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Pesquisas e Práticas Psicossociais

 ISSN 1809-8908

     

 

ARTIGOS

 

A prática dos grupos reflexivos sobre drogas como estratégia possível para redução de riscos e danos1, 2

 

The practice of reflexive drug groups as a possible strategy for reducing risks and harm

 

La práctica de los grupos reflexivos sobre drogas como estrategia posible para la reducción de riesgos y daños

 

 

Eloisa Helena LimaI; Carla Almeida CapanemaII; Maria José NogueiraIII

IProfessora Adjunta no Departamento de Medicina de Família, Saúde Mental e Saúde Coletiva no Curso de Medicina da Ufop, Pesquisadora Visitante na Fundação João Pinheiro/MG (2015-2016), Doutora em Ciências da Saúde (Fiocruz, 2013), Mestre em Psicologia (UFMG, 2004)
IIDoutora em Psicologia (UFMG, 2015), Pesquisadora Visitante na Fundação João Pinheiro/MG
IIIDoutora em Ciências da Saúde (Fiocruz, 2008), Professora Colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde do CPqRR/Fiocruz Minas, Analista em Educação e Pesquisa em Saúde da Fundação João Pinheiro/MG

 

 


RESUMO

A adoção de medidas alternativas para usuários de drogas previstas na Lei nº 11.343/2006 exige reflexão sobre estratégias que possibilitem intervenções educativas voltadas para redução de riscos e danos. A partir da oferta de espaço dialógico, esta pesquisa objetivou produzir novos conhecimentos para profissionais que atuam com grupos reflexivos sobre drogas. Trata-se de estudo qualitativo, realizado com profissionais que conduzem grupos reflexivos na cidade de Belo Horizonte (MG), composto por entrevistas individuais e grupo focal, seguido de reuniões para discussão do material produzido. As percepções advindas das práticas realizadas, acrescidas de elementos teóricos e metodológicos, favoreceram a intervenção dos profissionais, com aumento na autonomia e responsabilização dos usuários, possibilitando melhor enfrentamento da questão. Conclui-se que as práticas de medidas socioeducativas de intervenção não devem ser limitadas ao aspecto penal. A educação dialógica está comprometida com a construção da autonomia do usuário, posicionando-se como alternativa ao reducionismo e práticas morais.

Palavras-chave: Educação em Saúde. Redução de danos. Políticas sobre drogas. Medidas alternativas. Grupos reflexivos.


ABSTRACT

The adoption of alternative measures for users of drugs provided by Law 11.343 / 2006 requires consideration of strategies that allow educational interventions aimed at reducing risk and damage. As from the offering of a dialogic space, this research aimed to produce new knowledge for professionals who work with reflective groups about drugs. It is a qualitative study involving professional that coordinate reflective groups in the city of Belo Horizonte (MG), composed of individual interviews and focus group training followed by meetings in order to promote feedback of the material obtained. Perceptions arising from the practices carried out plus theoretical and methodological elements favored the intervention of professionals, increasing autonomy and accountability of users and enabling better management for the issue. We conclude that practices of socio-educational intervention measures should not be limited to the criminal aspects. The dialogic education is committed to building more autonomy, positioning itself as an alternative to reductionism and moral practices.

Keywords: Health education. Harm reduction. Drug policies. Alternative measures. Reflective groups.


RESUMEN

La adopción de medidas alternativas para los usuarios de drogas previstas en la Ley 11.343 / 2006 requiere la consideración de estrategias que permitan intervenciones educativas dirigidas a la reducción de riesgos y daños. A partir de la oferta de espacio dialógico, esta investigación tuvo como objetivo producir nuevos conocimientos para los profesionales que trabajan con los grupos de reflexión sobre las drogas. Se trata de un estudio cualitativo realizado con profesionales que conducen los grupos de reflexión sobre drogas en la ciudad de Belo Horizonte (MG), provenientes de entrevistas individuales y la formación de grupos focales, seguido de reuniones para discutir el material producido. Las percepciones derivadas de las prácticas llevadas a cabo, además de los elementos teóricos y metodológicos favorecieron la intervención de profesionales, con el aumento de la autonomía y la responsabilidad de los usuarios, permitiendo un mejor enfoque de la cuestión. En conclusión, creemos que las prácticas de las medidas de intervención socio-educativos no deben limitarse al aspecto penal. La educación dialógica se ha comprometido a la construcción de una mayor autonomía, posicionándose como una alternativa al reduccionismo y prácticas morales.

Palabras clave: Educación para la salud. Reducción de daños. Políticas sobre drogas. Medidas alternativas. Grupos de reflexión.


 

 

Introdução

A adoção das medidas educativas previstas no art. 28, Lei nº 11.343 (Brasil, 2006) é uma política relativamente recente em nosso país. Essa lei, embora não estabeleça critérios claros e nem tampouco especifique metodologias para tal, aborda de forma mais explícita as atividades de prevenção ao uso e abuso de drogas, definindo o cumprimento de penas alternativas ao crime definido como porte de drogas para consumo pessoal, por meio do comparecimento obrigatório a programa ou curso educativo.

É justamente a partir do reconhecimento dessa lacuna e das dificuldades que decorrem da obrigatoriedade da participação que propomos uma reflexão acerca das estratégias que possam garantir aos profissionais que realizam essas atividades uma melhor compreensão e abordagem das práticas de intervenção, e aos usuários em cumprimento dessa medida uma melhor possibilidade de enfrentamento e análise crítica sobre o seu uso de drogas.

Com base nesse contexto, buscamos, a partir da utilização de metodologias qualitativas (Minayo, 2007), conhecer e analisar as percepções de profissionais que coordenam essas atividades em duas instituições distintas, visando identificar percepções sobre as drogas, pressupostos teóricos e posição ocupada na coordenação dos grupos, de modo a aportar elementos para uma melhor compreensão e abordagem das práticas educativas voltadas para o público de usuários de drogas, contribuindo assim para o processo de construção de políticas públicas inovadoras.

Nesse percurso propomos discutir alguns elementos teórico-práticos que possam fundamentar as intervenções por meio da inter-relação entre as contribuições da teoria do vínculo grupal de Pichón-Rivière (2005), das oficinas em dinâmica de grupo na área da saúde (Afonso, 2006), das perspectivas atuais da Educação em Saúde (Schall, 2005; Modena, Nogueira & Schall, 2008; Lima, 2013, 2015, 2016), da perspectiva dialógica e reflexiva da educação para a autonomia (Freire, 1996, 1999; Acselrad, 2005, 2015) e das estratégias de redução de riscos e danos (Brasil, 2003; Cavalcanti, 2006; Romani, 2007, 2008).

 

Revisão da literatura

Pressupostos do Grupo Operativo e das Oficinas em Dinâmica de Grupo e sua aplicação nos Grupos Reflexivos sobre drogas

Pichón-Rivière (2005) privilegia a expressão verbal como um dos determinantes do homem como ser situacional. A proposta da técnica operativa pressupõe a aprendizagem mediante a absorção da informação e sua reelaboração, elegendo o grupo como espaço adequado para tal. Isso implica que o grupo seja dinâmico, reflexivo e democrático, permitindo o livre fluir da interação e da comunicação, a reflexão sobre o próprio processo grupal e a origem de toda ação e pensamento no próprio grupo.

A técnica do grupo operativo consiste num método de trabalho e aprendizagem instrumentado pelo contraste e pela contradição, pela heterogeneidade de contribuições e interpretações, potencializando sua operatividade ao favorecer aos seus integrantes o reconhecimento das suas dificuldades e limites como instrumento para sua superação.

Para Pichon-Rivière (2005), o trabalho com o grupo visa à integração de duas dimensões - a verticalidade, que se refere à história singular de cada participante, e a horizontalidade, que se refere ao campo grupal. Nesse processo, um membro pode servir de suporte para a elaboração de processos psíquicos de outros membros e de todo o grupo. A dialética grupal proposta por Pichón-Rivière (2005) aplicada aos grupos reflexivos sobre drogas permite o intercâmbio de informação, de experiências e o confronto entre estilos de vida e aprendizagem. Informação, experiências e estilos que podem ser processados e articulados numa síntese grupal enriquecedora para todos e para cada um dos integrantes do grupo individualmente.

Essa formulação foi pensada originalmente para a intervenção com grupos de pacientes psicóticos inseridos em contextos de institucionalização com ênfase nos seus aspectos terapêuticos. Para as intervenções dos grupos reflexivos sobre drogas, consideramos pertinente agregar a essa concepção a releitura proposta por Afonso (2006), por meio das oficinas em dinâmicas de grupo na área da saúde.

Conforme explica Afonso (2006), a metodologia proposta nas oficinas educativas em saúde integram teorias e técnicas sobre grupo, mas, embora se orientem por esses referenciais, diferenciam-se de um grupo de terapia, uma vez que se limita a um foco preestabelecido e não pretende a análise psíquica profunda de seus participantes. Nesse sentido, atende bem aos requisitos dos grupos reflexivos sobre drogas, uma vez que priorizamos nesse espaço a transmissão de informação sobre drogas, seguida de uma reflexão acerca das vivências e significados relacionados com o tema sem, contudo, oferecer-se como prática terapêutica grupal.

A oficina é um trabalho estruturado com grupos, independentemente do número de encontros, sendo focalizado em torno de uma questão central que o grupo se propõe a elaborar, em um contexto social. A elaboração que se busca na oficina não se restringe a uma reflexão racional, mas envolve os sujeitos de maneira integral, formas de pensar, sentir e agir. (Afonso, 2006, p. 9)

Assim sendo, a metodologia das oficinas porta uma plasticidade e permeabilidade, possibilitando sua aplicação em diversos contextos da área da saúde, da educação e da intervenção psicossocial. Seguindo o pensamento de Afonso (2006) procuraremos explicitar os principais aspectos que compõem o planejamento de uma oficina aplicando esses princípios aos grupos reflexivos sobre drogas.

O tema geral da oficina representa o foco em torno do qual o trabalho será deslanchado. Em se tratando dos grupos reflexivos sobre drogas, o foco já é previamente estabelecido em consideração à medida educativa prevista no Art. 28 da Lei nº 11.343/2006. Em torno desse foco é que serão propostos os "temas-geradores" (Freire, 1987, p. 44), ou seja, temas que poderão gerar no grupo a motivação, a associação com a experiência de vida de cada um, o conhecimento sobre preconceitos, crenças e representações, dúvidas e questões, emoções relacionadas ao cuidado com a saúde, a necessidade de informação e outros aspectos que possam surgir no desenvolvimento das atividades.

Os temas geradores são temas que mobilizam o grupo porque se relacionam à sua experiência, tocam em suas necessidades, medos, alegrias, conflitos e possibilidades, aguçam o desejo de participação e troca. Para um foco como "reflexão sobre uso e abuso de drogas", poderão ser escolhidos como temas geradores: sexualidade, lazer, cuidados com a alimentação, cuidados com o corpo, trabalho e renda, projetos de vida etc. Os temas geradores não esgotam o assunto, apenas servem de motivação para em torno deles levantar e construir questões e informações, expressar sentimentos e fazer associações.

É igualmente importante que esses temas sejam apresentados em linguagem clara e tenham relação direta com o cotidiano do grupo. Em termos de planejamento, convém abordar primeiro temas mais gerais e que despertem menos ansiedade. Cada tema pode ser trabalhado em um ou mais encontros, cuidando para não sobrecarregar um encontro com muitos temas. Caso a conversa do grupo esteja "fugindo" do tema originalmente proposto, é importante o coordenador do grupo escutar um pouco e retornar essa questão para si e para o grupo: "de que forma este assunto está relacionado ao tema de hoje?" Muitas vezes, pode acontecer de o grupo dar algumas "voltas" para tratar o tema - é importante facilitar essa reintegração, pela articulação e conexão dos temas (Afonso, 2006).

A sequência e organização dos encontros devem partir de temas mais gerais para os mais específicos e dos mais fáceis para os mais difíceis. Um momento inicial, que prepara o grupo para o trabalho do dia, seja por meio de alguma técnica de relaxamento, aquecimento, seja por meio de uma conversa que atualize para o grupo a proposta do dia. Um momento intermediário que tomará a maior parte de encontro com o objetivo de reflexão e elaboração sobre o tema proposto. Um terceiro momento de sistematização e avaliação do trabalho do dia. Isso permite que o grupo visualize melhor a sua produção como "grupo de trabalho", acompanhando o desenvolvimento de sua reflexão e o crescimento de seu processo, ajudando a tomar decisões sobre os encontros seguintes (Afonso, 2006).

Conforme explicita Afonso (2006), é importante que os encontros possam ser planejados de forma flexível, considerando-se o fluir do próprio grupo. É fundamental não esquecer o foco, mas aceitar modificações e reajustes no planejamento inicial das atividades, conteúdos, técnicas, de forma a melhor alcançar os objetivos desejados. O propósito é que os conteúdos sejam apropriados pelo grupo, respeitando o seu ritmo e sua singularidade.

Consideramos que a metodologia dos grupos operativos e sua releitura por intermédio das oficinas em saúde oferecem uma estrutura e enquadre pertinentes para atender aos objetivos de um grupo reflexivo, aos quais agregamos para efeito do manejo e condução as perspectivas da Educação em Saúde com suas intervenções dialógicas e participativas orientadas para a redução dos riscos e danos relacionados ao uso e abuso de drogas.

Pressupostos da educação em saúde e das estratégias de redução de riscos e danos e sua aplicação nos grupos reflexivos sobre drogas

A proposta de Educação em Saúde utilizada no presente trabalho baseia-se no conceito de dialogicidade de Paulo Freire, que entende a essência da educação como prática de liberdade, pois os homens se fazem não no silêncio, mas nas palavras, no trabalho, na ação-reflexão (Freire, 1987).

Essa concepção propõe a reflexão crítica sobre a prática educativa num movimento dinâmico e dialético entre o fazer e o pensar sobre o fazer. A dialogicidade pressupõe que os sujeitos aprendem e crescem na diferença, sobretudo, no respeito a ela. Para Freire essa é a forma de ser coerente com a nossa condição de seres que, inacabados, assumindo-se como tais, se tornam radicalmente éticos. "Inacabado como todo ser vivo a inconclusão faz parte da experiência vital. A consciência do inacabamento o insere num permanente movimento de busca a que se junta, necessariamente, a capacidade de intervenção no mundo" (Freire, 2000, p. 51). Portanto baseia-se na disponibilidade para o diálogo, saber escutar e, sobretudo, respeitar a autonomia do ser humano.

É justamente essa vocação para o diálogo que insere a Educação em Saúde num campo de atuação tanto teórico quanto prático, visando à integração dos saberes científico, popular e do senso comum (Gazzinelli, Reis & Marques, 2006). Para isso é fundamental superar a suposta dicotomia entre saber científico e saber popular. A inter-relação entre o saber científico e o senso comum é fundamental para qualquer concepção educativa que se pretenda transformadora (Freire & Faundez, 1985).

Ao ampliar suas bases de intervenção, a Educação em Saúde não se torna menos científica, ao contrário, aproxima-se com maior abrangência e profundidade dos fenômenos sobre os quais se propõe a intervir. A historicidade do conhecimento nos leva a perceber que a rigor a ciência não é nenhum a priori da história. A ciência se constitui na história, como nós nos constituímos historicamente (Freire, Gadotti & Guimarães, 1995, p. 45).

Em consonância com os pressupostos atuais da Educação em Saúde que serviram de base para fundamentar este artigo, além da dialogicidade, é importante incentivar a participação ativa de todos os envolvidos nos processos educativos, de modo a incluir os distintos saberes, representações, críticas, vivências, perspectivas e sugestões. A possibilidade de se trabalhar com essa concepção implica na superação de uma visão cientificista e um avanço significativo em termos da compreensão da complexidade de que se revestem as práticas educativas em saúde. Isso significa que o educador reconhece que o sujeito é detentor de um saber e de valores diferentes do dele e que pode escolher outros meios para desenvolver suas práticas cotidianas de cuidados, saúde e prevenção.

Entendemos que a Educação em Saúde terá dado uma grande contribuição ao explicitar que não se trata de definir comportamentos corretos acerca do uso e abuso de drogas, mas de criar oportunidades de reflexão crítica e interação dialógica entre os participantes desses grupos na construção de novos conhecimentos que orientem seus projetos de vida e escolhas futuras.

Nessa mesma direção, nos parece importante trazer para essa discussão os questionamentos propostos por Acselrad (2005) quando chama nossa atenção para a necessidade da produção de um discurso de prevenção no campo das drogas que supere as tendências autoritárias, assumindo o compromisso político com a democracia, com a expansão da liberdade do sujeito, colocando-se como alternativa aos discursos moralistas e reducionistas que coíbem os processos reflexivos.

Conforme argumenta, o debate acerca do uso de drogas deve levar em conta a forma como são transmitidos o conhecimento e as informações sobre o produto, as condições subjetivas de quem faz uso e o seu meio sociocultural, aspectos nem sempre considerados. Para que os processos educativos possam formar cidadãos críticos, capazes de refletir e avaliar o que é bom para si e a fazer escolhas de forma a se proteger, é primordial superar meias-verdades da qual se revestem os discursos repressivos em prol da busca de autonomia, condição essa somente possível ao buscar compreender o tema sem preconceitos e de forma solidária, favorecendo a busca de respostas mais afetivas e humanas (Acselrad, 2015).

A educação para a autonomia é do nosso ponto de vista um dos aspectos que aproximam a Educação em Saúde das Estratégias de Redução de Risco e Danos. Também conhecida como "redução de riscos" ou "minimização de danos", a Redução de Danos é definida como uma política social que dá prioridade ao objetivo de diminuir os efeitos adversos do uso de drogas - lícitas ou ilícitas - sem pretender a interrupção do seu consumo, buscando desenvolver e consolidar em diferentes âmbitos,ações alternativas aos modelos atualmente dominantes de gestão política das drogas (Romani, 2008).

Quando trabalhamos com esses pressupostos, constatamos que usar ou não usar drogas é uma escolha do sujeito, e nesse caso é preciso visar à responsabilização dos usuários pelas escolhas que fazem e que de alguma maneira resultam na alteração de seu comportamento, no cuidado com sua saúde, com seu corpo, no seu convívio social, familiar, profissional. Ao recomendarmos incluir na orientação das intervenções as estratégias de redução de riscos e danos, entendemos que não se trata de prescrever uma conduta, mas incluir no rol de possibilidades aquelas que mais se aproximam das práticas já exercidas cotidianamente por esses sujeitos (Lima, 2015, 2016).

Essas diretrizes estão claramente propostas na Política de Atenção Integral aos Usuários de Álcool e Outras Drogas

Vemos aqui que a redução de danos oferece-se como um método (no sentido de methodos, caminho) e, portanto, não excludente de outros. Mas, vemos também, que o método está vinculado à direção do tratamento e, aqui, tratar significa aumentar o grau de liberdade, de corresponsabilidade daquele que está se tratando. Implica, por outro lado, no estabelecimento de vínculo com os profissionais, que também passam a ser corresponsáveis pelos caminhos a serem construídos pela vida daquele usuário, pelas muitas vidas que a ele se ligam e pelas que nele se expressam. (Brasil, Ministério da Saúde, 2003, p. 10)

Quando pensamos na dimensão da escolha, consideramos que é dever ético dos programas de prevenção explicitar a necessidade e a importância da compreensão e descoberta dos motivos que podem levar o sujeito a buscar drogas, escutando qual é o papel que elas ocupam na sua vida, contextualizando por meio das experiências trazidas por eles próprios. É primordial promover reflexões em que esses aspectos sejam pensados conjuntamente com as vulnerabilidades constituintes de determinadas práticas realizadas por esses sujeitos (Lima 2015, 2016).

A noção de vulnerabilidades articulada ao campo da saúde coletiva amplia a nossa compreensão de uma Educação em Saúde que, dissociada de toda e qualquer tendência à homogeneização de comportamentos ditos "adequados", orienta suas práticas rumo a uma educação que promova uma reflexão crítica e interação dialógica, elaborando dentro do processo de cuidado e atenção os diversos sentidos atribuídos pelos diferentes sujeitos ao seu uso de drogas. O conceito de vulnerabilidade que empregamos nessa formulação está orientado pelo marco conceitual proposto por Ayres (2006), no qual a vulnerabilidade não é restrita à determinação individual. Para esse autor, a operacionalização da vulnerabilidade está articulada entre três componentes: o individual, o social e o programático. A articulação desses três componentes prioriza análises e intervenções multidimensionais.

Didaticamente podemos dizer que o conhecimento preventivo que almejamos produzir nas práticas educativas em saúde contempla um saber técnico, no qual estão incluídos as nossas categorias e conceitos científicos, um saber cultural a propósito dos estilos de vida, contextos e linguagem do nosso público e necessariamente um saber empírico que é aquele trazido pelos próprios usuários a partir da sua experiência. Nesse contexto, as práticas de saúde devem acolher sem julgamento o que em cada situação e para cada usuário é possível, o que está sendo demandado, o que pode ser ofertado e o que deve ser feito, sempre estimulando a participação e o engajamento (Cavalcanti, 2006).

Nesse sentido, realizar intervenções educativas dialógicas orientadas pelas estratégias de redução de riscos e danos associados ao consumo de álcool e outras drogas implica em reconhecer que a abstinência não pode ser o único objetivo a ser alcançado. Trata-se de um caminho não excludente de outras possibilidades, inclusive da própria abstinência se esta se apresentar como a melhor opção. Precisamos lidar com as diferentes possibilidades e escolhas que serão feitas, acolhendo cada usuário em sua singularidade e traçando com ele estratégias que possibilitem aumentar o seu grau de liberdade e corresponsabilidade.

Aspectos metodológicos da investigação

A metodologia apresentada neste artigo compreende a segunda etapa da investigação realizada acerca da representação da droga para jovens em cumprimento de medidas educativas. A primeira etapa centrou-se nas percepções dos jovens participantes desses grupos acerca do seu uso de droga e das formas de intervenção realizadas nos grupos reflexivos sobre drogas (Lima, 2013).

Na presente etapa, para construção do nosso caminho de investigação, nos referenciamos na abordagem da pesquisa qualitativa em saúde conforme os pressupostos de Minayo (2007), para quem o método qualitativo pode ser definido como aquele que se aplica ao estudo da história, das relações, das representações, das crenças, das percepções e das opiniões, produtos das interpretações que os sujeitos da pesquisa fazem a respeito de si, de como vivem, sentem e pensam.

A partir desses pressupostos, esta investigação buscou conhecer o cotidiano e as experiências vivenciadas pelos profissionais que coordenam os grupos reflexivos, seus impasses e enfrentamentos propostos. Para tal, foram realizadas entrevistas semiestruturadas e um grupo focal, que tiveram como eixo central a atuação na condução das atividades de educação preventiva, percepção sobre as drogas e sobre os usuários que estão em atendimento, aspectos positivos e negativos na realização dos grupos e perspectivas teóricas utilizadas. Foram entrevistados quatro psicólogos e uma enfermeira, cuja participação se deu voluntariamente.

A prática dos grupos reflexivos prevê a participação obrigatória dos usuários em uma sequência de oito encontros com duas horas de duração. Nesses encontros são abordados temas diversos, desde os cuidados com a saúde aos direitos humanos. Uma parte significativa do público que participa desse programa é composta por jovens na faixa etária de 18 a 24 anos que em geral mostram um rechaço pela interpelação judicial e pela determinação de ter de cumprir uma medida alternativa.

As instituições onde foram realizadas as entrevistas são organizações do terceiro setor atuantes nas políticas de drogas - prevenção, tratamento e reinserção social em parceria com o poder público. Os grupos são realizados por essas instituições e pela equipe da Central de Acompanhamento de Penas e Medidas Alternativas (Ceapa) - Secretaria de Estado de Defesa Social - Governo de Minas Gerais e possuem um caráter de medida alternativa no âmbito jurídico legal.

As instituições do terceiro setor são responsáveis pela coordenação das oficinas temáticas, enquanto ao Programa Ceapa cabe desenvolver um acompanhamento complementar ao Projeto dos Grupos reflexivos sobre drogas, de modo a participar diretamente nas oficinas temáticas trazendo conteúdos relacionados à política de alternativas penais.

Para a identificação das instituições, utilizamos ao longo das descrições as designações "Instituição X" para nos referirmos às atividades realizadas pela profissional que atua numa instituição cristã, cujo foco de intervenção se aproximava mais das políticas de abstinência e tolerância zero, e "Instituição Y" para nos referirmos às atividades realizadas pelos profissionais que atuam numa instituição laica, cujo foco de intervenção se aproximava mais das estratégias de redução de riscos e danos.

As entrevistas individuais e em grupo foram gravadas e transcritas pela pesquisadora responsável pela pesquisa e acadêmicos de psicologia participantes como estagiários. Os discursos foram analisados cotejando as práticas em exercício e os referenciais teóricos da Educação em Saúde e das Estratégias de Riscos e Danos segundo os pressupostos da análise de conteúdo temática (Bardin, 1976).

Todos os participantes tiveram conhecimento dos objetivos da pesquisa e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) em conformidade com o Protocolo de Pesquisa aprovado pelo Comitê de Ética do Centro de Pesquisas René Rachou - Fiocruz Minas (Protocolo CEP-CPqRR nº 20/2010).

Posteriormente foram realizadas reuniões de feedbacks com os profissionais para discussão do material produzido no campo, visando constituir um espaço de participação e de apropriação da produção de conhecimento construída na pesquisa. Essa etapa foi finalizada com a realização de um seminário envolvendo a participação de profissionais atuantes no Programa Ceapa de Belo Horizonte e Região Metropolitana durante a Reunião Mensal de Técnicos e Estagiários.

 

Resultados e análise

Para o desenvolvimento da análise, as entrevistas foram organizadas e classificadas de acordo com os eixos temáticos definidos nos instrumentos de coleta. A exploração do material compreendeu a definição e escolha das categorias analíticas, bem como o recorte de falas correspondentes para ilustrar cada categoria. A interpretação propriamente dita compreendeu o processo de análise por meio do diálogo com os elementos textuais e literatura revisada.

Um primeiro grupo de categorias foi estabelecido a priori conforme os eixos temáticos dos instrumentos de coleta: percepção sobre drogas e sobre os usuários participantes, percepções sobre os grupos e posição ocupada na coordenação deles, perspectivas teóricas utilizadas. Outras subcategorias emergiram a posteriori, tais como desestruturação familiar, abordagem policial, descriminalização do uso de drogas. No presente artigo nos centraremos nas categorias relacionadas às estratégias educativas e pressupostos teórico-metodológicos utilizados nas atividades de coordenação dos grupos.

No que diz respeito à categoria "percepção sobre as drogas", identificamos essas substâncias sendo abordadas como um objeto passível de diversas modulações, ora referido a algo que faz parte da cultura, dos modos de vida dos participantes, relacionado a uma escolha, um estilo de vida, ora referido a processos psicopatológicos de dependência com ênfase num discurso biologicista e nos aspectos jurídico-legais.

A nossa proposta inicial é levar à redução de danos, onde a questão principal é que a droga seja colocada como um objeto pertencente a essa cultura e eles possam lidar com esse objeto de escolha de uma forma mais responsável, de uma forma que eles possam se implicar, se responsabilizar pelas consequências dessa droga na sua vida. (Entrevistada 2, Instituição Y. Grupo Focal)

É importante a gente colocar que a interrupção da droga é uma escolha possível e não a escolha possível, na medida em que a gente preconiza o individuo e não a droga, essa interrupção ou abandono da droga é uma saída, mas a gente cuida pra que essas saídas sejam construídas, a relação do uso, a diminuição do uso e a interrupção eu acho que são saídas no plural. (Entrevistada 2, Instituição Y. Grupo Focal)

Vou levar informação do que é a droga, esse é o meu foco. A gente tem que seguir o edital. O edital tem uma programação dos encontros e a gente tem os temas que devem ser abordados. A gente tem que começar primeiro com aquilo que ele desconhece que é a tecnologia das drogas, eu tenho que estudar com eles, pra eles entenderem o que é uma overdose, quê que é uma tolerância, uma escalada. São três aulas que a gente vê droga por droga, vem mostrando, vem trazendo as fotos, as prisões da polícia, trago vídeo da produção da droga de coca, trago fotos das pessoas usando droga. [...]. (Entrevistada 1, Instituição X)

Identificamos também uma visão atrelada a uma perspectiva moral, do tipo "Bem × Mal", "Vida Sem Drogas × Vida Com Drogas", tradução muito característica da noção hegemônica que predomina em nossa sociedade, que tende a identificar a droga ao mal a ser extirpado para que tudo retorne a um suposto estado natural de bom funcionamento e tranquilidade.

Eles têm de fazer uma colagem, eu divido o grupo em dois, consigo separar aqueles grupinhos e aí eles começam a ter oportunidade de conhecer os colegas que estão mais distante. E aí é interessante que nesse trabalho a gente consegue fazer uma dicotomia, como é a vida com drogas e a vida sem drogas de um lado e do outro, né, como uma balança. (Entrevistada 1, Instituição X)

Esse posicionamento pode ser atribuído à influência de dois paradigmas fundamentais: o jurídico-legal e o médico-sanitário, modelos esses decisivos no estabelecimento de tratados internacionais, normas e leis. A confluência desses dois modelos produziu um conjunto de ideias sobre o que são as drogas, acentuando sobremaneira seus aspectos morais (Romani, 2007).

A gente quando inicia o grupo, a gente fala com eles o seguinte, que no final do grupo, o resultado que a gente espera é que eles deem o exemplo, mas se eles não pararem de usar, a gente não vai brigar com eles, se eles pararem nós também não vamos brigar. O que a gente costuma falar é que isso aqui é um curso de sobrevivência. Antes você usava de maneira ignorante, você desconhecia o que usava; quando termina o grupo, você tem consciência do que você usa. Se você faz o uso, você faz por livre espontânea vontade. No final do grupo, se você quiser se prejudicar, você tá se prejudicando consciente. (Entrevistada 1, Instituição X)

O que nos parece fundamental problematizar é justamente a forma como essas percepções sobre as drogas tendem a se impor e configurar um determinado modo de intervenção nos processos educativos em saúde. Assim, por exemplo, percepções impregnadas de uma visão da droga identificada com um discurso moral tende a reproduzir uma estratégia educativa que se orienta por uma visão de mundo maniqueísta, separando de um lado a vida sem drogas - uma vida feliz, digna de ser vivida com alegria, tranquilidade, lazer, trabalho - e, de outro, uma vida com drogas - uma vida infeliz, atribulada, marcada pelo horror e pela falta de perspectiva, desconsiderando os diversos matizes que compõem essa temática.

Acrescenta-se ainda uma ênfase no caráter conteudista e de transmissão de informação, na crença de que, ao assim fazer, pode-se assegurar a efetividade de uma intervenção. Nessa perspectiva, os usuários acabam por serem culpabilizados pelo seu uso, atribuindo-se única e exclusivamente a eles as mazelas e agruras que encontram pela vida afora, sem que sejam questionados outros fatores que vulnerabilizam as condições de vida desses sujeitos.

As pessoas, elas aprendem por condicionamento, por exemplo, eu desenho uma caveira e falo do crack. O menino já vai associar o crack com o desenho que eu fiz. Eu trabalho muito com essa forma lúdica de ensinar, porque eu acho mais fácil daquelas pessoas que não têm estudo entender, tentar memorizar alguma coisa, porque ali no grupo nós temos de analfabeto a universitário... então, assim, eu tento atingir todos os públicos, passar um conteúdo de uma maneira única para que todo mundo consiga aprender. É difícil, tem hora que você fica assim: "- Ah, meu Deus, será que os meninos vão entender?" O conteúdo tá muito pesado? Será que quando eu passo as lâminas, que são muito escritas, é cansativo? Eu tenho que arrumar uma maneira de fazer eles entenderem o que tá escrito ali, sabe? (Entrevistada 1, Instituição X)

Intervenções como essas que acabamos de citar, acabam por desconsiderar que os problemas decorrentes do uso de drogas dependem da inter-relação de vários fatores, dentre os quais a personalidade do usuário, o produto escolhido, o meio e o momento que se vive. Conforme salientado por Acselrad (2015), considerar apenas um desses fatores não ajuda a entender o que está acontecendo. Perde-se com esse tipo de abordagem o essencial nas relações educativas, a possibilidade de reinvenção do ser humano no aprendizado de sua autonomia, que se funda na responsabilidade que vai sendo assumida (Freire, 1996).

Certamente que a centralidade da droga coloca-se como uma questão preponderante para esses grupos. A obrigatoriedade de cumprimento da medida alternativa é uma realidade que atravessa essa prática. Mas seguramente estratégias eivadas de uma prática conteudista centradas na transmissão de informações para a mudança não tendem a favorecer a reflexão e responsabilização dos sujeitos sobre suas escolhas (Meyer, Mello, Valadão & Ayres, 2006). Em consideração a esse aspecto, temos nos perguntado sobre as possibilidades de favorecer a implicação e responsabilização dos sujeitos participantes. Como conciliar imposição e implicação pessoal? Como as práticas educativas e preventivas podem contribuir nesse processo?

Diante dessas perguntas, propomos discutir a próxima categoria analisada, a partir de algumas percepções apresentadas pelos profissionais acerca dos seus pressupostos teóricos e a posição ocupada na coordenação dos grupos, no ensejo de que, a partir desse diálogo, dessa inter-relação entre o fazer e o pensar sobre esse fazer, seja possível ampliarmos nosso campo de reflexão.

[...] buscamos qualificar esse vínculo, que é o nosso objetivo muito mais do que simplesmente de cumprimento porque nós entendemos que esse espaço não é somente uma medida de cumprimento, mas a reflexão para essa responsabilidade; então a dinâmica visa estabelecer um vínculo de qualidade que eles possam se abrir, que eles possam falar sem serem julgados, que ali não se trata de um julgamento, apesar de muitas vezes a gente perceber que eles nos veem ali quase como um representante do juiz. (Entrevistada 2, Instituição Y. Grupo Focal)

O que é uma coisa interessante ressaltar no trabalho frente à coordenação é que esses jovens sempre comentam da surpresa que eles têm, que ao mesmo tempo eles não se deparam com o que parece ser uma terapia, o que pra muitos tende a inibir... como também não é uma palestra sobre drogas. Então eles falam muito disso, que eles se surpreendem, acham positivo o efeito de trabalhar esse assunto drogas. (Entrevistada 5, Instituição Y. Grupo Focal)

A diferença que a gente trabalha é porque se for pensar assim na dinâmica em si... ela tem um princípio, meio e fim e já tem um fechamento... dentro da perspectiva da oficina, você tem uma certa flexibilidade, na medida em que cada um vai poder colocar a sua reflexão e fazer o seu percurso dentro daquela atividade. (Entrevistado 4, Instituição Y. Grupo Focal)

Conciliar a dimensão da obrigatoriedade com a possibilidade de implicação pessoal dos participantes é um desafio constante na prática de coordenação desses grupos. Consideramos ser esse um dos pontos críticos dessa intervenção e que, por isso mesmo, demanda nossa reflexão. Ao contrário do que se apresenta no campo terapêutico, os participantes não vão aos grupos movidos pelo desejo de mudança, de transformação em algum aspecto de suas vidas. A princípio não há consentimento, há somente a obrigatoriedade de realizar uma transação penal. Fica a cargo do dispositivo grupal o desafio de colocar em curso a reflexividade quando esta não se apresenta espontaneamente. Diante disso, é importante recuperar as contribuições de Afonso (2006), ao propor a oficina como um dispositivo que concilie transmissão de informação com reflexão sobre as vivências e significados individuais e coletivos, diferenciando-se de uma prática terapêutica grupal.

Outro aspecto interessante de ser discutido é o efeito surpresa, que pode ser tomado como um dos elementos primordiais no desenvolvimento de estratégias educativas. A surpresa como um elemento que produz o encantamento se opõe à obviedade. Afinal, é preciso nos encantar para aprendermos algo, para consentirmos com qualquer processo de mudança. O que se destaca dessas percepções é que o grupo não deve ser compreendido como um curso ou palestra sobre drogas, ao modo de uma educação bancária (Freire, 1999). Visa estabelecer um vínculo de qualidade e não simplesmente de cumprimento de uma medida. E para isto há que lançar mão de pressupostos teóricos e metodológicos que possam fundamentar essas intervenções de modo a contribuir para o estabelecimento de vínculos que favoreçam a construção da autonomia (Afonso, 2006; Acselrad, 2005; Freire, 1999).

Esse é o caminho que, acreditamos, favorecerá uma visão crítica dos sujeitos participantes dos grupos num contexto de corresponsabilização e autonomia, seja possibilitando uma reversibilidade das escolhas quanto ao uso de drogas, seja possibilitando uma visão crítica quanto a esse uso, conciliando a imposição legal e obrigatória das medidas alternativas com a implicação pessoal.

Um retorno importante que acho que a gente tem recebido é que as pessoas têm relatado que elas não paravam pra fazer reflexões acerca das consequências do uso da droga - seja ela uma droga mais nociva ou menos nociva - mas é que eles param pra pensar nisso, uns relatam até que diminuíram o uso da droga, mas não com medo de ter um efeito físico no organismo, no corpo, mas de sofrer um efeito social, um efeito familiar, um efeito relacionado à integridade e eles começam a ficar mais atentos a isso. (Entrevistada 5, Instituição Y. Grupo Focal)

Ainda no que se refere à categoria "perspectivas teóricas", vale ressaltar alguns relatos dos profissionais sobre a forma como essas perspectivas possibilitam um campo de intervenção que favorece a instauração de processos dialógicos e reflexivos. Destacam-se dos referenciais citados as contribuições dos grupos operativos, das oficinas em dinâmica de grupo, da psicanálise, das contribuições de Paulo Freire.

Nessa questão da teoria eu acho que o norte todo da nossa instituição é pela psicanálise, eu acho que isso faz muita diferença quando a gente pensa na questão da atividade [...].[...] eu acho que a partir do momento que a gente se propõe uma atividade, é um instrumento que a gente usa na verdade pra, é... um instrumento pra escutar o que aquelas pessoas têm a dizer, a história de vida que elas podem trazer. (Entrevistada 3, Instituição Y. Grupo Focal)

Um ponto que o projeto se sustenta tem a ver também com a teoria do grupo operativo e da questão das oficinas em saúde também da Lucia Afonso, acho que... porque precisa ter uma certa consistência até pra ter esses grupos, porque a gente viu por outras experiências que se o moderador chega também muito assim... psicanaliticamente assim, aquela coisa assim, eu vou escutar vocês... a direção, a coisa se perdeu. (Entrevistado 4, Instituição Y. Grupo Focal)

A proposta do grupo é justamente a reflexão, não é tratamento... A questão da tarefa é muito importante para o grupo, que é o que vai unir o grupo. (Entrevistada 5, Instituição Y. Grupo Focal)

Essa diversidade teórica se apresenta, do nosso ponto de vista, como um elemento muito precioso. As práticas educativas em saúde podem se beneficiar muito dessa riqueza e diversidade, aspecto detidamente debatido em outros trabalhos que se dedicam a discutir as aplicações da Educação em Saúde (Schall, 2005; Modena, Nogueira &Schall, 2008; Lima, 2015, 2016). Podemos nos servir dos diversos aportes trazidos pelas teorias, sem que tenhamos que nos manter aprisionados por determinado campo de conhecimento. O conhecimento contribuirá ao permitir inovar práticas, ampliar horizontes, possibilitar novas reflexões.

 

Considerações finais

Fica claro que a construção de novos conhecimentos educativos em saúde requer um pensamento complexo, que contemple processos singulares e coletivos, pautados em atividades dialógicas, participativas e reflexivas. Ressaltamos a importância de incrementar nas práticas educativas sobre drogas atividades que estimulem a capacidade crítica e a autopercepção, contribuindo para uma tomada de posição mais assertiva desse público a fim de lhe permitir ampliar seus horizontes e projetos de vida.

A mudança proposta consiste em sair de um campo de intervenção que oferece as mesmas respostas para todos os usuários de drogas, por exemplo, a abstinência, rumo a uma perspectiva mais ampla que inclua a promoção da saúde, a educação dialógica e as estratégias de redução de riscos e danos como importante passo para promover mudanças.

Com base nessas premissas, acreditamos que as práticas de medidas socioeducativas de intervenção não devem ser apresentadas fechadas em si mesmas e limitadas a um aspecto penal. O conhecimento deve ser oferecido de uma maneira dialética e isso só acontece por meio do diálogo entre todos os envolvidos na questão. Além disso, a educação dialógica vai além das habilidades técnicas e está comprometida com a construção da autonomia, posicionando-se como uma alternativa ao reducionismo e práticas morais (Acselrad, 2005).

Resulta dessas considerações a necessidade de uma reflexão permanente que possibilite aos profissionais recriar suas práticas de modo a promover o protagonismo dos usuários na gestão dos seus problemas e decisões, fortalecendo ações de sensibilização para o autocuidado e promoção da saúde.

A necessária renovação das práticas educativas em geral e, particularmente, das práticas educativas relacionadas ao uso e abuso de drogas, podem beneficiar-se grandemente desses referenciais favorecendo a intervenção dos profissionais, com aumento na autonomia e responsabilização dos usuários, possibilitando melhor enfrentamento da questão.

Esses aspectos foram amplamente discutidos com os profissionais nas reuniões realizadas para validação e apropriação da produção do conhecimento construído na pesquisa e posteriormente num seminário envolvendo a participação de profissionais atuantes no Programa Ceapa de Belo Horizonte e Região Metropolitana durante a Reunião Mensal de Técnicos e Estagiários do Programa Ceapa, realizado em novembro de 2014.

Resultou desse processo a construção de algumas diretrizes para a execução dos grupos reflexivos sobre drogas, dentre as quais a proposição de que essas atividades necessitam de um enfoque especializado que ultrapasse uma visão meramente punitiva, associando às suas práticas aspectos psicológicos, sociais, culturais e educativos para que seus participantes possam adquirir habilidades críticas para fazer face ao seu consumo de drogas.

Essa é uma estratégia que, acreditamos, poderá contribuir efetivamente para as práticas educativas realizadas nos grupos reflexivos sobre drogas, fortalecendo o protagonismo dos atores envolvidos, aproximando Estado e cidadãos rumo à construção de uma política pública mais inovadora.

 

Referências

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Recebido em 06/02/2016
Aprovado em 10/10/2017

 

 

1 As elaborações apresentadas neste artigo contemplam algumas das discussões incluídas na tese de doutorado "Educação em Saúde e Uso de Drogas: um estudo acerca da representação da droga para jovens em cumprimento de medidas educativas", defendida no Centro de Pesquisas René Rachou - CPqRR/Fiocruz (Lima, E. H., 2013), com apoio da Capes/Fundação Carolina, por meio de concessão de Bolsa de Estágio Sanduíche em Antropologia Médica na Espanha no ano de 2011.
2 Este artigo foi elaborado em parceria com a equipe do Centro de Estudos em Políticas Públicas da Fundação João Pinheiro, por meio da concessão de bolsa às pesquisadoras visitantes pela Fapemig.

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