The complex problem of treating the abusive use of psychoactive substance puts the scientific community before its social responsibility. The goal of the present article was to know the Brazilian scientific production regarding the rehabilitation of the user. An integrative literature study was undertaken, covering the last 5 years. From the 60 articles obtained through Google Scholar and the CAPES journal gate, 32 focused on treatment of dependency, as the main theme. They were subdivided into: models and programs (09 articles); and specific aspects of treatment (23 articles). Empirical research on treatment is strongly concentrated in the South of the country. The literature shows a proliferation of techniques and treatment programs, accompanied by the goal to approach the person as a whole and to adapt the treatment to the individual needs of each person.
Keywords: Treatment of substance dependence. Treatment of psychoactive substance dependency. Rehabilitation of chemical dependence.
RESUMEN
El complejo problema del tratamiento del uso abusivo de sustancias psicoactivas coloca a la comunidad científica delante de su responsabilidad social. El objetivo del presente estudio fue conocer la producción científica nacional a respecto de la rehabilitación del dependiente químico. Se realizó una revisión bibliográfica integrativa, cubriendo los últimos cinco años. De los 60 artículos obtenidos por el Google Académico y del Portal Revistas CAPES, 32 abordaron el tratamiento de la dependencia como tema principal. Los artículos fueron subdivididos en: modelos y programas (09 artículos) y aspectos específicos del tratamiento (23 artículos). Las investigaciones empíricas sobre el tratamiento se concentran en el Sur del país. Se observa una proliferación de estrategias y programas en la literatura, sin embargo, se reconocen las características y necesidades individuales de cada sujeto como guía del tratamiento.
Palabras clave: Tratamiento de la dependencia química. Tratamiento de la dependencia de substancias psicoactivas. Rehabilitación del dependiente químico.
Introdução
O uso abusivo de substâncias psicoativas é um problema de saúde pública que afeta todas as dimensões da vida de seus usuários, o que vem contribuindo drasticamente para o aumento de inúmeros problemas encontrados não só em quem usa as drogas e/ou depende delas, como também nos contextos sociais em que estão inseridos: comportamento violento; menor capacidade de julgamento; dificuldades profissionais; abandono dos estudos; rompimento de vínculos, inclusive familiares; problemas psiquiátricos, entre outros (Assis, 2011; Ribeiro, Nappo & Sanchez, 2012).
O prazer associado à droga é intenso e muitas vezes imediato, o que facilita a compulsão pelo uso/abuso de drogas de forma desenfreada e as alterações fisiológicas do cérebro, anormalidades comportamentais e dificuldades sociais. Diante da complexidade de sua natureza, o uso abusivo de substâncias psicoativas é considerado por alguns estudiosos como uma doença crônica, necessitando de abordagens de tratamento que integram todas as áreas afetadas (Bordin, Grandi, Figlie & Laranjeira, 2010; Laranjeira, 2012).
Levando em consideração o elevado custo social e o sofrimento subjetivo do problema, o presente estudo objetivou conhecer a literatura nacional acerca da reabilitação do dependente químico.
Método
Uma revisão bibliográfica integrativa foi feita. Foram pesquisados e analisados artigos científicos publicados nos últimos cinco anos (2010-2014), no idioma português, identificados no Google Acadêmico, que acessa as bases do SciELO (Scientific Electronic Library Online) e PePSIC (Periódicos Eletrônicos em Psicologia), e da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior). Os termos utilizados para a busca/pesquisa foram: tratamento da dependência química; tratamento da dependência de substâncias psicoativas; e reabilitação do dependente químico. Os artigos foram classificados por relevância e desmarcadas as opções "patentes" e "citações" do Google Acadêmico.
No primeiro momento da busca, 591 artigos foram retornados. Após análise dos títulos, apenas 105 mencionaram o tratamento do uso abusivo de substâncias psicoativas. Após leitura dos resumos, 60 foram selecionados para a próxima etapa de classificação, pois somente estes apresentaram de fato estudos sobre o tratamento do uso abusivo de substâncias psicoativas.
Em seguida, após leitura na íntegra, os 60 artigos foram classificados de acordo com o seu conteúdo em: 1. De pouca relevância, pois tratam o tema de interesse apenas como assunto secundário (28 artigos); 2. Descrevem modelos e programas de tratamento (9 artigos); e 3. Apresentam aspectos específicos do tratamento (23 artigos). Desta forma, somando o segundo e terceiro grupos, 32 artigos científicos foram inclusos nesta revisão bibliográfica. A Figura 1 demonstra o percurso da seleção de literatura.
Resultados
Os estudos selecionados são apresentados em duas sessões: 1. Modelos e programas, como estratégias de abordagem do indivíduo com suas necessidades de tratamento; e 2. Aspectos específicos do tratamento, por apresentarem elementos que podem somar com os demais usados em um programa/modelo de tratamento.
Modelos e programas de tratamento
Das nove pesquisas que abordaram uma visão geral do tratamento: um artigo relata uma pesquisa empírica quantitativa; dois estudos apresentaram pesquisas qualitativas descritivas; um artigo apresentou descrição de caso único; dois periódicos apresentaram revisão de literatura; um apresentou revisão de literatura não sistemática; outro apresentou problematização das práticas correntes; e um estudo apresentou problematização de uma vivência numa comunidade terapêutica. Cinco artigos constituem estudos empíricos, entre os quais quatro foram realizados no Rio Grande do Sul e um na Paraíba. O quadro 1 expõe uma síntese dos artigos.
Rodrigues, Horta, Szupszynski, Souza e Oliveira (2014) identificaram os temas que dominam a literatura: tratamentos psicossociais na internação e cuidados continuados; relaxamento respiratório e outras técnicas comportamentais; e abordagens fundamentadas na entrevista motivacional, na terapia cognitivo-comportamental e no modelo transteórico de mudança.
Entretanto, o estudo de Xavier e Monteiro (2013) pleiteou que os CAPS ad deveriam oferecer ajuda para usuários de outras drogas, inclusive as lícitas; evitar uma política de internação e exclusão; ter maior envolvimento dos gestores municipais; implantar e aumentar o número de CAPS ad 24 horas; qualificar e capacitar os profissionais; e criar mais suportes de atendimento aos usuários dos CAPS ad, como Consultórios de Rua e Casas de Acolhimento.
Cassol, Terra, Mostardeiro, Gonçalves e Pinheiro (2012) constataram a importância de realização de grupos operativos no processo de abstinência e (re)inserção social desses usuários. Romanini, Dias e Pereira (2010) propuseram um grupo de Prevenção de Recaídas direcionado aos usuários de CAPS ad, para aumentar o tempo de abstinência e a autoeficácia. Araújo et al. (2011) propuseram o tratamento de exposição a estímulos (TEE) e o treinamento de habilidades (TH) como coadjuvantes, no manejo da fissura e manutenção da abstinência de um usuário de crack internado em hospital psiquiátrico. Kolling, Petry e Melo (2011) argumentaram a favor da inclusão de algumas alternativas terapêuticas para o tratamento, como manejo de contingências, terapia de aceitação de compromisso, farmacoterapia, comunidades terapêuticas e políticas de prevenção ao uso de crack. Ainda, segundo os manuscritos, tais estratégias, aliadas aos modelos tradicionais, podem reforçar os benefícios do tratamento.
Souza, Ribeiro, Melo, Maciel e Oliveira (2013) identificaram que a maioria dos dependentes em tratamento num hospital psiquiátrico encontrava-se apenas no estágio de contemplação, isto é, assumiam ter um problema e consideravam as possibilidades de mudança, entretanto ainda faltava determinação para o tratamento. Os que se encontravam em tratamento numa Fazenda de Recuperação mostraram indícios marginalmente superiores, mas continuavam na fase de contemplação.
Já Pacheco e Scisleski (2013) descreveram as práticas e as vivências numa Comunidade Terapêutica, realizando uma discussão crítica da abordagem da abstinência de base moralista, vigente na referida instituição. Baseados nas histórias de vida e experiências dos participantes, concluíram que a política de redução de danos seja uma alternativa viável, por respeitar mais a liberdade e a autonomia do indivíduo. Por outro lado, Jatobá, Calheiros e Lins Júnior (2012) argumentaram a favor da internação de dependentes de crack em clínicas involuntárias, problematizando as práticas correntes, e considerando os efeitos devastadores do crack sobre a consciência e a capacidade de tomar decisões a respeito do tratamento.
Aspectos específicos do tratamento
Os artigos que tratam dos aspectos específicos do tratamento foram resumidos no Quadro 2. Quanto à metodologia empregada, tem-se: sete estudos que apresentaram revisões de literatura, sendo três com revisão não sistemática e quatro com revisão sistemática e integrada; dois que apresentaram ensaio clínico do tipo quase-experimental; um estudo transversal; três que apresentaram abordagem qualitativa; dois estudos com abordagem quantitativa; uma pesquisa que utilizou os métodos qualitativo e quantitativo; dois estudos que foram relatos de experiência; um estudo que utilizou o método fenomenológico; uma pesquisa que apresentou um estudo de caso descritivo exploratório; outra pesquisa que realizou um estudo de caso exploratório; um estudo clínico com grupos experimental e controle, e análise estatística dos dados; e um estudo qualitativo fenômeno-estrutural.
Quatorze desses artigos trazem dados empíricos, entre eles dez foram realizados na região Sul do Brasil (nove no Rio Grande do Sul e um em Santa Catarina), dois na região Nordeste (Ceará), dois na região Sudeste (um em São Paulo e um em Minas Gerais), um na região Centro-Oeste (Mato Grosso do Sul), e outro não especifica.
Quando aliados ao tratamento convencional, as técnicas acupuntura e substituição por imagem (SIP), o exercício físico e os jogos cooperativos promoveram: diminuição da ansiedade; alívio de sintomas de abstinência de drogas como fissura (craving); prevenção de recaídas; integração, socialização e obtenção de outra forma de prazer, no caso do exercício físico e dos jogos cooperativos (Alves & Araújo, 2012; Barbanti, 2012; Gelinski & Santos, 2012; Santos, Rocha & Araújo, 2014).
Amaral, Malbergier e Andrade (2010) propuseram que intervenções breves são indicadas para motivar o indivíduo ao tratamento, auxiliando no processo de adesão. Já Henriques, Hildebrandt, Leite e Van Der Sand (2013) identificaram tarefas fundamentais no papel dos profissionais de enfermagem de hospital geral, como o acolhimento e o cuidado prestado durante a hospitalização. Todo o processo precisa ser centrado no sujeito e em suas particularidades, o que interferirá em sua adesão. Contudo, a internação de dependentes químicos em alas comuns para pessoas com outras patologias dificulta o trabalho dos profissionais. Wandekoken e Siqueira (2014) previram as variáveis biológicas, psicológicas, socioculturais, de desenvolvimento, e espirituais, que podem facilitar a elaboração de estratégias no âmbito do cuidado integral do usuário de crack por parte dos profissionais de enfermagem.
Já Araújo, Pansard, Boeira e Rocha (2010) analisaram as estratégias de coping em dependentes de crack em período de desintoxicação. Estratégias como resolução de problemas, fuga e esquiva apresentaram correlações positivas quanto à motivação para interrupção do uso do crack e com o tempo de hospitalização. O tempo de abstinência teve correlação positiva com as estratégias autocontrole, fuga e esquiva, resolução de problemas e reavaliação positiva. Abordar a espiritualidade faz parte do acolhimento do sujeito na sua integralidade. Backes et al. (2012) concluíram que oficinas que focaram essa temática fortaleceram os mecanismos de enfrentamento de situações de risco e potencializaram as habilidades com foco na promoção da saúde.
Lima e Braga (2012) observaram que acolhimento, respeito, reinserção social, troca de experiências, possibilidade de expressar os sentimentos e de se alcançar a abstinência fazem do grupo AA (Alcoólicos Anônimos) uma modalidade de autoajuda viável para o sucesso no tratamento do uso abusivo de substâncias psicoativas.
Haas, Angonese e Oliveira (2011) descreveram vivências de adolescentes dependentes químicos em tratamento. Essas vivências se caracterizaram por (i) estar conformado com a situação atual, mas não felizes, (ii) estar satisfeito com a imagem corporal, pois havia engordado durante o período em que estavam em tratamento, (iii) estar com a tranquilidade que os familiares apresentavam por saberem onde estavam e o que faziam, (iv) estar desejoso pelo uso da droga, (v) se apresentar imediatista, dependentes afetivamente e com baixa autoestima; o estudo de Matumoto e Rossini (2013) detectou que os dependentes químicos apresentaram menor flexibilidade na resolução de problemas e funcionamento executivo rebaixado e maior estado de desatenção; e Franco e Villemor-Amaral (2012) defendem o uso de testes projetivos para entender a capacidade do dependente para se beneficiar com o tratamento.
A Entrevista Motivacional (EM) tem se mostrado eficaz no tratamento de usuários de drogas, além de apresentar ótimo custo-benefício e fácil aplicabilidade. Nepomuceno, Sampaio e Freitas Filho (2010) identificaram a eficácia da EM nos estudos encontrados, apesar da escassez de estudos científicos publicados com essa temática. Reforçando a confirmação da eficácia dessa técnica na redução do consumo de drogas, Andretta e Oliveira (2011) a aplicaram num grupo de adolescentes usuários de drogas e que cometeram ato infracional, identificando diminuição do consumo de drogas.
A desvalorização pelo atraso, ou seja, a escolha feita em razão de um resultado imediato, foi avaliada na relação com o uso abusivo de substâncias psicoativas por Matta, Gonçalves e Bizarro (2014) como um possível mecanismo que explique o comportamento de "perda de controle". O uso de substâncias psicoativas causa alterações nos aspectos cognitivos, especialmente nos que se relacionam à emoção e à motivação, provocando reações automáticas e impulsivas e, consequentemente, comportamentos compulsivos de uso de drogas. Portanto, esses dados devem ser usados para nortear as estratégias de tratamento, atendendo às reais necessidades apresentadas pelo sujeito. Nesse sentido, Peuker, Lopes, Menezes, Cunha e Bizarro (2013) discutiram a utilização de técnicas, como reorientação da atenção e meditação, na melhoria de processos cognitivos implícitos modificados pelo uso de drogas e no controle de comportamentos compulsivos.
As contribuições do profissional de Serviço Social no tratamento do uso abusivo de substâncias psicoativas, de acordo com Barros e Marques (2011), são: reinserção social; resgate da autonomia; e orientação e acompanhamento familiar.
O tratamento deve contemplar também os familiares do dependente químico, pois a família pode funcionar como fator de risco, acarretando mais dificuldades na reabilitação do sujeito. A necessidade do tratamento para a família se estende também para a promoção da sua própria saúde e manutenção de relações funcionais e saudáveis (Maciel, Zerbetto, Filizola, Dupas & Ferreira, 2013). Paz e Colossi (2013) evidenciaram esses achados por meio de um estudo de caso de um dependente químico e sua família. Identificaram que os aspectos disfuncionais do contexto familiar e o comportamento de uso de drogas eram reforçados mutuamente.
Vários estudos demonstraram que, em grupos de apoio, os familiares dos dependentes químicos podem adquirir: procedimentos para controlar o uso de drogas, como: estabelecer regras e limites; ofertar carinho e apoio; dialogar; aprender a lidar com o usuário de drogas, ajudá-lo, fortalecê-lo no processo de recuperação, motivá-lo a buscar ajuda e se manter no tratamento, além de contribuir para a melhora do relacionamento familiar; e oferecer mais uma chance ao usuário de continuar inserido na família. Mas também puderam perceber a importância do grupo em suas vidas como: apoio dos profissionais e das outras famílias participantes; fonte de escuta; troca de experiências; e estratégia para manter a força e a esperança nessa jornada (Alvarez, Gomes, Oliveira & Xavier, 2012; Xavier, Rodrigues & Silva, 2014; Paula, Jorge, Albuquerque & Queiroz, 2014).
Discussão
Quinze dos estudos levantados, isto é, 44%, foram realizados na região Sul do País, sendo 13 no Rio Grande do Sul. As outras regiões também têm mostrado um crescimento significativo no número de usuários, com 356 mil no Sudeste, 167 mil no Norte, 148 mil no Nordeste, 72 mil no Sul e 109 mil no Centro-Oeste, embora poucos estudos sobre tratamento sejam provenientes dessas regiões (II Lenad, 2012).
Buscando a eficácia no tratamento do uso abusivo de substâncias psicoativas, muitas estratégias têm sido desenvolvidas com o objetivo de alcançar êxito. Diante da multiplicidade de fatores que influenciam esse comportamento, os autores enfatizam a necessidade de modalidades de tratamento que atendam aos aspectos biopsicossocial e espiritual, abordando o indivíduo em sua totalidade (Ribeiro et al., 2012; Laranjeira, 2012; Ribeiro & Laranjeira, 2012; Sonenreich, Estevão & Silva Filho, 2010).
Entretanto, cada modalidade encontrada apresentou direcionamentos específicos. O paralelo realizado entre as características da abordagem numa comunidade terapêutica, com uma visão mais moralista, e a política de redução de danos, leva à ideia de que talvez respeitar a liberdade de escolha desses usuários seja mais prudente para o processo de reabilitação. Sendo assim, o usuário é visto como um sujeito dotado de responsabilidades e autonomia para escolher os caminhos que quer percorrer.
Contudo, muitos usuários de drogas, mesmo em tratamento, seja no contexto de clínica psiquiátrica, seja de comunidade terapêutica, apresentam ambivalência quanto ao processo de mudança. Constatou-se o fato de que os usuários que se encontram nesses contextos geralmente estão apenas na fase de contemplação, não ainda nas fases de determinação ou ação (Sousa et al., 2013). O estudo sugere que a motivação do indivíduo autônomo é um aspecto problemático da realidade dos contextos de tratamento.
Uma grande porcentagem de dependentes químicos apresenta alterações cognitivas e comportamentais graves, o que os dificulta fazer escolhas saudáveis (Assis, 2011; Ribeiro, Nappo & Sanchez, 2013). Esses indivíduos estão sob domínio da substância e do comportamento de busca pela droga e o uso abusivo. Levando em consideração essa realidade, os autores Jatobá, Calheiros e Lins Júnior (2012) argumentaram, por meio de um estudo, em favor das clínicas involuntárias. É preciso, antes de criticar ou mesmo tentar extinguir algum serviço ou modalidade de tratamento, observar suas contribuições. A clínica involuntária também oferece benefícios a essa população, em face da complexidade que permeia o dependente químico, como preservá-lo de uma decisão precipitada, tendo em vista o imediatismo presente na vida desse sujeito. Contudo, representa uma tendência contrária ao modelo antimanicomial, que visa promover o exercício de cidadania, uma vez que impede o interno de usufruir de sua liberdade de decisão em interromper o tratamento.
Com base na busca pela reabilitação do dependente químico, encontram-se na literatura diversas propostas de tratamento em que se destacam as práticas psicossociais (terapia cognitivo-comportamental; treinamento de habilidades sociais; habilidades de enfrentamento; manejo de contingências; grupos operativos; prevenção de recaída; abordagens voltadas para a família; dentre outros) e a farmacoterapia. O uso e as combinações das estratégias dependerão de cada caso. De forma geral, elas são desenvolvidas com o intuito de favorecer a redução ou a abstinência do consumo de substâncias psicoativas, contribuindo para as mudanças cognitivas e comportamentais necessárias. Estratégias como acupuntura, grupo AA, técnica de substituição, exercício físico, entrevista motivacional, oficinas de jogos terapêuticos, foram encontradas como formas de auxiliar no manejo da fissura e na diminuição da ansiedade, que são sintomas de abstinência que aumentam o risco de recaídas.
Antes mesmo de sugerir um conjunto de técnicas, estudos evidenciaram a importância de se conhecer o perfil do sujeito, suas limitações e alterações cognitivas e como esse sujeito se vê. Para tanto, é considerado de grande valia levantar aspectos da subjetividade do sujeito que podem auxiliar no direcionamento de modalidades e técnicas para cada caso.
Apenas um estudo enfatizou a relevância de se abordar a espiritualidade no tratamento (Backes et al., 2012). Considerando a ênfase dada à integralidade, essa dimensão precisa ser abordada, quando relevante para o usuário. Não se pode negligenciar qualquer especificidade que seja do sujeito.
Quanto aos outros espaços de tratamento, foram encontradas clínicas psiquiátricas, hospitais gerais e CAPS ad. Apesar ainda das críticas quanto às clínicas, estas têm sua importância, dada a necessidade de alguns casos mais graves, de período maior de desintoxicação que não são oferecidos em CAPS ad 24 horas.
Muitas crenças disfuncionais permeiam os contextos familiares de dependentes químicos, como colocar a culpa total do uso de drogas no usuário ou mesmo assumi-la. Os estudos encontrados com essa temática foram unânimes em enfatizar a necessidade e a importância da família no processo de tratamento, uma vez que o uso abusivo de substâncias psicoativas apresenta-se muitas vezes como um sintoma de toda a família e suas relações disfuncionais podem reforçar o comportamento de uso e aumentar o risco de recaídas, tornando-se mais como fatores de risco que fatores de proteção.
Pode-se concluir que o presente estudo acusou a existência de atividades científicas importantes e reflexão crítica acerca da reabilitação de usuários, com um peso maior para estudos empíricos no Sul do país. A maior limitação da pesquisa foi a não inclusão de periódicos estrangeiros. Por esse motivo, sugere-se que estudos futuros explorem trabalhos de outros países para enriquecer e aprimorar as ofertas de programas e estratégias de tratamento eficazes para essa população.
Considerações finais
Pesquisadores brasileiros têm se dedicado ao estudo de programas e estratégias de tratamento do uso abusivo de substâncias psicoativas que sejam eficazes na superação desse problema de saúde pública.
Diferentes estratégias de tratamento têm sido alvo desses estudos, por contemplar a integralidade do sujeito, isto é, uma abordagem biopsicossocial e espiritual. Entretanto, ainda há clínicas psiquiátricas, Comunidades Terapêuticas e internações compulsórias como opções de tratamento, mesmo que isso signifique, muitas vezes, permanecer na segregação social e impossibilitar a liberdade de decisão do sujeito, o que diminui a promoção de sua autonomia.
O acolhimento da subjetividade do sujeito, o respeito por suas decisões e escolhas, e cuidados direcionados também aos seus familiares parecem ser aspectos de grande relevância e influência na eficácia dos diversos programas e estratégias de tratamento no combate ao uso abusivo de substâncias psicoativas.
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Recebido em 18/08/2015
Aceito em 31/08/2017