Pesquisas e Práticas Psicossociais
ISSN 1809-8908
Uso de crack e suporte familiar: implicações na assistência
Use the crack and support family: implications for assistance
Uso de crack y la familia de soporte: implicaciones para la asistencia
Michelle Maria Campos CarvalhoI; Suely de Melo SantanaII
IAluna do Mestrado em Psicologia Clínica do Laboratório de família, gênero e interação social da Universidade Católica de Pernambuco - schellcampos@hotmail.com
IIProfessora do Mestrado em Psicologia Clínica do Laboratório de família, gênero e interação social da Universidade Católica de Pernambuco - suely.santana09@gmail.com
RESUMO
Ao propor um olhar para o fenômeno do consumo do crack, a partir da triangulação de perspectivas dos diversos atores envolvidos na atenção e cuidado, esta pesquisa objetivou investigar a relação entre a perspectiva de suporte familiar de usuários de crack, familiares e de técnicos sociais do Programa ATITUDE, analisando as possíveis implicações dessas percepções na assistência aos usuários e seus familiares. A metodologia foi mista, utilizando-se o Inventário de Percepção de Suporte Familiar (IPSF) com 46 usuários e entrevista semiestruturada com 8 respondentes do (IPSF), 12 técnicos e quatro familiares. Os resultados apontaram: predominância da percepção de um baixo suporte familiar, evidenciada na análise quantitativa, sendo consoante com a fala dos demais participantes durante a entrevista. Em consonância com a literatura, neste estudo também se constatou a predominância do apoio materno e a influência dos pares se sobrepondo à da família na relação dos usuários com o crack.
Palavras-chave: Droga (crack). Família. Suporte familiar. Programa socioassistencial.
ABSTRACT
By proposing a look at the phenomenon of crack use, based on the triangulation of perspectives of the various actors involved in care and attention, this research aimed to investigate the relationship between the family support perspective of crack users, family members and social workers ATITUDE Program, analyzing the possible implications of these perceptions in assisting users and their families. The methodology was mixed using the Family Support Perception Inventory (IPSF) with 46 users and a semi-structured interview with 8 respondents (IPSF), 12 technicians and four family members. The results pointed out: predominance of the perception of a low family support, evidenced in the quantitative analysis, being consonant with the speech of the other participants during the interview. Consistent with the literature, this study also found the predominance of maternal support and the influence of peers overlapping that of the family in the relationship between users with crack.
Keywords: Drug (crack). Family. Family support. Social assistance program.
RESUMEN
Al proponer una mirada al fenómeno del consumo del crack, a partir de la triangulación de perspectivas de los diversos actores involucrados en la atención y cuidado, esta investigación objetivó investigar la relación entre la perspectiva de soporte familiar de usuarios de crack, familiares y de técnicos sociales del, Programa ATITUDE, analizando las posibles implicaciones de esas percepciones en la asistencia a los usuarios y sus familiares. La metodología fue mixta, utilizando el Inventario de Percepción de Apoyo Familiar (IPSF) con 46 usuarios y entrevista semiestructurada con 8 respondedores del (IPSF), 12 técnicos y cuatro familiares. Los resultados apuntaron: predominancia de la percepción de un bajo soporte familiar, evidenciada en el análisis cuantitativo, siendo conforme con el habla de los demás participantes durante la entrevista. En consonancia con la literatura, en este estudio también se constató la predominancia del apoyo materno y la influencia de los pares sobreponiendo la de la familia en la relación de los usuarios con el crack.
Palabras clave: Droga (crack). La família. Soporte familiar. Programa socio-asistencial.
Introdução
Bastos e Bertolini (2014) afirmam que existem no Brasil aproximadamente 370 mil usuários de cocaína fumada nas capitais nacionais. Apesar de esses dados não indicarem uma epidemia, observa-se que mais da metade da população manteve contato pessoal com drogas ilícitas, dentre elas se destacando o crack, subproduto da cocaína, cujo aparecimento no Brasil data do fim da década de 1980 (Raupp & Adorno, 2011). Esse uso tem provocado uma complexa problemática que está gerando diversas consequências individuais, familiares e sociais, o que tem causado preocupação ao Estado e à sociedade em geral (Tucci, Kerr-Correa, & Formigoni, 2010).
Estudos recentes no Brasil exploram a relação entre dependência química, criminalidade e comportamento sexual. Um deles investiga a relação do consumo com a criminalidade entre 587 usuários de droga, sendo predominante o consumo de crack (Diehl, Pillon, Santos, Rassool, & Laranjeiras, 2016b). Os achados desse estudo indicam uma forte relação entre a severidade da dependência e práticas de crimes contra propriedade e/ou pessoas. Um segundo estudo focaliza o comportamento sexual nessa população, indicando a presença de disfunções sexuais numa amostra de 508 usuários homens, em sua maioria consumidores de crack (Diehl, Pillon, Santos, Rassool, & Laranjeiras, 2016a).
Contudo, a interpretação desses resultados não deve prescindir de uma leitura mais robusta da complexa teia de fatores que compõem o contexto social e que transcendem a mera identificação de uma relação linear entre o fenômeno do consumo e esses fatores.
Já quanto à necessidade de se pensar propostas no campo da atenção, prevenção e intervenções relacionadas ao uso do crack, em 2010 o Ministério da Saúde, por meio da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas, lançou o Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack, o qual propõe uma série de medidas de redução da demanda e da oferta dessa substância, além de ações integradas nas áreas da saúde, assistência, segurança pública, entre outros.
Antes desse plano, a Lei nº 11.343/06, do Sistema Nacional de Políticas sobre Drogas, tratou justamente da necessidade de se desenvolver mais intervenções voltadas ao campo da prevenção do uso indevido de drogas (Sisnad, 2006). As ações preventivas devem estar orientadas com base nos princípios éticos e da pluralidade cultural, promovendo os valores voltados à saúde física, mental, individual e coletiva. Além disso, também se faz necessário considerar a integração socioeconômica e a valorização das relações familiares (Pillon & Pinto, 2004).
É importante compreender de que modo à família atua como agente facilitador para o abuso de substâncias, considerando-a como dispositivo social e relacional que exerce influência na constituição psíquica dos indivíduos, capaz de modelar atitudes e comportamentos tanto favoráveis quanto desfavoráveis ao consumo excessivo de drogas (Baptista & Teobaldo, 2009).
Já em termos de funções sociais, a família representa, para o desenvolvimento do indivíduo e da cultura de modo geral, um espaço de tensões e contradições que engloba aspectos como a pressão pelo controle, concomitantemente à exigência por autonomia e independência (Avi & Santos, 2000; Schenker, 2008). O modelo de família tem passado por inúmeras transformações nas últimas décadas, sendo, portanto, passível de vários tipos de arranjos na atualidade. Entretanto, as funções básicas desempenhadas pela instituição familiar, no decorrer do processo de desenvolvimento psicológico de seus membros, não têm sofrido grandes alterações (Pratta & Santos, 2007).
Formiga (2011) afirma que existe uma dificuldade no exercício da responsabilidade e na promoção de comportamentos socialmente desejáveis, somando-se às questões que envolvem o entorno social e que remetem às políticas governamentais e sua efetiva aplicação e fiscalização. Nesse cenário, Avi e Santos (2000) reforçam a necessidade de mais estudos que abordem a influência de tais fatores em relação ao consumo de drogas para que se tenha um melhor planejamento de programas de intervenção.
O fenômeno do abuso de drogas pode ser ligado às experiências vividas na rotina familiar, com base no pressuposto de que a dependência se estabelece mediante uma dinâmica relacional entre o sujeito, a droga e a sociedade. É justamente na família, que também sofre as influências do meio social, que se identificará um papel fundamental no que se refere à participação ativa no tratamento da dependência química (Schenker, 2008).
Segundo Santos (2007), a resolutividade de um tratamento também pode ser apreciada pela riqueza de recursos assistenciais que são disponibilizados e pela satisfação auferida pelo usuário. No que concerne aos recursos de tratamento, a literatura preconiza o uso combinado de diversas estratégias de atenção psicossocial, de modo a englobar as múltiplas dimensões que compõem a qualidade de vida em seus domínios: físico, psicológico, social, funcional, ambiental e espiritual.
Nesse sentido, a Teoria Social Cognitiva tem como princípio básico a plasticidade como uma característica fundamental do ser humano (Bandura, 1986). A perspectiva sociocognitiva pressupõe que as pessoas não são nem exclusivamente impulsionadas por forças interiores, nem automaticamente moldadas e controladas por estímulos externos. Nessa visão, o funcionamento humano é explicado em termos de um modelo de reciprocidade triádica, no qual os fatores cognitivos, ambientais e comportamentais atuam de modo determinante e recíproco.
Esse fato nos remete ao conceito banduriano de modelação social do comportamento de consumo, permeado pela influência dos modelos de referência, como a família. Fatores como relacionamento conflituoso com os pais, membros na família que abusam ou são dependentes de alguma substância, presença de violência doméstica, desorganização familiar, pouca comunicação entre familiares, além da falta de suporte e monitoramento por parte dos pais são algumas das variáveis relacionadas ao ambiente familiar que exercem certa influência no início e na manutenção do consumo de álcool, tabaco e outras drogas entre adolescentes (Devos-Comby & Lange, 2008; Silva et al. 2009).
Baptista (2005) ressalta a importância da qualidade do suporte e atenção para o desenvolvimento biológico, psicológico e social do indivíduo que podem amenizar vários impactos decorrentes de eventos estressores que ocorrem na vida dos integrantes do grupo familiar.
O conhecimento adquirido pelas experiências de vida, em diversas situações que envolvem todos os estímulos fornecidos pelo ambiente (principalmente em situações de ordem social, traumas, alegrias, prazeres), faz parte da formação cognitiva humana. A força da modelação social permeia o funcionamento humano, de modo que as pessoas não podem ser concebidas meramente como seres passivos diante de um ambiente que as estimula à ação (Bandura, 1978).
A modelação social é regulada por um processo de mediação cognitiva que favorece o surgimento de novos padrões de conduta. O processo envolve fundamentalmente a representação simbólica de processos interativos que se desenrolam no cotidiano dos indivíduos em vários contextos, incluindo o familiar (Bandura, 2001).
Ainda sobre os constructos da teoria social cognitiva, o conceito de autoeficácia assume especial relevância para o tratamento da dependência química (Bandura, 1999). Esse conceito remete às crenças que as pessoas têm sobre suas capacidades para empreenderem ações no sentido de alcançarem seus objetivos (Santana, Dias & Oliveira, 2017). O trabalho sobre essas crenças de autoeficácia é apontado como essencial para que sejam estabelecidas novas cognições e ações nesse contexto (DiClemente, Fairhurst, & Piotrowski, 1995; Freire & Oliveira, 2011).
Sendo assim, a presente investigação tentou compreender os fenômenos em sua multiplicidade, partindo das contribuições de um programa socioassistencial, pioneiro no estado de Pernambuco, cujo objetivo é a atenção integrada a usuários, familiar e profissional. Várias pesquisas foram encontradas nessa mesma perspectiva, porém não em programas ligados à assistência. As contribuições científicas aqui apontadas poderão alicerçar o planejamento e a execução de novas ações no tratamento da dependência.
Método
A pesquisa foi desenvolvida no Programa ATITUDE - Programa de Atenção Integral aos Usuários de Drogas e seus familiares, que segue as diretrizes do Sistema Único da Assistência Social (Suas), norteado pela Política Nacional da Assistência Social (PNAS). Vale salientar que o programa é pioneiro na sua forma de execução, coordenado pelo Governo do Estado de Pernambuco. Está localizado em quatro municípios pernambucanos, sendo eles: Recife (capital), Jaboatão dos Guararapes, Cabo de Santo Agostinho e Caruaru. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em pesquisa (CAAE: 39806314.0.0000.5206).
O Programa tinha dois formatos de assistência na época: um de acolhimento e apoio, de baixa exigência, com funcionamento diurno, e o outro de acolhimento intensivo (24 horas), com saídas monitoradas. O primeiro atendia a uma demanda espontânea de homens e mulheres, com capacidade diária de 30 usuários que, além dos cuidados básicos de alimentação e higiene, podiam participar voluntariamente das atividades de apoio em grupo e atendimento individual por tempo indeterminado. No formato intensivo, a permanência máxima era de três meses, havendo uma unidade apenas para homens em cada um desses municípios e um centro de referência só para mulheres na capital, cada qual com capacidade para 30 usuários/mês.
Na caracterização da equipe de profissionais do serviço, denomina-se técnico social qualquer profissional de nível superior, de qualquer área, com experiência em algum programa socioassistencial.
Os critérios de inclusão utilizados foram: 1. Para os usuários: aqueles que estivessem na casa de acolhimento intensivo há mais de oito dias e em abstinência do crack, além de concordarem em participar da pesquisa; 2. Quanto aos familiares: participaram aqueles que se voluntariaram a partir do convite feito. Houve todo um cuidado com a abordagem e acolhimento durante o processo, além da garantia do anonimato; 3. Os técnicos sociais também participaram voluntariamente, sendo três por serviço. Vale ressaltar que houve perda amostral do primeiro para o segundo estudo, uma vez que quatro usuários solicitaram desligamento do programa, sendo substituídos por outros quatro.
Esta investigação adotou uma metodologia mista quali-quantitativa (Creswell & Clark, 2013), sendo composta por dois estudos. No primeiro participaram 46 usuários de crack do sexo masculino, o que corresponde a 38,3% dos usuários em acompanhamento. Todos responderam ao Inventário de Percepção de Suporte Familiar (IPSF), que avalia o quanto as pessoas percebem as relações familiares em termos de afetividade, adaptação e autonomia entre os membros (Baptista, 2005; 2009).
Os itens do IPSF foram construídos com base em diversos instrumentos nacionais e internacionais e a composição final do instrumento resultou em 42 itens, em formato de afirmações, que integram três fatores, sendo: Fator 1. Afetivo-Consistente: com 21 itens que evidenciam as relações afetivas positivas intrafamiliares; Fator 2. Adaptação Familiar: com um total de 13 itens, que expressam sentimentos negativos em relação à família; Fator 3. Autonomia: composto por oito itens que demonstram a percepção que o indivíduo tem em relação à sua família.
Foi aplicado o alpha de Cronbach devido à sua importância na avaliação da confiabilidade de um questionário. Essa é uma ferramenta estatística que quantifica, numa escala de 0 a 1, a confiabilidade do instrumento.
No segundo estudo foi realizada uma entrevista semiestruturada com versões distintas para cada categoria de participante (técnicos sociais, usuários e familiares), versando sobre questões como: a influência e o relacionamento familiar; expressão dos sentimentos em relação à família; enfrentamento das dificuldades, bem como sobre o suporte familiar dado e recebido. Elas estarão mais explicitadas na análise de dados apresentadas adiante.
Participaram da entrevista 24 pessoas, assim descritas: oito usuários selecionados do primeiro estudo, conforme os escores (máximo e mínimo) obtidos no IPSF; 12 técnicos sociais, sendo um representante por categoria profissional em cada serviço (uma psicóloga, uma assistente social e uma enfermeira); quatro familiares, sendo um por serviço.
A análise de dados quantitativa foi realizada por meio do pacote estatístico SPSS (versão 15.0), procedendo-se a análises descritivas e inferenciais, como a correlação (r de Pearson) e comparação de médias pelo teste t Student.
As informações obtidas na entrevista foram analisadas de acordo com a técnica da Análise de Conteúdo Temática, que se desdobra em três fases: pré-análise, que consiste na leitura do material coletado e na elaboração dos indicadores a serem considerados; a exploração do material, que consta da criação das categorias ou eixos temáticos que serão interpretados e, por fim, a análise e interpretação do que foi obtido, tomando como base o referencial teórico. Vale ressaltar que esse tipo de análise permite a geração de vários núcleos de sentido a partir de uma única resposta (Bardin, 2011; Minayo, 2010).
Resultados e discussão
Estudo 1 - Resultados referentes ao IPSF
Ao avaliar o perfil dos usuários a partir dos dados sociodemográficos que compõem a parte inicial do IPSF, foi possível identificar algumas características dos 46 usuários que frequentavam os quatro equipamentos do Programa ATITUDE. Na avaliação do IPSF dos usuários, encontrou-se o conceito de família relacionado à família nuclear (87%), porém essa não era a realidade da maioria (65,2%), uma vez que seus pais nunca conviveram ou se separaram precocemente. Isso corrobora a visão de autores que falam sobre a dificuldade em conceituar família, dada a multiplicidade de configurações que se observa na atualidade (Osório, 2013). Em relação à moradia, a maioria informou que atualmente moram sozinhos (52,2%) e, em termos de situação conjugal, 78,3% indicaram não ser casado.
Em termos de faixa etária, identificou-se que a maioria se encontrava entre 19-29 anos (52,2%), seguida de 30-40 anos (41,3%) e, por fim, havia os usuários maiores de 40 anos (6,5%), sendo a média de idade 30 anos (DP=6,98). A escolaridade se apresentou, em maior parte dos usuários, com um nível de instrução correspondente ao ensino fundamental incompleto (63%), seguido de ensino médio completo (19,6%) e uma minoria com ensino fundamental completo ou médio incompleto (8,7%).
A distribuição dos participantes entre os serviços foi de 34,8% dos usuários vinculados ao do município do Cabo de Santo Agostinho e, para os demais (Jaboatão dos Guararapes, Recife e Caruaru), a distribuição foi equitativa (21,7%).
Analisando os dados por meio de comparação entre as médias em função das variáveis faixa etária, escolaridade, tipo de família avaliada, situação de conjugalidade dos pais e deles próprios, não foram encontradas diferenças significativas na percepção de suporte familiar.
As estatísticas descritivas do IPSF entre as correlações apresentadas nos fatores que o instrumento se propõe a medir (Afetivo-Consistente, Adaptação e Autonomia) apresentaram os seguintes resultados: as médias dos fatores das pontuações e percentis do grupo total nas três dimensões Afetivo-Consistente (M= 19,17; DP= 9,21), Adaptação (M= 12,76; DP= 4,59), Autonomia (M= 11,09; DP= 2,87) e do IPSF total (M= 45,52; DP= 13,90) apontaram para uma baixa percepção do suporte familiar. Para tanto, foi realizado o teste t, em que se agruparam os valores que significavam a percepção de um baixo suporte familiar e outro grupo com os valores correspondentes a um alto suporte familiar. Foi considerado um total de 63 pontos, para um suporte familiar baixo, o que o teste t veio a confirmar em seus resultados (t (44) = -4,428; p<0,05). Dessa forma, a percepção de suporte familiar baixo foi mais significativa, mais frequente do que a de suporte familiar elevado.
Observando os dados do escore total de Percepção do Suporte Familiar em sua consistência interna, medida pelo alpha de Cronbach foi α = 0,88. Este foi considerado elevado, tratando-se, portanto, de um bom índice.
Já quanto às correlações entre os fatores e as variáveis que compõem o perfil sociodemográfico, ressalta-se que a percepção do suporte familiar foi elevada para os participantes que residiam com seus familiares. As pessoas que moravam sozinhas apresentaram tendência a uma baixa percepção do suporte familiar, devido à correlação significativa (r = 0,324; p = 0,05).
Ao correlacionar cada um dos fatores do IPSF com os itens do perfil sociodemográfico, observou-se que o Fator 1. Afetivo-Consistente apresentou correlação com dois itens, o tipo de família (r = 0,460; p = 0,01) e com o item com quem reside (r = 0,309; p = 0,05). O Fator 2. Adaptação não apresentou correlação com nenhum item do perfil sociodemográfico. Já o Fator 3. Autonomia apresentou correlação com o item 1, local do serviço (r = 0,342; p = 0,05).
Os participantes que pertenciam ao serviço situado no Cabo de Santo Agostinho mostraram ter suporte familiar baixo, enquanto os localizados em Jaboatão dos Guararapes e Recife apresentaram suporte familiar médio baixo e os localizados em Caruaru indicaram suporte familiar médio alto. Considerando os fatores Afetivo-Consistente e a Adaptação, pode-se dizer que ambos apresentaram uma baixa percepção dos usuários com relação ao suporte familiar; só no fator Autonomia foi possível perceber o suporte familiar de forma mediana.
Estudo 2 - Resultados referentes à Entrevista
Com o intuito de aprofundar os temas relacionados à Percepção do Suporte Familiar, utilizou-se o recurso das entrevistas cujos resultados estão dispostos em três quadros divididos em temas e núcleos de sentido.
Os Quadros 1 e 2 se referem aos usuários e também aos seus familiares e tiveram como temas principais: 1. Influência familiar nas decisões dos usuários, 2. Como se dá o relacionamento familiar entre os membros, 3. Como os familiares lidam com os problemas e 4. Formas de expressões de sentimentos entre os membros.
O Quadro 1, referente à percepção do suporte familiar sob o olhar dos usuários, apresentou sete núcleos de sentido para os quatro temas principais. O primeiro tema, que tratou da influência familiar nas escolhas e decisões dos usuários, trouxe como mais importante a questão do distanciamento e fragilidade dos vínculos, que pode sinalizar no sentido de uma baixa percepção do suporte familiar, confirmando os achados do primeiro estudo.
Durante as entrevistas, se percebeu uma prática no comportamento dos usuários, por vezes diferente do discurso, na qual a dinâmica de comportamento dos respondentes é conduzida por influências externas. O relato a seguir exemplifica: "[...] minha mãe sempre está tentando me orientar... eu é que nem sempre escuto. Acho que a influência depende, porque às vezes é para coisas boas e eu não sigo... às vezes escuto os colegas... passo muito tempo na rua [...]" (Usuário1, 23 anos).
Segundo Azzi (2010), o aporte socioestrutural influenciará nas questões de adaptação e mudança, por ser o indivíduo produto e produtor do sistema. Percebeu-se, no discurso dos usuários com vínculos mais fragilizados, que quase não existiam influência e importância da família nas suas tomadas de decisões, como se eles fossem mais influenciados pelo meio externo, especialmente os pares. Isso também ocorre com aqueles que ainda mantinham um contato maior com os familiares.
Parece haver uma crença na destruição familiar como consequência do consumo de crack e talvez por isso muitos optam por se afastar da família. Schenker e Minayo (2004) referem que a instalação do quadro de dependência da droga é fator importante na condição de um consumidor para conseguir ou não manter vínculos familiares, entendendo que não há uma sustentação. No relato a seguir, identifica-se a questão mencionada: "[...] Eu procuro ficar trabalhando para não recair, porque quando recaio eles param de me dar atenção, não me querem lá na casa deles. Me sinto muito sozinho [...]" (Usuário 7, 30 anos).
Já quanto ao tema 2, sobre relacionamento familiar, os usuários descreveram, em sua maioria, que os relacionamentos são conflituosos devido ao uso do crack, o que está de acordo com os achados de Perrenoud e Ribeiro (2012). Há usuários que até reconhecem que a família tenta estar junto, mas o uso os impede de se relacionarem melhor; outros já estão sem contato com a família, embora sintam falta dela, mas as consequências do uso os impedem de um contato maior, como descreveu o usuário 2, de 26 anos: "[...] a influência existiu...Tenho saudades da minha mãe.. Ela tentou me aconselhar e eu não ouvi, eu não enxergava [...]".
Para Schenker e Minayo (2004), lidar com os afetos e suas relações torna-se uma questão desafiadora para esses indivíduos, que pode levá-los a substituir o relacionar-se com pessoas por um relacionar-se com as substâncias. Por sua vez, ao considerar os processos de julgamentos sociais e pessoais, a visão banduriana (1986) salienta que os indivíduos recorrem a mecanismos psicológicos de desengajamento moral para legitimar algumas condutas que tendem a gerar sensações desagradáveis, em alguns contextos sociais. No caso de abuso de substâncias, o efeito da droga no organismo atuaria de modo a não ativar o mecanismo cognitivo que permite ao indivíduo processar um julgamento moral em relação a suas condutas ilícitas. Vale ressaltar que o consumidor, nesse momento, não está desprovido de valores morais, mas se encontra temporariamente comprometido em suas habilidades cognitivas para priorizá-las. Pode-se perceber tal comportamento quando o usuário está em acompanhamento, pois seu discurso pós-uso evidencia certa consciência dos seus atos ilícitos (Bandura, 1986).
Os usuários descreveram que os problemas e dificuldades nas famílias são tratados de forma conflituosa, com pouco diálogo, o que lhes causa muita culpa. A consciência mais crítica sobre a importância da família parece se aguçar após algum tempo de acompanhamento especializado, como descreve o usuário 1, de 23 anos.
[...] Hoje em dia, se eu receber uma crítica, fico calado ou tento explicar de forma legal. Eu tenho consciência das coisas que já fiz depois que comecei a usar drogas. Isso só depois que estou aqui no programa... Acho até que meu pai passou a usar mais álcool depois do meu problema.... me sinto culpado […].
A literatura apresenta evidências de que, quando a família participa do programa de acolhimento, os resultados, no que se refere à adesão e à redução de problemas e dificuldades entre os membros, podem ser melhores, além de possibilitar a realização de um diagnóstico familiar mais completo (Rezende, 1999).
Outro importante dado analisado foi a relação problemática e conflituosa por parte de outros membros familiares com drogas influenciando e/ou determinando comportamentos semelhantes aos dos participantes. A mudança é constante, ou ainda, nossas ações são reações ao que já aconteceu. A maneira como se age pode ser uma reação aos eventos passados, associada às influências do meio ambiente, como afirmou o usuário 2, de 26 anos.
[...] não existia carinho... era uma dor muito grande..... eles sabiam que eu era usuário, desconfiavam. Sinto muita falta da minha mãe. Hoje eu terminei igual ao meu pai..... usuário de drogas. Ele morreu sozinho, acho que será assim comigo. Hoje eu sei o que meu pai sentia. Eu sinto falta no meu coração [...].
O estudo de Luthar, Merikangas e Rounsaville (1993) evidenciou essa problemática, a partir da análise da associação entre a psicopatologia dos pais e a dos filhos abusadores de drogas. Eles partiram de relatos da literatura que afirmam que os dependentes e seus familiares mostram aumento de transtornos mentais relacionados, o que pode tornar unanimidade esse histórico quanto à presença de fatores de risco nessas famílias. E, por último, uma questão presente nos discursos foi a relação de afeto sempre direcionada para as mães, parecendo haver uma lacuna em relação à figura paterna. Oliveira, Bittencourt e Carmo (2008) sinalizaram para a importância das mães nas trocas de afeto marcantes para os indivíduos usuários de drogas como um importante fator na prevenção ao uso de substâncias. Nesse sentido, seguem algumas falas do usuário 1, de 23 anos "[...] família eu digo minha mãe... Ela me ajuda muito... pensamos a melhor forma de superar as dificuldades.. Hoje porque estou me cuidando, ela está alegre... torce para que eu fique bem [...]". Já o usuário 6, de 19 anos, afirma que "[...] Hoje é mais abraço e beijo e às vezes uma discussão... as minhas referências são só minha mãe, avó e tia. Nunca tive uma referência masculina. Mas acho que o problema sou eu mesmo [...]".
As entrevistas com os familiares resultaram em oito núcleos de sentido referentes aos temas principais. No tema 1, acerca da influência familiar, se percebeu a crença de que a forte influência dos amigos se sobrepôs à da família. Esse é um tema que está respaldado na literatura (Oetting & Donnermeyer, 1998) e que se complementa com Bandura (1986), que refere o importante papel da modelação social, quando aponta que a aprendizagem de condutas desviantes pode sofrer influência do grupo de iguais. Nesse sentido, Bokany, (2015) e Bastos e Bertoni (2014) apontam, em alguns estudos, a relação entre o consumo familiar de drogas e maior predisposição ao consumo de substâncias psicoativas pelos jovens. Esse fato nos remete ao conceito já aqui apresentado de modelação social do comportamento, permeado pela influência dos modelos de referência.
Porém, Caprara e Barbaranelli (2011) afirmam que os indivíduos que se sentem acolhidos no âmbito familiar aumentam a probabilidade de receberem uma orientação mais esclarecedora e pertinente. Isso confirma os achados deste estudo, que, em sua maioria, apontam uma percepção do suporte familiar fragilizada nas pessoas que não têm um bom vínculo familiar, o que potencializa a probabilidade da influência dos colegas ser maior.
Bandura et al. (2003) assinalam ainda que a elevada autoeficácia familiar favorece o desenvolvimento saudável e auxilia seus membros no enfrentamento das situações de risco. O relato a seguir exemplifica o que foi dito por M, mãe de um usuário: "[...] a gente gostaria muito que eles viessem até nós, os pais, para conversar... mas normalmente eles tomam as decisões deles... vão pelos amigos... quando a gente vai saber das coisas o caso já é grave [...]".
A falta de tempo que aparece associada ao trabalho, que é suprida pela recompensa material, como se pode ver no núcleo de sentido do primeiro tema, constitui-se como outro importante aspecto que interfere, tanto qualitativa como quantitativamente, nas relações. Parece que os familiares acreditam que apenas as recompensas materiais são interpretadas como forma de cuidado e atenção e por isso pode haver um distanciamento maior e falta de comunicação entre os membros. Segue relato da mãe J: [...] dou tudo que posso a ele, passo o dia fora trabalhando para ele ter o melhor... não sei porque passou a usar essas coisas... [...].
Ainda no que se refere ao tema relacionamento familiar, observa-se o predomínio do relacionamento com as mulheres, especialmente as genitoras, tanto no suporte como no acompanhamento. Essa presença de mulheres (notadamente mães) no cuidado dos usuários encontra-se de acordo com relatos da literatura (Gonçalves, 1999). Tsu (1993) corrobora esse achado por meio de estudo desenvolvido com acompanhantes de pacientes em serviços de referência, no qual o autor identificou que o tipo de vínculo mais comumente encontrado foi com as mães, seguido pelos cônjuges também do sexo feminino.
Analisando o tema 3, Forma de lidar com os problemas, a questão da comunicação tem uma compreensão distorcida por parte dos familiares. No discurso, eles se referiram à falta do diálogo entre os membros, o que contribui para a percepção de fragilidade do suporte familiar. O discurso é sempre em torno da falta de diálogo após iniciação ao uso indevido de drogas, como descrito pela mãe A: "[...] quando ele está em tratamento fala mais o que sente... que tem saudades conversa mais... mas quando está fora não trocamos muitos afetos nem palavras...[...]".
Outro tema relevante foi a questão referente à expressão dos sentimentos, presente no tema 4. Os familiares referiram não ser uma prática muito comum a troca de carícias. Essa forma de expressão do afeto aparece mais no apoio quando necessitado, confundindo-se, em alguns momentos, com a oferta de bens materiais. O relato da mãe M exemplifica também o pouco conhecimento da família acerca do comportamento do usuário: "[...] a gente tem hora que abraça, mas não é muito.... tem hora que tem muita raiva, aí fala o que não quer... chega a pensar que é "safadeza", não entende muito porque o filho usa drogas [...]".
O Quadro 3 é referente aos técnicos sociais e descreve suas opiniões profissionais quanto: 1. Importância da contribuição familiar, 2. Atividades terapêuticas do Programa, 3. Proposta de abordagem assistencial familiar, e 4. Relato da experiência profissional.
Os temas descritos no Quadro 3 foram respondidos pelos profissionais do Programa, não havendo distinção quanto à categoria profissional, pois independentemente da particularidade de cada profissão todos têm as mesmas atuações no Programa.
O primeiro tema apresenta a proposta de avaliar a contribuição familiar à luz do núcleo de sentido corresponsabilidade familiar. O direcionamento do Programa ou mesmo a condução dos profissionais apontam para a importância da participação familiar no processo de cuidado do usuário. Nos serviços, o acolhimento é o direcionamento ou a diretriz utilizada como instrumento de trabalho, aqui entendido como um ato ou efeito de acolher, maneira de receber e ser recebido (Rodrigues, 2012). Dessa forma, foi possível perceber que, independentemente da localização de cada unidade de atendimento, todos os técnicos referiram a mesma importância a essa participação e acolhimento.
Mas não é uma tarefa fácil a relação instituição e família. Minuchin (1974) já ressaltava o fenômeno da "terceirização" de responsabilidades. O autor afirma que é perceptível que as famílias, ao passar por problemas relacionados ao consumo de drogas, funcionam de forma a não legitimar seu papel de proteção, muitas vezes com atitudes condizentes à "terceirização" de suas responsabilidades com relação a seus membros, como se o dever de monitorar e supervisionar o comportamento fosse algo automático, sem a necessidade de construção prévia de uma relação de confiança.
Tal discussão remete ao construto de Bandura (2001) sobre a capacidade agêntica dos familiares, já que o indivíduo não é apenas alvo das influências externas, mas também age sobre elas e pode produzir modificações. Nessa perspectiva, as ações do indivíduo são conscientes e intencionais, ou seja, as pessoas planejam intencionalmente suas ações e criam estratégias para realizar seus planos (Bandura, 1986). O relato da técnica social, que é psicóloga, exemplifica.
[...] a gente procura sempre fazer com que a família esteja presente nesse processo de acolhimento... Procuramos sempre fazer esse fortalecimento dos vínculos, porque a gente sabe que, como eles mesmos dizem: "com a família junto é mais fácil" [...] "já é complicado com a família junto, e longe mais ainda"[...].
Ainda, segundo a entrevistada, "[...] tem famílias que fazem um esforço em participar, mas tem muitos conflitos envolvidos. Algumas têm receio, medo, por ninguém saber como será o comportamento do usuário, até onde ele pode chegar. Os vínculos foram quebrados com todos [...].
Em continuidade, o tema 2 refere-se às atividades desenvolvidas no Programa. Os núcleos de sentido, que foram três, apontam para uma proposta, sobretudo acolhedora, e de inclusão dos demais membros familiares no processo de cuidado, sendo esse um diferencial do Programa. A inclusão acontece justamente pela forma diferenciada do olhar para esse familiar, ou seja, parte-se do princípio de que esse é um membro que também precisa de cuidado, também está adoecido e, portanto, precisa de acolhimento e atenção. Ele não é apenas um familiar do usuário que precisa assisti-lo. O serviço oferece aos familiares grupos e atendimentos específicos, além das visitas domiciliares.
A proposta de atenção mais sistêmica aponta para uma referência de acompanhamento baseado na Política Nacional da Assistência Social vigente, fazendo valer a centralidade do trabalho com as famílias, não apenas com o indivíduo. As atividades direcionadas propõem um apoio também para essas pessoas, levando informações sobre os direitos sociais do núcleo familiar, de forma a inserir seus membros dando visibilidade também às suas necessidades (Secretaria Nacional da Assistência Social, 2004).
Atrelado a essa forma de acolher, os técnicos sociais acrescentam a importância de um acompanhamento para além do serviço, sendo assim, prezam pelas visitas no território da família assistida. Esse foi o tema 3, que apresentou a proposta de assistência no território como núcleo de sentido. O relato da técnica social, que é enfermeira, confirma a importância dessa atividade. "[...] se tivéssemos condições, seria muito importante as visitas com mais sistematicidade na comunidade em que os usuários têm suas referências... conhecer a realidade em loco, às vezes faz muita diferença no acompanhamento... [...]".
O fortalecimento dos vínculos é o que permeia os acompanhamentos, pois há um discurso explícito da desvalorização do indivíduo, conforme aponta Bandura (1986), em um de seus pressupostos, o do desengajamento moral como mecanismo de desumanização, que é utilizado quando se retiram das pessoas suas qualidades humanas ou quando se atribuem a elas qualidades bestiais (Iglesias, 2008).
Os relatos do técnico social assistente social retratam o exposto. [...] a importância de se trabalhar com as famílias para desmistificar muitos conceitos, preconceitos e culpabilização do sujeito... a família também tem esse direito de sofrimento diante da situação... é um desafio [...]". O mesmo entrevistado ainda afirma que: "[...] a gente também percebe que essa família protege, mas também ela viola. Tem uma linha muito tênue nessa relação, pode ser estratégia de fortalecimento como também de reafirmação de desigualdades [...]".
O tema 4, sobre a experiência profissional, tem em seu núcleo de sentido a percepção pessoal dos técnicos sociais sobre essa relação familiar dos usuários em acompanhamento. Vale ressaltar que Edwards (1997) já dizia que nos serviços socioassistenciais o principal direcionamento de abordagem é a compreensão das manifestações do usuário quanto ao comportamento relacionado à utilização da substância. Segundo o autor, as qualidades do profissional podem ser mais importantes do que o modelo de cuidado utilizado. Estudo recente, realizado em serviços da saúde para usuários de drogas em Pernambuco, faz observações sobre relatos dos profissionais, como a importância de notar que, ainda que haja a recomendação de cuidado aos familiares, o foco do tratamento ainda é mantido nos usuários, parecendo não se ter clareza da natureza dessa atenção às famílias (Moraes, 2008).
Para a referida autora, algumas vezes a família é vista pelos profissionais como um suporte, como um apoio para o usuário em tratamento, enquanto elas próprias demonstram suas expectativas em serem ouvidas, em compartilhar angustias, de ser o foco da atenção.
Dessa forma, foi reforçada pelos profissionais do Programa, mais uma vez, a importância do fortalecimento dos vínculos e o incentivo à participação familiar nesse momento de acolhimento. Quando o acolhimento e o vínculo se estabelecem de forma efetiva, o profissional ou o serviço podem se tornar referência para a pessoa em sofrimento (Cavalheri, 2010).
Porém, é importante considerar o discurso de complexidade nesse acompanhamento, pois nem sempre é possível ter com as famílias uma relação de parceria e contribuição, uma vez que a ambivalência no comportamento dos membros familiares é algo presente durante esses momentos. Existem pactos entre esses familiares, o que pode tornar mais difícil as intervenções. Um exemplo é a questão do estabelecimento de trocas de bens materiais como "garantia" da presença física no acompanhamento e no cuidado.
O vínculo torna-se ainda mais difícil quando os familiares trazem, nos discursos, a possibilidade de recaída por parte de seus membros. Aqui cabe bem o pressuposto defendido por Bandura (2003) sobre a importância da autoeficácia como contribuição para um entendimento desses enfrentamentos das pressões e questões estressantes por parte dos usuários, podendo assim determinar a capacidade de superação das dificuldades durante o processo de acolhimento. Os relatos da técnica social enfermeira exemplificam.
[...] eu percebo o cuidado e o medo, os familiares têm medo que eles recaiam novamente e pratiquem os mesmos atos e retornem aos comportamentos anteriores... agora quando não existe a possibilidade da relação com a família, nem o resgate, o usuário fica muito desanimado e pouco estimulado para novas práticas. Como se ele não tivesse nada para perder ou ganhar [...].
[...] tem família que chega e tem uma influência boa, tem outras que mimam muito... eu acho que isso prejudica. Os usuários não sabem lidar com isso, eles terminam prometendo mais do que podem realizar, e isso prejudica a confiança e a relação familiar fragiliza [...].
Considerações finais
Esta pesquisa possibilitou uma compreensão sobre a percepção do suporte familiar por parte dos usuários, familiares e profissionais do programa ATITUDE, pioneiro na sua forma de execução. Essa multifatorialidade reforça a necessidade de um olhar para as percepções dos familiares e dos usuários de crack com relação ao suporte oferecido. Isso influenciará diretamente na participação do membro familiar no momento do acolhimento, tornando-se, possivelmente, um caminho para minimizar os danos referentes à problemática do uso do crack, ou seja, o usuário não se apresenta como o foco do acolhimento, mas também quem está ao seu entorno, sua família.
Nesse sentido, é importante ressaltar e potencializar que o indivíduo influencia o próprio comportamento e as circunstâncias de sua vida, pois não é apenas alvo das influências do meio, mas também age sobre ele e produz influências que o modificam, reforçando a visão agêntica do homem postulada por Bandura (2001) e ratificada em Bandura, Azzi e Polydoro (2008).
Essa é uma questão relevante a se considerar, uma vez que o aumento do uso do crack no Brasil não pode ser visto como uma questão individual/moral de suas famílias, devendo ser dimensionada em um contexto social mais amplo. A família, assim sendo, deve assumir cada vez mais a relevância nas discussões das políticas sociais, mas não pelo viés da culpabilização pelo uso de crack de seus membros e consequente responsabilização exclusiva pelos cuidados domiciliares, mas, sobretudo, pela via do acesso a um sistema público e universal de proteção social e, mais especificamente, sendo acolhida/esclarecida e estimulada à participação nos espaços coletivos dos programas especializados.
Também é importante refletir que esta pesquisa se tratou de um estudo misto que visou a um olhar exploratório sobre o assunto, mas deve-se ter o cuidado para não extrapolar esses resultados. Os exemplos e reflexões aqui expostos certamente não são suficientes para dar conta da complexidade do fenômeno investigado, bem como a abordagem teórica que foi adotada. Esses e outros aspectos podem ser discutidos a partir de diferentes pontos de vista e abordagens teóricas, entretanto, espera-se que o presente artigo possa servir de provocação para outros estudos na área.
Nesse contexto, promover uma reflexão sobre a evolução do pensamento político sobre o enfrentamento do consumo abusivo de substâncias na sociedade brasileira é extremamente importante, na medida em que mostra o amadurecimento ideológico que serviu de alicerce metodológico para fundamentar as políticas públicas, no último século, direcionadas para essa parcela populacional excluída. Apesar de ainda haver a necessidade de ampliação da discussão sobre o cuidado integral a usuários de drogas, a humanização de fato e de direito é que poderá romper com práticas enraizadas na atualidade. Novos questionamentos precisam ser investigados, tais como: o que é assistência integral ao usuário de drogas? A atenção integral compreende a inclusão social dos usuários e familiares como humanização?
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Recebido em 09/06/2016
Aprovado em 09/03/2018