Pesquisas e Práticas Psicossociais
ISSN 1809-8908
Representação social de beneficiários sobre o trabalho técnico social do Programa "Minha Casa Minha Vida"
Social representation of beneficiaries about social work technical in the Program "Minha Casa Minha Vida"
Representación social de los beneficiarios sobre trabajo social técnico en el Programa "Minha Casa Minha Vida"
Marisa Barletto
Doutora em Educação pela Universidade Federal Fluminense, Pós Doutora pelo Instituto de Estudos de Gênero na UFSC, Professora Adjunta aposentada da Universidade Federal de Viçosa
RESUMO
O presente trabalho tem como objeto as representações sociais dos beneficiários e beneficiárias do Programa "Minha Casa Minha Vida" sobre o Trabalho Técnico Social desenvolvido nos loteamentos de uma cidade de Minas Gerais. Considera-se que tais análises impactam na efetivação dos objetivos sociais do Programa "Minha Casa Minha Vida", pois permitem incorporar mais elementos na avaliação da sua implementação. Procurou-se apreender as representações sociais através da identificação do núcleo figurativo e dos processos de ancoragem e objetivação dos beneficiários. Como procedimentos metodológicos, foram realizadas entrevistas semiestruturadas, grupos focais e dinâmicas de grupo. O tratamento analítico dessas narrativas foi feito através de técnicas de análise de conteúdo. Como resultado, identificamos que as representações sociais do Trabalho Técnico Social tiveram como o núcleo figurativo o assistencialismo nos loteamentos. Esse assistencialismo se apresentou em diferentes sentidos, sendo alguns direcionados à valorização e outros à desvalorização do Trabalho Técnico Social.
Palavras-chave: Representações Sociais. Políticas Públicas. Trabalho Técnico Social.
ABSTRACT
The present work has as object the social representations of the beneficiaries of the "Minha Casa Minha Vida" Program on Social Technical Work developed in the town of Minas Gerais. These analyzes are considered to have an impact on the achievement of the social objectives of the "Minha Casa Minha Vida" Program, since they allow to incorporate more elements in the evaluation of its implementation. It sought to seize the social representations through the identification of the figurative nucleus and the anchoring and objectivation processes of the beneficiaries. The methodological procedures were semi-structured interviews, focus groups and group dynamics. The analytical treatment of these narratives was done through content analysis techniques. As a result, we identified that the social representations of the Social Technical Work had as the figurative nucleus the assistentialism in the allotments. This assistance came in different directions, some of which are directed at valuation and others at the devaluation of Social Technical Work.
Keywords: Social Representations; Public Policy; Social Technical Work.
RESUMEN
El presente trabajo tiene como objeto las representaciones sociales de los beneficiarios del Programa de Trabajo Técnico Social "Minha Casa Minha Vida" desarrollado en la ciudad de Minas Gerais. Se considera que estos análisis tienen un impacto en el logro de los objetivos sociales del Programa "Minha Casa Minha Vida", ya que permiten incorporar más elementos en la evaluación de su implementación. Buscó apoderarse de las representaciones sociales a través de la identificación del núcleo figurativo y los procesos de anclaje y objetivación de los beneficiarios. Los procedimientos metodológicos fueron entrevistas semiestructuradas, grupos focales y dinámicas grupales. El tratamiento analítico de estas narrativas se realizó a través de técnicas de análisis de contenido. Como resultado, identificamos que las representaciones sociales del Trabajo Técnico Social tenían como núcleo figurativo el asistencialismo en las adjudicaciones. Esta asistencia llegó en diferentes direcciones, algunas de las cuales están dirigidas a la valoración y otras a la devaluación del Trabajo Técnico Social.
Palabras clave: Representaciones Sociales; Política Pública; Trabajo Técnico Social.
Apresentação
O presente trabalho foi elaborado a partir dos resultados do projeto de pesquisa e extensão1 desenvolvido junto aos beneficiários2 do Programa "Minha Casa Minha Vida" (PMCMV) de uma cidade de médio porte do interior de Minas Gerais. O projeto teve como principal objetivo pesquisar e problematizar os processos de representação e ressignificação dos beneficiários, enfatizando o modo como se relacionavam com os eixos do trabalho social e com espaço habitado. Uma das estratégias para compreender essa ressignificação do espaço habitado foi investigar as representações sociais dos beneficiários e beneficiárias do PMCMV sobre o Trabalho Técnico Social desenvolvido nos seus novos loteamentos. Procurou-se apreender tais representações através da identificação do núcleo figurativo e dos processos de ancoragem e objetivação (Sá, 1993) dos beneficiários do PMCMV. Considera-se que tais análises impactam na efetivação dos objetivos sociais do PMCMV, pois permitem incorporar mais elementos na avaliação da sua implementação.
Como procedimentos metodológicos, foram realizadas entrevistas semiestruturadas, grupos focais e dinâmicas de grupo, alcançando cerca de 170 pessoas. O tratamento analítico dessas narrativas foi feito através de técnicas de análise de conteúdo. Como resultado, identificamos que as representações sociais do Trabalho Técnico Social tiveram como o núcleo figurativo o assistencialismo nos loteamentos. As categorias construídas foram: oferecimento de cursos aos moradores e moradoras; mediação institucional das técnicas e técnicos sociais; dependência e comportamento social de moradores e moradoras; patriarcado; subjetividade das técnicas e técnicos sociais. Tanto os elementos de valorização quanto os de desvalorização do Trabalho Técnico Social realizados nessas categorias orbitaram em torno do assistencialismo.
Trabalho Técnico Social do Programa Minha Casa Minha Vida
No PMCMV, o Trabalho Técnico Social (TTS) era um componente estratégico na proposta de política habitacional dirigida para classes populares. Segundo o Caderno de Orientação do Trabalho Social [COTS] (Gerência Nacional Gestão Padronização e Normas Técnicas, Superintendência Nacional Assistência Técnica e Desenvolvimento Sustentável & Caixa Econômica Federal, 2013), os novos instrumentos de gestão municipal apontaram para a construção de políticas públicas com base em processos democráticos e através de novas formas de organização social. Essa tendência foi incorporada ao PMCMV através da proposição de trabalho social envolvendo mobilização e organização comunitária, geração de trabalho e renda e educação sanitária e meio ambiente (Gerência Nacional Gestão Padronização e Normas Técnicas et al, 2013). O investimento nesses eixos seria condicionante para a implementação do Programa cuja manutenção dependeria da autonomia dos beneficiários:
Uma premissa que norteia a concepção dos Programas é que a participação e o comprometimento dos beneficiários nos processos de decisão, implantação e manutenção dos empreendimentos, possibilitando a manifestação da população para que se produzam intervenções adequadas às suas necessidades e realidade sociocultural, permitindo afirmação da cidadania e transparência na aplicação dos recursos públicos. Em consonância com este princípio, nos Programas operacionalizados pela CAIXA a participação da comunidade é entendida como um processo pedagógico de construção da cidadania e um direito do cidadão; e para assegurar que a sociedade, em especial, as famílias diretamente beneficiadas sejam envolvidas e ouvidas neste processo, é desenvolvido o Trabalho Técnico Social (Gerência Nacional Gestão Padronização e Normas Técnicas et al, 2013, p.4).
Considerando a citação, nota-se a relevância da participação dos beneficiários, entendida como condição central para a manutenção dos empreendimentos do Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV). Essa forma de envolvimento estaria assentada na perspectiva pedagógica de cidadania, como diz o texto, que por sua vez foi uma demanda decorrente da crítica à implantação de políticas habitacionais anteriores, em que os conjuntos populares construídos eram distantes do local de trabalho de moradores e moradoras, criando um déficit de transporte público e de outros serviços como abastecimento de água, sistemas esgoto, luz, correios e segurança. (Maricato, 1996). Com a proposição da participação e comprometimento dos beneficiários, estaria assegurada a 'voz' da população na realização do empreendimento. Segundo avaliação do Movimento Nacional de Luta pela Moradia (citado por Ministério das Cidades, Secretaria Nacional de Habitação Aliança de Cidades & Banco Mundial, 2011, p. 25), essa orientação de participação e controle social foi resultado de conquistas do movimento social e pode ser verificada desde a década de 1980, na luta pela implementação do Estatuto da Cidade e pelo Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social.
A citação do COTS (Gerência Nacional Gestão Padronização e Normas Técnicas et al, 2013) também informa sobre a importância do papel dos beneficiários no processo de tomada de decisão para a implementação da política de habitação. Essa perspectiva, entendida como expressão do fortalecimento de práticas democráticas deliberativas, refere-se a um conjunto de procedimentos a serem debatidos numa esfera pública, que permitiria aos beneficiários se posicionarem frente a outros atores sociais e políticos, apresentando seus os argumentos.
Considerando os aspectos históricos, o Trabalho Técnico Social do PMCMV carregava uma reflexão importante sobre a dificuldade da população beneficiária em estar preparada ou não para discutir e se posicionar frente às instituições que participavam administrativa e financeiramente da implantação e implementação do Programa. A necessidade pedagógica explicitada no TTS era uma posição baseada no entendimento de que há no imaginário social uma noção de direitos invertida da prática de cidadania, ou seja, quando direitos são conjugados na gramática dos 'favores' concedidos pelo governo. Sendo consequência do caráter assistencialista, a noção de direitos como 'favores' do governo se assenta na naturalização das desigualdades sociais, esquecendo as dimensões históricas e sociais que as determinaram. (Maricato, 1996). No sentido inverso, o TTS propunha formas de controle social e participação através de instrumentos que desconstruíssem o imaginário social de direitos como 'favores'.
O consultor Francesco di Villarosa - citado por Ministério das Cidades, 2011 - realizou estudos de caso em algumas capitais brasileiras, focando os componentes sociais dos projetos e também a dimensão urbanística arquitetônica e a institucional do PMCMV. Villarosa destacou a importância de equipes sociais qualificadas e multidisciplinares e, por sua vez, da importância de que as equipes desenvolvessem ações a partir políticas sociais locais, ou seja, "as equipes sociais não devem conduzir determinadas ações de forma isolada das políticas sociais, mas o programa pode ser o eixo catalisador das diferentes políticas" (p.12). Segundo o consultor, normalmente, as ações de geração de trabalho e renda tenderam a ser pontuais, com dificuldades de alcançar escala e sustentabilidade sendo "uma área em que é preciso trabalhar com diagnósticos mais rigorosos das vocações e dos mercados locais" (p.12).
Villarosa indicou alguns pontos críticos do Trabalho Social dos quais destacamos dois: um é a forma de efetivar a intersetorialidade
A intersetorialidade é a articulação entre as políticas públicas por meio do desenvolvimento de ações conjuntas destinadas à proteção social, inclusão e enfrentamento das expressões da questão social. Supõe a implementação de ações integradas que visam à superação da fragmentação da atenção às necessidades sociais da população. Para tanto, envolve a articulação de diferentes setores sociais em torno de objetivos comuns, e deve ser o princípio norteador da construção das redes municipais. (CAVALCANTI; BATISTA; SILVA, 2013, p. 1-2)
Assim, segundo Villarosa, a fragilidade estaria na dificuldade em compreender que "não é o trabalho social que promove a intersetorialidade, esta já deve ser parte do programa de governo da Prefeitura" (p.13). O segundo ponto crítico do Trabalho Social seria a necessidade de um "salto de qualidade no sentido de uma maior profissionalização do trabalhador social. Em muitos casos, o TS se limita a criar um ambiente favorável para as ações de urbanização" (p.14).
De acordo com o COTS (Gerência Nacional Gestão Padronização e Normas Técnicas et al, 2013), o profissional que realizasse o Trabalho Técnico Social se
responsabilizaria por promover formas de emancipação social e política dos grupos, criando condições para práticas participativas e um grande amadurecimento da noção de cidadania. Todavia, tratando-se de um projeto pioneiro, não definiu claramente qual o perfil profissional exigido para essas tarefas, ou quais as exigências de qualificação específica. Nesse cenário, cursos de capacitação presencial e à distância foram oferecidos pelo Ministério das Cidades, por ONG's ou em parcerias público/privado. Segundo a publicação da Associação Voluntários para o Serviço Internacional - Fundação AVSI (s/d), "Hoje, no Brasil, pode-se afirmar que há um conhecimento consolidado acerca do trabalho social realizado de suporte às famílias beneficiadas diretamente com as obras de urbanização" (p. 5).
Refletindo sobre os beneficiários do PMCMV da cidade pesquisada, é importante destacar que o Programa atendeu famílias que não se conheciam anteriormente e que foram residir num espaço estranho, se distanciando de suas redes de parentesco e vizinhanças que, de alguma forma, lhes permitiriam configurar uma nova identidade comunitária. Nessa nova identidade, a estrutura proposta pelo PMCMV desenhou um território também novo, que carregava normas e procedimentos diferenciados dos que se encontrariam num bairro ou num condomínio, que são territórios de alguma forma já conhecidos. Nessa nova experiência, havia também a novidade do TTS, tendo o profissional que o realizava, como missão, assumir o lugar de interlocutor entre a comunidade e as instituições públicas e privadas envolvidas na implementação do PMCMV.
Na cidade investigada, o empreendimento de casas populares pelo Programa Minha Casa, Minha Vida abrangeu três conjuntos habitacionais3: Conjunto 1, Conjunto 2 e Conjunto 3. O Conjunto 1 foi o primeiro a ser construído e foi entregue em 16 de setembro de 2011, contendo 132 unidades habitacionais, divididas em 13 quadras. As casas eram de alvenaria, compostas de dois quartos, sala, cozinha, banheiro e área de serviço. Do total de 132 famílias, 91,7% eram chefiadas por mulheres sendo que 64,42% possuíam ensino fundamental incompleto e 27,2% se ocupavam do trabalho doméstico. Dentre as famílias beneficiadas, 63,3% possuíam renda familiar de até um salário mínimo e 54,5% recebiam algum tipo de benefício do governo. Quanto ao tamanho dessas famílias, 68,2% eram compostas por três a cinco pessoas e 25,7% possuíam 2 filhos.
O Conjunto 2 foi entregue em 04 de julho de 2012, contendo 123 unidades habitacionais e que teve entre os critérios na seleção para os beneficiários, prioritariamente, a população idosa e, ou, portadoras de necessidades especiais. As casas eram de alvenaria, compostas de dois quartos, sala, cozinha, banheiro e área de serviço. Do total de 123 famílias, 80,4% eram chefiadas por mulheres, das quais 66,6% possuíam ensino fundamental incompleto e 21,1% se ocupavam do trabalho doméstico. Dentre as famílias beneficiadas, 62,60% possuíam renda familiar de até um salário mínimo e 61,79% recebiam algum tipo de benefício do governo. Quanto ao tamanho dessas famílias, 54,47% eram compostas por três a cinco pessoas e 28,45% possuiam um filho.
O Conjunto 3 foi entregue em 30 de março de 2012, contendo 80 unidades habitacionais distribuídas em cinco prédios de quatro andares, com dezesseis apartamentos cada. As moradias possuíam 39 m2 de área útil composta de dois quartos, sala, cozinha e banheiro. Dois dos blocos contavam com área coberta para uso coletivo. Do total de 80 famílias, 81,25% eram chefiadas por mulheres, sendo que 28,75% possuíam ensino fundamental incompleto e 41,25% se caracterizavam como donas de casa/do lar. Dentre as famílias beneficiadas, 84% possuíam renda familiar de até um salário mínimo e 60% recebiam algum tipo de benefício do governo. Quanto ao tamanho dessas famílias, 58,75% eram de até cinco pessoas residindo no mesmo apartamento.
Considerando que os conjuntos eram compostos predominantemente por mulheres chefes de família devido às diretrizes do Programa, que concedia prioritariamente o benefício social em seus nomes enquanto titulares do imóvel financiado, o horizonte investigativo da pesquisa esteve direcionado na perspectiva de gênero4 enquanto categoria, por transversalizar os temas do trabalho social e por estar presente na dimensão constituinte da política do PMCMV.
A proposta do Trabalho Técnico Social se apoiava em princípios que colaborariam para o reconhecimento dos beneficiários e das beneficiárias enquanto sujeitos coletivos, para a gestão democrática das intervenções e estreitamento dos laços sociais. No entanto, como mostrou o trabalho realizado, percalços de variadas naturezas compunham o cotidiano das famílias que residiam nos conjuntos, apontando, portanto, algumas fragilidades no que se refere à efetividade do trabalho social proposto.
Representação Social
O estudo de representações sociais envolve a compreensão sobre os processos de elaboração de conceitos e noções sobre aspectos da realidade compartilhada entre sujeitos. Nesse processo, os indivíduos organizam socialmente imagens, memórias e linguagens, tornando-as familiares e assim compreensíveis e, por sua vez, passíveis de serem reproduzidas. As representações sociais - que são uma interpretação grupal sobre aspectos da realidade - são construções com significados cognitivos, emocionais e afetivos, (Moscovici, 1978).
A Teoria das Representações Sociais emerge como uma das possibilidades investigativas para subsidiar a discussão sobre a ressignificação dos conjuntos habitacionais por seus moradores. O que está em destaque é a visão de mundo construída em função da cultura e da experiência dos grupos/sujeitos, ou seja, o conhecimento denominado pela ciência como do "senso comum" que ganha relevância. No plano do vivido, pode-se compreender o conhecimento como um processo construído na interatividade entre sujeitos, sendo incorporado pelos membros do grupo, percebido no comportamento, nas opiniões, valores e na tomada de posição do sujeito na sociedade (Moscovici citado por Jodelet, 2001).
Segundo Celso Pereira de Sá (1993), as representações sociais são um fenômeno complexo sempre ativado e em ação com a vida social, responsáveis por direcionar e organizar psicologicamente as ações dos sujeitos, respeitando processos informativos consensuais como ideologias, crenças, valores. Jodelet (2001) explica que as representações sociais, enquanto formas de conhecimento, são socialmente elaboradas e partilhadas, com um objetivo prático que contribui para a construção de uma realidade comum a um conjunto social.
Como um sistema de interpretação, 'negociada' socialmente, a Teoria das Representações Sociais ~;possibilita a interação, mediando as fronteiras permissivas culturalmente, evitando, assim, o conflito constante. Trata-se de um sistema de interpretação que mediatiza a relação entre os sujeitos e o mundo, orientando e organizando as condutas, respeitando convenções simbólicas dadas na cultura singular a cada grupo. Com isso, constroem-se também identidades sociais. (Moscovici, 1978).
Para os fins deste relato, destacamos três conceitos fundamentais para apresentar o trabalho desenvolvido: objetivação, ancoragem e núcleo figurativo. Jodelet (2001) afirma que, de acordo com a Teoria das Representações Sociais, a objetivação é o processo pelo qual o indivíduo materializa as significações, dando forma ao conhecimento produzido. São componentes desse processo a seleção e descontextualização, a formação do núcleo figurativo e a naturalização. A seleção e descontextualização refere-se a apreensão da informação disponível culturalmente de forma fragmentada, distorcida da sua origem, mas acessível ao conhecimento popular. É o senso comum.
O núcleo figurativo refere-se ao processo de tornar um fato, objeto e/ou conhecimento novo, em algo familiar e coerente com o referencial que é o já existente em seu repertório subjetivo, adequando o objeto para ser coerente com sua visão de mundo.
A naturalização decorre da formação do núcleo figurativo, pois organiza os conceitos novos de modo coerente com as suas capacidades de compreensão.
Segundo Celso Pereira de Sá (1996), a noção de núcleo figurativo de Moscovici pode ser entendida como uma
[...] reorganização imagética de elementos cognitivos privilegiados. Esses elementos, descontextualizados em relação à estrutura original do objeto representado e a suas condições conjunturais, gozariam de considerável autonomia na moldagem do conhecimento sobre tal objeto e tudo o que com ele possa ser relacionado. (p.21).
A ancoragem está relacionada a dinâmica de significações externas, ou seja, vinculando sentido do conteúdo de uma representação social à significação que este tem para determinados grupos sociais. Assim, o jogo de sentidos compartilhado no grupo forja as representações sóciais sobre fatos, objeto ou ideia, vinculando elementos cognitivos e grupos.
É a explicitação do elo existente entre a objetivação e a ancoragem que nos permite compreender determinados comportamentos, pois o núcleo figurativo da representação depende da relação que o sujeito mantém com o objeto e da finalidade da situação. Assim, no interior de uma comunidade, de acordo com suas experiências e tradição, a veiculação das concepções acerca de objetos da realidade se torna tão intrínseca em todos os seus membros que os sujeitos são levados a se comportarem, diante de determinados objetos, segundo as representações atribuídas pelo grupo àquele objeto. (Costa & Almeida, s/d).
Nas suas pesquisas sobre representações sociais, Spink (1993) apresenta alguns aspectos relativos às metodologias que envolvem o tema. Ela lembra que o tema exige a técnica de observação, focando não relações de causa e efeito, mas de interações entre elementos da realidade a ser estudada. Outra questão a ser problematizada é a necessidade de a pesquisadora se tornar familiar aos sujeitos, ou seja, de alguma maneira poder se tornar mais próxima da realidade, criando condições para 'compartilhar' a realidade vivida pela comunidade estudada.
No que se refere ao método de construção de dados, Spink (1993) elege as entrevistas semiestruturadas acopladas aos levantamentos do contexto social e dos conteúdos históricos para compreender a leitura de mundo e das experiências que vão ser anunciadas nas narrativas e consequentemente nas representações sociais. Assim, o discurso se torna objeto significativo para levantar as categorias anunciativas. Isso por que elas aparecem nas falas e nas ações, nas contradições e nos silêncios.
No campo das técnicas para a construção dos dados, a orientação foi que após um período de observação e da aplicação de entrevistas devidamente organizada, se iniciasse o trabalho de interpretação do conteúdo. Para os fins deste trabalho, foram abordados os três loteamentos do PMCMV da cidade, através de entrevistas semiestruturadas, grupos focais e dinâmicas de grupo, alcançando cerca de 170 pessoas. Para a construção do material analítico, foram trabalhadas as transcrições das falas dos beneficiários nessas atividades, tratadas aqui como narrativas, além das relatorias feitas pelos pesquisadores de campo.
O tratamento analítico dessas narrativas foi feito através de técnicas de análise de conteúdo. Trata-se de uma técnica que permite visualizar os núcleos organizadores dos discursos, as variáveis e categorias, bem como os conflitos e consensos estabelecidos pelas pessoas do grupo estudado. Para Bardin (2011), isso tem duas funções complementares: a tentativa exploratória que amplia a descoberta dos conteúdos aparentes e a confirmação ou informação das hipóteses.
Ainda de acordo com Bardin (2011), essa análise se faz pela técnica de codificação, que transforma os dados 'brutos' do texto ou discurso por recorte, agregação e enumeração permitindo atingir uma representação do conteúdo. A técnica compreende basicamente a análise das categorias emergentes das unidades de registro (Bardin, 2011).
Resultados
Apesar de tratarem de realidades diferenciadas - principalmente entre o loteamento de habitação vertical e os dois horizontais - e de cada loteamento ter seu técnico social específico, as orientações do Programa do Trabalho Técnico Social foram as mesmas, aproximando o modo de trabalho nos três loteamentos. A rotina de trabalho, as reuniões de diagnóstico local, as propostas de capacitação de lideranças, os cursos para geração de renda, enfim, o procedimento do Trabalho Social em cada loteamento era muito semelhante.
Por sua vez, o processo de implantação e implementação do Programa Minha Casa Minha Vida pela Prefeitura também foi praticamente o mesmo para os três loteamentos. Assim, apesar das diferentes características implicarem em problemas específicos - uso dos equipamentos de energia solar, uso da área comum e condomínio nas habitações verticais, dentre outras questões - o modo como os problemas foram discutidos, os encaminhamentos para as soluções, o modo como as instituições envolvidas desenvolveram os diálogos necessários, o modo como o poder público se colocou nesses encaminhamentos, foram muito semelhantes.
Sendo os loteamentos dotados de uma história semelhante, de uma condução de trabalho social semelhante e de encaminhamentos institucionais semelhantes, apresentaremos reflexões e discussões sobre as representações sociais do Trabalho Técnico Social do Programa Minha Casa Minha Vida, construídas pelos beneficiários nos três loteamentos sem considerar a especificidade geográfica em questão.
Conforme narrado pelas pessoas beneficiadas, o Trabalho Técnico Social foi organizado nos seguintes eixos: o "plantão" 6 num dia da semana entre segunda e sexta para "ajudar nas atividades ou tirar dúvidas"; a identificação e capacitação de lideranças locais para formação de síndicos do condomínio e de associação de moradores nos loteamentos horizontais; e a promoção de cursos de capacitação para geração de renda das pessoas beneficiárias. Há indícios de que foi desenvolvido um diagnóstico e proposições para intervenções em questões ambientais e sanitárias, mas não apareceram de forma muito clara nas narrativas dos beneficiários, por isso não será utilizado como eixo de análise das representações sociais.
A partir das narrativas dos moradores, as representações sociais do Trabalho Técnico Social tiveram como o núcleo figurativo o assistencialismo nos loteamentos. Esse assistencialismo se apresentou em diferentes sentidos, sendo alguns direcionados à valorização e outros à desvalorização do TTS. Os que incidiram sobre a valorização referenciaram o apoio dado aos moradores no encaminhamento de demandas; realização de oficinas sobe produtos artesanais e breves capacitações profissionais; aspectos subjetivos de técnicos e técnicas assim como também referências à incapacidade de moradores para colaboração e encaminhamentos coletivos, fossem por sua origem de classe ou de gênero. Já os sentidos direcionados à desqualificação do TTS enfatizaram a falta de resultados e, ou, falta de soluções para os problemas nos loteamentos, fosse de ordem estrutural, financeira ou social.
O oferecimento de cursos aos moradores e moradoras
A representação do Trabalho Técnico Social esteve objetivada nas narrativas sobre a realização de "projetos" ou cursos, como artesanato, sabão doméstico, manicure, tinta com terra, costura, jardinagem, recepcionista, além de atividades para as crianças. A tarefa de "trazer" cursos foi a primeira referência ao TTS feita pelos moradores. A conotação do "trazer" significa que não foram assuntos propostos pelos moradores e sim definidos pelos técnicos ou pela Secretaria Municipal de Assistência Social. As atividades "levadas" pelos técnicos sociais contaram com uma participação pequena de moradores. Parte da população ouvida valorizou muito essa prática, dizendo ter sido importante o TTS por ter "trazido" esses cursos, que foi uma prática "para ajudar" os moradores.
Por sua vez, parte dos entrevistados quando indagados sobre esses cursos disseram que não participaram por que eram oferecidos em dia e horário de trabalho. Outras narrativas enfatizaram a não participação por falta de interesse ou por que desinteressaram ao longo dos cursos. Outros ainda chegara;m a dizer que o técnico sumiu e que os cursos não aconteceram.
Assim, os cursos foram uma referência relevante ao TTS, seja no sentido de valorização, de contribuição para o loteamento, seja na desqualificação do TTS por causa do horário inadequado ou por desinteresse das propostas levadas. Os cursos foram destacados como objetivação de uma das "coisas que o técnico social trouxe para o loteamento".
Mediação institucional das técnicas e técnicos sociais
Outra dimensão objetivada do Trabalho Técnico Social foi sua função de mediação com as instituições e serviços dos loteamentos para resolução de problemas. Essa ação mediadora foi percebida positivamente acontecendo em dois eixos: um, o da informação e esclarecimento de beneficiários sobre variadas questões relativas aos conjuntos habitacionais; e outro, o de viabilizar encontros de moradores com as instituições, como a empreiteira, vereadores do município, secretarias e serviços municipais, dentre outros.
Nos dois eixos, a representação social do Trabalho Técnico Social esteve ancorada numa experiência assistencial. As formas de contextualização desse "bom trabalho" foram: "deu cobertura pra tudo e ajudou todo mundo" e "trabalhava bem e trouxe muita coisa pra moradores". Mesmo as informações prestadas pelos técnicos aos beneficiários foram apresentadas na forma mais prescritiva do que formativa, por exemplo, quando "o tema [da reunião] era como cuidar do imóvel, direitos e deveres, adaptação",
[...] o técnico social alertou os moradores quando solicitaram os cartões, disse que ele perguntou se os moradores pensaram muito bem antes de fazer o pedido, que eles deveriam pensar que também tem outras coisas/contas para pagar e que a CEF, por exemplo, não espera para receber as prestações da casa. (Relatoria de 17/10/2013).
Ou, numa vertente negativa dessa mesma objetivação, o TTS foi apresentado como uma proposta sem efetividade: informaram que os técnicos "não fazem nada", "não fazem nada por nós" ou ainda "fala muito e não faz nada". Esse "não faz nada" remete claramente a atribuição aos técnicos sociais da responsabilidade para resolver os problemas nos loteamentos para os moradores. Foram atribuídas responsabilidades sobre "as contas que não chegam em casa", "antes de receberem a casa, o técnico tinha que ver quem estava desempregado, pois não pagam o condomínio porque não têm renda, e isso vai gerar multas".
Esse lugar de mediação institucional também envolveu a projeção do poder municipal na figura dos técnicos sociais. Como os tensionamentos com as secretarias municipais e outros serviços acordados antes da entrega das unidades habitacionais não foram resolvidos, a hostilidade dos moradores era muito comum quando havia as tentativas de expressarem suas reivindicações. Colocações do tipo "ele [técnico] está apoiando muito mais a prefeitura que o paga do que apoiando os direitos dos moradores". Ou ainda, que suas ações eram sem efeito pelo próprio despreparo da Secretaria de Assistência Social. De qualquer modo, a representação da falta de efetividade do TTS esteve vinculada às dificuldades políticas de encaminhamentos de soluções dos loteamentos, muitas delas pela falta de cumprimento dos acordos feitos tanto com a construtora quanto com os serviços do município.
Dependência e comportamento social de moradores e moradoras
A representação social do Trabalho Técnico Social (TTS) como uma prática assistencialista foi configurada pela desqualificação de moradores e moradoras feita pelos próprios moradores por não colaborarem com a realização das ações propostas pelos técnicos sociais, ou mesmo por não assumirem o protagonismo na formulação de suas demandas. Havia um discurso de reafirmação da dependência do TTS pela ênfase de moradores sobre como outros moradores e moradoras eram imaturos, não sabiam se comportar, não sabiam falar ou coisas semelhantes: "os moradores que fazem muita confusão, não prestam atenção, começam a gritar na mesma hora"; "porque é todo mundo adulto, eles que tem que puxar. Não é ele [Técnico Social] que tem que ficar em cima: 'vamos, vamos', não...". A ancoragem da representação social da prática assistencial era reforçada pela objetivação da dificuldade dos moradores e moradoras.
De certo modo, esse lugar de dependência era reforçado pelos próprios técnicos ao trazerem para si tarefas que não são suas, na intenção de ajudar: "A técnica social orienta a moradora a ligar para a vigilância sanitária. Ela oferece o número do telefone, mas a moradora pede para a técnica ligar, justificando que essas coisas são muito difíceis, que o telefone não tem bom sinal". (Relatoria de 28/11/2012)
Patriarcado
Apesar do silêncio das mulheres para que as relações de gênero ficassem invisíveis na produção das informações da pesquisa, em um grupo focal a desqualificação das mulheres como beneficiárias apareceu fortemente pela voz de um dos moradores, sendo este indicado inclusive como um líder no loteamento. Na narrativa, o assistencialismo no TTS teria sua determinação nas relações de gênero, afirmando a dependência feminina. Em sua narrativa,
[...] Mas essas mulheres muitas vezes não estão preparadas pra ser provedora de uma casa! Elas ainda adquirem e agem com o costume que alguém vai fazer por elas! Muitas reclamações, ah meu teto tá quebrado, minha luz tá queimada, se você for traduzir isso aí, isso daí é falta de marido, o que ela tá pedindo é a falta de um marido, e o Governo não tem que assistir isso, então não sei de que maneira isso iria estimular as pessoas a trabalharem, a se sentirem capazes! Talvez em alguns casos não tenham mais tempo, mas estimular as crianças a estimularem essa mulheres - que são muitas - há ainda as que são mães e filhas, mulheres. A mulher não é problema nenhum, eu não passo com uma carga genética pra minha filha que ela tem que ser dependente de um provedor. Ela que pague, ela que resolva as coisas dela... Surgiu um problema e a gente conversa, ela tem as obrigações dela, e eu tenho as minhas... Tem uns que se portam como coitadinho... É, se a gente fosse lá em Darwin, na época dele, um processo de seleção natural que você ficou pra trás querida, o que você tá fazendo ai?
A análise feita foi assumida pelo grupo. Na narrativa, há elementos claramente machistas, como a expressão "é falta de marido". Entretanto a narrativa traz também elementos que fazem certa tradução da relação entre patriarcado (Morgante & Nader, 2014) e assistencialismo no que tange às dificuldades de mulheres assumirem o protagonismo de suas vidas como chefes de família. A narrativa do morador informa que o assistencialismo é alimentado pela condição de dependência de algumas moradoras do TTS devido sua condição feminina, condição essa que tem a ver com o "costume", ou com o processo de socialização de mulheres numa perspectiva de submissão à ordem masculina, no caso, patriarcal, já que na explicação do narrador, a submissão a um "marido" é substituída pela submissão ao "Governo". Entende-se que há uma veemência na narrativa em que nem o "Governo" tem que ser assistencialista e nem as mulheres têm que ser dependentes, propondo que, desde cedo, as meninas tenham autonomia, empoderando sua condição feminina. A argumentação é de que essa condição feminina de dependência e submissão não tem nada a ver com natureza biológica. Mais ainda, que mesmo considerando essa natureza, ela já mudou há muito tempo, e àquelas que ainda demandam relações políticas assistencialistas, o narrador manda um recado: "você ficou pra trás querida, o que você tá fazendo ai ?"
O processo de empoderamento investido no PMCMV tem dimensões que ultrapassam nossa capacidade acadêmica de investigação. O que pode ser indicado são algumas pistas de como o TTS incide nessas relações. Neste caso, as dificuldades do desempenho do TTS estariam no assistencialismo demandado pela condição feminina de algumas moradoras marcadas pelo patriarcado, que exigiriam práticas paternalistas dos técnicos. Permanece a representação social do TTS como assistencialista, tendo como causa essa determinação de gênero.
Subjetividade das técnicas e técnicos sociais
A abordagem sobre o TTS não escapou da referência à subjetividade das técnicas e técnicos que desempenharam essas atividades. Assim, ao serem indagados sobre o TTS, os moradores respondiam sobre as características pessoais dos técnicos.
No caso de vetores positivos, as expressões eram: "é alegre que só. Trabalha sempre de bem com a vida"; "acho direitinho, ótimo e bacana"; "tem mostrado serviço"; "é boa gente". O outro sentido dado, no campo de vetores positivos, foi o que remeteu às questões de classe. As colocações informavam que o TTS foi muito bom e que o técnico "não tinha obrigação de estar falando com pobre", ou seja, que fazia mais do que sua função exigia por mérito pessoal.
Já nas representações sociais carregadas por vetores negativos, a expressão sobre aspectos subjetivos de técnicos agregava intensidade emocional à representação social. Assim, "até teve mérito, mas faltou pulso forte; a [assistente social] tem presença, tem pulso, o pessoal tinha medo dela"; "o trabalho do técnico foi banho-maria".
Outras questões
O trabalho de investigação sobre a representação social do Trabalho Técnico Social dos moradores dos loteamentos no PMCMV esbarrou em algumas questões que estão indiretamente ligadas ao objetivo proposto, mas que são relevantes para os fins deste trabalho. Uma dessas questões foi o grande número de pessoas que desconheciam o Trabalho Técnico Social. Um grupo desconhecia totalmente o que isso significava. Outro grupo não sabia quem era o técnico ou dizia que não sabia quem era porque trabalhava "e não ficava o dia todo em casa". Outro grupo chegava a identificar os técnicos e técnicas associando a alguém ou situação: "eu já vi essas meninas, passava na sexta... tinha uns papeizinhos para ir nas festas, não é? " ; ou então quando finalmente identificava quem era a pessoa, não fazia referência a nenhuma ação, apenas dizia que "ela era boazinha" e que "ela chorou na despedida que fizeram pra ela". Ou ainda, ao buscarem identificar alguém para ancorar tal informação, fazendo tentativas: "não é a Assistente Social da Prefeitura?", ou "não é aquela professora da Universidade?" ou "é Dona Francisca, que 'mexe' com associação".
Outra observação importante foi a presença de um sentimento de 'obrigação' dos moradores em responder à pesquisadora, percebido por haver um certo constrangimento em dizer que não conheciam o TTS, ou não saberem quem era o técnico social, ou seja, de não saberem a resposta. Considerou-se que, de certo modo, as instituições ainda se fazem muito presentes nos loteamentos - principalmente o banco e a Prefeitura - criando um clima social de certa 'vigilância' no modo de como cuidar corretamente da casa, do que pode e do que não pode fazer no loteamento, do controle do pagamento, dentre outros aspectos. Por sua vez, os pesquisadores deste trabalho não deixaram de ser identificados como sendo da Universidade. Ou seja, os pesquisadores não eram moradores nem beneficiários, eram da Universidade, o que os aproximava mais do banco e da Prefeitura do que do loteamento. Assim, dizer que não conhecia o técnico poderia ser interpretado como se estivessem dando uma resposta 'errada' ou que tivessem obrigação de conhecer esse trabalho.
Para compreender melhor a constituição dessas representações, é necessário incorporar outros elementos das narrativas dos sujeitos entrevistados. Os beneficiários informaram que foram poucas as reuniões cuja pauta tratava da convivência dos moradores e que, na maioria das reuniões, se enfatizava mais questões operacionais de cursos ou de questões administrativas com o banco ou com a construtora. Segundo os entrevistados, nas reuniões falava-se "sempre das mesmas coisas".
Mesmo considerando essas pautas, as dificuldades apontadas tinham muito mais a ver com o não cumprimento das condições para implantação do PMCMV - como transporte, serviços de saúde, escolas, etc. - do que com as propostas do TTS. Há, nas narrativas, uma explícita referência ao sentimento de terem sido "jogados nos conjuntos".
Considerações finais
A finalidade desta discussão não foi fazer o monitoramento do trabalho realizado pelas técnicas e técnico do PMCMV. Também não foi avaliar as ações do poder público municipal e, ou, das outras instituições envolvidas na implantação e implementação do Programa. O objetivo central foi compreender o processo de representação social dos beneficiários e beneficiárias do PMCMV sobre Trabalho Técnico Social.
Como já foi discorrida, a representação social do TTS para os beneficiários do PMCMV da cidade em questão esteve centrada no assistencialismo, valorizando ou desvalorizando o TTS. As objetivações e ancoragens envolveram: a "ajuda" aos moradores e moradoras no encaminhamento de demandas; o "levar" a realização de oficinas; as dificuldades do TTS devido à suposta incapacidade de moradores e moradoras para a colaboração e encaminhamentos coletivos fossem por sua origem de classe ou de gênero; a suposta incompetência do técnico ou técnica social devido a falta de resultados e, ou, falta de soluções para os problemas nos conjuntos, de ordem estrutural, financeira ou social. As categorias encontradas foram: oferecimento de cursos aos moradores e moradoras; mediação institucional das técnicas e técnicos sociais; dependência e comportamento social de moradores e moradoras; patriarcado; subjetividade das técnicas e técnicos sociais.
Analisamos que a percepção de beneficiários sobre a distância entre as condições de infraestrutura vislumbradas na proposta da prefeitura aos moradores e moradoras do PMCMV e a realidade encontrada nos conjuntos teve forte determinação na representação social do TTS como assistencialista. A imagem de que foram "jogados nos conjuntos" foi acentuada com o fim do contrato dos técnicos sociais, que teve duração de um ano.
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Recebido em 05/10/2015
Aprovado em 29/05/2018
1 Projeto financiado pelo CNPq e executado durante o período de outubro de 2012 a dezembro de 2014.
2 Projeto aprovado pelo Comitê de Ética (Parecer 424.433) e registrado na Plataforma Brasil (CAAE 16301513.6.0000.5153).
3 Dados obtidos através dos Projetos de Trabalho Técnico Social (PTTS) dos conjuntos habitacionais. Os números se referem à frequência relativa encontrada através do levantamento social das famílias beneficiadas em 2012.
4 Scott (1990) propõe que gênero seja utilizado como categoria de análise histórica. Basicamente, a categoria implica análise em dois níveis integrados: o gênero como elemento constitutivo das relações sociais, baseado nas diferenças percebidas entre os dois sexos; e gênero como forma básica de representar relações de poder em que representações dominantes são apresentadas de forma natural e inquestionável.
5 As palavras e expressões em itálico e entre aspas referem-se às falas literais de moradores e moradoras.