Pesquisas e Práticas Psicossociais
ISSN 1809-8908
Ladainhas de juventudes: enredos de meninas-mulheres ribeirinhas e seus (des)encontros com a escola
The litany of life and youth: riverside girls-women's plots and their (mis)matches with the school
Letanías de juventudes: enredos de niñas-mujeres ribereñas y sus (des)encuentros con la escuela
Virginia Caroliny Silva AlexandreI; Maria Teresa NobreII
IMestre em Psicologia Social. Doutoranda em Sociologia na Universidade Federal de Sergipe
IIProfessora Associada do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Doutora em Sociologia
RESUMO
O artigo discute impactos produzidos por projetos de urbanização na cidade de Aracaju, capital de Sergipe, que envolvem antigos povoados de pescadores, sobre o cotidiano de comunidades ribeirinhas, a partir de dois enredos de mulheres jovens, nos quais a escola assume lugar de destaque. Trata-se de pesquisa etnográfica com dados construídos por meio da observação participante e de entrevistas com moradoras. Os enredos falam sobre o cotidiano de mulheres jovens e seus projetos de vida, sendo a escola vista, por um lado, como elemento importante para ascensão social e, por outro, como lugar que permite escapar momentaneamente das obrigações da maternidade precoce, numa comunidade que, apesar das mudanças trazidas pela urbanização, permanece arraigada a valores tradicionais ligados às mulheres e sua inserção no espaço público. As práticas sociais oscilam entre mudanças e permanências, evidenciando táticas cotidianas que reinventam modos de vida e práticas de insurgência, nos atravessamentos entre juventude, gênero e temporalidades.
Palavras-chave: Juventude. Gênero. Escola. Desvio. Mudança social.
ABSTRACT
The paper discuss the impacts on a countryside fisherman village in Aracaju, SE-Brazil, caused by the urbanization process. We analyze the plots, as a life story, from two young women, which school has an important role to play in their lives. The research was involved to the ethnographic perspective with observations and interviews with local residents. The plots explain wome's everyday practices and their life projects. The school is seem in two ways, one as an important element to their social mobility and the other as a place to escape from the precocious maternity obligations, very common in the countryside communities, where women have been more related to traditional values and the difficulties to insertion in the public spaces. The social practices oscillate between changes and remains, which show the everyday tactics to reinvent their lives and the practices of insurgency in intersects among youth, gender and temporalities.
Keywords: Youth. Gender. School. Deviation. Social change.
RESUMEN
Discutimos impactos producidos por proyectos de urbanización sobre el cotidiano de comunidades de antiguos poblados de pescadores en Aracaju, capital de Sergipe, a partir de dos enredos de mujeres jóvenes, donde la escuela asume un lugar destacado. Se trata de una investigación etnográfica, realizada a través de la observación participante y de entrevistas. Los enredos hablan sobre el cotidiano de mujeres jóvenes y sus proyectos de vida, siendo la escuela elemento importante para el ascenso social, sino también , como lugar que permite escapar momentáneamente de las obligaciones de la maternidad precoz, en una comunidad que a pesar de las los cambios traídos por la urbanización, permanece arraigada a valores tradicionales ligados a las mujeres y su inserción en el espacio público. Las prácticas oscilan entre cambios y permanencias, evidenciando tácticas cotidianas que reinventan modos de vida y prácticas de insurgencia, en los atravesamientos entre juventud, género y temporalidades.
Palabras clave: Juventud. Género. Escuela. Desviación. Cambio social.
Introdução
Dentre as cidades litorâneas brasileiras, as capitais do nordeste do Brasil sofreram processos intensos de expansão territorial, acompanhadas de crescente degradação socioambiental nas últimas décadas. Alvo de enorme especulação imobiliária como resultado do incremento do turismo e de outros grandes empreendimentos comerciais, a região tem recebido investimentos de capital nacional e estrangeiro na exploração de riquezas e de bens materiais e simbólicos, gerando um progresso produtor de ganhos híbridos entre o avanço e a insustentabilidade e de problemas que se desdobram, se avolumam e, às vezes, se tornam insolúveis, transformando irremediavelmente os modos de vida local, sobretudo quando bairros periféricos ou áreas rurais são engolfados por esses processos. Nesse cenário, é visível a perda das referências anteriores, calcadas na tradição, mas também a aquisição de novos valores, que produzem novas representações e outras práticas sociais cotidianas, que envolvem afetos e saberes, cuidados com a saúde e com o corpo, relações de trabalho e com a escola, relações de gênero e geracionais, uso do tempo, condições de moradia e de ocupação do espaço, etc.
Debruçando-nos sobre esse contexto e tendo como foco algumas inquietações suscitadas pelo trabalho de campo que desenvolvemos em diferentes situações de pesquisa, 1 vinculadas a uma universidade pública federal, que tiveram como objetivo investigar as relações entre mudanças socioambientais, saúde e modos de vida local, apresentaremos neste artigo algumas reflexões sobre a relação entre juventude e escola, numa área caracterizada como antigo povoado de pescadores e pequenos agricultores, em Aracaju, capital do estado de Sergipe.
A cidade de Aracaju é uma das capitais mais jovens do Brasil, com cerca de 632 mil habitantes. Apesar de ter nascido como uma cidade planejada, seu crescimento foi paulatinamente afastando-se dessa característica e fazendo-se a partir do aterramento de manguezais e da artificialização dos seus canais naturais, o que a faz conviver com graves problemas de escoamento e drenagem em períodos chuvosos. A alarmante degradação ambiental acontece pela forma de ocupação do terreno, que se dá com o desmonte de dunas, aterramento de mangues e de lagoas, acompanhado de condições precárias ou ausentes de drenagem e esgotamento sanitário e pelo elevado número de empreendimentos que vem sendo construído em toda a zona urbana da cidade (França & Rezende, 2010).
A chamada Zona de Expansão Urbana corresponde ao litoral sul da cidade de Aracaju, alvo de grande especulação, tanto imobiliária quanto turística, pois se localiza entre várias praias e o rio Vaza Barris, que circunda grande parte da cidade, numa região muito propícia ao turismo e aos esportes aquáticos. O potencial de crescimento urbano, associado ao incentivo do turismo, para além das perspectivas promissoras de desenvolvimento e progresso, tem provocado inúmeros problemas à população local, referentes não só à ocupação do território mediante a expulsão de moradores e pequenos comerciantes de seus lugares de moradia e trabalho, mas também às mudanças de modos de vida e de subsistência e práticas culturais e comunitárias, incluindo adoecimentos físicos e psíquicos gerados pela nova configuração urbana e ambiental. Por outro lado, também observamos nesse cenário as pessoas reinventando suas práticas cotidianas, de modo a apropriarem-se dessas mudanças a seu favor.
Nas pesquisas realizadas, observamos que nessas práticas de reinvenção de modos de vida pelos moradores locais, que ao mesmo tempo recusam e se apropriam dos impactos dessas mudanças na reconfiguração do espaço rural-urbano, destaca-se a ação das mulheres, nossas principais interlocutoras no trabalho de campo. Pareceu-nos importante fazer esse recorte, mesmo se nos deparamos com uma multiplicidade de diferentes protagonistas. No entanto, o que chamou a atenção foram as redes que as mulheres jovens e adultas conseguem compor e o modo como se colocam em relação às pessoas, coisas e acontecimentos de diferentes ordens. Em vez de reafirmar o discurso que reforça o lugar das mulheres como historicamente submissas devido à cultura do patriarcado, vulneráveis e dependentes, o campo de pesquisa nos fez destacar suas práticas de resistência, discussão à qual retornaremos posteriormente.
Neste artigo o recorte recai sobre a vida de mulheres jovens e pobres, moradoras de um dos antigos povoados de pescadores que hoje integram a Zona de Expansão Urbana de Aracaju, a partir de dois enredos que tomamos como emblemáticos para pensar como se dá o hibridismo entre o antigo e o novo na vida de pessoas que estão crescendo no contexto de grandes mudanças urbanas. Como mulheres jovens experienciam e são afetadas por essas mudanças? Como constroem projetos de vida e perspectivas de futuro? Que lugar a escola ocupa na vida dessas jovens, seja quando vista como elemento propulsor de mudança e de ascensão social, seja quando experienciada como espaço intolerante à diferença e (re)produtor da exclusão social?
Ladainhas e mulherâncias
As práticas femininas, nas suas repetições e mesmices, na lida da vida diária em um povoado que ainda guarda muitos traços da vida interiorana com fortes características rurais, por um lado, mas que se abre diariamente ao novo, ao inusitado trazido pelas mudanças no cenário socioambiental, econômico e cultural da região, por outro, muitas vezes produzindo rupturas com o que antes estava posto, evocou as noções de ladainha e mulherâncias, descritas em Alexandre (2012). Neste trabalho, essas noções foram as principais categorias de análise do cotidiano de mulheres, suas práticas de cuidado e de resistência em meio a um processo de crescimento urbano e de vitimização das mulheres. Adotando essa perspectiva e embora reconhecendo que as mulheres sofrem processos históricos de vitimização, procuramos nos afastar desse discurso. Ao contrário, buscamos sustentar a ideia de que é também nesse cotidiano de repetições e mesmices que as mulheres encontram maneiras de reinventar suas vidas. Para isso, as contribuições teóricas de Michel de Certeau (1999) e de Detienne e Vernant (2008), dentre outros, foram fundamentais.
A noção de ladainha serve para pensar na repetição e na dinamicidade com que o cotidiano se compõe. Ladainha vem das tradições religiosas, de rezadeiras, de benzedeiras: reza-se repetidamente, mas não sempre da mesma forma. São pedidos e súplicas para alcançar uma graça, nos quais uma parte é fixa, a outra muda. Segundo algumas rezadeiras, ela pode ser entoada em qualquer ocasião. Na capoeira também há ladainhas: um canta e todos repetem o refrão, fazendo do canto um processo coletivo. O cotidiano tem uma repetição, um processo contínuo como uma ladainha, mas não acontece necessariamente da mesma maneira.
As mulheres que encontramos no campo da pesquisa tem uma rotina a seguir, cuidados a cumprir, diariamente: acordar, cuidar dos filhos e de si para irem ao trabalho ou à escola, limpar a casa, lavar a roupa, fazer o almoço, limpar a cozinha, trabalhar fora, cuidar da saúde, pagar contas, jantar, colocar os filhos para dormir, estudar, divertir-se, etc. Essa rotina parece uma ladainha, se repete com o passar dos dias; no entanto, não acontece sempre da mesma forma, é reinventada e recriada de acordo com as circunstâncias, com o que surge no acaso, com os problemas, alegrias, com os imponderáveis da vida.
Mulheres que ladainham produzem uma ressonância no cotidiano. O canto é construído com certo nível de força e sentimentos, difíceis de descrever. É uma inflexão compartilhada das vozes, de um canto conhecido, de necessidades e desejos distribuídos em cada entoação. As lidas das mulheres do campo de pesquisa estão diretamente relacionadas com o ladainhar, com esse canto popularmente conhecido.
O ladainhar de mulheres provoca também um outro movimento, o qual viabiliza às mulheres uma circulação, uma errância, uma mudança tática nos seus afazeres cotidianos. Tais movimentos podem ser relacionados ao processo de peregrinar, de mudar, de migrar em relação as suas maneiras de reinventar a vida. A noção de mulherâncias tenta marcar esse percurso. As andanças de mulheres, mesmo as mais próximas, as mais longínquas, as jovens e as adultas, demarcam uma derivação desse processo de ladainhar.
Ladainhar também é, ao mesmo tempo, uma relação de movimento e inércia entoada como uma maneira esperançosa de enfrentar os percalços da vida. A noção de ladainha foi inspirada teoricamente pelo que Michel de Certeau designou como "combinatórias de operações", e com a ideia que desenvolve sobre "consumidores". Assim como também as noções de estratégias e táticas para marcar o ato de ladainhar e sua importância para pensar no cotidiano de mulheres em relação aos seus contextos de vida cotidiana.
Para Certeau (1999), as estratégias são ações objetivas, amplas, dirigidas a um alvo específico, que poderíamos exemplificar como sendo demandas, iniciativas, denúncias, reivindicações, processos judiciais e outras ações políticas. São ações que buscam ganhos específicos, articuladas em torno de interesses definidos, que acionam dispositivos institucionais. Entretanto, na lida cotidiana, as pessoas apresentam modos de resistência ou enfrentamento mais pontuais, difusos, fluidos e passageiros, aos quais o autor chama de táticas. Essas são ações miúdas e astuciosas, que privilegiam o tempo e as circunstâncias, criam surpresas e simulações, aproveitam achados e acasos, a partir de pequenos interesses, dos desejos e das regras que conseguem driblar, mudar ou criar em determinada situação. São gestos hábeis que escapam ao controle e representam um contrapoder, capazes de conferir vitórias, ainda que frágeis e momentâneas a quem as utiliza. Como se poderá ver adiante, são essas práticas as que mais encontramos no campo.
As lidas (ladainhas) e andanças (mulherâncias) das mulheres estão mais em nível das táticas. Estas estão relacionadas a um modo de fazer miúdo, desapercebido cotidianamente que, ao mesmo tempo, potencializam nesse mesmo cotidiano possibilidades de ação. A noção de tática, apresenta continuidades e permanências que em nossa sociedade, "se multiplicam com o esfarelamento das estabilidades locais, como se, não estando mais fixadas por uma comunidade circunscrita, saíssem de órbita e se tornassem errantes" (Certeau, 1999, p. 47).
Nesse sentido, a noção de ladainha que se relaciona à noção de tática de Michel de Certeau também se assemelha ao que Detienne e Vernant (2008) estudaram em "Métis - As astúcias da inteligência". Nesse estudo, os autores aprofundaram ideias relacionadas à metis no vocabulário grego, questionando seu lugar na civilização grega. Eles enfatizam dois vieses: o conjunto das habilidades artesanais; e as formas de inteligência astuciosa próprias de certas potências divinas. "A métis é uma forma de pensamento, um modo de conhecer; implica um conjunto complexo, mas muito coerente, de atitudes mentais, de comportamentos intelectuais que combinam o faro, a sagacidade, a previsão, a sutileza de espírito, o fingimento, o desembaraço" (Detienne & Vernant, 2008, p. 11).
Percursos metodológicos
A pesquisa é qualitativa e adotou a etnografia como norteadora do trabalho de campo, modos de observação, participação e registro da experiência vivida. Tal método nos permitiu olhares e escutas atentas sobre as histórias que compõem o cotidiano e quanto à apreensão da dinamicidade dos acontecimentos, como são reproduzidos e reinventados com o tempo, compondo o cenário social da vida ordinária (Certeau, 1999).
O desafio da entrada em um campo desconhecido consistiu no exercício permanente de estabelecer relações estreitas entre a observação e a descrição, na qual buscamos relatar exaustivamente em diário de campo, num primeiro momento, as especificidades das situações com as quais nos confrontamos naquilo que tinham de singular, sem perder de vista a complexidade dos fenômenos que cercam essa singularidade, aquilo que se repete e aquilo que muda. Assim, ao movimento de impregnar-se do objeto e compreendê-lo por dentro buscamos fazer o movimento inverso de distanciar-nos e vê-lo por fora (Laplantine, 2004), na busca de categorias analíticas de um discurso que não é mais o nativo, mas um outro discurso, que considera a análise das implicações entre o pesquisador, o objeto pesquisado e o campo no qual ocorrem essas relações. A partir dessa perspectiva, o foco de pesquisa passa a ser questionado, tornando visível suas limitações perante o campo, que é complexo, e que precisa de complexidade para se tornar relacionável. Significa, enfim, reconhecer que somos objetivados por aquilo que buscamos objetivar (Lourau, 2004).
Isso implica viver a experiência do/no campo com a sensibilidade de um olhar que vê de um modo particular, que se demora e se move em torno dos objetos que vê e sobre os quais, depois, se constrói uma leitura própria, a qual, uma vez escrita, será lida por outros. Exercitar esse tipo de olhar e de escrita implica um descentramento de outros olhares e leituras, de outros lugares e de outras experiências, deixando-se abordar pelo inesperado e pelo imprevisto (Laplantine, 2004). Nesse percurso, consideramos que os encontros, as conversas, os discursos e as imagens, não são informações a serem passivamente ouvidas, registradas e inventariadas, são experiências a serem compartilhadas (Benjamin, 1980).
A estratégia de entrada no campo e de aproximação dos seus atores sociais e institucionais foi viabilizada inicialmente pelo trabalho de acompanhar as agentes comunitárias de saúde do Programa de Saúde da Família (PSF) da Unidade Básica de Saúde (UBS) em visitas domiciliares. Estas, em geral, estavam voltadas às ações de saúde próprias da atenção básica: orientação a gestantes, nutrizes e crianças menores de dois anos, acompanhamento de pessoas com hipertensão e diabetes, visita a acamados e idosos, orientações quanto ao tratamento da água, informações, consultas, entrega de exames, convites aos jovens, idosos e gestantes para participação em grupos, etc.
Nessas situações, buscando conhecer as relações entre as mudanças socioambientais e os seus impactos sobre os modos de vida, não usamos roteiro de entrevista ou de observação estruturada. Escuta e olhar flutuante foram os principais recursos metodológicos nessa fase da pesquisa: observávamos as pessoas, o ambiente e registrávamos suas queixas e experiências, que em muito extrapolavam questões diretamente vinculadas à saúde: a chegada do desemprego, da violência e das drogas, a saudade de tempos nos quais se podia "dormir com a porta aberta", a falta de parentes e vizinhos que se mudaram, a chegada das chuvas com suas inundações. Os novos afazeres que surgiram, a internet que chegou, a pesca de mergulho e novos esportes aquáticos, que "matam o rio", a preocupação com os filhos que passaram a estudar longe e a ter outras oportunidades de lazer, os projetos de futuro dos jovens ou a ausência de perspectivas e gravidezes precoces, as dificuldades com os estudos e com a escola foram questões que atravessaram o trabalho de campo e que nos interpelaram, impondo novas questões de pesquisa.
Sendo pessoas que têm acesso a todas as áreas do povoado e que conhecem bem a comunidade, por também serem moradoras do local, as agentes comunitárias de saúde se tornaram copesquisadoras conosco: pudemos nessas andanças adentrar lugares e nos aproximar de pessoas cujo acesso teria sido impossível por outras vias. Elas nos indicavam lugares a visitar, pessoas com quem conversar, faziam acréscimos aos discursos enunciados pelos "nativos", confirmando ou negando suas versões, contando coisas novas e resgatando memórias do lugar e muitas vezes colocando questões que fervilhavam no processo de construção do nosso objeto, alargando as possibilidades de problematização. De "estrangeiros" numa relação inicialmente distante com os "do lugar", que impõe cuidados com o que falar e com os costumes locais, passamos depois de certo tempo de vivência a outro lugar: as portas do campo se abriram com maior facilidade e o andamento dessa experiência de pesquisa conduziu a afetações mútuas e ao reconhecimento de nossa presença como parte da rede de relações que ali se estabeleceram (Magnani, 2003). Assim, depois de certo tempo de convívio, fomos percebendo e participando dos "murmúrios" que ficam entre as pessoas e que produzem ecos extraordinários no sentido de abrir as portas para a aproximação com o cotidiano, com a vida rotineira, principalmente pelas famosas "fofocas".
Através da equipe do Programa de Saúde da Família (PSF), foi possível acompanhar o cotidiano do povoado; conhecer as famílias; o meio ambiente e os impactos da degradação ambiental; as práticas de saúde e de resistência; assim como o próprio funcionamento institucional da Unidade Básica de Saúde, o tipo de assistência prestada e suas relações com outras instituições. Num segundo momento, realizamos entrevistas abertas com moradores antigos e lideranças locais que identificamos nessas visitas domiciliares e em outras ocasiões.
Com essa imersão sistemática, na qual muitas vezes os próprios acontecimentos do campo nos guiavam, fomos atingindo uma saturação dos dados, até que o rotineiro e o inusitado no cotidiano do povoado foram compondo um mosaico que se configurava, cada vez mais, como práticas híbridas, que compunham conexões entre o novo e o antigo, no qual a fixidez das normas e a saudade do tempo perdido marcava o discurso dos mais velhos.
Mas, e os jovens? Como viam e se moviam nesse processo? Esse foi um dos enfoques possíveis que não estava no projeto inicial, alargado pela imersão no campo e pela experiência de deixar-se surpreender pela pesquisa (Santos, 2012). É desse recorte que falamos a seguir.
Enredando o campo e conhecendo enredos da vida: mulheres jovens e pobres mudando com a (c)idade
Os dois enredos que vamos apresentar a seguir escapam aos discursos habituais enunciados na sua quase totalidade por adultos e idosos que encontramos no trabalho de campo: são histórias de mulheres jovens que chamaram a nossa atenção por trazerem para o foco da pesquisa novos atores sociais, perpassados pelas categorias de gênero, juventude e educação, até então não evidenciadas.
O primeiro enredo é o das "meninas-moças"2 que ouvimos em uma situação informal por ocasião de um almoço na casa de uma das agentes comunitárias de saúde. Duas irmãs, estudantes, diferentes e inseparáveis. Suas vidas estão voltadas para estudar para "ter uma vida melhor e ser alguém" e cuidar da casa junto com a mãe. Moram em um terreno dividido entre alguns familiares, tendo cada família a sua casa. As conversas giram em torno do estudar, as dificuldades no colégio, o vestibular e as escassas formas de diversão no povoado onde vivem, pouco frequentadas por elas. A mais velha tem 18 anos e a mais nova 16.
Lamentam que seu colégio "não é forte", estudam em outro bairro da cidade, pois no povoado não tem ensino médio. A internet chega muito lenta e os professores não conseguem dar conta das imensas turmas e de alunos "irresponsáveis e desinteressados, que acabam prejudicando quem quer aprender e passar no vestibular", disse uma delas. A elas resta "estudar por conta própria, sentar na primeira cadeira para que o professor saiba que querem aprender, pois lá atrás não se ouve nada que o professor explica e quando ele não desiste de falar porque ninguém presta atenção!" No povoado suas diversões estão relacionadas a passeios de família, visitar amigas, fazer uma caminhada antes de escurecer. As danceterias e barzinhos do povoado "moça de família não frequenta, fica mal falada". Se ficarem "'mal faladas", como conseguir respeito e um "bom partido pra casar?"; "como minha família vai me apoiar nos estudos se fico mal falada?"
Para muitos pais, o controle da vizinhança serve de escudo protetor das filhas para que não corram o risco de arrumar namorado cedo e desistir de estudar. Citam exemplos de meninas que frequentaram a danceteria e "engravidaram cedo e agora não podem mais estudar, agora têm que sustentar e cuidar do filho". As "meninas-moças" do povoado também não podem ir à Unidade Básica de Saúde e pegar preservativos gratuitamente. Há uma vigilância que "paira no ar", pois se pegarem os preservativos todos saberão que não são mais "moças", e resta se agenciar com alguém mais velho para que lhes distribuam, "mas isso é para as mais ousadas, que arriscam mais".
A necessidade de se "resguardar" para obter respeito, não sair depois que escurece e nem frequentar locais considerados inapropriados para "moças" se torna parte do cotidiano de mulheres mais jovens e solteiras no povoado. Elas buscam uma vida "independente por meio dos estudos" ou que possa estar com a "ficha limpa" na vizinhança caso queiram arranjar "um bom partido". O cuidado para que as moças da vizinhança se "comportem e não fiquem mal faladas" faz parte do ladainhar, seus e de suas mães.
O segundo enredo segue na direção contrária: conta a história da "menina perdida". Em uma das tantas visitas e conversas na UBS do povoado conhecemos duas mulheres gestantes, também irmãs: a mais velha, de uns trinta anos, com sua filha de três anos; e a sua irmã caçula de dezesseis anos, também gestante. Mãe, filha e irmã que são atendidas pela unidade de saúde retratam um cotidiano que "puxa o tapete de vez em quando". A irmã mais velha trabalhava como empregada doméstica sem carteira assinada e quando engravidou parou de trabalhar.
A irmã mais nova engravidou, mas disse que não tem namorado. Estava preocupada em amamentar porque "vai ficar ruim pra sair". Ela contou que sua mãe disse que cuidaria da criança, mas para ela estudar e não para "sair para a bagunça". Quando sua barriga começou a aparecer com a gestação, ela desistiu de ir à escola, por conta dos comentários e olhares dos colegas e dos professores, rejeitando sua condição de gravidez precoce. Disse que se sentia envergonhada e que por isso não frequentou mais a escola. Por isso, sua mãe disse que cuidaria da criança para que ela estudasse e assim, com a esperança de melhoria de vida com a educação, sua mãe faria esse sacrifício, para que ela se transformasse em "uma moça direita".
Em outro dia, encontramos a mãe da menina de três anos, a irmã mais velha, que nos contou que sua irmã mais nova perdeu o bebê, que morreu logo depois de nascer. Disse que ela foi levada duas vezes para a maternidade e mandaram-na para casa, esperar. Na segunda vez, ficou na sala de espera e teve seu filho lá mesmo, sem atendimento, sozinha. Segundo ela, "o bebê pegou infecção e algumas complicações na hora e não resistiu". Comentou que sua irmã estava muito triste, porque queria o bebê. E que agora não sabe o que vai acontecer.
Dias depois a encontramos. Estava abatida e sentada na mesa de um bar, ainda fechado, com outra moça e dois rapazes. Comentamos o fato com a agente comunitária de saúde, que respondeu: "pois é perdeu o bebê, coitada, mas também Deus sabe o que faz, uma criança na mão dela... que anda aí com todo mundo… que faz programa..." Um comentário punitivo revelador de como um comportamento considerado desviante pode dar sentido e legitimar sofrimentos que são dados como merecidos e assim aceitos por todos.
Aquilo que pudemos acessar acerca dos dois enredos pode ser identificado como analisador importante (Lourau, 2004), fazendo-nos perceber que as forças morais que definem "boas e más meninas" pesam-lhes as costas e as deixam em chão batido, seja pela naturalização com a qual docilizam seus corpos em projetos de vida desejáveis e aprovados socialmente, seja quando rompem com a fixidez dessas normas e enredam-se em trajetórias desviantes, o que as pune impiedosamente.
Em ambos os enredos, a escola aparece como elemento importante de inclusão social. No primeiro caso, é um projeto almejado e perseguido, com o apoio da família; no segundo, é um projeto mais da família do que da jovem que a ele se refere como possibilidade de se "livrar" do peso da maternidade precoce, encargo que seria compartilhado pontualmente com a sua própria mãe. A escola é vista como instituição que favorece a ascensão social, que aliada a um bom casamento constituem projetos de vida e futuro para jovens ribeirinhas, quando não se desviam do que é esperado das mulheres no povoado em que vivem.
A concepção de educação como meio de integração da população à cidadania é reafirmada nesse contexto. Uma preocupação que estava no projeto de inúmeros reformadores que instituíram a escola pública obrigatória nos países europeus e nos Estados Unidos e que se espraiou pelo Brasil com as obras de Anísio Teixeira, Paulo Freire e Darcy Ribeiro, entre outros. Assim, a chamada "educação para a cidadania" norteia inúmeros projetos de direitos humanos no País e aparece como elemento de ressocialização, inclusive para adolescentes e jovens em conflito com a lei, em privação de liberdade (Aguiar, 2009) e para outros grupos vulneráveis.
Entretanto, do ponto de vista da escola formal, como vimos neste estudo, há inúmeras lacunas. O sucesso ou o fracasso escolar é remetido ao indivíduo, num contexto em que as áreas rurais apresentam imensas desvantagens, seja porque sequer existem escolas de ensino médio na região, seja porque as mais próximas não apresentam projetos político-pedagógicos condizentes com os interesses das populações locais, numa área em que a organização política de trabalhadores rurais é inexistente, visto que as categorias de pescadores e agricultores estão em extinção. Como afirmam Damasceno e Beserra (2004), nas regiões onde a organização dos movimentos sociais do campo é potente, produz-se tensionamentos entre as práticas escolares e as práticas sociais gestadas na luta política, de modo que nesses enfrentamentos a escola pode tornar-se de fato inclusiva e emancipatória.
No cenário da pesquisa, a escola também aparece como reprodutora das relações assimétricas de gênero, da moral familiar tradicional e da violência simbólica (Bourdieu & Passeron, 2004), expressando nas relações afetivas e pedagógicas os valores conservadores e a intolerância à diferença que existe fora dos seus muros. Vergonha, julgamento condenatório e preconceito se amalgamam, produzindo a evasão silenciosa dessa jovem, num movimento de culpabilização e responsabilização pela sua própria exclusão, ao tempo em que aparece como salvaguarda da moral dominante. No futuro, algo pode ser redimido se ela aderir ao que dela se espera: mudar de vida, "deixar a bagunça (a vida sexual livre e o divertimento) e ser uma boa mãe". Assim, num contexto extremamente religioso no qual essas jovens estão inseridas, a "redenção" aparece no discurso local como principal caminho para readquirir a aceitação, a credibilidade e a retomada de possibilidades de uma vida "normal".
Entre mudanças e permanências: pensando relações de gênero, juventude e escola
Diante desses dois enredos emblemáticos, podemos perceber que esse contexto é marcado por tradições que sinalizam o lugar das mulheres jovens entre o público e o privado. A herança de que o privado, o recolhimento e a "pureza" devem ser valorizados, existe em contraposição às mulheres que se agenciam em outros lugares, desviando-se desse recato. Dois lugares opostos que definem a reputação e o futuro das mulheres nos códigos valorativos que regem as sociabilidades locais.
Para Gilberto Velho (1999, p. 17), "a ideia de desvio, de um modo ou de outro, implica a existência de um comportamento 'médio' ou 'ideal', que expressaria uma harmonia com as exigências do funcionamento do sistema social". Dentre muitos aspectos que podem caracterizar o desvio, aqui ele se encontra ligado às intencionalidades e ao uso que se faz do corpo nesse momento da vida. Nesse sentido, a juventude é colocada como uma fase da vida que requer investimentos pessoais e atitudes dentro de uma certa moral, que vai lhe garantir o sucesso nos projetos de futuro.
Uma pessoa de 16 anos, grávida e que frequenta bares e lugares "escuros" não é bem-vista em um contexto social conservador, com fortes características rurais, não obstante integre a zona de expansão urbana da cidade, que atrai novos moradores e muitos turistas, modificando mentalidades, hábitos, costumes. Nessas relações, a juventude local, longe de se apresentar como gueto, isolado e conservador, aderindo aos valores e normas morais dos seus pais, produz outras demandas, necessidades e desejos, pelo contato cada vez maior e mais estreito com jovens de outros lugares, com aqueles que agora também frequentam o bairro-povoado e, ainda, com um sem número de amigos virtuais de outros rincões, próximos e longínquos, com quem compartilham a vida.
O cuidado ou temeridade que vemos no enredo das "meninas-moças" e o estigma presente no enredo da "menina-perdida", são, na verdade, os dois lados de uma mesma moeda. Há, em ambos, o receio ou a ruptura de um padrão moral que envolve a prática do sexo fora do casamento e a religiosidade que fazem parte dos costumes locais. No primeiro caso, o desvio se impõe pela sua negatividade; no segundo pela sua afirmação. Só há uma concepção de desvio porque vivemos em um meio que tende à homogeneidade e à hegemonização, que, por contraste, define o desviante. Para Gilberto Velho (1999, p. 27), "o desviante é um indivíduo que não está fora de sua cultura, mas que faz uma leitura divergente".
Além disso, esse desvio que as coloca em situação real ou potencial de marginalização retira essas jovens da reta imaginária da preparação para o mundo do trabalho, para "ser alguém na vida". É esperado socialmente que um jovem se torne um "adulto responsável" e suas atitudes desviantes colocam em ameaça esse futuro. Assim, entre a casa e a rua - o mundo da família, o estudo, o lazer e o trabalho - há um circuito vigilante que faz tudo aquilo que escape à norma, incluindo a criatividade e desejos, se tornem, de uma forma ou de outra, desviantes.
Susan Sherwin (1998) analisa a prática do cuidado como instrumento potencializador das mulheres. Essa autora afirma que enquanto várias análises consideram as mulheres como vítimas da opressão, elas mesmas não as veem como meras vítimas, como passivas e insignificantes. Mesmo dentro de um cenário opressor, as mulheres encontram possibilidades de resistir e desafiar as forças que as oprimem (Sherwin, 1998, p. 3).
As consideradas "meninas-moças", estão tomando esse lugar das mulheres no mercado de trabalho como uma alternativa escolhida por elas para fugirem do que era a sua única e inevitável opção: casar, ter filhos e ser dona de casa. Para elas, os estudos estão sendo uma possibilidade de mobilidade social, pois podem colocar o casamento como uma consequência opcional, mais afetiva do que moral e econômica.
Existe, assim, uma destreza no que vem a ser o uso de estratégias e táticas para se mover em um cenário que vulnerabiliza as mulheres e as colocam como submissas. As jovens mulheres ladainham cotidianamente para se defender de olhares que possam "sentenciá-las". O comportamento esperado socialmente de jovens mulheres se diferencia do comportamento esperado de jovens homens. Nisso as relações de gênero estão marcadas por preconceitos e intolerâncias que desvalorizam as mulheres como sujeitos.
Analisando as décadas iniciais do século XX, Margareth Rago fez um estudo sobre a utopia da cidade disciplinar no Brasil dos anos 1890 a 1930, que marca a crescente industrialização e a formação de centros urbanos. Nele, a autora destaca as distinções de lugares públicos e privados, especialmente no que concerne aos papéis femininos. Em, "Do Cabaré ao Lar", ela define os dois lugares e seus respectivos significados que estereotipam as mulheres.
Um modelo normativo de mulher é reforçado nesse momento pregando novas formas de comportamentos que exaltam as virtudes de castidade e esforço individual. Essa normatividade passa a valer para todas as mulheres, especialmente as mais jovens. Nesse contexto, a valorização da mulher no espaço privado, como "esposa-mãe-dona-de-casa", em paralelo com um mercado de trabalho em ascensão, demanda a participação ativa das mulheres.
Com isso, não somente precisam oscilar entre os espaços considerados públicos e privados, mas sim se comportar e carregar consigo maneiras e práticas que valorizem seu mundo privado. "A invasão do cenário urbano pelas mulheres, no entanto, não traduz um abrandamento das exigências morais, como atesta a permanência de antigos tabus como o da virgindade" (Rago, 1985, p. 63). Embora hoje esse valor seja claramente contestado em muitos espaços sociais, entre os jovens e tacitamente aceito entre os adultos, tabus relacionados ao sexo ainda são fortemente encontrados em espaços rurais, como na comunidade pesquisada.
Tanto as "meninas-moças", quanto a "menina perdida", estão sob essa nuvem normativa estigmatizadora que define seus corpos, seus desejos e pensamentos. Suas atitudes estão sendo vigiadas com base nessa moral que julga o que é bom e ruim em relação a uma vida privada ("recatada") e uma vida pública ("desregrada"). O pertencer a tais contextos as diferencia no tratamento recebido nos espaços institucionais, como na escola, em uma unidade de saúde, em suas famílias e mesmo entre colegas, também jovens. E assim, nas palavras de Margareth Rago (1985, p. 63), "todo um discurso moralista e filantrópico acena para ela, de vários pontos do social, com o perigo da prostituição e da perdição diante do menor deslize".
Em "A história da vida privada", Michelle Perrot (2009, p. 161) descreve os processos de vizinhança, no período da Revolução Francesa à Primeira Guerra, dizendo: "os vizinhos estabelecem um código de decência da casa e da rua". Suas reflexões sobre o cotidiano de cidades naquele período nos fazem pensar sobre as formas como as relações sociais de vizinhança estabelecem códigos e disciplinam a vida de jovens rurais. Assim, tais códigos podem determinar as ações e táticas dessas meninas, para compor seu cotidiano e garantir uma "vida melhor". "O olhar da vizinhança pesa sobre a vida privada de cada um e o que dela aflora: O que dirão? A desaprovação, a tolerância, a indulgência dos vizinhos tem a força dos Dez Mandamentos" (Perrot, 2009, p. 161).
Historicamente, o espaço privado vem sendo destinado como espaço exclusivo das mulheres e o espaço público como sendo dos homens. No entanto, a história não se dá dessa forma linear e definida. Segundo Perrot (2005, p. 462), "certamente nem todo o público é masculino no espaço da cidade onde circulam as mulheres".
As mulheres de camadas mais pobres sempre trabalharam. A história nos mostra que desde o início da colonização as mulheres pobres eram maioria na roça e trabalhavam lado a lado com homens e crianças. Além de serem responsáveis pelo trabalho doméstico, sempre tinham uma jornada de trabalho maior que a dos homens e, mesmo assim, sofriam pelos julgamentos morais e inferioridade perante os homens, igreja, vizinhos e pelas próprias mulheres.
No fim do século XIX para o século XX, o processo de urbanização do País veio ressaltar as responsabilidades morais e a necessidade de trabalho das mulheres. Segundo Soihet (2007, p. 371), "as mulheres pobres viviam de acordo com padrões que pautavam a conduta feminina nas camadas mais favorecidas da população. Em geral, trabalhavam muito, não estabeleciam relações formais com seus companheiros, e não correspondiam aos ideais dominantes de delicadeza e recato".
Mulheres consideradas perigosas por serem pobres estavam sujeitas a constante vigilância. Expressavam no comportamento suas condições concretas de existência, "além da violência física, sobre elas fez-se sentir igualmente, a violência simbólica dando lugar a incorporação de inúmeros estereótipos" (Soihet, 2007, p. 398).
Essas considerações apontam para um aspecto importante que tem relações estreitas com os estudos sobre juventudes: os usos e as maneiras de consumir certas práticas, imposições, regras, padrões e assim por diante. Então podemos pensar em como essas normatividades que regem o público e o privado são reinventadas e consumidas por jovens, especialmente em se tratando desse contexto interiorano e ainda rural de um bairro-povoado da cidade de Aracaju.
Sabemos que a categoria juventudes tende a uma generalização, especialmente no que concerne aos modos que é utilizada na análise de fenômenos sociais, a juventude está historicamente relacionada a um "problema social". José Machado Pais (1990) chama nossa atenção para a ênfase dada pela construção sociológica da definição de juventude. Os problemas envolvem a entrada dos jovens no mundo do trabalho; a relação da juventude com marginalidade e delinquência; irresponsabilidade e o uso de drogas, dentre muitos outros aspectos estereotipados sobre a juventude. Coloca, ainda, uma questão importante: a de que essa visão sobre a juventude é construída por adultos e pensada cientificamente por estudiosos de diferentes áreas do conhecimento, "mas sentirão os jovens esses problemas como seus problemas?" (Pais, 1990, p. 144).
A "condição juvenil" de que trata Juarez Dayrell (2007) está diretamente ligada ao contexto social no qual os jovens estão inseridos. Suas reflexões em torno da socialização juvenil o levam a uma resposta para sua indagação acerca da escola: "A escola faz juventudes?" Considera que "é importante situar o lugar social desses jovens, o que vai determinar, em parte, os limites e as possibilidades com os quais constroem uma determinada condição juvenil" (Dayrell, 2007, p. 1108). Para o autor, o processo não se dá como uma rua de mão única, ou seja, nem a juventude faz a escola, nem a escola faz as juventudes. Ambos se fazem em um processo de relação em que muitos outros aspectos de "dentro e fora" dos muros da escola devem ser considerados. Para os jovens de camadas populares, por exemplo, a dimensão do trabalho está muito ligada aos estudos. Muitos têm emprego em paralelo aos estudos e, com isso, o tempo de "ser jovem" aparece, para os estudantes, como algo limitado.
Nos dois enredos descritos neste artigo, estão também marcas dessa relação entre escola, trabalho e "condição juvenil", perpassados pelas relações de gênero que nos fazem pensar na relação entre os acontecimentos microscópicos da vida cotidiana que envolve muitos jovens, e a macropolítica nos quais se situam. A juventude como categoria de análise serve para pensar nos fenômenos sociais que estão ligados ao tempo de vida e às categorizações sociais construídas para explicar as diferenças nesse mesmo momento.
Considerações finais
Retomamos aqui a ideia de ladainha como prática de resistência que apresentamos no início deste artigo. O processo de resistência é um processo ladainhoso, ou melhor, ladainhar consiste em um processo de resistir, no sentido da invenção de táticas de confronto, de teimosias, mesmo sendo essa resistência silenciosa e nem sempre transformadora. Podemos resistir de diferentes formas sobre as mesmas coisas durante a vida, no trabalho, na família, na rua, nas nossas relações afetivas, amorosas, profissionais.
Sendo assim, a ladainha está ligada a uma não desistência, a um "saber ladainhar", a uma esperança que sempre se renova, a uma insistência em continuar, persistir até que um dia possa alcançar o que vem sendo suplicado. Nesse sentido, ladainha e métis se aproximam, não como sinônimos, mas como uma possível relação com as intenções que tal ideia produziu neste trabalho.
Pensando as construções sociais sobre a juventude no campo da pesquisa por essa via, como estaria relacionada a noção de ladainha com os dois enredos que foram descritos? Se a ladainha está ligada a um processo de errância no cotidiano, às mulheres e suas táticas de resistência, como as categorias de gênero, juventudes e educação, num sentido amplo, contribuiriam para desenvolvermos uma escrita sobre tais maneiras de viver?
Consideramos que tais categorias indissociadas dão mais vigor e suporte para pensarmos os enredos aqui apresentados. As mulheres jovens driblam um discurso padrão, respondem ao que delas se espera como mulheres que terão uma profissão e formarão família no futuro, chegando a esse patamar cumprindo as normas estabelecidas e os padrões determinados, como boas alunas, boas filhas, boas meninas. Porém, as respostas nem sempre são as esperadas socialmente. Entretanto, é nesse mesmo padrão que buscam estratégias de mudar o fim da história, poder escolher sua profissão e reinventar um destino com o qual sonham.
Timidamente, deixam escapar as astúcias em relação ao uso do seu corpo e à vida sexual: por exemplo, não podendo acessar diretamente a unidade de saúde para receber preservativos gratuitamente, usam a tática de pedir a algum "intermediário" que o faça. O quão seriam, então, essas meninas tão "moças", recatadas, obedientes e submissas quanto se pensa que sejam? A resistência é uma prática inventiva e astuciosa quando se trata de ser mulher, jovem e pobre em um chão cujas bases são alicerçadas por discriminação e vulnerabilização.
A "menina perdida" que engravida acidentalmente de um pai que não assumiria o filho vive um processo de sofrimento intenso ao perdê-lo no parto. Encontra-se, assim, com o que seria esperado de uma boa mãe, que assume o filho sob qualquer circunstância, ainda que se trate de uma gravidez não planejada e precoce. Seria essa criança um projeto de vida, de futuro, que lhe tiraria da tão frequente e cruel falta de perspectivas que atinge a juventude pobre? Não sabemos. Entretanto, ainda que a gravidez e a espera desse filho tenham lhe aberto portas para uma vida "normal e regrada", a morte da criança é vista como punição "merecida", evidenciando que, não obstante as mudanças e rupturas feitas, a fixidez em antigos valores, sobretudo ligados à tradição familiar, permanece como traço dominante no seu grupo social.
Como essas jovens mulheres estão ladainhando? Como as questões do tempo e do corpo estão relacionadas e preenchendo sentidos em relação ao presente e ao futuro? Como as suas vidas se produzem entre o antigo e o novo no cotidiano de mudanças tão intensas, perdas de referenciais e produção de novas demandas produzidas para os jovens e por eles mesmos? Parece-nos que as protagonistas dos enredos aqui apresentados movem-se entre pontos de tensão que oscilam entre o desvio e a norma, a passividade e a rebeldia, os projetos de futuro e a falta de perspectiva, a obediência e a astúcia. Práticas que se constituem mais como caleidoscópicos do que como mosaicos, assumindo diferentes configurações e desenhos, nunca congelados em ações totalmente herméticas ou definidas pelos outros para si.
Apostamos também que entre os dois extremos que contam as histórias dessas meninas há uma infinidade de outros possíveis. Entre pequenos e grandes desvios que impõem curvas, atalhos, percursos e percalços, outras possibilidades vão se construindo. A mudança do espaço urbano, longe de representar apenas uma nova geografia e urbanidade, define e modula outros modos de ser e viver de meninas que vão se tornando mulheres nesse contexto do crescimento da cidade. Há sempre possibilidades de insurgências, desobediências, indisciplinas, mesmo se invisíveis e silenciosas, que forjam novos modos de ver, sentir e viver entre o que muda e o que permanece. Outras composições, outras engenhosidades, outros sonhos, outros modelos, novas astúcias. Nem tudo é isso ou aquilo, mas isso e aquilo, também. Entre a polaridade "menina-moça" e "menina perdida", modos caricaturais de identificação e rotulação pelos mais velhos que definem o dever-ser das mulheres ribeirinhas, muitas "outras meninas" existem, resistem, subvertem, inventam e reinventam outros jeitos de ser jovem, e nesse cenário o lugar da escola precisa ser reinventado também.
Referências
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Recebido em: 29/9/2017
Aprovado em: 8/8/2018
1 As pesquisas que suscitaram a produção deste artigo foram a dissertação de mestrado da primeira autora (Alexandre, 2012) e o projeto de pesquisa Saúde, meio ambiente e cidadania: um estudo sobre os processos de adoecimento, alternativas de produção de saúde e práticas de resistência em contextos de degradação ambiental, da segunda autora (Nobre Pereira, 2010), na Universidade Federal de Sergipe (não publicado).
2 Em várias regiões do nordeste brasileiro, a expressão "moça", sobretudo em áreas rurais, remete à ideia de virgindade e não tem vinculação temporal com o estágio de vida correspondente à juventude. Assim, nessas regiões, quando uma mulher se casa costuma-se dizer que era ou não "moça", correspondendo à condição de ter permanecido, ou não, virgem até o casamente. Do mesmo modo, quando uma mulher permaneceu virgem ao longo da vida, embora tenha uma idade avançada, é frequentemente nomeada como "moça velha". Por outro lado, nessas mesmas regiões, a expressão "perdida" remete ao oposto: aquela adolescente ou mulher que "perdeu-se" nos seus próprios desejos e que desviou-se do caminho dela esperado: manter a tradição e os costumes condizentes com uma mulher de família, respeitada, recatada e do lar. Uma mulher que "perdeu a virgindade antes do tempo" e por isso passa à categoria de "menina perdida" ou "mulher perdida".