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Pesquisas e Práticas Psicossociais

 ISSN 1809-8908

     

 

Judicialização de vidas indignas: o caso da unidade experimental de saúde em São Paulo

 

Judicialization of undignified lives: the case of Health Experimental Unit in São Paulo

 

Judicialización de vidas indignas: el caso de la Unidad Experimental de Salud en São Paulo

 

 

Cássia RosatoI; Pedro de Oliveira FilhoII

IDoutoranda em Psicologia pela UFPE, mestre em Psicologia e Direitos Humanos e psicóloga do Tribunal de Justiça de São Paulo. E-mail: cassiarosato@yahoo.com.br
IIProfessor Associado da UFCG e colaborador no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFPE E-mail: deoliveirafilhopedro@gmail.com

 

 


RESUMO

O presente artigo objetiva problematizar a criação e manutenção da Unidade Experimental de Saúde (UES) de São Paulo. Trata-se de uma instituição destinada à internação de jovens autores de atos infracionais diagnosticados com transtornos de personalidade e/ou periculosidade. A partir dos conceitos de homo sacer e Estado de exceção de Agamben e das noções de tecnologia disciplinar, periculosidade e racismo de Estado de Foucault, este trabalho analisa o modo como a vida de jovens que cometeram atos infracionais tem sido conduzida na contemporaneidade. Para tanto, utiliza matérias do jornal Folha de São Paulo (FSP), no período de 2010 até o primeiro semestre de 2015 e atualiza a situação da UES. Nesse sentido, entende-se que a UES reativa técnicas de assujeitamento e encarceramento de pessoas, judicializando vidas consideradas indignas. Ao mesmo tempo, impede que novas formas de intervenção e tratamento sejam elaboradas e implementadas para esses jovens.

Palavras-chave: Judicialização. Juventude. Periculosidade. Unidade Experimental de Saúde.


ABSTRACT

This article aims to discuss the creation and maintenance of the Experimental Health Unit (UES) of São Paulo. It is an institution for the admission of young authors of infractions act diagnosed with personality disorders and/or dangerousness. Based on the Agamben's concepts of homo sacer and State of Exception and some Foucault's notions, such as disciplinary technology, dangerousness and state racism, this paper examines how the lives of young people who have committed illegal acts have been conducted, in contemporary. Therefore, it uses materials of the newspaper Folha de São Paulo (FSP), from 2010 to the first half of 2015 and updates the status of the UES. In this sense, it is understood that the UES reactive subjection techniques and incarceration of people, judicialize considered unworthy lives. At the same time, prevent new forms of intervention and treatment are developed and implemented to these young people.

Keywords: Dangerousness. Experimental Health Unit. Judicialization. Youth.


RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo discutir la creación y el mantenimiento de la Unidad de Salud Experimental (UES) de Sao Paulo. Es una institución para la admisión de jóvenes autores de infracciones diagnosticado con trastornos de la personalidad y/o peligrosidad. Sobre la base de los conceptos de homo sacer y Estado de Excepción de Agamben y las nociones de tecnología disciplinaria, peligrosidad y racismo de estado de Foucault, este trabajo examina cómo se han llevado a cabo las vidas de los jóvenes que han cometido actos ilegales, en los días actuales. Por lo tanto, analiza materiales del periódico Folha de São Paulo (FSP), en el período comprendido entre 2010 y la primera mitad de 2015 y actualiza el estado de la UES. En este sentido, se entiende que la UES reactiva técnicas de sujeción y encarcelamiento de las personas, judicializando vidas consideradas indignas. Al mismo tiempo, evitan que nuevas formas de intervención y tratamiento sean desarrolladas e implementadas para estos jóvenes.

Palabras clave: Judicialización. Juventud. Peligrosidad. Unidad Experimental de Salud.


 

 

Introdução

O presente artigo problematiza o trabalho desenvolvido pela Unidade Experimental de Saúde (UES), criada pelo governo paulista, a partir de uma portaria administrativa, para atendimento a jovens autores de ato infracional. Inicialmente, tal instituição estava ligada à antiga Fundação Estadual do Bem Estar do Menor (Febem) e, de acordo com sua assessoria de imprensa, em 2006, quando fosse inaugurada, seu objetivo seria atender jovens que apresentassem "distúrbios psicológicos". A gestão da unidade seria realizada em parceria com a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e com a Associação Beneficente Santa Fé, uma OnG com atuação voltada ao bem-estar social.1 Mas tal proposta de gestão não chegou a se concretizar.

Do ponto de vista metodológico, foram analisados os escassos documentos de domínio público do governo paulista que versam sobre a instituição, trabalhos acadêmicos e matérias do jornal Folha de São Paulo que abordaram esse assunto, no período de 2010 a 2015, já que Carlos (2011) realizou o estudo das notícias desse mesmo jornal no período de 2003 a 2009 sobre essa temática. A escolha desse veículo de imprensa se deu pelo fato de ser o jornal paulista de circulação, no ano de 2015, de acordo com a Associação Nacional de Jornais.2

Vale destacar que, no levantamento de documentos públicos sobre a UES, foram encontradas pouquíssimas referências oficiais e, por isso, a ênfase dispensada aos materiais acadêmicos e jornalísticos. A escassez desse tipo de informação já pode sinalizar a pouca discussão sobre o assunto e até mesmo o caráter de exceção da UES. De qualquer modo, mesmo esses poucos documentos oficiais foram utilizados para entender as regularidades e dispersões que caracterizam os vários discursos sobre a instituição. Trata-se de uma análise genealógica com o foco nas práticas que possibilitaram a emergência dessa instituição.

Dessa forma, alguns aspectos sobre a UES e um dos jovens que lá foi internado são problematizados, especificamente no que diz respeito às ideias de periculosidade, Estado de exceção e vidas indignas. De modo complementar, os conceitos foucaultianos de tecnologia disciplinar, racismo de Estado e governamentalidade também são utilizados nessa discussão. Por fim, as matérias jornalísticas da Folha de São Paulo analisadas permitem uma compreensão desse complexo contexto de relações de poder.

 

A instituição

Em maio de 2007, a Unidade Experimental de Saúde foi inaugurada ao receber o primeiro jovem a ser internado. Em novembro do mesmo ano, o então governador do estado de São Paulo transferiu o imóvel onde se localiza a UES - que estava primeiramente vinculada ao sistema socioeducativo - para a Secretaria Estadual de Saúde, conforme Decreto Estadual nº 52.419 de 28 de novembro de 2007. Segundo Matsuda (2009), no dia seguinte à formalização do decreto, foi firmado um termo de cooperação técnica entre as Secretarias de Estado da Saúde, da Administração Penitenciária e da Justiça com o objetivo de "propiciar aos adolescentes e jovens adultos, internados na unidade cujo uso foi permitido à Saúde, tratamento adequado da patologia diagnosticada, sob regime de condenação conforme determinação do Poder Judiciário" (p. 103).

É possível identificar uma mudança significativa entre a proposta inicial da instituição e o que formalmente se efetivou quando a unidade passou a funcionar. Em 2008, a Unidade Experimental de Saúde foi objeto do Decreto nº 53.427, do mês de setembro, no qual se discrimina qual o público atendido pela instituição.

Artigo 2º - Cabe à Unidade Experimental de Saúde:

I - cumprir, exclusivamente, as determinações do Poder Judiciário de tratamento psiquiátrico em regime de contenção, para atendimento de adolescentes e jovens adultos com diagnóstico de distúrbio de personalidade, de alta periculosidade:

a) egressos da Fundação Centro de Atendimento Sócioeducativo ao Adolescente - Fundação CASA - SP, que cometeram graves atos infracionais;

b) que forem interditados pelas Varas de Família e Sucessões.

As alterações ocorridas entre o que se inicialmente planejou para a UES e o que, de fato, se tornou sua atribuição demonstram um desvio de percurso que não pode ser ignorado. Num primeiro momento, a unidade foi pensada para atender jovens do sistema socioeducativo com distúrbios psicológicos, numa proposta que abrange o campo da saúde. Após as mudanças de gestão, a instituição passou a cumprir determinações do Poder Judiciário de atendimento a jovens com diagnóstico de distúrbio de personalidade, de alta periculosidade, em regime de contenção, especialmente egressos do sistema socioeducativo e interditados pelas Varas de Família e Sucessões.

À primeira vista, tais mudanças podem parecer irrelevantes, no entanto, ao observar o histórico dos primeiros internos, é possível identificar que todos os seis primeiros jovens que chegaram à UES são egressos do sistema socioeducativo que foram interditados civilmente3 e a eles foi determinada a internação compulsória pelo Poder Judiciário (Matsuda, 2009). No caso do primeiro interno, tal manobra jurídica foi possível em função de diversos exames e laudos realizados por diferentes instituições que atestaram retardo mental e alta periculosidade, como se verá posteriormente.

Desse modo, ao iniciar o seu funcionamento, a UES passou a se constituir como um dispositivo que ignora o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a Política Nacional de Saúde Mental, retrocedendo, de uma só vez, ao Código de Menores e à lógica manicomial. Isso porque a UES tem "como característica a absoluta indeterminação do tempo de privação de liberdade. Assim, a unidade experimental de saúde em tudo se assemelha a um hospital de custódia e tratamento destinado ao cumprimento de medida de segurança por adultos" (Vicentin, Gramkow & Rosa, 2010, p. 65).

A instituição fica localizada na Vila Maria, zona norte da cidade de São Paulo, e tem capacidade para receber 40 pessoas. O espaço físico distribui-se entre 5 casas que podem comportar até 8 jovens cada uma. Nenhuma informação oficial sobre ocupação, custos ou quadro profissional/técnico existente na instituição foi localizada.

Do ponto de vista teórico, considera-se a perspectiva de Goffman, ou seja, a UES está sendo analisada, no presente trabalho, como uma instituição total. Para o autor, nesse tipo de espaço fechado, se dá a morte civil do sujeito e o processo de mortificação do eu (Goffman, 1961).

Aliado a isso, numa leitura mais contemporânea, é relevante compreender esse contexto institucional na óptica de expansão dos poderes judiciários no Brasil proposta por Lobo (2012). Questões de saúde relacionadas à Psicologia e à Psiquiatria passam a se articular a esse processo de judicialização como modo de organização da vida cotidiana.

 

O caso roberto

De acordo com a Revista Brasil de Fato (2014), a instituição tinha, em 2007, um motivo mais específico, que era receber Roberto Aparecido Alves Cardoso, mais conhecido como "Champinha". Ele ficou conhecido, em nível nacional, por, em parceria com mais quatro adultos, ter sequestrado e assassinado um casal de estudantes que acampava na cidade paulista de Embu-Guaçu em novembro de 2003. Roberto tinha 16 anos à época e, no mês do assassinato do casal, foi apreendido e encaminhado para cumprimento de medida de internação.

Dois artigos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em relação à medida de internação, são relevantes para compreender o caráter especial do caso em tela: o período máximo de internação não pode exceder três anos (art. 121, §3º) e a liberação é compulsória aos 21 anos (art. 121, §5º). Seguindo tais critérios, no caso de Roberto, ele deveria ser posto em liberdade em novembro de 2006, quando cumpriria o tempo máximo de internação, ou em dezembro de 2007, quando completaria 21 anos. Nenhuma das situações se efetivou.

Segundo Carlos (2011), em julho de 2006 ocorreu o julgamento dos adultos envolvidos no crime. Todos os suspeitos julgados foram condenados, à exceção de um deles, que teve seu julgamento adiado a pedido da defesa. Diante desses novos fatos, notícias sobre o caso passaram a ser veiculadas novamente na imprensa e a situação de Roberto também voltou a ser pauta dos principais jornais do país, na medida em que se aproximava sua desinternação. Nesse contexto, o Ministério Público de São Paulo pediu uma nova avaliação psiquiátrica de Roberto ao Instituto Médico Legal da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo.

É importante comentar que, desde a sentença que determinou a medida de internação, Roberto passou por diversas avaliações. De um modo geral, o diagnóstico apontava para a existência de retardo mental e/ou deficit cognitivo, variando de leve a moderado, a depender da instituição que o tinha avaliado (Carlos, 2011). No entanto, em 2006, quando Roberto foi novamente avaliado, os resultados descreveram Roberto como "indivíduo de alta periculosidade, com grandes chances de reincidência penal, portador de transtorno orgânico de personalidade" (Carlos, 2011, p. 39).

Próximo de terminar o período da internação, a justiça paulista decidiu mantê-lo internado até os 21 anos. Posteriormente, quando Roberto estava perto de completar 21 anos, foi acatado um pedido do Ministério Público de São Paulo de interdição civil e internação hospitalar compulsória. Desse modo, Roberto foi o primeiro jovem a ser transferido, em 2007, para a Unidade Experimental de Saúde, na cidade de São Paulo. Outros jovens também foram encaminhados à instituição e lá permanecem até os dias atuais. As informações a respeito do número de pessoas que seguem internadas variam, entretanto, sabe-se que Roberto continua na UES, pois em agosto de 2015, aos 28 anos, ele teve mais um pedido de liberação negado pela Justiça de São Paulo5.

 

Periculosidade, estado de exceção e vidas indignas

A proposta da Unidade Experimental de Saúde permite várias possibilidades de análise. A primeira delas passa pela questão da periculosidade. Considerando que, se num primeiro momento, a instituição foi criada para abrigar adolescentes com distúrbios psicológicos, há um rompimento com tal objetivo, passando a ter um novo intento: abrigar jovens diagnosticados com distúrbios de personalidade, de alta periculosidade e interditados civilmente.

Nesse sentido, de uma proposta de atendimento a jovens com distúrbios psicológicos, passa-se à contenção de internos com distúrbio de personalidade, de alta periculosidade. Nesse contexto, é importante refletir sobre o modo como Foucault define o exame médico-legal e o seu papel no sistema jurídico:

No fundo, no exame médico-legal, a justiça e a psiquiatria são ambas adulteradas. Elas não têm a ver com seu objeto próprio, não põem em prática sua regularidade própria. Não é a delinquentes ou a inocentes que o exame médico-legal se dirige, não é a doentes opostos a não-doentes. É a algo que está, a meu ver, na categoria dos anormais; ou, se preferirem, não é no campo da oposição, mas sim no da gradação do normal ao anormal, que se desenrola efetivamente o exame médico-legal. (Foucault, 2001, p. 52)

Roberto e os demais jovens que estão detidos na UES são os anormais da contemporaneidade, uma vez que reúnem os conceitos de loucura, crime e periculosidade, básicos para a construção da categoria anormal. Ainda que o exame, nesses casos, tenha um caráter muito mais psiquiátrico, não se deve desconsiderar que o saber psicológico, em alguma medida, também acompanha tais produções de conhecimento. Isso porque psicólogos/as atuam conjuntamente com os demais atores envolvidos na criação e manutenção da UES e, de modo mais ampliado, contribuem na produção de saberes a respeito da adolescência, juventude, delinquência e personalidade.

Assim, fica evidente que o fator periculosidade foi determinante na gestão dessa proposta, subsidiando a necessidade de um espaço de contenção para jovens que já haviam cumprido o tempo máximo da medida socioeducativa de internação. Tendo em vista que, do ponto de vista da saúde, o atendimento a pessoas que apresentam transtornos mentais tem como diretriz principal a política de saúde mental com tratamento prioritariamente em serviços de saúde abertos, não houve interesse por parte da justiça paulista nesse modelo de cuidado. Dessa maneira, o saber médico psiquiátrico poderia "justificar" a necessidade de inventar uma "prisão-hospício" para jovens, ao arrepio da lei, fazendo uso de suas técnicas: o exame e o diagnóstico. O saber psi (psiquiátrico e psicológico), que examina e nomeia um distúrbio de personalidade, mobiliza a ideia de periculosidade, que advém do campo da criminologia e não da saúde. Foucault (2003) diz: "A noção de periculosidade significa que o indivíduo deve ser considerado pela sociedade ao nível de suas virtualidades e não ao nível de seus atos; não ao nível das infrações efetivas a uma lei efetiva, mas das virtualidades de comportamento que elas representam" (p. 85).

Tendo como elemento fundante a ideia de periculosidade, passa-se a ter uma situação na qual se possibilita, via saber médico psiquiátrico, o retorno de uma lógica de encarceramento num contexto legal que não mais admite tal tipo de prática. Tal situação parece se encaixar na ideia de estado de exceção, na medida em que se abre uma lacuna entre as leis vigentes para atender uma determinada demanda e tal evento não é considerado fora da lei, pois está vinculado a uma certa ordem jurídica.

Agamben (2004, p. 60) afirma que a confusão existente entre atos do poder legislativo e do poder executivo é uma característica essencial do estado de exceção, e essa condição atípica está presente na UES. Sua criação se inicia com uma portaria administrativa, portanto como ato do poder executivo estadual, ignorando leis federais que são hierarquicamente superiores: o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA - Lei Federal nº 8.069/90) e a Lei da Reforma Psiquiátrica (Lei Federal nº 10.216/01).

É de suma importância acrescentar outros dois pontos discutidos por Carlos (2011): os profissionais responsáveis pela segurança da UES são agentes penitenciários, o que traz sérios questionamentos à proposta da entidade, já que supostamente se trata de um local de saúde; e o imóvel onde se situa a Unidade é uma antiga Febem, tratando-se, portanto, de um espaço físico de custódia adaptado para o funcionamento desse dispositivo experimental.

O contexto de exceção vivido pode ser observado no seguinte trecho do documento do Ministério Público Estadual que discute o caso de um dos jovens internados na UES:

A propósito disso, este subscritor está absolutamente convencido que a correta medida a ser aplicada deveria de ser a morte do adolescente, se possível fosse, mesmo sendo menor irresponsável o autor dos estupros. Ocorre, todavia, que o Brasil ainda não se desenvolveu suficiente para aceitar a inexorável conclusão segundo a qual, para sancionar casos que tais, apenas pena de morte seria adequada. (Gramkow, 2011, p. 187)

No trecho apresentado, uma autoridade pública defende explicitamente a pena de morte como técnica que deveria ser adotada pelo Brasil. Trata-se de uma situação em que "vidas indignas de serem vividas" são decididas por soberanos, hoje, representados por juízes, promotores e médicos que, arbitrariamente, constroem estratégias jurídico-penais à revelia de direitos já garantidos. O poder soberano está evidente na lógica que envolve a criação e manutenção da UES, a partir dos atores que compõem o Sistema de Justiça e Segurança e o Poder Judiciário.

Tomando como base a noção de dignidade que acompanha os direitos humanos e as reflexões de Agamben (2010) em torno das "vidas indignas de serem vividas", é possível identificar na criação da UES um processo contemporâneo de judicialização direcionado para pessoas que se encontram fora do patamar da dignidade humana. Agamben (2010, p. 137) diz:

A 'vida indigna de ser vivida' não é, com toda evidência, um conceito ético, que concerne às expectativas e legítimos desejos do indivíduo: é, sobretudo, um conceito político, no qual está em questão a extrema metamorfose da vida matável e insacrificável do 'homo sacer', sobre a qual se baseia o poder soberano.

A partir do conceito de homo sacer, desenvolvido por Agamben, é possível compreender a lógica que justifica a existência e o funcionamento da Unidade Experimental de Saúde do estado de São Paulo. Esse autor resgata, do direito romano arcaico, a noção de homo sacer (homem sacro). O que caracteriza esse homem é o fato de que, embora ele tenha cometido um delito, não é lícito sacrificá-lo. No entanto, o indivíduo que o fizer não será condenado por homicídio. Isso significa que as pessoas que integram a condição de homo sacer podem sofrer determinadas ações sem que isso seja condenável. O que define a condição de homo sacer, para Agamben (2010, p. 84), é a "violência à qual se encontra exposto. Esta violência não é classificável nem como sacrifício e nem como homicídio, nem como execução de uma condenação e nem como sacrilégio".

A partir disto, torna-se possível vislumbrar quem são as pessoas que se encontram sob a condição de homo sacer no Brasil nos dias de hoje, ou seja, quem está sendo inserido na categoria de pessoas cujas vidas são "indignas de serem vividas". Para esse grupo de pessoas, são viabilizadas ações que operam por meio do saber médico-jurídico. Sob a fachada de tratamento e atenção à saúde, se instituem modos de operar que, na realidade, funcionam por meio da lógica penal. Trata-se de uma instituição criada para ser aplicável a algumas classes de pessoas, não estendível à população em geral.

Atualmente, os conhecimentos médico e jurídico têm se aliado, sendo a criação e a manutenção da UES um exemplo de como se efetiva a judicialização de vidas indignas. Pode-se afirmar que, para essas vidas, há uma série de técnicas tidas como tratamentos de saúde que mascaram práticas contemporâneas de disciplinamento e controle dos corpos.

Tais práticas podem ser vistas como práticas próprias de contextos de exceção, no sentido também proposto por Agamben (2004). Ele define o estado de exceção como "suspensão da própria ordem jurídica", funcionando como

A abertura de uma lacuna fictícia no ordenamento, com o objetivo de salvaguardar a existência da norma e sua aplicabilidade à situação normal. A lacuna não é interna à lei, mas diz respeito à sua relação com a realidade, à possibilidade mesma de sua aplicação. É como se o direito contivesse uma fratura essencial entre o estabelecimento da norma e sua aplicação e que, em caso extremo, só pudesse ser preenchida pelo estado de exceção, ou seja, criando-se uma área onde essa aplicação é suspensa, mas onde a lei, enquanto tal, permanece em vigor. (pp. 48-49)

O modo como a UES foi criada guarda forte semelhança com a situação descrita, pois se observa a suspensão do ECA e da Lei da Reforma Psiquiátrica com a criação da instituição com as características já descritas anteriormente.

 

Tecnologia disciplinar, governamentalidade e racismo de estado

Alguns conceitos de Foucault também são fundamentais na análise de questões que envolvem a Unidade Experimental de Saúde, sobretudo sua concepção de tecnologia disciplinar, entendendo-a não como uma instituição, mas sim como uma técnica.

As disciplinas inventaram um novo funcionamento punitivo, e é este que pouco a pouco investiu o grande aparelho exterior que parecia reproduzir modesta ou ironicamente. O funcionamento jurídico-antropológico que toda a história da penalidade moderna revela não se origina na superposição à justiça criminal das ciências humanas, e nas exigências próprias a essa nova racionalidade ou ao humanismo que ela traria consigo; ele tem seu ponto de formação nessa técnica disciplinar que fez funcionar esses novos mecanismos de sanção normalizadora. (Foucault, 2004, p. 153)

As experiências vividas pelos jovens que hoje se encontram recolhidos na Unidade Experimental de Saúde guardam especial relação com a noção de tecnologia disciplinar que Foucault trabalha ao longo de sua obra. Os modos de funcionamento dessa tecnologia disciplinar, seus métodos e seu objetivo de controle e docilização dos corpos são de suma relevância para entender a judicialização das vidas indignas.

Também parece importante o conceito de governamentalidade de Foucault (1979) para colocar em análise esse conjunto de procedimentos que judicializam vidas entendidas como indignas hoje. Utiliza-se aqui a ideia de governamentalidade como um grupo de ações e "táticas que permitem exercer esta forma bastante específica e complexa de poder, que tem por alvo a população" (pp. 291-292).

Pode-se reconhecer que a noção de segurança perpassa o governo dos corpos e das populações, muitas vezes atrelada à ideia de periculosidade. As vidas indignas que estão sendo judicializadas atualmente na UES são criminalizadas, ou porque cometeram crimes ou porque podem vir a cometer, constituindo-se, portanto, em ameaças que devem ser controladas. Nesse sentido, Foucault esclarece (2003) que

A penalidade no século XIX, de maneira cada vez mais insistente, tem em vista menos a defesa geral da sociedade que o controle e a reforma psicológica e moral das atitudes e do comportamento dos indivíduos [...] Toda penalidade do século XIX passa a ser um controle, não tanto sobre se o que fizeram os indivíduos está em conformidade ou não com a lei, mas ao nível do que podem fazer, do que são capazes de fazer, do que estão sujeitos a fazer, do que estão na iminência de fazer. (pp. 84-85)

Os jovens internados na UES são considerados perigosos porque cometeram crimes e podem vir a reincidir. Mesmo já tendo cumprido os prazos máximos delimitados por lei, seguem internados compulsoriamente, numa condição perpétua. Sendo assim, conforme já discutido antes, a periculosidade assume um caráter central nas experiências relacionadas à UES.

Considerando a história social do país, constata-se que as vidas indignas no Brasil coincidem com as chamadas classes perigosas. Sabe-se que os grupos excluídos têm cara, cor e são das classes mais desfavorecidas. Portanto, torna-se imprescindível refletir acerca do processo histórico brasileiro, principalmente no que tange à constituição dos espaços urbanos e aos critérios utilizados ou priorizados na urbanização das principais metrópoles brasileiras.

Segundo Coimbra (2001), o conceito de classes perigosas surgiu na primeira metade do século XIX e fazia referência ao segmento populacional que se encontrava fora do mercado de trabalho. Nessa condição de não trabalho, essas pessoas, por não desenvolverem nenhuma atividade laboral, passaram a ser associadas à vagabundagem e à mendicância.

Aliado a essas condições, o processo de urbanização brasileiro avançou sensivelmente nos séculos XIX e XX, dando à pobreza e à miséria não só um componente socioeconômico, mas também espacial, ou seja, a exclusão não só tem cara e cor, mas também lugar. Nessa lógica, a associação pobreza/violência/criminalidade está colocada como algo natural, quando, na realidade, se trata de uma construção que serve aos interesses de determinados segmentos sociais.

Esses segmentos sociais privilegiados excluíram uma parcela da população brasileira das zonas nobres, ao mesmo tempo em que o movimento higienista difundiu concepções médicas eugênicas acerca de enfermidades. O processo de exclusão espacial/social, associado ao movimento higienista, permite a emergência desse conceito de classes perigosas, classes essas que serão objeto de medidas repressivas. Como afirma Coimbra (2001, p. 105),

Está, pois, estabelecida/cristalizada a relação entre vadiagem/ociosidade/indolência e pobreza e entre pobreza e periculosidade/violência/criminalidade. Mesmo autores mais críticos têm caído, ao longo dos anos, nesta armadilha de, mecânica e ingenuamente, vincular pobreza e violência por meio de estudos baseados nas condições estruturais da divisão das sociedades em classes sociais e no antagonismo e violência resultantes dessa divisão. Tais estudos têm produzido vigilância e repressão contra os pobres, tão defendida pelas elites em muitos momentos da nossa história.

Tais regimes de verdade estão presentes no processo de judicialização das vidas indignas, ou seja, há uma crença generalizada de que a criminalidade tem estreita relação com a pobreza, mesmo sem evidências que a justifiquem.

Pode-se afirmar que as classes perigosas tornam-se vítimas preferenciais daquilo que Foucault denominava de racismo de Estado. Para ele, o racismo de Estado se constitui "como o exercício moderno do direito de matar; o racismo aparece onde a morte é requerida: a colonização, a guerra, a loucura, a doença mental" (Castro, p. 423). Segundo o próprio Foucault,

Quanto mais as espécies inferiores tenderem a desaparecer, quanto mais os indivíduos anormais forem eliminados, menos degenerados haverá em relação à espécie, mais eu - não enquanto indivíduo mas enquanto espécie - viverei, mais forte serei, mais vigoroso serei, mais poderei proliferar. A morte do outro não é simplesmente a minha vida, na medida em que seria minha segurança pessoal; a morte do outro, a morte da raça ruim, da raça inferior (ou do degenerado, ou do anormal), é o que vai deixar a vida em geral mais sadia; mais sadia e mais pura. (Foucault, 2010, p. 215)

Nesse sentido, o racismo de Estado vai operar nas classes perigosas, na medida em que, para se ter segurança, se torna necessário controlar ou mesmo eliminar os membros das categorias sociais que são classificados como ameaças. Como forma de ilustrar isso, de acordo com o Atlas da Violência (2017), a população que mais tem sido vítima de homicídio, no Brasil, é jovem, masculina, negra e moradora de periferia dos grandes centros urbanos. Trata-se de um verdadeiro genocídio, já que em algumas localidades os índices são equivalentes aos índices de países em guerra.

Nascimento (2014) ajuda a pensar tais questões a partir de uma leitura foucaultiana do fenômeno da judicialização no Brasil. Pensando em situações que envolvem infrações, a estratégia a ser adotada passa pela ideia de produzir medo, intimidar e agir contra a população dita perigosa. Assim sendo, fica evidente como o caso do Roberto e a própria UES funcionam como exemplos que regulam a vida de muitos outros jovens vulneráveis que cometem atos infracionais. A possibilidade de infração desse público pode significar a ida e a permanência perpétua desses jovens para prisões-manicômios como a UES.

 

O debate atual sobre a UES

Com o objetivo de entender os termos do debate atual sobre a instituição, foram coletadas todas as notícias relacionadas à Unidade Experimental de Saúde, no período de 2010 a agosto de 2015, veiculadas no jornal Folha de São Paulo, conforme já mencionado anteriormente. Vale ressaltar que, na busca pelas matérias, primeiramente, foi utilizada a palavra-chave "unidade experimental de saúde" e variações dessa expressão. Para essa primeira pesquisa, foram mapeadas somente três notícias que tratavam da UES. No entanto, optou-se também pela pesquisa com a palavra-chave "Champinha", que é o apelido, conhecido nacionalmente, de Roberto, o jovem que foi o primeiro interno da UES. Nessa situação, foram localizadas dez matérias no mesmo período supracitado.

Tal variação na quantidade de notícias com os dois temas, ou seja, um baixo número de matérias apenas sobre a UES e mais que o triplo quando se menciona o nome do primeiro jovem a ser internado, indica que o caso tornou-se maior que a instituição.

Como o foco deste artigo é a instituição, somente serão analisadas as três matérias que abordam especificamente a UES, sendo assim, as notícias que focam o caso de Roberto não serão objeto de análise.

A primeira matéria se chama "'Guantánamo' de SP pode ser fechada" (FSP, Caderno Cotidiano, 28/03/11) e começa informando que a UES "ganhou o apelido de Guantánamo brasileira". Trata-se de um conteúdo que ocupa, aproximadamente, metade de uma folha do jornal e é de autoria de Eliane Trindade, de São Paulo. Ele está dividido basicamente em três partes, uma introdução de cinco parágrafos, um segundo texto com o subtítulo "Fiscalização", e um terceiro bloco de informações intitulado "Outro lado".

Logo no início da matéria, ao retomar o histórico de Roberto, há a seguinte assertiva: "A unidade passou a funcionar em 2006 para abrigar Roberto Aparecido Alves Cardoso, o Champinha". Essa construção discursiva leva o/a leitor/a a acreditar que a instituição foi criada exclusivamente para receber Roberto.

Quando aborda a fiscalização, a autora afirma que os conselhos profissionais (Medicina e Psicologia) visitaram a UES e o relatório, entregue ao Ministério Público e assinado por oito entidades (a matéria não menciona quais são as instituições que assinam o referido documento), concluiu que a instituição deveria ser fechada. Dentre as razões apontadas para o fechamento, citam: "falta de projeto terapêutico, prontuários médicos não acessíveis e presença de carcereiros em local não prisional".

Para justificar o título da matéria, há um parágrafo afirmando que, de modo recorrente, a UES é comparada à base de Guantánamo, em Cuba, em função das violações de direitos que ocorrem em ambos os lugares. No entanto, não há nenhuma explicação ou menção à autoria de tal analogia, permanecendo ocultos os responsáveis por tal comparação. O texto afirma em seguida que a UES nasceu num "vácuo jurídico", tendo em vista que "o Estatuto da Criança e do Adolescente não disciplina a questão". Após essa frase, há a fala de um defensor público que diz: "Criou-se um subterfúgio jurídico e o jovem foi declarado psicopata para criar uma hipótese de privação de liberdade não prevista em lei". Nesse contexto, a matéria enfatiza as críticas à UES, pois ela teria criado um novo problema: "o local onde cumprir a medida inédita de internação psiquiátrica, numa unidade de saúde para infratores que cometeram crimes quando eram menores". O texto diz que, para resolver tal impasse, a UES foi transferida para a Secretaria de Saúde para atender "determinação do Poder Judiciário", e conclui essa parte da matéria, adotando um estilo irônico, com a frase: "Nascia a UES, uma unidade de saúde em que os visitantes são recebidos pela placa 'área de segurança'".

A terceira e última parte da matéria, "Outro lado", retrata as informações obtidas na Secretaria de Saúde, a opinião do pai de uma das vítimas de Roberto e os laudos produzidos por diferentes instituições sobre a condição do jovem. A Secretaria de Saúde disse que, por questões de segurança e pelo fato de os processos correrem em segredo de Justiça, não podia fornecer informações sobre o atendimento. Já o pai de uma das vítimas, também advogado, afirmou que o jovem é um psicopata e o profissional que o colocar em liberdade terá que responder legalmente, caso Roberto cometa algum crime novamente.

Em relação aos laudos, o Núcleo de Psiquiatria do Instituto Médico Legal "concluiu que ele representa perigo e deve ficar sob contenção", divergindo do laudo produzido pela equipe da Fundação Casa, que o acompanhou durante o período de internação e outras instituições que também avaliaram Roberto. O Núcleo Forense afirma que ele não tem nenhum transtorno mental que determine a internação, não existindo "nexo de causalidade entre seus atos e alguma forma de adoecimento psíquico". A notícia finaliza com o questionamento de outras duas instituições a respeito da periculosidade do jovem. A Unifesp e o Instituto de Medicina Social e Criminologia questionam o rótulo de periculosidade atribuído a Roberto, quando afirmam: "Não temos condições de fazer afirmação sobre os atos futuros de uma pessoa, baseados em questões de ordem médica e psicológica".

Essa primeira notícia, apesar de não apresentar um relato aprofundado sobre o caso e sobre a UES, consegue apresentar a complexidade da questão. Tece críticas, traz a opinião de diferentes atores envolvidos no caso de Roberto, retrata as divergências existentes a respeito da condição psicológica do jovem e busca respostas dos responsáveis pela instituição. Há que se destacar o posicionamento da Secretaria de Saúde, ao se eximir de fornecer quaisquer dados que falem sobre o tipo de atendimento e/ou tratamento. Essas informações deveriam ser públicas, e o posicionamento da Secretaria de Saúde revela o caráter paradoxal de uma instituição que é simultaneamente uma instituição de saúde e de segurança. A avaliação da Unifesp e do Instituto de Medicina Social e Criminologia também não pode deixar de ser comentada, na medida em que questiona a possibilidade de se prever os atos futuros de uma pessoa e problematiza o saber psiquiátrico.

A segunda matéria, cujo título é "'Prisão' que abriga Champinha pode acabar" (FSP, Caderno Cotidiano, 22/04/13), tem a autoria de Afonso Benites, de São Paulo, e ocupa em torno de um terço de uma página do jornal. O título da matéria já informa quem é o protagonista dessa história e nomeia a UES como prisão. O mote do texto baseia-se no pedido de fechamento da instituição feito pelo Ministério Público Federal (MPF) na semana anterior. Em parceria com o Conselho Regional de Psicologia e mais três organizações não governamentais (OnGs) não nomeadas, o MPF considera a instituição ilegal. Relatores da Organização das Nações Unidas (ONU) estiveram no Brasil em março de 2013 e solicitaram que a UES fosse fechada, pois não haveria "base legal para detenção dos jovens".

Nesse texto, há algumas informações que a Secretaria de Saúde repassou ao MPF sobre o trabalho realizado: "os jovens não recebem tratamento medicamentoso e só tem atividades por conta de ordens judiciais". Tal frase não explica a natureza das ações desenvolvidas, trazendo mais dúvidas do que esclarecimentos a respeito do que é realizado dentro da UES. A fala de um dos promotores descreve a confusão institucional: "Cada profissional que os avalia diz uma coisa. A patologia não é clara. Dizem que não estão prontos para viver em sociedade, mas não dão opção a eles. Hoje estão fazendo prisão perpétua no juízo cível". Esse promotor defende a "desinternação monitorada" de três jovens, sendo que Roberto não é um deles.

A matéria é concluída com o relato da Secretaria de Saúde, no qual essa instituição afirma não ter recebido a notificação do MPF e que os jovens receberiam "assistência terapêutica, médica e psicológica", contradizendo as informações prestadas anteriormente. Num primeiro momento, os jovens não passam por tratamento medicamentoso e as atividades internas decorrem de ordens judiciais; já num segundo momento, eles têm assistência integral no campo da saúde. O paradoxo entre saúde e segurança retorna nesse texto e, concomitantemente a isso, o Poder Judiciário se apresenta como o elemento determinante na gestão da vida desses jovens.

Já a terceira e última matéria analisada, cujo título é "STJ decide manter Champinha em Unidade de Saúde" (FSP, Caderno Cotidiano, 11/12/13), não apresenta autoria. Trata-se de uma matéria de menor tamanho que as anteriores, com uma introdução e uma segunda seção intitulada "Regime de exceção".

Ainda que o texto tenha como foco principal uma das audiências do caso de Roberto no Superior Tribunal de Justiça (STJ), a matéria também aborda a situação da UES, razão pela qual foi incluída na análise do presente artigo. A introdução retoma o já conhecido histórico do jovem e finaliza com uma frase que merece destaque: "Em 2007, após uma avaliação psiquiátrica, a Justiça resolveu interditá-lo por considerar que ele não apresentava condições de viver em sociedade". Novamente, constata-se a intervenção do Poder Judiciário no governo da vida dos "sacrificáveis", sobretudo na expressão "a Justiça resolveu interditá-lo", retratando de modo fiel o poder soberano da balança da Justiça na vida das pessoas avaliadas como incapazes de viver em sociedade.

Na segunda parte do texto, que trata do "Regime de exceção", descreve-se como foi a audiência de Roberto no STJ. O nome desse subtítulo se deve à defesa do jovem, que alegou que manter alguém na UES "representa um regime de exceção". O relator do caso, ministro do STJ, por sua vez, disse que "A internação compulsória deve ser evitada e somente adotada quando última opção em defesa do internado e, secundariamente, em defesa da sociedade. Por isso, não há constrangimento legal na internação". Nesse sentido, o relator negou a liberação de Roberto e defendeu que ele fosse mantido na UES. Os demais ministros o acompanharam no voto e a matéria é finalizada com o defensor de Roberto afirmando que avaliava recorrer de tal decisão.

É interessante observar, na fala do relator, como ele justifica que a internação de Roberto é, em primeiro lugar, para sua própria defesa e, secundariamente, em defesa da sociedade. Tal argumentação guarda semelhanças com a ideia de periculosidade como sendo aquilo que o sujeito pode vir a fazer, ou seja, ele é mantido preso preventivamente porque se supõe que o seu comportamento no passado permite prever o seu comportamento futuro. Constata-se uma distorção, na medida em que Roberto segue preso, não pelos atos ilícitos que cometeu, pois isso foi concluído com seus anos de internação na Fundação Casa, e sim pelo que pode vir a fazer caso seja libertado.

 

Considerações finais

A criação e manutenção da UES evidencia a junção de diferentes conhecimentos (médico, jurídico, psi), técnicas (exame, diagnóstico, contenção e vigilância) e poderes (executivo, judiciário e soberano) que (re)ativam modos de sujeição/assujeitamento.

Ainda que existam iniciativas que estejam solicitando o fechamento da unidade, parece não existir nenhuma repercussão concreta nos órgãos governamentais. Nessa conjuntura, a instituição não sofre alterações, os jovens lá permanecem e os anos se passam. Roberto entrou na UES aos 21 anos e já completou 30 anos, pois até 2017 seguia internado na UES, de acordo com uma matéria da revista Época Negócios.5 Significa dizer que ele passou toda a sua juventude encarcerado por um ato infracional, de violência invulgar é verdade, que cometeu aos 16 anos. É importante destacar a dificuldade em encontrar documentos de domínio público que retratem a realidade da instituição. Os rastros que mais possibilitam uma análise genealógica sobre a UES são matérias jornalísticas esparsas, muitas vezes atrelada a alguma movimentação judicial no caso de Roberto.

Agamben ajuda a compreender como o homo sacer se faz presente na atualidade e quem são eles. Quando se trata desses homens, leis, normas e demais regramentos instituídos podem ser relativizados, criando novas lógicas que suspendem a ordem jurídica. Ao mesmo tempo, direitos garantidos são suprimidos sem que isso tenha consequências para quem os suprime.

Nesse sentido, a UES revela como modos contemporâneos de exclusão social têm sido implementados e como práticas autoritárias podem assumir novas roupagens. A partir da Unidade Experimental de Saúde, é possível entender como processos de institucionalização de ações e técnicas que aparentam objetivos relevantes, como o direito à saúde, guardam perspectivas conservadoras que violam direitos já conquistados. Também torna-se de especial relevância compreender os meios pelos quais tais práticas ganham status de legitimidade, por meio de estudos, opiniões de especialistas, enfim, uma série de recursos que são ativados para a construção de uma retórica de convencimento da população de que tal instituição pode ser necessária. Roberto e os demais jovens precisam de laudos e pareceres de especialistas que os autorizem a deixar a unidade. Isso não ocorreu na última década e, ao que tudo indica, parece que tal autorização não ocorrerá. Trata-se de um lugar de exceção onde tais jovens vivem o retorno de tecnologias disciplinares que envolvem punição, vigilância e violação de direitos fundamentais.

Resumidamente, torna-se imprescindível investigar como tem se dado a retomada de processos autoritários que se propõem a judicializar vidas indignas sob novas fachadas, mais "modernas", no entanto, com velhos objetivos que almejam controlar corpos e vidas desviantes.

Para finalizar, vale a pena trazer dois questionamentos de Frasseto (2011) sobre os jovens que estão internados na UES para que seja possível problematizar como tem sido o governo da vida desses jovens e tantos outros que estão com suas condutas judicializadas: "Taxar alguém de perigoso, por doença mental ou traço de personalidade, não é algo que por si só - num mecanismo de profecia autorrealizadora - produz a periculosidade e, portanto, inviabiliza qualquer possibilidade de tratamento e intervenção?". E finalmente: "O quanto há de científico e o quanto há de político em um diagnóstico ou prognóstico psiquiátrico dessa natureza?" (p. 12).

 

Referências

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Recebido em em 21/07/2016
Aprovado em 09/04/2018

 

 

1 http://www.febem.sp.gov.br/site/noticias.php?cod=340.
2 http://www.anj.org.br/maiores-jornais-do-brasil/.
3 O Código Civil em vigor afirma em seu art. 1.767 que estão sujeitos à interdição e/ou curatela: I - aqueles que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para os atos da vida civil; II - aqueles que, por outra causa duradoura, não puderem exprimir a sua vontade; III - os deficientes mentais, os ébrios habituais e os viciados em tóxicos; IV - os excepcionais sem completo desenvolvimento mental; V - os pródigos. A interdição pode ser promovida pelo Ministério Público quando houver ausência de iniciativa dos familiares e implica na indicação de um curador que deve reger a pessoa e os bens do interditando.
4 http://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2015/08/28/justica-nega-liberdade-a-champinha-pela-3-vez-neste-ano.htm
5 https://epocanegocios.globo.com/Brasil/noticia/2017/02/sao-paulo-gasta-r-65-mil-por-mes-apenas-com-dois-criminosos.html.

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