13 4 
Home Page  


Pesquisas e Práticas Psicossociais

 ISSN 1809-8908

     

 

Práticas em psicologia no atendimento a situações de violência conjugal em dispositivos do Sistema Único de Assistência Social (SUAS)

 

Psychological practices in the work with conjugal violence in devices of the Unified Social Assistance System

 

Prácticas de psicología en el cuidado de las situaciones de violencia doméstica en lo Sistema Único De Asistencia Social

 

 

Kamêni Iung RolimI; Denise FalckeII

IPsicóloga graduada pela Faccat (2011). MBA em Comportamento Humano nas Organizações (2014) e Mestre em Psicologia Clínica na Unisinos (2016), com bolsa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio Grande do Sul (FAPERGS)
IIGraduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1996). Especialista em Terapia de Casal e Família pelo Instituto de Terapias Integradas (ITI). Mestre em Psicologia Clínica (1998) e doutorado em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2003). Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos)

 

 


RESUMO

A ampliação das áreas de atuação em Psicologia está permeada pela consolidação de políticas públicas. Este estudo objetivou conhecer e caracterizar as práticas desenvolvidas por psicólogos diante da violência conjugal em dispositivos do Suas, na região do Vale do Paranhana, RS. Partindo de uma abordagem exploratória, foi realizado um estudo qualitativo com oito psicólogos, que responderam a uma entrevista semiestruturada. Identificou-se que realizam predominantemente atendimentos individuais, perpassados pela concepção de gênero, com foco na orientação sobre direitos, legislação e organização da estrutura familiar. Os atendimentos são realizados majoritariamente de forma interdisciplinar com assistente social, ocorrendo, em alguns momentos, sobreposição de intervenções entre esses profissionais. O encaminhamento para serviços da rede foi apontado como a principal intervenção nos casos de violência conjugal. A partir das potencialidades e desafios identificados, propõe-se a realização de intervenções psicossociais embasadas nos pressupostos da Clínica Ampliada, com vistas a qualificar o atendimento a essa demanda.

Palavras-chave: Violência conjugal. Psicologia. Intervenção.


ABSTRACT

The amplification of psychology work fields is permeated by the consolidation of public policies. This study aimed to know and characterize the psychological practices when working with conjugal violence in devices of Suas, in the region of Vale do Paranhana, RS, Brazil. Drawing from an exploratory approach, a qualitative study was executed with eight psychologists who responded to a semi-structured interview. We identified that they perform individual sessions influenced by gender perspective and focused on orientation about rights, legislation, and family structure organization. Sessions are mostly carried out in an interdisciplinary fashion with a social assistant, when professionals sometimes overlap interventions. Referral to other services in the network was considered the most frequent intervention for conjugal violence. Drawing from identified potentialities and challenges, we propose psychosocial interventions based on the presuppositions of Amplified Clinics, with the objective to qualify the service to meet this demand.

Keywords: Conjugal violence. Psychology. Intervention.


RESUMEN

La expansión de las áreas de práctica en psicología depende de la consolidación de las políticas públicas. Este estudio tuvo como objetivo identificar y caracterizar las prácticas desarrolladas por psicólogos delante a la violencia conyugal en dispositivos de Suas en la región de Vale do Paranhana, RS, Brasil. A partir de un enfoque exploratorio, un estudio cualitativo se realizó con ocho psicólogos que respondieron a una entrevista semiestructurada. Se identificó que la asistencia es predominantemente individual, impregnada por el concepto de género, centrándose en la orientación sobre los derechos, la legislación y la organización de la estructura familiar. Los servicios se ofrecen principalmente en forma interdisciplinaria con trabajadores sociales, con alguna superposición de actividades entre estos profesionales. El enrutamiento para servicios de red ha sido designado como la principal intervención en casos de violencia conyugal. A partir de los puntos fuertes y los retos identificados, se propone llevar a cabo intervenciones psicosociales basadas en la Clínica Ampliada, con el fin de mejorar el servicio a esta demanda.

Palabras clave: Violencia doméstica. Psicología. Intervención.


 

 

Introdução

As políticas públicas vêm gerando importantes campos de trabalho para psicólogos, sendo um dos mais recentes o Sistema Único de Assistência Social (Suas), em seus diferentes dispositivos (Koelzer, Backes, & Zanella, 2014; Silva & Corgozinho, 2011), que têm promovido a interiorização e capilarização da atuação profissional (Afonso, Hennon, Carico, & Peterson, 2013; MDS, 2012b; Macedo et ai, 2011). O Suas se organiza por meio da proteção social básica, focada na prevenção e realizada no Centro de Referência de Assistência Social (Cras), e da proteção social especial, organizada em serviços de média complexidade - Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) e de alta complexidade - abrigos para acolhimento de mulheres e crianças (MDS, 2013).

No que tange à inclusão da psicologia nesses dispositivos, Afonso, Vieira-Silva, Abade, Abrantes e Fadul (2012) afirmam as potencialidades que a teoria e a prática em Psicologia podem ofertar para garantia de direitos e superação de vulnerabilidades, salientando a necessidade de que sejam realizadas práticas psicossociais que abordem a interface entre cidadania e subjetividade e sejam interdisciplinares e intersetoriais. Vasconcelos (2011) destaca que as práticas psicossociais partem de um paradigma emergente que prioriza contextos, grupos e ações preventivas, permeadas por uma pluralidade de abordagens e disciplinas.

Identifica-se, entretanto, que muitos têm sido os desafios enfrentados pelos psicólogos para realização dessas práticas psicossociais. Conforme pesquisa realizada pelo Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas (Conselho Federal de Psicologia [CFP], 2013), a realização de psicoterapia individual, em detrimento de atendimentos psicossociais, tem sido comum em dispositivos do Suas. Um estudo qualitativo realizado por Lima e Schneider (2018), com 18 psicólogos que trabalhavam em Creas no estado de Santa Catarina, identificou que o trabalho nesse local ainda passa por um processo de transição, de práticas individualizantes para um olhar mais voltado à complexidade. Para Vasconcelos (2011) e Flor e Goto (2015), os profissionais têm vivenciado a perda de sua identidade profissional na inserção nesse contexto, uma vez que procuram replicar um modelo clínico tradicional que não é compatível com a política pública. Nesse sentido, remete-se também à formação acadêmica em Psicologia, que parece ainda não promover uma preparação que abranja, com suficiência, o trabalho nesse campo (Cruz, 2009; Scarparo & Guareschi, 2007; Senra, 2009).

Complementando a ideia, Silva e Corgozinho (2011) salientam que a dificuldade para realização de práticas psicossociais pode ser explicada pelo fato de não haver referências teóricas e metodológicas que contemplem a ação da Psicologia nesse contexto. Além disso, destacam-se como desafios enfrentados por psicólogos no Suas: a questão ética e do sigilo, em decorrência da organização das salas de atendimento; guarda de prontuários e compartilhamento de informações com outros profissionais; realização de atividades que não seriam de competência do dispositivo em que trabalham (CFP, 2012); dificuldade na definição de papéis entre os profissionais e falta de adesão dos usuários (Biasus & Franceschi, 2015).

No contexto do Suas, o atendimento psicossocial também é premissa para o atendimento a pessoas e famílias que vivenciam violação de direitos por situações de violência conjugal, um dos mais graves problemas sociais, com impactos biopsicossociais (Ministério da Saúde [MS], 2005; Colossi, Razera, Haack, & Falcke, 2015; Minayo, 2007) para quem a vivencia ou a testemunha (Boeckel, 2013). Cabe salientar que as interações violentas podem se manifestar pela violência psicológica, física, patrimonial e sexual (Lei n° 11.340/06). Considera-se aqui também que a dinâmica conjugal violenta proposta por Walker (1979) compreende três fases que têm início com a ocorrência de pequenos conflitos, seguida pela perda de controle e ocorrência da violência e, por fim, uma terceira fase, caracterizada pelo arrependimento, na qual a relação dos cônjuges se reestrutura com a promessa de que não mais ocorrerão situações de violência. Parte-se da premissa de que o acompanhamento psicossocial deve abranger intervenções voltadas a essas diferentes manifestações e as diferentes fases da dinâmica conjugal violenta.

Pesquisa realizada pelo Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas (CFP, 2013, p. 18) aponta que "o acolhimento, a avaliação, a elaboração de laudos e pareceres, os atendimentos individuais e grupais e o encaminhamento da mulher aos demais serviços da rede" têm sido as práticas mais desenvolvidas por psicólogos no Brasil em situações de violência conjugal. No que tange aos encaminhamentos, um estudo realizado com equipes multidisciplinares de três hospitais em Angola (Nascimento, Ribeiro, & Souza, 2014) e um estudo realizado na Suécia, com 42 gestores de diferentes serviços da rede de atendimento (Jakobsson, von Borgstede, Krantz, Spak, & Hensing, 2013) verificaram que os profissionais relatam encaminhar as pessoas que vivenciam situações de violência para atendimento policial ou para outros serviços.

Diante desse cenário, o presente estudo busca conhecer e caracterizar as práticas desenvolvidas por psicólogos nos serviços que compõem a rede de atendimento a situações de violência conjugal do Vale do Paranhana, com vistas à identificação de potencialidades e desafios. Essa região é composta por seis municípios: Igrejinha, Parobé, Riozinho, Rolante, Três Coroas e Taquara. Cabe salientar que Taquara ocupa a 17a posição entre os municípios com maior índice de homicídios de mulheres no Brasil, perpetrados por parceiros amorosos (Waiselfisz 2012), com uma taxa de 14,4%. Cabe salientar também que, conforme Waiselfisz (2012), o Brasil apresenta uma taxa de 4,4 homicídios em 100 mil mulheres, fazendo com que ocupe a 7a posição no contexto de 84 países, considerando o período de 2006 a 2010. Tais dados corroboram a necessidade de investigar a temática nessa região, considerando que a violência nas relações conjugais é de alta prevalência (Colossi, Razera, Haack, & Falcke, 2015) e suas consequências geram impactos nas demandas para atendimento em Psicologia.

 

Método

Foi realizado um estudo qualitativo com delineamento exploratório (Sampieri, Collado, & Lucio, 2013).

 

Participantes

Foram convidados a participar todos os psicólogos que desenvolvem atividades nos dispositivos do Sistema Único de Assistência Social (Suas) no Vale do Paranhana, Rio Grande do Sul. Dos 10 psicólogos que trabalham nesses serviços, oito aceitaram participar, sendo sete mulheres e um homem, com idades variando entre 27 e 40 anos. O tempo de atuação profissional variou de dois a 13 anos. Cinco participantes declararam ter especialização. Em relação aos vínculos empregatícios, seis eram concursados, um cooperativado e um tinha cargo de confiança.

 

Instrumentos

Para coleta dos dados, foi realizada uma entrevista semiestruturada, composta por seis questões que contemplavam os objetivos deste estudo, que são: "Como é sua rotina de trabalho?"; "Atende a situações de violência conjugal?"; "Como realiza o atendimento a situações de violência conjugal?"; "Que abordagens teóricas embasam suas práticas?"; "Que técnicas costuma utilizar para atender situações de violência conjugal?"; e "Que intervenções realizas nesses casos?". Segundo Creswell (2010), a entrevista qualitativa se destina a suscitar as opiniões e concepções dos participantes.

 

Procedimentos éticos e de coleta de dados

Com o trabalho aprovado pelo Comitê de Ética de Pesquisa da Unisinos, sob Parecer n° 016/2015, foi realizado contato com todos os serviços que compõem a rede de atendimento às situações de violência no Vale do Paranhana. Os 10 psicólogos atuantes nos seis Cras e nos três Creas foram contatados, sendo que oito aceitaram participar do estudo. Após os esclarecimentos acerca do estudo e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, conforme Resolução n° 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde, a entrevista foi realizada em local escolhido pelo participante. Cabe salientar que foi solicitado que cada participante sugerisse o local, sendo que todos optaram por realizar a entrevista em seus locais de trabalho, sendo esta, que teve duração em torno de 1h30, com cada participante, gravada em áudio e transcrita posteriormente.

 

Procedimentos para análise de dados

As entrevistas foram analisadas conforme os procedimentos da Análise de Conteúdo (Olabuénaga, 1999).

Estabeleceram-se quatro categorias de análise, a priori, consoantes com os objetivos. De acordo com os conteúdos expressos em cada categoria, foram elaboradas 19 subcategorias, a posteriori, visando caracterizar as percepções aferidas.

 

Resultados e discussão

Foram elaboradas quatro categorias de análise, bem como subcategorias, das quais serão apresentados trechos representativos, com vistas a caracterizar as práticas realizadas pelos participantes. I Quadro 1 apresenta as categorias e subcategorias de análise.

 

 

A categoria de análise 1 ("Objetivos") versa sobre o que os participantes percebem como meta a ser atingida com o trabalho que realizam nos dispositivos onde atuam. nesse sentido, as práticas são realizadas objetivando "direito, proteção e vínculo" (Participante 6), além de acesso para emissão de documentos, tais como Carteira de Identidade, Carteira de Trabalho e CPF e acesso a programas sociais como o Bolsa Família, conforme mostra a fala a seguir: "Então, assim, a gente tá auxiliando na questão da documentação, ajudar a fazer os documentos e outros serviços que podem ser da proteção básica" (Participante 6). Tais objetivos se mostram em consonância com o que a Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais (MDS, 2013) aponta como sendo trabalho social essencial ao serviço que prevê, dentre outras, a comunicação e defesa de direitos, acesso a direitos socioassistenciais e à documentação. Cabe salientar ainda que, conforme a Norma Operacional Básica de Recursos Humanos para o Sistema Único de Assistência Social - NOB/RH Suas (Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome [MDS], 2012a), tais atividades são pertinentes ao Técnico de Nível Superior, função de psicólogos e assistentes sociais no Suas. No contexto deste estudo, os psicólogos relataram que realizavam orientações às pessoas sobre como acessar esses direitos e benefícios.

Ademais, os participantes referem que a ação profissional do psicólogo objetiva o fomento da autonomia da pessoa ou família atendida, pois "ela muitas vezes move a pessoa" (Participante 7). Isso ratifica a importância de uma abordagem emancipadora para efetivar a garantia de direitos e a vivência da cidadania (Afonso et al., 2013; Vasconcelos, 2011).

Os participantes também referem como objetivo principal do atendimento "acolher essas famílias, essas situações específicas de alta complexidade, ajudando elas a se organizarem naquele momento de crise, dando apoio pra elas, até o momento que elas necessitarem" (Participante 8). Esse objetivo foi mencionado tanto por profissionais atuantes no Cras quanto no Creas, o que sugere que as famílias têm sido atendidas sobremaneira quando da ocorrência de uma situação de maior gravidade, em ambos os dispositivos, apesar de estes se proporem a atuar em níveis de proteção diferenciados. Além disso, D'Oliveira, Schraiber, Hanada e Durand (2009) apontam que pessoas que vivenciam violência conjugal, especialmente as mulheres, utilizam com menor frequência serviços de prevenção, o que também pode estar contribuindo para que os profissionais no Suas, independentemente do dispositivo, acabem por direcionar o objetivo de suas intervenções para o amparo quando da ocorrência da crise, em detrimento de práticas que objetivem outros níveis de prevenção ou de acompanhamento sistemático.

Os participantes também tomam como objetivo a promoção de mudanças em relação à estrutura familiar, papéis e funções desempenhadas pelos membros da família, com vistas à modificação de padrões disfuncionais de relacionamento: "trabalhar uma nova organização familiar a partir do que a pessoa traz" (Participante 5). "Então acaba se focando muito mais nessa questão das atribuições assim, dos papéis" (Participante 1). Considera-se que o objetivo de promover mudanças no sistema familiar mostra-se como potencializador para a assunção de novas formas de relacionamento sem a presença de violência, bem como para o fortalecimento de vínculos. Conforme Nichols (2007), o atendimento às famílias está sustentado por novos paradigmas e formas de pensar o ser humano, sendo a dinâmica familiar o alvo das intervenções. Pode-se aferir que esse objetivo de trabalho está em consonância com o previsto nas políticas públicas, mas poucos têm sido os relatos de experiência ou pesquisas na área, no âmbito do Suas, sobre essa prática e suas especificidades (Afonso et al, 2013).

Em relação às abordagens teóricas que embasam as práticas profissionais (Categoria 2), foi mencionada a utilização de pressupostos da Teoria Sistêmica, da Psicologia Humanista e Transpessoal, da Terapia Cognitivo-Comportamental, da Psicanálise e da Psicologia Social. Identificou-se também que os participantes se percebem realizando a adaptação de técnicas dessas diferentes abordagens, conforme mostra a fala da Participante 5: "Mas, na verdade, fazer o atendimento dentro dos moldes da TCC ou da Psicanálise não é possível, então a gente adapta essas questões aqui". Em relação ao arcabouço teórico para o trabalho no Suas, Silva e Corgozinho (2011) referem que, apesar da existência de guias de orientação e das produções teóricas e metodológicas desenvolvidas pela Psicologia, em especial a social comunitária, cabe ao psicólogo, nesse contexto, a reinvenção e criação de novas formas de atendimento para promoção da transformação social dos usuários. Nesse sentido, verifica-se que os participantes desta pesquisa estão adaptando técnicas de diferentes abordagens teóricas de acordo com os objetivos de trabalho, focando especialmente nas orientações e fomento da autonomia.

Por outro lado, alguns participantes relataram a impossibilidade de aplicar pressupostos teóricos de suas abordagens de preferência nas práticas que desempenham nos locais. Conforme a Participante 8, "não se utiliza, assim, nem uma técnica, até por que o atendimento não é psicológico, clínico, então na verdade não tem o objetivo, esse objetivo". Oliveira, Dantas, Solon e Amorim (2011) e Vasconcelos (2011) defendem que, ao se inserirem no Suas, os psicólogos têm poucas informações sobre o que farão e acabam por tentar replicar modelos calcados na clínica tradicional, que preconiza um atendimento individualizado, focado em aspectos intrapsíquicos e que têm, historicamente, sido a intervenção mais abordada nas graduações (Abdalla, 2007; Scarparo & Guareschi, 2007; Teixeira, 1997). A impossibilidade de atuar em consonância com esse paradigma clássico no âmbito do Suas pode levar a um engessamento das práticas dos profissionais (Vasconcelos, 2011). No contexto desta pesquisa, identifica-se que essa percepção pode estar contribuindo para que psicólogos desenvolvam práticas similares às do serviço social, conforme será detalhado na Categoria 5 ("Trabalho Multidisciplinar e Interdisciplinar").

Diante disso, pode-se afirmar que o trabalho a ser desenvolvido no Suas deveria estar calcado em um outro paradigma, o da Clínica Ampliada, também denominada Práticas Emergentes (Carvalho & Sampaio, 1997; Scarparo & Guareschi, 2007) que está focada no fazer psicossocial. Conforme Enriquez (1997), trata-se de conceber a pessoa em múltiplas dimensões, contemplando articulações entre o social e o psíquico. Relações em rede, estrutura social e familiar e aspectos culturais são alvo das intervenções nessa abordagem, sendo que podem ser acessadas por meio de diferentes técnicas, focando na promoção de saúde e na garantia de direitos. Sendo assim, o CFP (2013, p. 91) afirma que o fazer psicossocial difere da psicoterapia tradicional por estruturar "ações de atendimento e de proteção que propiciem condições para a superação da situação de violação de direitos", concepção que surpreendentemente não se identificou na fala dos psicólogos entrevistados. Tal fenômeno pode estar relacionado ao que Vasconcelos (2011) nomeou de engessamento das práticas dos profissionais, considerando a afirmação de que percebem o fazer nesse espaço como não sendo psicológico ou clínico, como se somente fosse possível intervir a partir de um enquadre de psicoterapia, em detrimento de intervenções psicossociais calcadas em promoção de saúde (Flor & Goto, 2015). Considera-se que a promoção de saúde poderia ocorrer a partir de dispositivos diversos, tais como práticas psicoeducativas com o público-alvo dessa política pública, o que estaria em consonância com práticas consideradas emergentes em Psicologia.

A Categoria 3 ("Intervenções") contemplou as especificidades das práticas adotadas pelos profissionais em relação às situações de violência conjugal. A Participante 1 diz que as intervenções são caracterizadas por serem pontuais, focadas no acolhimento, avaliação de demanda e encaminhamentos: "com relação aos atendimentos aqui, são intervenções no sentido de acolher, avaliar a demanda e, quando for o caso, fazer os encaminhamentos necessários". Diante disso, identifica-se que os participantes têm realizado intervenções que remetem ao que é previsto para outros espaços da rede de atendimento, ou seja, o rastreamento da violência e encaminhamento para atendimentos em outros serviços da rede (D'Oliveira et al., 2009), em especial a Defensoria Pública e a Delegacia de Polícia.

Cabe salientar que esse dado corrobora pesquisa realizada pelo Crepop (CFP, 2013), em 2008, mostrando que acolhimento, avaliação de demanda e encaminhamentos estão entre as principais práticas desenvolvidas por psicólogos no Brasil em situações de violência, nos diferentes serviços da rede. Sobre esse aspecto, Akerman (2013) aponta que isso pode fazer com que o público atendido seja submetido a um fluxo burocrático, vivenciando uma nova violência, por não ter suas demandas atendidas a contento (Akerman, 2013; Meneghel et al., 2011).

Destaque enfático foi dado ao encaminhamento, conforme a Participante 2: "Acho que a principal intervenção é o encaminhamento pro Creas. E aí do Creas eles já orientam os outros encaminhamentos necessários". Além dos encaminhamentos entre os dispositivos do Suas, eles ocorrem principalmente para os serviços da rede, em especial Delegacia de Polícia e Defensoria Pública, com foco ao acesso de medidas protetivas e questões jurídicas, conforme mostra o excerto: "vamos encaminhar então, que dia que tu vai na Defensora, segundas-feiras a partir das 13h30min, tu tem que fazer a ligação, pra conseguir a ficha" (Participante 5). Já na fala da Participante 6: "Intervenção de encaminhamento solicitando medida protetiva, como instrução para fazer o BO".

Nesse sentido, D'Oliveira et al. (2009) salientam que é crucial o cuidado para que os atendimentos não se transformem em encaminhamentos automáticos e pressão pela ocorrência de ações, tais como registrar a ocorrência ou separação conjugal, uma vez que, por diferentes motivos, a pessoa pode temer revelar a violência vivenciada, sendo necessário mais do que o registro da ocorrência para efetivar a superação dessa situação. Sobre esse aspecto, Williams e Pinheiros (2006), em estudos com mulheres que denunciaram sofrer violência conjugal, referem que, após a denúncia, observaram redução na ocorrência de agressões físicas, mas não se pode afirmar o mesmo em relação à vivência de outros tipos de violência, em especial a psicológica. Também é possível se questionar se há uma efetiva redução das agressões ou se a mulher opta por não denunciar mais temendo consequências.

Encaminhamentos para outros setores também têm sido identificados como as principais intervenções realizadas por profissionais em contextos internacionais (Jakobsson, von Borgstede, Krantz, Spak, & Hensing, 2013; Nascimento, Ribeiro, & Souza, 2014). Sobre esse aspecto, Jakobsson et al. (2013) afirmam que é como se os profissionais não percebessem que o atendimento a essa demanda está no bojo de suas atribuições.

O atendimento a situações de violência é complexo, considerando que se caracteriza por ciclos de interações que se estabelecem entre um casal (Falcke, Oliveira, Rosa, & Bentancur, 2009; Walker, 1979).

Para cada etapa desse ciclo, um tipo de intervenção seria mais pertinente. Verifica-se que o rastreamento da violência e a atuação quando da situação de crise, bem como os encaminhamentos, são relevantes, mas serão paliativos, haja vista que o ciclo de violência tende a se instalar novamente se não ocorrerem mudanças na relação da díade (Falcke et al., 2009). Nesse sentido, parece que os encaminhamentos atendem muito mais a uma demanda do profissional em eximir-se da responsabilidade com casos de violência do que a necessidade dos usuários que demandam muito mais do que os encaminhamentos burocráticos, mas um efetivo acompanhamento psicossocial.

Quanto aos atendimentos, identificase que têm se configurado preponderantemente como individualizados, mesmo quando diferentes membros de uma mesma família estão sendo acompanhados: "o que eu faço mais são os atendimentos individualizados" (Participante 2); "em geral, nossos atendimentos são individuais" (Participante 5) e "tem atendimento individualizado que a gente organiza pelo menos a cada três semanas, se é uma família que é acompanhada" (Participante 7). Coimbra (1995) verifica que existe uma tendência histórica da Psicologia em individualizar o problema da violência conjugal, abordando-a única e exclusivamente como produto de uma patologia do indivíduo. Essa tendência pode estar permeando o trabalho desenvolvido; contudo, os participantes deste estudo apontam que a realização de atendimentos individualizados deve-se a dificuldades de inclusão dos homens que são considerados agressores. Conforme a Participante 6, "o serviço é focado em direitos, não pode muito atender o agressor, mas estamos pensando nisso". Existem expectativas de que o atendimento ao homem seja implementado, uma vez que muitos têm sido encaminhados para atendimento por meio de determinação judicial: "Quanto aos homens, normalmente trabalham apenas através de via judicial, porque são situações mais graves, onde ele é o agressor, e o serviço prevê o acompanhamento dos direitos da vítima" (Participante 6). Segundo Oliveira e Souza (2006), quando apenas as mulheres são "acolhidas", "fortalecidas" e "empoderadas", quando os homens são atendidos exclusivamente na condição de agressores e quando essa díade é afastada, é provável que a violência esteja sendo evitada, mas não trabalhada.

Conforme Franzoi, Fonseca e Guedes (2011), as políticas de atendimento voltam-se sobremaneira ao atendimento da mulher que vivencia violência, mas ocorrem de forma a não conceber as relações de gênero resultantes de contextos sociais mais amplos, o que pode reiterar desigualdades. Diante disso, Oliveira e Souza (2006) afirmam que, ao atender apenas um dos componentes da díade, o outro componente é violentado, uma vez que nessa situação não lhe é ofertado nenhum tipo de atenção especializada, salientando a importância de abordar a violência como um fenômeno relacional.

No que tange à prática de atendimento a casais, foi possível identificar percepções divergentes entre os participantes. Alguns acreditam na possibilidade dessa modalidade no contexto do Suas, mas encontram dificuldades para sua efetivação, conforme mostra a fala da Participante 1: "Com o casal, raramente a gente consegue trabalhar, porque muitas vezes é só a mulher que vem pro atendimento, os homens vêm pouquíssimo, aderem pouquíssimo, vêm uma vez e não vêm mais, então dificilmente a gente consegue dar continuidade pra esse atendimento do casal, é muito raro". Esse excerto reitera que os participantes têm vivenciado dificuldades para promover a adesão de homens às práticas realizadas e até mesmo a sua presença nos serviços. Por outro lado, outros participantes compreendem que o atendimento de díades que vivenciam violência conjugal não é possível: "Aí tem que atender separado. Mesmo antes de ter duas psicólogas, um profissional atendia uma pessoa e o outro atendia o outro. Mesmo que não era psicólogo, entende? A gente pensava assim: qual é o caso mais grave? Que tá mais difícil? Daí passa para a psicologia" (Participante 5). Tal percepção novamente denota o que Coimbra (1995) refere como patologização individual da violência conjugal, que parte do pressuposto de que tal fenômeno emerge de questões intrapsíquicas.

Cabe salientar que diferentes estudos discutem a efetividade de tratamentos que abordam o casal. Como exemplo, temos o tratamento de casais em situação de violência (Simpson, Gattis, Atkins, & Christensen, 2008; Stith, Rosen, & McCollum, 2002), a terapia construtivista-sistêmica (Gómez & Martínez, 2008), terapia de casal de abordagem sistêmica (Bronz, 2010) e trabalho preventivo com casais (Wagner, Mosmann, & Falcke, 2015). Salienta-se a adaptabilidade dessas técnicas ao contexto do Suas, o que poderia ampliar e facilitar a abordagem de aspectos relacionais e da conjugalidade dos envolvidos (Falcke et al., 2009; Oliveira & Souza, 2006).

Sobre o trabalho com grupos, os participantes identificam que tal modalidade ainda não foi implementada a contento devido a uma série de dificuldades. Segundo a Participante 8, "ampliou a demanda de atendimento e aí a gente também não conseguiu mais dar conta de fazer os grupos". Já a Participante 1 relata frustração: "Me frustra um pouco a questão dos grupos que, em função dessas demandas específicas que chegam, a gente não tá conseguindo". Nesse aspecto, Narvaz (2010) indica que o trabalho com grupos mostra-se muito rentável por permitir o atendimento de mais pessoas, além de mostrar-se efetivo por permitir a abordagem de aspectos mais amplos, o que pode ser apontado como uma importante estratégia a ser implementada. No que tange às situações de violência conjugal, identificam-se algumas publicações que apresentam evidências sobre essa prática: grupos multifamiliares (Narvaz, 2010); terapia de grupo cognitivo-comportamental com agressores (Cortez, Padovani, & Williams, 2005); psicoterapia grupal para mulheres em situação de violência (Gironés & Usaola, 2014); e, inclusive, grupos socioterapêuticos mistos para homens e mulheres envolvidos em relacionamentos com presença de violência conjugal (Ramos, 2013).

Ademais, os participantes mencionam realizar acompanhamentos psicossociais que "são voltados para acompanhamento e não aconselhamento. Trabalhando medida protetiva, comportamentos protetivos, esclarecimento da real situação de riscos, para que a pessoa consiga ver a situação de perigo. Orientar mostrando a gravidade da situação" (Participante 6). Esse acompanhamento, na descrição do participante, tende a ser pontual: "é poder devolver pra ela que ela não está precisando mais, isso é muito terapêutico; então, como é que a gente faz? Geralmente encerra o acompanhamento depois que passou o período de crise". Sobre esse aspecto, questiona-se se tal conduta não poderia impactar como um fator de risco para a reincidência da violência no casal, haja vista que as etapas do ciclo de violência não foram incluídas nessas intervenções, assim como não foi acolhido e acompanhado o agressor.

Sobre esses aspectos, considerando que o acompanhamento psicossocial articula a interface entre diferentes contextos, abordagens e setores (Afonso et al., 2013; Oliveira et al., 2011; Vasconcelos, 2011), identifica-se que tal prática tem sido realizada pelos participantes de forma adaptada ao objetivo de atender as pessoas que vivenciam violência conjugal quando da ocorrência da crise e está focado na denúncia da violência sofrida e nas medidas protetivas. Questiona-se se a intervenção que os participantes, neste estudo, denominam como acompanhamento psicossocial não seria melhor caracterizada pela nomenclatura de rastreamento da violência (D'Oliveira et al., 2009), uma vez que se configura por ser pontual, na identificação de comportamentos violentos e focada no encaminhamento para que a pessoa, especialmente a mulher, acesse a medida protetiva, considerando ainda que, após a cessação da crise, o atendimento no serviço é encerrado.

As práticas de busca ativa e visita domiciliar também foram relatadas pelos participantes como sendo utilizadas. Conforme a Participante 6, "O diferencial é que, ao contrário da psicóloga na saúde, quando o paciente abandona o tratamento e muitas vezes a situação é encerrada, no Creas isso não pode acontecer, quando a pessoa falta muitas vezes é feita busca ativa, porque a violência pode ter se agravado, a gente não abandona os casos" (Participante 6). A busca ativa, bem como atendimentos pontuais com as famílias, também podem ser realizados a partir da visita domiciliar. Conforme a Participante 4 afirma, "tem visitas domiciliares, às vezes eu tenho um breve acompanhamento". Essas técnicas são utilizadas por diferentes áreas profissionais, sendo que a Psicologia está se apropriando delas gradativamente (Oliveira et al2011). De acordo com Drulla, Alexandre, Rubel e Mazza (2009), tais práticas apresentam muitas potencialidades, como o fortalecimento do cuidado familiar e de vínculos com os profissionais, favorecendo um trabalho mais humanizado.

Ratificando que as práticas desenvolvidas por psicólogos, no contexto pesquisado, são realizadas em conjunto com assistentes sociais, na Categoria 4 ("Trabalho Multi e Interdisciplinar"), foi possível aferir algumas especificidades dessa atividade. Ambos os profissionais atuam no Suas na função de Técnico de Nível Superior (MDS, 2012a), sendo preconizado que realizem um trabalho interdisciplinar, o que, consoante com Iribarry (2003), prevê diálogo e trocas teóricas e técnicas em uma relação simétrica, focada em um objetivo comum. Sobre esse tipo de trabalho no Suas, Biasus e Franceschi (2015) e Senra e Guzzo (2012) identificaram que a sua realização tem gerado conflitos entre psicólogos e assistentes sociais, em decorrência da dificuldade de definição de papéis entre ambos.

Nesta pesquisa, foi possível identificar que os participantes se percebem realizando um trabalho em equipe, com relações interpessoais harmônicas no ambiente profissional. Conforme a Participante 6, "vai na sala da colega e pede ajuda. Parceria boa e tranquila. Se tem divergência, existe um respeito e se chega a um denominador comum". Mas questiona-se se as práticas referidas podem ser consideradas interdisciplinares, considerando, por exemplo, o que expõe a Participante 1: "eu procuro trabalhar muito em equipe, assim, sempre pelo menos com uma assistente social, pra não perder o nosso foco, pra que isso aqui não vire uma psicoterapia e deixe de ser uma orientação familiar, um acompanhamento familiar, de acordo com aquilo que a tipificação prevê". Essa mesma preocupação é aludida na fala da Participante 8, que afirma: "por ser um local onde se atende demandas bem complexas, a gente procura sempre atender em duplas, assim, uma psicóloga e uma assistente social, até pra poder dar conta desta demanda que é psicossocial e tira um pouco essa ideia de que as pessoas também pensam que aqui a gente tem que fazer o acompanhamento psicológico sistemático clínico". O trabalho conjunto, conforme as participantes, está alicerçado no objetivo comum de realizar prática que não configure em psicoterapia, como se a presença do assistente social por si só garantisse a realização de práticas psicossociais e não psicoterapêuticas.

Outra questão diz respeito à sobreposição de funções que se observa na fala da Participante 7: "Tu sabe que assim é bem difícil de tu poder dizer assim, até nesse ponto é o psicólogo e até nesse ponto é assistente social, quando tu estabelece uma dupla que tem bastante fluidez. Muitas coisas que a minha colega pergunta era coisa que eu estava abrindo a boca pra perguntar, e tem situações que a gente pergunta as mesmas coisas ao mesmo tempo assim" (Participante 7). Os dados desta pesquisa apontam que, no contexto do Suas, os profissionais da Psicologia parecem exercer as funções previstas para o cargo de Técnico de Nível Superior de forma muito similar ao assistente social: "a diferença do trabalho do psicólogo pra assistente social é no SUS. Na política de assistência é muito pequena" (Participante 7). No âmbito do trabalho interdisciplinar, observa-se que os psicólogos estão realizando ações que se confundem com as práticas realizadas pelo assistente social, acarretando confusão (Biasus & Franceschi, 2015; Senra & Guzzo, 2012) e sobreposição de papéis. A não utilização de práticas psicológicas, por receio de que isso se configure uma prática clínica, permeia esse fenômeno, na medida em que a presença do assistente social é utilizada para que não se configure um atendimento clínico. Pode-se supor que a presença do assistente social vá garantir que práticas clínicas não ocorram? Cabe antes refletir sobre qual clínica está se falando.

Salienta-se a contribuição que as concepções de clínica ampliada ou práticas emergentes (Carvalho & Sampaio, 1997; Scarparo & Guareschi, 2007) podem oferecer para a realização de práticas psicossociais efetivas nesses locais. Cabe destacar que, no âmbito do Suas, o profissional é conclamado a criar práticas (Silva & Corgozinho, 2011), e é possível afirmar que essas práticas podem ser permeadas por intervenções adaptadas de diferentes abordagens. Nesse sentido, sugere-se que contemplem as especificidades do contexto e partam de uma abordagem que coadune aspectos biopsicossociais, em detrimento da clínica tradicional, que se caracteriza por ser individualizante em sua concepção.

 

Considerações finais

A inserção da Psicologia no âmbito das políticas públicas mostra-se permeada por desafios e possibilidades, considerando ser este um campo que conclama para a realização de práticas focadas em um paradigma emergente e que privilegia diferentes âmbitos da complexidade. Entretanto, identifica-se que, nesta pesquisa, o paradigma tradicional, com o exercício de práticas individualizantes, tem caracterizado as intervenções realizadas pelos profissionais. Pode-se afirmar que os participantes referem insegurança quanto ao que pode ou não ser adaptado de suas abordagens teóricas de preferência para o contexto do Suas, haja vista a compreensão de que, nesse local, as práticas não devem ser clínicas.

A realização de atendimentos individualizados nas situações de violência conjugal, orientados pela concepção de gênero, que aborda a dicotomia homem agressor e mulher vítima (Casimiro, 2008), tem sido a mais utilizada pelos profissionais. Identifica-se que esse atendimento, apesar de ser denominado pelos participantes como acompanhamento à família, volta-se sobremaneira a mulheres, crianças e adolescentes. Em decorrência da concepção de que os homens são agressores, o atendimento a eles é percebido pelos profissionais como não sendo possível de ser realizado no âmbito do Suas, acarretando com que não recebam nenhum tipo de atenção especializada (Oliveira & Souza, 2006). Há uma concepção de que se deve garantir os direitos das vítimas e não de todos cidadãos, sendo assim, homens, vistos como agressores, pouco são escutados, o que pode ser um fator de risco para a reincidência de manifestações de violência.

A principal intervenção realizada é o encaminhamento, seguido de orientações acerca de como registrar denúncia e solicitação de medida protetiva. Após essas ações, o atendimento tende a ser encerrado. Esse aspecto chama atenção, pois os dispositivos do Suas se propõem a trabalhar com diferentes níveis de atenção: a prevenção no Cras e a superação da violência no Creas, por meio de acompanhamento sistemático. Diante desse quadro, pode-se afirmar que psicólogos nesse contexto têm realizado intervenções que seriam mais pertinentes a outros serviços da rede, pois se caracterizam pelo rastreamento da violência e encaminhamentos para atendimentos em outros serviços (D'Oliveira et al., 2009). Esse dado corrobora os estudos de Jakobsson et al. (2013) e Nascimento et al. (2014), ao identificarem que essas práticas têm sido as mais utilizadas e parecem estar a serviço de evitar o atendimento à demanda, como se não fosse atribuição do profissional. Hipotetiza-se que a complexidade das manifestações de violência nas relações conjugais e o manejo com pessoas que já manifestaram comportamentos violentos nesse âmbito podem ser fatores que se associam a esse comportamento evitativo.

Considera-se que o rastreamento e a assunção de medidas protetivas são relevantes e indicadas, mas não podem ser as principais ou únicas intervenções (Meneghel et al., 2011), uma vez que cada etapa do ciclo de violência exige intervenções específicas. Nesse sentido, o acompanhamento psicossocial pode contribuir para a abordagem de aspectos relacionais das interações amorosas e familiares; bem como potencializar fatores de proteção, prevenindo agravos e facilitando o rompimento do ciclo da violência. Como limitação deste estudo, está o fato de os dados estarem circunscritos a uma região específica do Rio Grande do Sul, sendo assim, considera-se fundamental que novos estudos busquem ampliar a compreensão sobre o fenômeno também em outros contextos.

 

Referências

Abdalla, I. G. (2007). O ensino de psicologia clínica na graduação: Uma análise a partir de psicólogos clínicos docentes e não docentes. Revista Brasileira de Educação Médica, 31(2), 190.         [ Links ]

Afonso, M. L. M., Hennon, C. B., Carico, T. L., & Peterson, G. W. (2013). A Methodological Approach for Working with Families in SUAS: A Critical Reading through the Lens of Citizenship. Psicologia & Sociedade, 25, 80-90.         [ Links ]

Afonso, M. L. M., Vieira-Silva, M., Abade, F. L., Abrantes, T. M., Fadul, F. M. (2012). A psicologia no Sistema Único de Assistência Social. Pesquisas e Práticas Psicossociais, 7(2), 189-199.         [ Links ]

Akerman, D. (2013). O itinerário de famílias no sistema de garantia de direitos: uma análise do cumprimento de "medidas de proteção". Dissertação de mestrado, Universidade Federal de São João del-Rei, São João del-Rei, Minas Gerais.         [ Links ]

Biasus, F., & Franceschi, M. (2015). O psicólogo no Cras: características e desafios da atuação profissional. Revista de Psicologia da IMED, 7(1), 23-34.         [ Links ]

Boeckel, M. G. (2013). Ambientes familiares tóxicos: impactos da violência conjugal na vinculação entre mães e filhos, no reconhecimento de emoções e nos níveis de cortisol. Tese de doutorado, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Recuperado em 16 julho, 2015, de http://repositorio.pucrs.br/dspace/handle/10923/5482        [ Links ]

Bronz, A. (2010). Terapia de casal e violência: reflexões teórico-técnicas. Psicologia Clínica, 22(2), 235-235.         [ Links ]

Carvalho, M. T. de M., & Sampaio, J. dos R. (1997). A formação do psicólogo e as áreas emergentes. Psicologia: Ciência e Profissão, 17(1), 14-19.         [ Links ]

Casimiro, C. (2008). Violências na conjugalidade: a questão da simetria do gênero. Análise Social, 43(3), 579601.         [ Links ]

Coimbra, C. M. B. (1995). Guardiães da ordem: uma viagem pelas práticas psi no Brasil do milagre. Rio de Janeiro, RJ: Oficina do Autor.         [ Links ]

Colossi, P. M., Razera, J., Haack, K. R. & Falcke, D. (2015). Violência conjugal: prevalência e fatores associados. Contextos Clínicos, 8(1), 55-66. Recuperado em 31 outubro, 2017, de https://dx.doi.org/10.4013/ctc.2015.81.06        [ Links ]

Conselho Federal de Psicologia - CFP. (2012). Referências técnicas para prática de psicólogas(os) no Centro de Referência Especializado da Assistência Social - Creas. Brasília, DF.

Conselho Federal de Psicologia - CFP. (2013). Referências técnicas para atuação de psicólogas(os) em Programas de Atenção à Mulher em situação de Violência. Brasília, DF.

Conselho Nacional de Saúde. (2016). Resolução n° 510/2016. Recuperado em 31 outubro, 2017, de http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2016/Reso510.pdf

Cortez, M. B., Padovani, R. da C., & Williams, L. C. de A. (2005). Terapia de grupo cognitivo-comportamental com agressores conjugais. Estudos de Psicologia, 22(1), 13-21.         [ Links ]

Creswell, J. W. (2010). Projeto de pesquisa: métodos qualitativo, quantitativo e misto (3a ed., M. Lopes, Trad.). Porto Alegre, RS: Artmed.         [ Links ]

Cruz, J. M. de. (2009). Práticas psicológicas em Centro de Referência de Assistência Social (Cras). Psicologia em Foco, 2(1), 11-27.         [ Links ]

D'Oliveira, A. F. P. L., Schraiber, L. B., Hanada, H., & Durand, J. (2009). Atenção integral à saúde de mulheres em situação de violência de gênero: uma alternativa para a atenção primária em saúde. Ciência & Saúde Coletiva, 14(4), 1037-1050.         [ Links ]

Drulla, A. da G., Alexandre, A. M. C., Rubel, F. I., & Mazza, V. de A. (2009). A visita domiciliar como ferramenta ao cuidado familiar. Cogitare Enfermagem, 14(4), 667-674.         [ Links ]

Enriquez, E. (1997). A organização em análise. Petrópolis, RJ: Vozes.         [ Links ]

Falcke, D., Oliveira, D., Rosa, L., & Bentancur, M. (2009). Violência conjugal: um fenômeno interacional. Contextos Clínicos, 2(2), 81-90.         [ Links ]

Flor, T. C., Goto, T. A. (2015). Atuação do psicólogo no Cras: uma análise fenomenológico-empírica. Revista da Abordagem Gestáltica, 21(1), 22-34.         [ Links ]

Franzoi, N. M., Fonseca, R. M. G. S. da, & Guedes, R. N. (2011). Violência de gênero: concepções de profissionais das equipes de saúde da família. Revista Latino-Americana de Enfermagem, 19(3), 589-597.         [ Links ]

Gil, A. C. (2008). Métodos e técnicas de pesquisa social (6a ed.). São Paulo, SP: Atlas.         [ Links ]

Girones, M. L., & Usaola, C. P. (2014). Intervención en mujeres víctimas de violencia de género: experiencia de psicoterapia grupal en un centro de salud mental. Clínica Contemporánea, 5(1), 29-39.         [ Links ]

Gómez, R. G., & Martínez, J. G. (2008). Ensayo clínico de la eficacia de la terapia constructivista-sistémica en casos de violencia contra las mujeres. Apuntes de Psicología, 26(2), 269-280.         [ Links ]

Iribarry, I. N. (2003). Aproximações sobre a transdisciplinaridade: algumas linhas históricas, fundamentos e princípios aplicados ao trabalho de equipe. Psicologia: Reflexão e Crítica, 16(3), 483-490.         [ Links ]

Jakobsson, A., von Borgstede, C., Krantz, G., Spak, F., & Hensing, G. (2012). Possibilities and Hindrances for Prevention of Intimate Partner Violence: Perceptions among Professionals and Decision Makers in a Swedish Medium-Sized Town. International Journal of Behavioral Medicine, 20(3), 337-343.         [ Links ]

Koelzer, L. P., Backes, M. S., & Zanella, A.V. (2014). Psicologia e Cras: reflexões a partir de uma experiência de estágio. Gerais: Revista Interinstitucional de Psicologia, 7(1), 132-139.         [ Links ]

Lei 11.340, de 7 de agosto de 2006. (2006). Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Brasília, DF: Autor. Recuperado em 06 de junho, 2015, de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm        [ Links ]

Lima, F. C., & Schneider, D. R. (2018). Características da atuação do psicólogo na proteção social especial em Santa Catarina. Psicologia: Ciência e Profissão, 38(2), 347-362. Recuperado de https://dx.doi.org/10.1590/1982-3703001402017        [ Links ]

Macedo, J. P., Sousa, A. P. de, Carvalho, D. M. de, Magalhães, M. A., Sousa, F. M. S. de, & Dimenstein, M. (2011). O psicólogo brasileiro no Suas: quantos somos e onde estamos?. Psicologia em Estudo, Maringá, 16(3), 479-489.         [ Links ]

Meneghel, S. N., Bairros, F., Mueller, B., Monteiro, D., Oliveira, L. P. de, & Collaziol, M. E. (2011). Rotas críticas de mulheres em situação de violência: depoimentos de mulheres e operadores em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, 27(4), 743-752.         [ Links ]

Minayo, M. C. S. (2007). A inclusão da violência na agenda da saúde: trajetória histórica. Ciência e Saúde Coletiva, 11, 1259-1267.         [ Links ]

Ministério da Saúde - MS. Secretaria de Vigilância em Saúde. (2005). Impacto da violência na saúde dos brasileiros. Brasília, DF: Recuperado em 15 de julho, 2015, de http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/impacto_violencia.pdf

Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome - MDS. (2012a). Norma operacional básica de recursos humanos do Sistema Único de Assistência Social. Brasília, DF: Recuperado em 17 de agosto, de 2015, de http://www.mds.gov.br/cnas/legislacao/resolucoes/arquivos-2012/cnas-2012-033-12-12-2012.pdf/download

Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome - MDS. (2012b). Relatórios de informações sociais. Recuperado em 17 de agosto, de 2015, de http://aplicacoes.mds.gov.br/sagi/RIv 3/geral/index.php

Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome - MDS. (2013). Tipificação nacional de serviços socioassistenciais. Brasília, DF. Recuperado em 09 de junho, 2015, de http://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/Normativas/tipificacao.pdf

Narvaz, M. (2010). Grupos multifamiliares: história e conceitos. Contextos Clínicos, 3(1), 1- 9.         [ Links ]

Nascimento, E. de F. G. A. do, Ribeiro, A. P., & Souza, E. R. de. (2014). Percepções e práticas de profissionais de saúde de Angola sobre a violência contra a mulher na relação conjugal. Cadernos de Saúde Pública, 30(6), 1229-1238.         [ Links ]

Nichols, M. P. (2007). A evolução da terapia familiar. In R. C. Schwartz & M. P. Nichols (Eds.). Terapia familiar: conceitos e métodos (pp. 29-64). Porto Alegre, RS: Artmed.         [ Links ]

Olabuénaga, J. R. (1999). Metodologia de la investigación cualitativa. Bilbao, Espanha: Universidad de Deusto.         [ Links ]

Oliveira, D. C., & Souza, L. (2006). Gênero e violência conjugal: concepções de psicólogos. Estudos e Pesquisas em Psicologia, 6(2), 34-50.         [ Links ]

Oliveira, I. F. de., Dantas, C. M. B., Solon, A. F. A. C., & Amorim, K. M. de O. (2011). A prática psicológica na proteção social básica do Suas. Psicologia & Sociedade, 23(especial), 140-149.         [ Links ]

Ramos, M. E. C. (2013). Homens e mulheres envolvidos em violência e atendidos em grupos socioterapêuticos: união, comunicação e relação. Revista Brasileira de Psicodrama, 21(1), 3953.         [ Links ]

Sampieri, R. H., Collado, C. F., Lucio, M. B. P. (2013). Metodologia de pesquisa (5a ed.). Porto Alegre: Penso, 624 p.         [ Links ]

Scarparo, H., & Guareschi, N. (2007). Psicologia social comunitária e formação profissional. Psicologia & Sociedade, 19(2), 100-108.         [ Links ]

Senra, C. M. G. (2009). Psicólogos sociais em uma instituição pública de assistência social: analisando estratégias de enfrentamento. Tese de doutorado, Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas, São Paulo.         [ Links ]

Senra, C. M. G., & Guzzo, R. S. L. (2012). Assistência social e psicologia: sobre as tensões e conflitos do psicólogo no cotidiano do serviço público. Psicologia & Sociedade, 24(2), 293-299.         [ Links ]

Silva, J. V. da., & Corgozinho, J. P. (2011). Atuação do psicólogo, Suas/Cras e psicologia social comunitária: possíveis articulações. Psicologia & Sociedade, 23, 12-21.         [ Links ]

Simpson, L. E., Atkins, D. C., Gattis, K. S., & Christensen, A. (2008). Low-Level Relationship Aggression and Couple Therapy Outcomes. Journal of Family Psychology, 22(1), 102-111.         [ Links ]

Stith, S. M., Rosen, K. H., & McCollum, E. E. (2002). Developing a Manualized Couples Treatment for Domestic Violence: Overcoming Challenges. Journal of Marital and Family Therapy, 25(1), 21-25.         [ Links ]

Teixeira, R. P. (1997). Repensando a psicologia clínica. Paidéia, (12-13), 51-62.

Vasconcelos, E. M. (2011). Os psicólogos e sua inserção no Suas: da sensação inicial de perda de identidade ao reconhecimento de uma nova profissionalidade e de suas bases teóricas. In R. Morgado, E. M. Vasconcelos & J. Garcia (Eds.). Cadernos de assistência social: contribuições para a proteção básica e proteção especial (Vol. 1). Resende, RJ: Secretaria Municipal de Assistência Social e Direitos Humanos.         [ Links ]

Wagner, A., Mosmann, C. P., & Falcke, D. (2015). Viver a dois: oportunidades e desafios da conjugalidade. São Leopoldo, RS: Sinodal.         [ Links ]

Waiselfisz, J. J. (2012). Mapa da violência 2012: homicídio de mulheres no Brasil [Caderno complementar 1]. São Paulo, SP: Instituto Sangari. Recuperado em 4 agosto, 2015, de http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2012/mapa2012_mulher.pdf        [ Links ]

Walker, L. E. (1979). The battered woman. New York, NY: Harper & Row.         [ Links ]

Williams, L. C. de A., & Pinheiro, F. M. F. (2006). Efeitos da denúncia da mulher na reincidência da violência física do parceiro. Revista Brasileira de Ciências Criminais, 14(63), 309-332.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 26/9/2016
Aprovado em: 20/11/2018

Creative Commons License All the contents of this journal, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution License